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A história como testemunho, "eu estava lá"

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO

JULIANA ROCHA DE AZEVEDO DA COSTA

A HISTÓRIA COMO TESTEMUNHO

“EU ESTAVA LÁ”

NATAL/RN

2019

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JULIANA ROCHA DE AZEVEDO DA COSTA

A HISTÓRIA COMO TESTEMUNHO “EU ESTAVA LÁ”

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para fins de obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.

Orientadora: Profª. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida

NATAL/RN 2019

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Costa, Juliana Rocha de Azevedo da.

A história como testemunho, "eu estava lá" / Juliana Rocha de Azevedo da Costa. - 2019.

177f.: il.

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Pós-graduação em Ciências Sociais. Natal, RN, 2019.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição Xavier de Almeida.

1. Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Tese. 2. Testemunho - Tese. 3. Narrativa - Tese. 4. História - Tese. 5. Grupo de Estudos da Complexidade - GRECOM/UFRN - Tese. I. Almeida, Maria da Conceição Xavier de. II. Título.

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JULIANA ROCHA DE AZEVEDO DA COSTA

A HISTÓRIA COMO TESTEMUNHO “EU ESTAVA LÁ”

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para fins de obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.

Aprovada em: ____/_____/______

BANCA EXAMINADORA

Maria da Conceição Xavier de Almeida

Orientadora -Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Fagner Torres de França

Examinador Interno - Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Margarida Maria Dias de Oliveira

Examinadora Interna - Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Edgard de Assis Carvalho

Examinador Externo - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP

Iran Mendes

Examinador Externo - Universidade Federal do Pará- UFPA Margarida Maria Knobbe

Examinadora suplente externa - Faculdade Estácio de Natal

Alexsandro Galeno Araújo Dantas

Examinador suplente interno - Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN

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A Francisco Eduardo de Azevedo e Elda Rocha de Azevedo por me ensinarem que é preciso manter-se de coluna ereta, mesmo quando o mundo tenta provar o contrário. A Heitor e Fliper, minhas duas razões do porquê amar e lutar.

À minha irmã Diva, por ser minha segunda mãe em todos os aspectos, e ao meu sobrinho Heder, por ser como um irmão mais velho.

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AGRADECIMENTOS

Cícero (106-43 a.C.), filósofo romano, ensina que “a gratidão não é somente a maior das virtudes, mas a origem de todas as outras”. Nesse espírito de gratidão, eu espero estar atenta e ser justa para agradecer a todos os que fizeram parte desta minha caminhada.

Deus de infinita misericórdia! Olhaste para mim, tão pequenina e derramastes graças abundantes em toda minha vida. Aqui, te agradeço pelo pequeno intervalo de quatro anos, no qual cuidaste com o zelo de pai para que cada cena vivida, cada aprendizado se tornasse amplamente reverberado em minha vida. Colocaste em meu caminho amigos. Proporcionastes grandes mudanças na minha rotina e do meu clã familiar. Fizeste-me encontrar e desencontrar pessoas... aprender com cada uma delas e acrescer as contas das minhas experiências, para que um dia eu me recorde e dê o testemunho do que fizeste por mim. Por tudo, por tudo eu te dou Graças e te Glorifico!

Agora, cuidando de agradecer às pessoas do mundo, lanço a mim mesma um desafio neste texto. Quero registrar, além dos agradecimentos, também a virtude que me uniu a cada um de vocês. Começo, portanto, esta jornada lembrando de Valéria Soares, amiga de trabalho que me dizia antes da seleção do doutorado: “Vai lá, se inscreve! Vai que dá”. A força e a luz de Valéria, devota Hare Khrisna, estiveram sempre presentes. Valéria representa para mim a Fé e a devoção naquilo que não se vê, mas que está presente.

Nesses quatro anos, minha família foi meu sustentáculo, meus pais, meu esposo Fliper, meu filho Heitor, minha irmã Diva, meu sobrinho Heder, meu sogro Cecílio, minha sogra Raimundinha e todos os demais que de forma direta ou indireta estiveram comigo. Todos eles me disseram que seria possível e agiram como se não houvesse dificuldade ou prejuízo. Eles seguraram toda a barra.

Não poderia também deixar de agradecer aos meus “chefes” Josuá Neto e Tâmara Souza, pela compreensão nessa reta final. É muito bom contar com pessoas do BEM como vocês.

Ao retornar ao GRECOM, que grata surpresa conhecer Mônica Karina Santos Reis e me afinar com ela em tantas coisas. A vida nos uniu e nossa amizade floresceu (como ela mesma diz). Mônica me faz pensar na sintonia da amizade.

Ali no GRECOM reencontrei a doce Louise Gabrielle, agora uma mulher de sucesso e amiga para todas as horas. Louise foi a pessoa de grande sensatez que conheci naquele grupo. Nas crises, suas soluções e partilha traziam a calmaria. Como ela foi e é importante para suportarmos aquela pressão. Ela divide, compartilha sua força conosco.

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Na sequência, vieram os amigos de trabalho Adeilton, Alain, Lídia, Gledson, Jair, Luan, Tatiana, Helry, Fagner. Agradeço a cada um pelo que aprendi de forma tão única. Agradeço pelas viagens, risadas, ombros amigos multiplicados e pelas angústias divididas. Vocês para mim são os aprendizados que a vida gotejou ao longo desses quatro anos.

Agradeço pelo empurrãozinho da minha bifurcação, durante a qualificação de doutorado, a Margarida Knobbe. Competência te define, Margô. Agradeço ainda a Paulinha Silveira, que na Itália, e Heder Azevedo aqui mesmo em Natal, gentilmente colaboraram com as traduções do resumo desta tese para línguas estrangeiras.

Minha gratidão segue agora aportando naqueles que se disponibilizaram a deixar neste trabalho sua contribuição mais preciosa, os testemunhos: Margarida Knobbe, Alex Galeno, Eugênia Dantas, Samir Cristino, Josineide Silveira, Thiago Severo, Paula Vanina, Silmara Marton, Renato Figueiredo, Carlos Alberto, João Bosco Filho, Henrique Fontes, Teresa Vergani, Francisco Lucas, Ailton Siqueira e Wani Pereira. A doação das lembranças e do tempo de vocês ao constituírem seus testemunhos não tem preço. As histórias são, como quer Clarissa Pínkola Estés presentes. Estou grata por tantos e preciosos presentes!

Certa vez, ouvi um palestrante que dizia “somos todos devedores uns dos outros”. E nos caminhos desta vida minha dívida e gratidão somente crescem para com Josineide Silveira. Nossa amizade tem atravessado décadas. Mesmo nos anos que passei distante do GRECOM, nunca nos distanciamos. Gosto muito de ti, Josi. Para mim, você sempre representou a generosidade, que a amizade verdadeira promove.

E Ceiça?! Meu Deus, o que dizer desta mulher?! Ela foi a responsável por tudo, pela criação deste grupo de complexidade com características únicas, “o melhor”, como diz Edgar Morin. Ela me acolheu, mexeu comigo, me ensinou tudo o que eu precisava saber para ser uma profissional múltipla, que sabe dar um jeito sempre, mesmo que o resultado não esteja previsto. Ela me recebeu duas vezes, uma por ocasião do mestrado em 2003 e agora no doutorado a partir de 2015, e em todo esse tempo estive em sua mira. Ela me provocou muito, me queria sempre por perto. Hoje entendo como alguém se doa tanto e nos presenteia com seu bem querer. Eu confiei no seu afeto e perseverei, e isso foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Venci muitas vezes suas implicâncias com afeto, e ela me respondeu com seu cuidado.

A todos vocês dedico a letra desta canção:

AMIGO É CASA

Zélia Duncan Amigo é feito casa que se faz aos poucos

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e com paciência pra durar pra sempre Mas é preciso ter muito tijolo e terra

preparar reboco, construir tramelas Usar a sapiência de um joão-de-barro que constrói com arte a sua residência

há que o alicerce seja muito resistente que às chuvas e aos ventos possa então proteger

E há que fincar muito jequitibá e vigas de jatobá

e adubar o jardim e plantar muita flor, toiceiras de resedás não falte um caramanchão pros tempos idos lembrar

que os cabelos brancos vão surgindo Que nem mato na roceira

que mal dá pra capinar e há que ver os pés de manacá

cheínhos de sabiás

sabendo que os rouxinóis vão trazer arrebóis choro de imaginar!

pra festa da cumeeira não faltem os violões! muito milho ardendo na fogueira

e quentão farto em gengibre aquecendo os corações

A casa é amizade construída aos poucos e que a gente quer com beira e tribeira

Com gelosia feita de matéria rara e altas platibandas, com portão bem largo

que é pra se entrar sorrindo nas horas incertas

sem fazer alarde, sem causar transtorno Amigo que é amigo quando quer estar presente faz-se quase transparente sem deixar-se perceber

Amigo é pra ficar, se chegar, se achegar, se abraçar, se beijar, se louvar, bendizer Amigo a gente acolhe, recolhe e agasalha

e oferece lugar pra dormir e comer Amigo que é amigo não puxa tapete

oferece pra gente o melhor que tem e o que nem tem quando não tem, finge que tem,

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RESUMO

O objetivo da pesquisa que originou esta tese foi escrever uma da história do Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM/UFRN, a partir da complementaridade entre as narrativas de várias testemunhas que fizeram no grupo sua formação em pós-graduação. Com 25 anos de existência, esta é uma base de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), vinculada ao Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação e ligada, formalmente, aos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais. Trata-se de um grupo que transcende seu espaço físico onde se localiza e que experimenta e aprende com os mais variados domínios dos saberes. As pesquisas desenvolvidas no GRECOM estão sintonizadas com a construção de uma ciência não redutora que não nivela, mas permite que o sensível opere no lugar da técnica solitária e linear. Trabalhando na perspectiva da religação dos saberes, o GRECOM extrapola os limites físicos da UFRN ao longo de sua história, se tornando uma densa experiência de complexidade para a América Latina. No Brasil, é o primeiro ponto da Cátedra Itinerante UNESCO Edgar Morin para o Pensamento Complexo. É um espaço da religação, no qual se opera uma regeneração do sujeito pesquisador, que passa a ter a oportunidade de fazer ciência com prazer, partilha e paixão. Como historiadora, defendo a tese de que, para se construir uma história plural, é preciso abdicar do lugar de metatestemunha para abraçar um conjunto de experiências que estão na base de formação do grupo e são o suporte para os documentos de várias naturezas que se encontram em seu acervo. Para tanto, busquei nos autores Jean-Philippe Pierron, Edgar Morin, Ilya Prigogine, Jacques Le Goff e Michel Serres os argumentos para falar sobre Testemunho, História, Narrativa e Ciência, bem como nas obras produzidas no GRECOM as pistas para a construção desta história. Para compor meu conjunto de testemunhos acerca do grupo, ouvi os parceiros intelectuais, pesquisadores e ex-estudantes de pós-graduação que fizeram ali seu processo de formação. Fiz isso por meio de entrevistas e de depoimentos escritos.

Palavras-chave: Testemunho. Narrativa. História. Grupo de Estudos da Complexidade.

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ABSTRACT

The main goal of this thesis is to write a new snippet in the history of the complexity study group – GRECOM/UFRN, based on the complementarity between the narratives of several witnesses who did in the Group their postgraduate training. With 25 years of existence, this is a research from Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), linked to the Fundamental and Education Policies Department and, formally linked to the Education and Social Sciences Post-graduation programs. It is a group that transcends its physical space in order to experiment and learn with the various fields of knowledge. The researches developed at GRECOM are aligned with the construction of a non-reducing and non-leveling science, but a science that lets sensitive operate instead of a solitary and linear technique. Working with the perspective of new links for knowledge, GRECOM goes beyond UFRN’s physical limits throughout its history, becoming a solid experience for the Complexity in Latin America. In Brazil, it is the first point for the itinerant chair UNESCO Edgar Morin for the Complex Thinking. This reconnection space is where happens the regeneration of the researcher, that starts to have the opportunity to make science with pleasure, passion and sharing. As a historian, I defend the thesis that, for the building of a plural history, we need to give up the place of witness and open space for a set of experiences that are in the formation base of the group, and that are the support for the countless types of documents we can find on its collection. Therefore, I’ve searched in the writers Jean-Philippe Pieron, Edgar Morin, Ilya Prigogine, Jacques Le Goff and Michel Serres the elements to discuss about Testimony, Narrative, History and Science, as well as in the study works produced at GRECOM, to find the clues to build this history. To compose the set of testimonies about the group, I have tried to listen the intellectual partners, researchers and post-graduation ex-students that had here their own formation process. To get that, I used interviews and written testimonials. In addition to these materials, photographic images were used to complement the historical records regarding the group.

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RESUMÉN

El objetivo de esta tesis es escribir un nuevo fragmento de la historia del Grupo de Estudios de la Complejidad - GRECOM / UFRN, a partir de la complementariedad entre las narrativas de varios testigos que hicieron en el Grupo su formación en posgrado. Con 25 años de existencia esta es una base de investigación de la Universidade Federal do Río Grande do Norte (UFRN) vinculada al Departamento de Fundamentos y Políticas de la Educación y ligada formalmente a los Programas de Postgrado en Educación y en Ciencias Sociales. Se trata de un grupo que trasciende su espacio físico donde se ubica y que, experimenta y aprende con los más variados dominios de los saberes. Las investigaciones desarrolladas en el GRECOM están sintonizadas con la construcción de una ciencia no reductora que no nivela, pero permite que el sensible opere en lugar de la técnica solitaria y lineal. Trabajando en la perspectiva de la reconexión de los saberes el GRECOM extrapola los límites físicos de la UFRN a lo largo de su historia, convirtiéndose en una densa experiencia de complejidad para América Latina. En Brasil es el primer punto de la Cátedra Itinerante UNESCO Edgar Morin para el Pensamiento Complejo. Este espacio de la religación, en el que se opera una regeneración del sujeto investigador, que pasa a tener la oportunidad de hacer ciencia con placer, compartir y pasión. Como historiadora, defiendo la tesis de que, para construir una historia plural, hay que abdicar del lugar de meta testigo para dar lugar a un conjunto de experiencias que están en la base de formación del Grupo y son el soporte para los documentos de varias naturalezas que se encuentran en su acervo. Para tanto busqué en los autores Jean-Philippe Pieron, Edgar Morin, Ilya Prigogine, Jacques Le Goff y Michel Serres los alimentos para hablar sobre Testimonio, Narrativa, Historia y Ciencia, así como en las obras producidas en el GRECOM las pistas para la construcción de esa historia. Para componer mi conjunto de testimonios acerca del grupo, busqué oír a los socios intelectuales, investigadores y ex-estudiantes de postgrado que hicieron allí su proceso de formación. Lo hice por medio de entrevistas y de testimonios escritos. Además de estos materiales, se utilizaron imágenes fotográficas que complementan los registros históricos con respecto al grupo.

Palabras clave: Testimonio. Narrativa. Historia. Grupo de Estudios de la Complejidad.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

NARRATIVA, TESTEMUNHO E HISTÓRIA 22

NARRATIVA QUE SE FAZ CIÊNCIA, QUE SE FAZ HISTÓRIA 25

DO TESTEMUNHO 37

ELES ESTAVAM LÁ! POLIFONIA DO TESTEMUNHO 50

EU TAMBÉM ESTAVA LÁ – MEU TESTEMUNHO 163

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INTRODUÇÃO

Histórias revelam, repetidamente, a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem para obter êxito nas tarefas mais árduas. Elas fornecem todas as instruções essenciais que precisamos para ter uma vida útil, necessária e irrestrita, uma vida significativa, uma vida que vale a pena ser lembrada.

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O abismo causa vertigens até no alpinista mais habilidoso, que do alto contempla o risco. Esta tese apresenta a experiência de um grupo de pesquisa que vive uma proposta de reforma universitária que extrapola os limites da ciência da fragmentação, de modo semelhante a quem está disposto a gozar do prazer e do risco de fazer um piquenique num local improvável, à beira de um abismo. Trata-se do Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM/UFRN), reconhecido institucionalmente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no ano de 1992, como uma base de pesquisa ligada aos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais, e internacionalmente como o primeiro ponto da Cátedra Itinerante Unesco Edgar Morin para o Pensamento Complexo (CIUEM), com sede na Universidade El Salvador - Argentina.

Participar desta reforma universitária representa para o GRECOM estar comprometido com a produção de uma ciência da inteireza. O GRECOM vai muito além de ser um espaço físico institucionalizado de pesquisas onde se reúnem orientadores, intelectuais e alunos. O grupo alcançou a maturidade dos seus 25 anos, neste ano de 2018, com uma vasta produção científica no âmbito das ciências da complexidade, transformando o “trabalho acadêmico numa estética do pensar com prazer, partilha e paixão, mesmo consciente de que a crueldade, a competição e o desencanto estão enraizados no mundo universitário” (ALMEIDA; KNOBBE, 2003, p.9).

A produção intelectual do GRECOM propõe a religação da poesia com a prosa, da cultura científica com a cultura humanística e com os saberes da tradição, promovendo a auto-organização do pesquisador por meio de sua implicação no conhecimento. Os trabalhos desenvolvidos se movem pelo método como estratégia, de acordo com a concepção de método complexo de Edgar Morin (MORIN, MOTA e CIURANA, 2007). Para operar na lógica de uma nova estética do pensamento, o rigor e a sensibilidade se tornam princípios indissociáveis. O grupo tem construído um espaço no campo das ideias que tem sido possível exercitar uma reforma do pensamento, com vistas a uma reforma da universidade.

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Ao longo de sua história, tornou-se um lugar de resistência aos velhos paradigmas da ciência, aos processos de “cretinização” e “fragmentação do conhecimento” (MORIN), propondo uma politização do pensamento. Apesar do pequeno espaço físico onde se localiza, ocupando alguns poucos metros quadrados do Centro de Educação/UFRN, sala 14, a convivência entre pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento faz do GRECOM um espaço mestiço e polifônico, irradiador de ideias e afetos. Ali, pedagogos, advogados, biólogos, enfermeiros, filósofos, geógrafos, cientistas sociais, nutrólogos, físicos, historiadores, músicos, dentre outros profissionais, sentam à mesma mesa para dialogar sobre a ciência numa experiência de troca de saberes, numa ciência gestada sem fronteiras. Tudo isso supõe risco, ousadia e construção coletiva. No GRECOM, acredita-se que a pesquisa deve ultrapassar programas cognitivos pautados pelas monoculturas da mente (Vandana Shiva), abrindo caminhos às estratégias de pensar alimentadas pela dialógica e complementaridade entre conhecimentos, com vistas a uma ecologia das ideias e da ação, conforme sugere Edgar Morin.

Pioneiro no Brasil nas pesquisas acerca das ciências da complexidade, o GRECOM promoveu o intercâmbio de ideias com vários intelectuais brasileiros e estrangeiros, como: Edgar Morin, Edgard de Assis Carvalho, Henri Atlan, Ubiratan D’Ambrósio, Teresa Vergani, Lia Diskin, Norval Baitello Júnior, Leonardo Boff, Boris Cyrulnik, Dietmar Kamper, Daniel Munduruku, Emílio Roger Ciurana, dentre outros.

Para se ter uma ideia da ousadia e do alcance das atividades do grupo, em setembro de 2010 o GRECOM realizou na Cidade de Natal a II Reunião da Cátedra Itinerante Unesco Edgar Morin para o Pensamento Complexo (CIUEM) e promoveu a Conferência O Destino da Humanidade, proferida por Edgar Morin, na Praça Cívica do Campus da UFRN, para mais de 8 mil pessoas. Que outro grupo foi capaz de levar à Praça Cívica do Campus da UFRN, em plena sexta-feira à noite, um quantitativo de milhares de pessoas para uma conferência de um intelectual estrangeiro?

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A trajetória do GRECOM começou a ser construída bem antes. Nascido em 1992 como bifurcação do Grupo de Estudos da Seca, o Grupo Morin transformou-se em 1994 no Grupo de Estudos da Complexidade. Na verdade, uma pesquisa anterior pode ser identificada como o casulo do Grupo Morin e do GRECOM. Trata-se da pesquisa iniciada em 1986 na região da Lagoa do Piató e que, até hoje, constitui-se num eixo temático importante para o grupo. Ao longo de 32 anos foi se consolidando o eixo de pesquisa “Conhecimento Científico e Saberes da Tradição”, o qual dá origem a uma constelação de trabalhos acadêmicos, como monografias, dissertações, teses, livros, artigos, eventos, textos jornalísticos. Na região de Assú/RN, dois projetos de extensão merecem destaque: o Projeto Estaleiro de Saberes, dedicado a formação de professores, e a edificação da Casa da Memória do Piató Chico Lucas.

Merece destaque ainda um outro projeto de extensão, dessa vez no Parque das Dunas de Natal, a Casa Mãe-Terra. Inaugurada no ano de 2003, a Casa é uma homenagem à maternidade do planeta que nos gesta, pariu e sustenta. A proposta de criação da Casa Mãe-Terra uniu os saberes da tradição de um mestre taipeiro e os saberes científicos de um arquiteto. Ambos trabalharam o esqueleto de varas e a carne de barro para dar forma a uma mulher de pernas abertas, de cócoras a parir. Essa mulher está a saudar a todos que passeiam pelo antigo Bosque dos Namorados, hoje Parque das Dunas, e a nos relembrar da nossa ligação com o planeta, Casa e Mãe de todos nós. A construção da Casa Mãe-Terra se mostra como uma prática exitosa da religação da Cultura Científica, Cultura Humanística e Saberes da Tradição. Os frutos desses trabalhos não existiriam hoje se não houvesse quem acreditasse de forma tão inteira nesse diálogo entre a Ciência e os Saberes da Tradição. Para Moura (1992, p. 24),

a ciência é apenas uma das formas de conhecimento do mundo e, de sua transformação, não decorrerá necessariamente a mudança profunda das formas de pensar, a não ser que assuma também ela a coordenação do inadiável intercâmbio entre saberes distintos.

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Michel Serres (2015) diz que todos nós precisamos de uma narrativa para existir. Se é assim, o GRECOM passou a ter existência com mais essência pelas páginas das publicações que trazem fragmentos de sua história. No ano de 2003, em parceria com Margarida Maria Knobbe, a coordenadora do grupo, Conceição Almeida, escreveu Ciclos e Metamorfoses: uma experiência de reforma universitária, livro publicado pela Editora Sulina e com edição esgotada. Anos mais tarde, em 2012, mais um fragmento colaborou com o registro dessa história, o livro GRECOM – 20 anos: incertezas, apostas, metamorfoses revela a trajetória dos sete anos seguintes, quando então o GRECOM completava duas décadas de vida. Outras iniciativas para colaborar com esse registro histórico foram feitas, a exemplo do Catálogo de teses e dissertações, criado por Bruna Hetzel e permanentemente atualizado. No ano de 2017, a então doutoranda de pós-graduação em Educação Mônica Karina Santos Reis escreveu a tese Reinventar a universidade: um ensaio sobre o Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM/UFRN). Nela, Mônica trouxe mais uma colaboração para o registro dessa história. Como bibliotecária de formação, Mônica criou a catalogação de um vasto material que incluiu todo o acervo documental disponível no GRECOM, composto por relatórios de pesquisa, projetos, livros, catálogos, monografias, dissertações, teses, fotografias, cartazes, banners, convites e demais registros das atividades desenvolvidas. A tese defendida por Mônica é a de que o GRECOM é uma miniuniversidade, se apoiando para isso no conceito de modelo reduzido de Claude Lévi-Strauss (ALMEIDA; REIS, 2018).

Em mais de duas décadas de existência, o GRECOM tornou-se celeiro de muitas histórias, obras, projetos, percepções de mundo, tornando-se um lugar vivo, em cada parte do ambiente físico ou do espectro intelectual. Vi nos argumentos de Morin, nos escritos de Para um Pensamento do Sul (2011), a resistência na qual o GRECOM se empenhou por décadas. Vi que Morin fala das “reservas antropológicas da condição humana; [das] capacidades criativas de regeneração da diversidade cultural; [dos] estilos de viver mais próximos da dinâmica da natureza estendida [...]”. Reis (2018, p.

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114) explicita esse papel de incubadora de devires com o conteúdo atitudinal do grupo:

As dinâmicas vivenciadas pelos pesquisadores que aderem ao sobrenome GRECOM, conforme expressão criada por João Bosco Filho, o modo como a fundadora e coordenadora do grupo conduz as orientações e a realização das pesquisas, a responsabilidade em se constituir como uma incubadora e propiciar o nascimento de grupos na UFRN e em várias outras instituições públicas de ensino superior no país são sinais de vitalidade, da atualização, do engajamento, da ampliação e da superação do ideário humboltiano de universidade.

Clarissa Pinkola Estés, na obra O dom da história (1998, p. 7) me confere a pista de que estou no caminho certo ao contribuir com mais um fragmento dessa narrativa histórica: “considera-se que uma sequência de histórias proporciona um insight mais profundo do que uma história”. Para tal empreendimento, optei por voltar ao meu lugar de origem, afastada já há alguns anos da pesquisa, e reviver o papel de historiadora. Meu desejo aqui não foi realizar a história cronológica ou o arquivamento documental do grupo. Sabendo que a história é muito mais do que transformar os documentos em monumentos (Le Goff), acabei por mudar de rota, pois não concebo mais a História como uma “coletora de vestígios”; não como resto, mas como uma concepção. Não gostaria de repetir os grandes feitos, mas gostaria de conferir lugar ao pitoresco, à história das necroses, das inconstâncias, constâncias, a história das pequenas alegrias, dos encontros e desencontros desse grupo por meio de experiências muito particulares de quem esteve lá e pôde testemunhar isso.

A história aqui adere aos pressupostos de sua natureza descontínua, conforme Gaston Bachelard. Longe da obsessão pela exatidão da origem, do encadeamento lógico e cronológico das narrativas e dos encaixes de causa e efeito entre os acontecimentos narrados, me aproximo mais da dinâmica dos fenômenos em suas oposições, complementaridades, turbulências, tensões, desvios, bifurcações e fluxos indeterminados. Valorizo a história descartada em parte pelos historiadores, aquela que ganhou status de um gênero literário, uma arte ao mesmo tempo em que uma ciência. Para a história do

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GRECOM não irei contribuir com mais do que um fragmento, por ter consciência da incompletude dos fenômenos, por convicção de que este fragmento é suficiente em si mesmo, ele se basta.

Novos fragmentos ainda virão, certamente escritos pelo mesmo desejo que me moveu: saber e deixar como presente uma história. Dessa perspectiva, o fragmento da história do grupo apresentado nesta tese equivale a reconhecer na parte o todo em sua abertura e impoderabilidade. Porém, é importante dizer que o GRECOM não se configura como uma fábrica de bons intelectuais; não trabalha a partir de uma matriz de pesquisador zerada; jamais aceita tais reducionismos, porque opera permitindo o diálogo com as riquezas que cada um já traz consigo.

Para dar conta desse universo, utilizo como meu operador cognitivo o TESTEMUNHO, ele que é narrativa, e, nas palavras do filósofo Jean-Philippe Pierron (2010), a “carne do mundo vivo”. Sua obra Transmissão: uma filosofia do testemunho foi um divisor de águas para minha pesquisa, que vinha operando com o documento de forma repetitiva. Dessa forma, testemunho se faz narrativa e narrativa se faz ciência histórica, ultrapassando o velho paradigma que separava o objeto do meio e, portanto, ciência de narrativa. Ora, é Prigogine quem assevera que a grande característica de inovação nas ciências a partir das descobertas da Física Quântica é a “aceitação do elemento narrativo como parte constituinte da história”. Descobrimos hoje o elemento narrativo dentro do universo em todos os níveis: na cosmologia e na biologia molecular, e também na cultura humana” (PRIGOGINE, 2009, p.79).

Considerando que esta tese foi escrita no âmbito do Grupo de Estudos da Complexidade, o elemento da narração na construção científica não poderia se ausentar, uma vez que a narrativa é, como quer Prigogine, um elemento importante nas ciências da complexidade. Pierron me fez perceber, como historiadora, que eu jamais poderia ser uma metatestemunha, ou seja, eu jamais poderia falar do conjunto das experiências que estavam na base e eram suporte para os documentos de várias naturezas que se encontram no acervo do GRECOM.

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Assim, esta tese traz um componente novo, no qual figura aquilo que foge à descrição. Decidi, então, construir a história desse grupo a partir da complementaridade entre as narrativas de várias testemunhas que fizeram ali sua formação em pós-graduação. Conforme Pierron (2010, p. 142), a história narrada, formada em grande parte pelo testemunho, opera um trabalho de memória, daquilo que lembra e do que esquece, ambos de extrema relevância no processo. “A dialética da cientificidade do relato histórico e da oficialidade do que uma cultura leva a crer ou quer acreditar elabora um movimento crítico contínuo”. Nesse sentido, “o espelho do passado não devolve forçadamente a imagem que se esperava”.

Ao invés, pois, de anunciar uma pergunta norteadora, como é comum numa certa forma de conceber a produção da ciência, afirmo aqui uma questão ansiogênica que me tatua: o TESTEMUNHO na modelagem da narrativa colabora com a escrita da história do Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM/RN) por quem ali vivenciou a experiência de uma forma singular de fazer ciência. O GRECOM é um acontecimento, tem produzido uma mudança na ordem das coisas. Minha tese objetiva, portanto, transformar em texto o que é a dinâmica de um acontecimento, por meio do testemunho na concepção da ciência como narrativa, como construção humana. Mesmo considerando, como Pierron, que a testemunha não tem nada de novo a dizer, o que me interessa é o modo de dizer, o sentido que ela confere à sua narrativa. É necessário pensar a estética do testemunho e seu alcance, essa noção tão pouco discutida epistemologicamente pela ciência, e por vezes ausente na formação do historiador.

A maior parte das palavras acompanha nosso cotidiano sem que nos preocupemos muito com o sentido que elas carregam. Porém, algumas palavras são pronunciadas ou ouvidas numa situação-chave que nos marca. Foi assim com a palavra testemunho para mim. Na ocasião da minha qualificação de doutorado, a professora Margarida Maria Knobbe me ofereceu uma possibilidade de sair da repetição e trazer um desafiante elemento novo para a minha tese, o testemunho, pela obra de Jean-Phillipe

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Pierron. Ao iniciar a leitura da obra e vê-lo falar sobre testemunho e testemunha, me reportei quase que automaticamente às minhas orações, em especial ao terço da misericórdia. Para aprender a rezar aquele terço, eu acompanhava por meio de um CD no qual o locutor narrava uma meditação de Jesus, na passagem pelo Jardim das Oliveiras, o Getsêmani. Anos mais tarde, descobri que o texto era de autoria de uma mística cristã – Vassula Ryden:

Ó Getsêmani! Que revelaste tu senão medos, angústias, traições e abandonos! Getsêmani, tu tiraste aos homens toda a coragem. Tu albergaste, em teu ambiente, dominado pelo silêncio, as Minhas Angústias, por toda a Eternidade. Getsêmani, que tens tu para revelar que não tenhas já revelado? No silêncio da Santidade, tu

foste testemunha da traição ao teu Deus; tu deste testemunho de Mim [...] Ó Getsêmani, testemunha do Atraiçoado, testemunha do Abandonado: levanta-te, testemunha e dá testemunho! (grifo

meu)

O texto invoca a testemunha e seu testemunho com tamanha ênfase, que naquele momento o jardim foi personificado. Naquele instante, a terra e a vegetação eram chamadas a sair do seu estado inanimado para testemunhar a agonia do Cristo. Revela Pierron (2010) que a própria acepção do termo testemunho liga-se ao verbo dar e, nesse sentido, o significado atribuído ao ato de dar remete a devolver aquilo que foi recebido, “restituir aceitando uma desapropriação”. Nesta pesquisa, nossas testemunhas gozam de outro estado mais propício à manifestação de seu testemunho, são eles homens e mulheres, mais jovens ou mais maduros, que acompanharam a história do grupo ou estiveram ali por um determinado tempo.

O testemunho e os acontecimentos estão imbricados. Juntos, eles constroem a história. Considerando que a historicidade, conceito oriundo da filosofia da história, apresenta a dinâmica humana de apreensão, interpretação e transformação das coisas do mundo, é ela que permite ao historiador a transposição da unicidade para a polifonia. Aqui novamente vale o alerta de Bachelard (1977), ao criticar uma versão continuísta da história, ele expõe o cuidado para que sejam relativizados os pormenores que desfiguram a sequência dos acontecimentos. Considerando que a

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historicidade permite olhares, interpretações e posicionamentos dos mais variados acerca do fato histórico, me pergunto: não seria o testemunho o operador capaz de mostrar ao mundo as mais variadas interpretações para um fenômeno? Não seria ele a chave possível para ter inúmeras “verdades” sobre o mesmo fato? Nas palavras de Pierron (2010), o testemunho religa, sutura informações do mundo e sua história (escrita e vida, texto e ação, narratividades e exterioridade). Ele nos permite assistir o que já não se pode ver. Sua relação com o passado poderá lhe conferir a força de um indício, e esse se configura em matéria-prima do trabalho do historiador.

Para dar conta do desejo de escrever a história do GRECOM, iniciei esta pesquisa me debruçando sobre o extenso acervo consolidado no grupo, mas foi somente na Qualificação do Doutorado que meu método começou a se desenhar com mais clareza. Em conjunto com minha orientadora, fizemos uma listagem de narradores que contemplasse de certa forma a dispersão geográfica, de áreas de conhecimento, e, por fim, que abrangesse uma escala temporal, a mais ampliada possível, tendo em conta que o GRECOM completaria 25 anos em 2017. A partir desses três critérios (espacial, de área de conhecimento e temporal) chegamos até as testemunhas aqui presentes. Elas se constituem, portanto, em 16 narradores selecionados para compor esse caleidoscópio e expressaram a dinâmica viva da produção, da pesquisa e da ciência nesse grupo. Convidei, então, as testemunhas para narrar, problematizar, expor e avaliar o tempo em que estiveram imersas no GRECOM. As críticas, os problemas, os entraves e as necroses foram também, certamente, partes importantes expostas por elas. Cada um escreveu sua narrativa a partir da sua própria organização do pensamento, deixando de falar de alguns itens e recrutando outros inesperados.

Apresentar a história do Grupo de Estudos da Complexidade nada mais é do que relacionar o fragmento e o contexto, o local e o global e utilizar da metáfora da arte para falar de ciência no século XXI, como aponta Ilya Prigogine. É trazer à tona o universo da complexidade representado por uma base de pesquisa universitária. As pesquisas pontuais, alimentadas pela perspectiva multidimensional e atentas à dialógica local-global e

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particular-universal têm um papel importante a desempenhar nessa direção. Mais do que isso, por vezes são justamente as pesquisas pontuais a matriz à qual se recorre, permanentemente, para dar sustentação a reflexões mais ampliadas da realidade. Além do mais, recruto a citação de Almeida (2002, p. 42) para advertir sobre o que esperamos de um trabalho como esse e o que encontraremos, considerando que o resultado é diferente para cada um que lê: “ao lado da procura do sentido, do porquê, do como funciona, do onde começou, caminham respostas provisórias e prováveis, nunca respostas inequívocas, absolutamente satisfatórias, completas e incontestáveis”.

A tese está estruturada em duas partes, sendo a primeira dedicada a discutir a implicação do testemunho na narrativa e a narrativa na história. Neste capítulo, avançamos nas noções de Narrativa, Testemunho e História sob a luz de teóricos como Gaston Bachelard, Jacques Le Goff, Ilya Prigogine, Michel Serres, Clarissa Pinkola Estés, Edgar Morin e, sobretudo, Jean-Philippe Pierron. Na segunda parte, intitulada Eles estavam lá! polifonia do testemunho, trago depoimentos de parceiros e ex-orientandos do GRECOM. Assim como Almeida (2012, p. 11), neste trabalho, eu também optei pela narrativa exotérica, aquela “capaz de ser compreendida por leitores de várias áreas do conhecimento”.

Para finalizar, recruto uma imagem significativa para expressar a dinâmica do GRECOM, o ouroboros, a cobra que engole a própria cauda (imagem presente na capa desta tese). Quando retornei ao grupo em 2015, percebi que a simbologia da borboleta descrita como metáfora para o GRECOM, agora dividia espaço com a imagem da cobra. A alegoria nos remete ao renascimento, uma vez que a cobra se renova, troca de pele, se faz em novo ser. O GRECOM se refaz a cada ano, a cada nova década, seja nas pessoas, seja nas propostas. Nesse sentido, a cobra que engole a própria cauda, como ideograma da alquimia, representa o círculo que confere continuidade, vida e morte, eterno retorno. “Serve assim à representação mítica do tempo infinito, cíclico e universal” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996, p. 922).

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NARRATIVA, TESTEMUNHO E HISTÓRIA

De todos os presentes que as pessoas dão umas às outras, os mais significativos e duradouros são o amor simples e a história.

Clarissa Pinkola Estés

A ciência não é adversa à onipresença do testemunho. A maioria das teorias que um cientista aceita, ele o faz devido ao que os outros dizem.

Peter Lipton

Minha alma e nossa história nascem ultrapassando os limiares do escoamento.

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Me identifico com Clarissa Pínkola Estés, psicanalista junguiana que faz uso de histórias da tradição de vários países como um artifício para refletir sobre a condição humana. Como ela, concebo a história como um presente. Nesse tom, a primeira parte da tese apresenta o panorama discursivo e teórico da epistemologia do testemunho, mantendo a discussão focada em seu papel na narrativa e na história. Assim como Clarissa, me acompanha nesta jornada o medievalista francês Jacques Le Goff, representante da Ecolle de Analles, que contemplou o espaço para uma história dos homens e para uma história sem homens, com sua discussão acerca do conceito de história e memória. Mesmo definindo “duas histórias”: uma construída pela memória coletiva (falseada e mítica) e outra historiadores (devendo corrigir as falhas da história coletiva), a tradição e o falseamento podem ser identificados tanto em uma como em outra (NEVES, 2003). Edgar Morin, considerado um dos principais pensadores contemporâneos e um dos principais teóricos da complexidade, dentre suas várias formações ele também se fez historiador; os filósofos Michel Serres, que nos apresenta o real e o imaginário, a ficção e a ciência na narrativa; Jean-Philippe Pierron, com sua filosofia do testemunho, e Gaston Bachelard, com sua crítica à continuidade da história; além do “poeta da termodinâmica” Ilya Prigogine, discutindo a ciência como narrativa. Longe da crença fragmentadora que só a historiografia tem “autorização” para falar de História, optei por unir um físico-químico, três filósofos, dois historiadores e uma psicanalista em torno da discussão de como o testemunho por meio da narrativa se faz história.

Contrariamente aos usos e abusos da história como elemento de poder e de verdade, me uno a Clarissa por acreditar que o dom da história traz alguns aspectos essenciais:

[...] que no mínimo reste uma criatura que saiba contar a história e que, com esse relato, as forças maiores do amor, da misericórdia, da generosidade e da perseverança sejam continuamente invocadas a se fazerem presentes no mundo. (ESTÉS, 1998, p. 9).

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Nesse diapasão, encantada com as histórias recontadas por Clarissa, me pergunto: por que me tornei historiadora? Percebo que gostaria de ser uma “cantadora” como ela, que pudesse contar as histórias do meu povo e que isso tivesse a serventia de apenas fazer pensar. E não seria esse o ofício do historiador, fornecer ao mundo senhas, instruções que podem renovar e curar? Sigo em busca, como quer Pierron (2010), da “sutura personalizada” que o testemunho promove entre a informação do mundo e sua história singular.

Nesta tese, em que a história do Grupo de Estudos da Complexidade se dá pelo viés do testemunho, reitero que é só mais uma forma de contar esta história. Assim, sigo no meu ofício de historiadora, ouvindo as várias vozes vindas das pessoas que viveram essa experiência de complexidade, vendo as imagens e documentos que complementam esse material e que não fazem sentido algum se forem tratados pela unicidade de apenas um locutor. Acredito na polifonia do testemunho para compor a história e transformo suas palavras e gestos em documentos para meu ofício, afinal, o “fato histórico, que não é um objeto dado e acabado”, resulta da construção do historiador, assim como o documento “não é um material bruto, objetivo e inocente” (LE GOFF, 1996, p. 9).

Após anos distante do ofício de professora de história, começo uma viagem de retorno ao meu lugar de origem. Assim como acredita Serres (2015, p. 28), “cada viagem em que cremos avançar de fato retorna, ou retrocede o caminho”. E se “só existe o que é dito” (p. 33), volto ao GRECOM para dizê-lo. É preciso narrá-lo para que ele ocorra. Tudo parte da narrativa. A história é narrativa, o testemunho e a ciência também. É possível conceber essas três noções pela lógica das bonecas Matrioskas. Assim, da narrativa nasceu o testemunho e do testemunho nasceu a história. Ilya Prigogine (2002, p. 26) constrói esse desmembramento por meio de uma alusão mais ampliada que vai da história do universo até nossa história singular: “há uma história cosmológica, no interior da qual há uma história da matéria, no interior da qual há uma história da vida, na qual há a nossa própria

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história”. Finalmente, podemos dizer que existe uma infinidade de histórias que se encaixam umas dentro das outras.

Porém, essas histórias precisam deitar no papel, e escrever é uma arte que exige do solitário escriba um esforço voraz para transferir o que está suspenso, nas ideias e no tempo, para um lugar de acesso aos sujeitos do presente e os do futuro. A escrita mudou de tal forma o destino da humanidade, que um dia a Ciência ousou dividir a história do mundo em antes (pré-história) e depois (história) de sua invenção. As palavras agarraram-se às pedras, aos papiros, aos papéis, aos pergaminhos, aos logaritmos da informática na esperança de deixarem a história materializada.

Minha formação em história revela minhas grandes paixões: narrar, desvendar mistérios e escrever solitariamente. Como posso eu, historiadora de formação, escrever uma tese que não seja uma boa narrativa? Toda história começa com o desejo de lembrar e de fazer lembrar, de guardar, no sentido de fazer-se guardiã. Quando uma história é contada, estranhamente ela passa a habitar a mente do historiador, buscando o suporte que lhe dará corpo. Sim, muito antes das palavras irem ao papel, elas povoam, dialogam entre si, criam estratégias e compõem uma narrativa das coisas do mundo. Todas as coisas têm ou podem ter história, apenas algumas delas ainda não foram contadas.

NARRATIVA QUE SE FAZ CIÊNCIA, QUE SE FAZ HISTÓRIA

A narrativa acompanha o ser humano desde pelo menos o desenvolvimento da linguagem – seja ela pictórica, falada ou escrita – e do reconhecimento de sua noção de memória. Ela permitiu que a polifonia tomasse o lugar do silêncio ensurdecedor e isolador. Esse silêncio era até então rompido apenas pelos sons da natureza, numa época em que nos diferenciávamos de outros seres por questões únicas de natureza adaptativa. Não havia supremacia para nos distinguir dos outros animais. A linguagem nos retirou do anonimato e da solidão, e nos fez existir. A partir dela,

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pudemos pensar no tempo e na sua relação com o espaço, gerando o acontecimento. Por ela e com ela, desenvolvemos e disseminamos todos os tipos de saberes. Depois, saímos da comunicação oral e a colocamos no papel, uma vez que desenvolvemos uma complexa rede de sinais para isso. Inventamos um tempo que passou e um tempo que virá. Para aquele que passou chamamos de passado e sobre ele criamos uma ciência para cuidar das coisas desse tempo: a História.

Morin (2003, p. 222) observa com propriedade que “a história é fenômeno tardio, mas muito sintomático. Não é o fundamento, mas o revelador da humanidade. É sobre isso que devemos meditar”, diz ele. Agimos na tensão da relação passado e presente ao mesmo tempo em que atuamos na concepção do futuro. A história tornou-se, portanto, elemento essencial na formação de uma identidade individual e coletiva. Porém, ela conserva sua inexatidão; afinal, ela não depende unicamente das forças da natureza para existir, mas essencialmente da ação humana. Em si própria, “a história não é mais significativa que a natureza” (SPIRE, 1999, p. 105).

Quando falamos em história, devemos sublinhar que ela se apresenta tão magnânima que esquecemos do componente da narrativa como seu elemento formador. Falamos da história pela história, como se ela, por si só, desse conta de explicar o destino da humanidade. Porém, se pensarmos bem, quem o faz é a narrativa, ou melhor, a polifonia das narrativas. Dizendo isso, não desprestigio seu papel social, muito ao contrário, pois é ela, segundo Morin (2003, p. 203), aquilo que “[...] libera as potencialidades criadoras e as potencialidades destrutivas do sapiens-demens”. Por isso mesmo ela comporta racionalidade e irracionalidade, ruídos e furores, desordens e destruições.

Para desenvolver este trabalho, fujo das categorizações que os cientistas usam para defini-la: história-realidade, história-estudo, história das mentalidades, filosofia da história, história oral, história social, dentre tantas outras, e considero as palavras de Claude Lévi-Strauss, Marc Augé e Maurice Godelier (1975 apud LE GOFF 1996, p. 21) a respeito dessas querelas: “não sei a que chamais ciência da história. Contentar-me-ei em

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dizer simplesmente a história, e a história é algo que não podemos dispensar, precisamente porque esta história nos põe constantemente perante fenômenos irredutíveis”. Além de irredutíveis, acrescento: fenômenos irreversíveis e descontínuos, como em qualquer ciência. Para Bachelard (1977, p. 26), também “a história quer seja a de um ser vivo ou de uma sociedade, nunca mais poderá ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo único”. A história não é linear, ela é circular, por vezes descontínua. Ela não deixa de ser, ou simplesmente “foi”, ela refaz o caminho, se repete, traz os elementos do fim e do recomeço. Assim como a simbologia do ouroboros, a serpente que devora a própria cauda, é possível perceber que todo caminho é lacunar, regido por retornos e princípios opostos, a exemplo da dialógica entre civilização e barbárie, dialógica essa referida por Morin (2003) numa mesma humanidade. São ciclos que se entrelaçam.

Pela narrativa, o homem cria a história dos acontecimentos (do espaço-tempo) contando com a participação de um elemento extremamente seletivo, “a memória”. Para tanto, Le Goff (1996, p. 423) esclarece:

A memória como propriedade de conservar certas informações remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.

Para Henri Atlan (apud LE GOFF, 1996, p.425), biólogo que estuda os sistemas auto-organizadores:

A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento de nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para estar interposta quer nos outros, quer nas bibliotecas. Isto quer dizer que, antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória.

Sem, entretanto, me aprofundar nas questões que envolvem a memória, meu real desejo é mergulhar na narrativa e discutir a história,

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fruto da memória como ciência da narrativa. Nesse sentido, Pierre Janet (apud LE GOFF, 1996, p. 424) “considera que o ato mnemônico [referente à memória] fundamental é o ‘comportamento narrativo’”, pois a necessidade de comunicação na ausência do acontecimento remete à causa do fazer lembrar. Le Goff, em sua obra História e Memória (1996), realiza uma arqueologia dos fatos para buscar a fronteira onde a história se torna memória e indica que isso ocorre nas sociedades da linguagem escrita onde os grandes feitos de reis e governantes grafados sobre a pedra desafiam o tempo. Assim, o homem criou suas estratégias para registrar seu nome às gerações futuras e não parou por aí, criou a ciência da história para conferir-lhe caráter de verdade.

No entanto, tão importante quanto lembrar, é esquecer. Para contar uma história nós abreviamos, cortamos caminhos, filtramos, fazemos escolhas. Para exemplificar tal situação, Michel Serres (2015) recruta o romance modernista Ulisses, de James Joyce, cuja primeira versão foi escrita em 1922. O romance conta um dia na vida de Leopold Bloom em Dublin. E o autor diz que para recrutar tudo desse dia, uma vida seria insuficiente. “Ei-lo preso na armadilha da multiplicidade, no infinito do ruído. De onde vem o dever vital do esquecimento?”, questiona Joyce, e continua: “a narrativa de minha vida corta caminho. Ela esquece para que eu viva” (SERRES 2015, p. 144). Nesse sentido, trabalhando com materiais cada vez mais múltiplos e numerosos, a história esquece muito mais. Os historiadores abreviam a história real.

É preciso estar atento a algumas noções que nos transpassa quando pensamos em memória, narrativa e história, como ‘evolução, continuidade, linearidade’. Somos acostumados a conceber a história como linha de tempo, e as sociedades como progressos da ação humana. Essas noções, por serem deveras simplificadoras, não deram conta de explicar a complexa teia de relações que a história pode dar conta. Bachelard (1977, p.171) adverte sobre a "emergência" progressiva da ciência. Ele chama de “continuísta” uma vertente de estudiosos da cultura que evocam sua continuidade da cultura e, portanto, da história de forma linear e ‘evolutiva’, “com relato contínuo dos

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acontecimentos na continuidade do tempo e dá-se insensivelmente a toda história a unidade e a continuidade de um livro”. Entender a história por esse viés é castrar todas as possibilidades que não estão nessa linha, mas à margem dela, em torno e convergente a ela. É retirar de cena muitas vozes, muitas possibilidades de retorno, de reprogramação, de reinterpretação, marcadas principalmente pelas descontinuidades.

Serres (2015, p.145) ainda observa: “recuamos diante do descontínuo, da infinidade e do ruído”. Para ele, há um enorme ruído deixado por tudo que ficou para trás. Esses ruídos também ecoam para o historiador, os quais ele tenta também esboçar. Somados aos ruídos daquilo que ficou para trás existem outros ruídos concorrentes implantados nos fones de ouvido, e em toda sorte de artifício que nos desconcentra e nos aliena. Serres (2015, p. 148) diz que não sabemos mais contar nossas vidas, segundo nossas próprias queixas, mas somente aquelas, segundo nossos modelos, acorrentados, escravizados...

Ora, se com todas as emergências na ciência tornou-se impossível fazer seu inventário de descoberta, “como não ver que toda linha de continuidade é sempre um traço demasiado rústico, um esquecimento da especificidade dos pormenores?” (BACHELARD, 1977, p.171). É impossível ter o controle, pois aquilo que emerge não avisa, e seu alcance e repercussão são incalculáveis. De continuidade, fiquemos apenas com a continuidade do saber. É preciso, portanto, que a história perceba a finalidade do presente e com suas certezas olhe para o passado, verificando as formações progressivas das verdades. Considerando a polifonia da narrativa, novas possibilidades se abrem, sem previsões ou expectativas, mas tão só complexas. Quando me refiro a essa polifonia, penso nas vozes que estão no centro, que estão na margem, que são transversais ou que apenas calam. O silêncio pode, sim, também ser uma forma de narrativa, de testemunho. Nesse sentido, Morin (2003, p. 202) ensina que,

A história traz a primazia do tempo irreversível sobre o tempo cíclico, do tempo dos acontecimentos sobre o tempo repetitivo, do tempo agitado sobre o tempo circular. Embora construa

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ilhas ou arquipélagos de estabilidade, suscita a supremacia da mobilidade sobre a imobilidade.

Está nas origens do termo “história” o sentido de “procurar”, investigar, como bem ensina Heródoto (LE GOFF, 1996). Considerado o Pai da História, Heródoto, era um grande narrador de estilo bem particular: “ele vai e volta na descrição dos eventos; introduz grandes reflexões filosóficas e, mesmo sem saber, inaugura [...] a história” (SCHWARCS, 2013, p. 50). Sua forma especial de driblar a memória e registrar os acontecimentos nos estimulou e nos ofereceu um material rico para sairmos do presente, numa aventura que somente o humano é capaz de criar, fazer da memória, por meio da narrativa, história. Heródoto sofreu grandes críticas e acusações, de parcialidade, inverdades e plágios. Contudo, pouco se sabe sobre sua vida e seu fim. Portanto, falar sobre ele nos põe no terreno do devaneio e do mito (SCHWARCS, 2013). Para mim, seu legado não se reduz à fórmula de se fazer história, separada do exercício da ficção, mas sim num exercício constante e necessário de viver o fato, seja no tempo, seja por meio das fontes, e dele transformar em matéria-prima de sua própria narrativa. Nesse ofício, acrescento a visão de Morin (2003, p. 223) na defesa da história:

como um revelador do espírito humano, com sua razão, sua inteligência, suas artimanhas, sua criatividade, seus erros, suas mentiras, seus mitos, suas ilusões, seus sustos, seus deslumbramentos, seus fervores. Atualizaria, pelos seus excessos, tudo o que é potencial na loucura do sapiens-demens.

Prigogine afirma que a ciência caminha cada vez mais no sentido histórico, pois ela é narrativa. Para efeito de demonstração, ele evoca o conto das Mil e uma noites, no qual a jovem Sherazade a cada noite conta uma nova história ao rei Shariar, durante mais de mil dias. Nesse mesmo movimento, as ciências vão se criando como histórias de Sherazade, a história do cosmos, a história da matéria, a história da vida e a nossa própria história. A lógica das Matrioskas volta a fazer sentido. Se concebemos o mundo através das histórias é porque somos sujeitos da

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narrativa. Pela ótica de Sherazade e da construção das ciências como suas histórias, contadas noite adentro, me pergunto: é possível esse renascimento diário? Fazer de uma outra forma? Entender com horizontes cada vez mais amplos? Essas são indagações que me vêm ao pensar de uma outra forma o fazer para a ciência. Fomos adestrados a enxergar a ciência enquadrada em modelos previamente elaborados e rígidos o bastante para ofuscar o imponderável. Nossos autores mostraram que foi a emergência das ciências da complexidade que possibilitou um novo suspiro em busca de novos ares.

A cisão é a marca da história da ciência moderna ocidental, que se viu dividida entre as culturas científica e humanista, culminando na segregação dos conhecimentos científico, artístico, literário e filosófico na produção de saberes (ALMEIDA, 2010). Contrariando tudo o que somos adestrados a aprender sobre a ciência e seus fenômenos, Isabelle Stengers (2002) diz que a aposta agora é numa ciência não redutora, nem ao menos comprometida em nivelar diferenças, mas em permitir que o sensível opere no lugar da frieza técnica e linear cartesiana. E o mais importante nesse aspecto do discurso é pôr em prática a discussão intersubjetiva do fazer científico.

A velha aliança, anunciada por Prigogine e Stengers (1984, p. 2), “rompeu-se, e o homem sabe finalmente que está só na imensidão indiferente do universo do qual emergiu por acaso”. A ciência moderna era uma tentativa de nos comunicar com a natureza, descrição que deve ser aprimorada. Nesse contexto, os estudos sobre física quântica e termodinâmica ameaçavam a estabilidade da ciência clássica, porque previam a reversibilidade, princípio não aceito pela linearidade e ideia de progresso da ciência clássica. Já a ciência moderna passava a permitir o diálogo experimental entre o compreender e o modificar. Almeida, por sua vez (2012, p.13), argumenta:

A Ciência também gesta e alimenta mitos... mitos da neutralidade e da objetividade. Se libertar dos aspectos subjetivos durante a pesquisa; produzir análises que se restrinjam a enunciar os fenômenos como eles “realmente são” e construir interpretações desprovidas dos valores e visões de

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mundo do observador são alguns dos princípios referendados pelos ideais de uma ciência da assepsia, destituída de sujeito, purificada de afetos, iras, marcas inconscientes, ideologias e valores éticos dos quais se nutrem – queiramos ou não – estudantes, professores e pesquisadores de todos os tempos e lugares.

Interessante perceber nesta mudança que a ciência clássica, com toda sua perspectiva matemática e fragmentada, abre espaço para uma ciência nova com sua perspectiva na física da religação, da dinâmica e da mecânica, com aspectos voltados para a superação da compartimentalização dos fenômenos.

A complexidade e o método complexo, no seu contexto mais global, correspondem a uma nova percepção dos fenômenos, capazes de penetrar na profunda rede de paradoxos, ambiguidades e conflitos que constituem as organizações, e é na pesquisa que isso aflora. Interessante frisar que a complexidade não se presta aqui para conceituar, mas sim para ampliar horizontes de entendimento. Lembro das palavras de Edgar Morin sobre complexidade, quando este não define a complexidade como um conceito, mas oferece a noção de “complexus, [como] o tecido que junta o todo” (MORIN, 2006, p. 15). Religar o que é marginal e o que é dito científico, assumir o compromisso do que se diz em pesquisa e com o diálogo com a natureza; ouvir os operadores cognitivos que nos levam a pensar, são marcas muito próprias da produção científica nesse paradigma. Almeida (2010, p. 72) nos auxilia a compreender melhor, quando discorre sobre o conhecimento pertinente e a emergência dos saberes no século 21:

Um dos grandes desafios do nosso século é saber ler bem um mundo imerso na incerteza. É saber escolher e tratar informações; é transformar informações em conhecimento pertinente, aquele que está inserido num contexto, como ensina Edgar Morin; é exercitar, aprender e ensinar uma ecologia das ideias e da ação; é compreender sabedorias antigas, que nem por isso estão mortas, porque ainda falam do essencial que permanece; é facilitar a emergência de novas sabedorias. Saber ler bem o mundo de hoje é fazer uso de nossa inteligência geral tão adormecida pelos conhecimentos especializados e pela fragmentação do conhecimento; é remodelar o nosso pensamento quadrado para fazer renascer um pensar redondo ainda tão vivo em algumas culturas, como

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fala o educador indígena Daniel Munduruku. Saber pensar bem no século 21 é fazer do pensamento uma teia tecida de muitos conhecimentos, compreender o que eles têm de complementar entre si, de essencial. (ALMEIDA, 2010, p.72).

Já anunciavam Prigogine e Stengers (1984, p. 10) que “a física retoma o que a ciência clássica negava em nome da reversibilidade dos comportamentos elementares: as noções de estrutura, de função e de história”. A necessidade de impor ordem ao caos se traduziu durante muito tempo numa busca desenfreada pela verdade dos fatos e pela exatidão dos fenômenos. Tudo mera ilusão. Assim, o homem busca, no nascimento das ciências modernas, a ordem por meio do uso da razão. Em nome da verdade e da ordem, ele esquece da sua própria limitação de não ser capaz de deter o todo. Que seu discurso divaga no imaginário, que tudo que faz é impregnado pelo seu próprio devaneio. Porém, hoje enfrentamos novos desafios, entender as limitações como potencialidades, assumir o desvio, a ilusão e o devaneio como partes integrantes da constituição desse sujeito. Ver a ciência como obra de arte, como disse Prigogine. As ciências da complexidade ampliam o entendimento dos fenômenos. Nesse sentido, Almeida (2012, p. 105) alerta:

[...] toda observação é datada e apenas permite expor o momento atual da dinâmica de um fenômeno sob certas circunstâncias e contextos. As coisas e os fenômenos têm uma história, evoluem, se transformam em parte, se auto-organizam, intrinsecamente ou auto-eco-organizam-se. Daí porque toda generalização é perigosa, uma vez que é, quase sempre, uma ampliação indevida das escalas de tempo e espaço em relação a uma situação fenomênica parcial, eventual.

Infelizmente, a história perdeu ao longo do tempo o encantamento que carregava dos mitos que narrava, das fábulas, dos contos com os quais conseguia dialogar. A História como ciência esqueceu-se da narrativa, sua grande origem. É preciso voltar a narrar, contar histórias e reavivar a História. Sabendo que em todas as suas raízes semânticas nas línguas românicas, no inglês, no sânscrito, no grego, História refere-se à procura do saber, a ver e a testemunhar, ela pode usar, da forma que desejar, a razão

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ou devaneio, tudo dependerá do movimento que os fatos geram e do olhar de quem os vê e narra. “Uma história é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na ‘realidade histórica’ ou puramente imaginária – pode ser uma narração histórica ou uma fábula” (LE GOFF, 1996, p.18).

Voltando à história dos homens e, com eles, de suas narrativas, reencontro Michel Serres (2015) para reafirmar que uma narrativa, mesmo que incompleta e fragmentada, possui força maior, diz melhor das coisas do mundo e de como agir diante delas que conceitos e noções. “A narrativa vence o conceito” (SERRES, 2015, p. 51). Em seu livro Narrativas do Humanismo (2015), Serres constrói uma história não linear nem tampouco previsível sobre a aventura dos primeiros homens que deixaram para trás seus grupos de pertencimento e partiram para povoar outras partes da Terra. Com esse trabalho, Serres demonstra que parte das narrativas será sempre imaginária, pois existe o lapso temporal dos esquecimentos. Além disso, nossas narrativas e a história, por conseguinte, podem gozar do mesmo poder criativo. Para ele, todos nós somos resultado daqueles que decidiram bifurcar. Segundo o autor, a cultura clássica e todas as histórias que conhecera ensinaram-lhe a pensar limitado e “somente a filosofia pode demonstrar que a literatura diz coisas mais profundas que aquelas que a filosofia procura demonstrar” (SERRES, 2015, p. 53). O que é a narrativa, senão o elemento novo e emergente?

Prigogine e Stengers (1984, p. 3) esclarecem que

A história dos homens conheceu outros singulares, outros “concursos de circunstâncias” donde resultou uma revolução irreversível, aquilo a que Monod chamava de escolha: orientação não necessária, parece antes de ser tomada, mas que, no entanto, provoca uma transformação inexorável no mundo onde ela teve lugar. O que se chamou revolução neolítica parece de fato ter sido uma dessas escolhas.

Ao longo da história da humanidade, para construir a sua história no mundo, bem como das coisas e acontecimentos, o ser humano operou por duas frentes. Uma de caráter mais intuitivo pela narrativa, pela tradição

Referências

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