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ELES ESTAVAM LÁ! POLIFONIA DO TESTEMUNHO

Testemunho 8: JOÃO BOSCO FILHO

Enfermeiro de formação. É professor e Coordenador do Curso de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - Campus Natal. Docente do Quadro Permanente do Mestrado Profissional em Saúde da Família - MPSF/RENASF/UFRN. Fez seu doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Educação pela UFRN, ligado ao GRECOM, onde defendeu a tese já publicada: Lições do vivo, complexidade e ciências da vida (2015).

GRECOM, meu espaço de metamorfose Cara Juliana, saudações complexas!

Foi com uma alegria imensa que recebi o seu convite para narrar minha experiência de vida no Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM/UFRN. Alguns lugares deixam marcas profundas em nosso ser, e o GRECOM tem em mim a condição de funcionar como enzima catalizadora de reflexões que me levam a transformações constantes e intensas. Quando imaginamos construir narrativas, pensamos imediatamente em lembranças, memórias, passado, entretanto, hoje, ao falar do GRECOM, o faço no presente, porque esse lugar continua aceso em mim como no primeiro encontro e desejo mantê-lo assim por toda minha vida.

Foi no encontro com o GRECOM, e aqui não falo do espaço físico inserido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mas do espírito ético, estético e político que o constitui, que consegui ressignificar valores essenciais e, consequentemente, reacender o sentido da vida acadêmica que, dadas as minhas experiências anteriores de formação, estava marcada por muitas frustações.

O meu ingresso no grupo aconteceu oficialmente via seleção de doutorado no ano de 2007. Entretanto, o meu encontro com ele aconteceu muito antes. Ouso dizer que encontrei o GRECOM, inicialmente, no universo das ideias, das inquietações, das dúvidas, frente ao meu processo

de formação em saúde, e é partir desse lugar que gostaria de trazer um pouco dessa história que transformou totalmente a minha vida pessoal e profissional.

Sou enfermeiro, graduado pela Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – FAEN/UERN. Foi nesse lugar que, no ano de 1993, iniciei minha vida acadêmica, cheio de sonhos e desejos de mudar o mundo. Carregava em mim a ideia de que o espaço da saúde era um universo diferenciado, pautado no cuidado ao próximo, na contribuição para a superação da dor não só do corpo, mas também da recuperação do sujeito em sua inteireza. No entanto, o percurso acadêmico me mostrou que, assim como outras profissões do campo das ciências exatas, a enfermagem se constituía determinada por conhecimentos fragmentados/fragmentadores, nos quais os sujeitos humanos não passam de meros objetos, decompostos em partes, estudados em seus órgãos e sistemas e reconhecidos a partir de números, códigos de leitos ou patologias. Longe de se perceber o sujeito em sua integralidade, as práticas em enfermagem apontavam para um mundo altamente competitivo, no qual a lógica da produção capitalista também se fazia presente no número de atendimentos a serem realizados pelos trabalhadores da enfermagem.

Essa forma dura de ver a enfermagem passou por mudanças quando tive a oportunidade de ingressar no Programa Especial de Treinamento em Enfermagem – PETEM, um espaço no qual sou apresentado ao mundo da pesquisa, da produção do conhecimento no espaço da academia. Com as inserções nesse espaço de produção e não de mera reprodução do conhecimento, fui apresentado a novas formas de ver a enfermagem, conseguindo assim extrapolar o universo técnico, fragmentado e repetitivo que a construía.

A inserção no PETEM nos remeteu aos estudos da filosofia, da política, da sociologia, da antropologia. Enfim, me possibilitou encontros com as ciências sociais e nelas descubro a perspectiva da Saúde Coletiva, uma nova forma de olhar a saúde. A partir daí tenho possibilidades de encontrar um sujeito mais humano, que é visto inserido no seu

espaço/lugar de vivência, tendo o seu modo de andar a vida levado em consideração no momento de pensar a saúde e a doença, que deixam de ser vistas como fenômenos isolados e passam a ser compreendidas como processo. É no contexto da Saúde Coletiva que conheço uma nova enfermagem, pensada como prática social, portanto, trabalho que se percebe construído a partir do contexto histórico e social que lhe determina os modos configurativos de suas ações.

Ao término do curso de graduação, tive a impressão de ter realizado duas faculdades paralelas, o Curso de Graduação em Enfermagem, no qual eu aprendi as bases técnicas para a assistência, e o PETEM, no qual me foi possível pensar uma enfermagem mais integral, pautada na perspectiva da saúde coletiva. Nesse lugar de dicotomias, aparentemente inconciliáveis, fui gestando dúvidas e questionamentos que me levaram ao desejo de encontrar novos caminhos para pensar e fazer saúde. Desde esse momento, desejava encontrar um lugar onde pudesse fazer dialogar a clínica com a saúde coletiva; entretanto, não conseguia localizá-lo no mundo acadêmico, carregado de fragmentações.

Com a conclusão do curso, era preciso iniciar minha vida profissional e, mais uma vez, a academia aparece como o caminho mais viável para a realização profissional. A academia se tornava o lócus privilegiado para a efetivação do meu desejo de construir respostas a tantas dúvidas, afinal, a produção do conhecimento tornava-se meu grande desafio, ao mesmo tempo em que representava a minha grande possibilidade de respostas ao contraditório mundo da enfermagem.

Em 1997, a escolha tornava-se realidade, ingressava via concurso público para professor substituto da FAEN/UERN, sendo aprovado para o quadro efetivo em concurso realizado no ano seguinte. As novas leituras realizadas no âmbito da docência me apontavam algumas reflexões para que fossem construídas respostas às minhas dúvidas. Os saberes encontravam-se atrelados à saúde coletiva, sendo tomado o aspecto das políticas públicas de saúde, com ênfase para a questão do Sistema Único de Saúde - SUS. A partir desse olhar, ingressei, em 1999, no mestrado em

enfermagem, com área de concentração em saúde pública da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, começando a refletir sobre o processo de conformação do SUS no município de Mossoró/RN, observando os elementos que repercutiam diretamente na formação dos profissionais de saúde.

No mestrado, aproximei-me de outros saberes, novas leituras que me permitiram retornar à FAEN e discutir junto aos docentes e discentes o processo de reforma curricular que estava em curso. Durante as nossas avaliações, percebemos a necessidade de construir formas para efetivar o processo de formação ancorado na proposta construída pela reforma sanitária, vislumbrada a partir da efetivação do SUS. Nossas pesquisas começavam a ganhar novos contornos, percebíamos que as receitas estabelecidas pelo modelo cartesiano de produzir conhecimento, bem como o modelo tradicional de formação educacional, no qual o aluno representa um mero depósito para as ideias alheias eram insuficientes para vencermos o desafio proposto.

Reconhecidas essas questões, percebíamos a necessidade de se buscar urgentemente novos espaços de oxigenação para a continuidade do processo de mudança curricular estabelecido na FAEN/UERN. A ruptura da compreensão de saúde como ausência de doença ou como o bem-estar físico, mental e espiritual do sujeito estabelecido pelas teorias uni e multicausal, respectivamente, assumindo em seu lugar a perspectiva de teoria da determinação social do processo saúde/doença, para a qual saúde/doença são reconhecidas como processo que representa o resultado das condições de vida da população, tornou-se insuficiente para sustentar mudanças capazes de responder às necessidades de saúde da população.

Precisávamos fazer comungar novos saberes, tornava-se urgente o entrelaçar dos saberes epidemiológicos e os saberes clínicos no universo da formação em saúde. A antiga guerra estabelecida entre epidemiologia e clínica precisava ser superada. Para tanto, precisávamos encontrar novos paradigmas capazes de romper com o padrão cartesiano, bem como com o padrão materialista de produzir saúde.

Foi em busca de novas alianças para efetivar essa perspectiva que encontramos o pensamento complexo, inicialmente nas discussões com o professor Ailton Siqueira, passando pelas leituras solitárias dos livros Ciência com Consciência e o Método de Edgar Morin e, finalmente, encontrando-me com as ideias desenvolvidas pelo Grupo de Estudos da Complexidade - GRECOM/UFRN, através das leituras de suas produções acadêmicas. Diante do que lia, pesquisava e descobria a cada novo texto, percebi que tinha encontrado um lugar que me fez acreditar ser possível fazer ciência com prazer, paixão e acima de tudo muita responsabilidade.

No meu exercício de leitura sobre a complexidade, encontro-me com as ideias de Ceiça, com as quais vivencio um processo de identificação imediata. No seu desejo de caminhar “Por uma ciência que sonha”, Almeida, no livro Ciclos e metamorfoses – uma experiência de reforma universitária (2003, p. 35), afirma que precisamos “Em primeiro lugar, arquitetar espaços de fuga pra frente: projetar uma sociedade mais justa e mais desejante, e fazê-la acontecer. Em segundo lugar, investir na fuga pra dentro: exercitar a reflexividade, a autocrítica, a humildade, o desejo primeiro de ser útil à sociedade”. Essas palavras ainda ecoam em mim com muita intensidade, e foi com elas que fui construindo uma nova forma de pensar a vida e o trabalho.

As várias sessões de estudo que, antes de qualquer coisa, representavam um encontro com parceiros que acreditavam na pluralidade e diversidade do conhecimento, possibilitou-me novas leituras do mundo e consequentemente a construção de novos instrumentos para pensar a formação em saúde/enfermagem. Com as novas lentes, comecei a pensar a construção de uma enfermagem complexa, na qual pudéssemos comungar os saberes da epidemiologia e os saberes clínicos não como opositores, mas como parceiros na busca por um serviço de saúde universal, equânime e, acima de tudo, com vistas à integralidade.

Ao compreendermos a possibilidade de construir uma ciência capaz de gerar o sonho, conseguimos perceber que seria também possível construir um trabalhador da saúde/enfermagem capaz de sonhar, de se

envolver, de sentir, de romper com um padrão cartesiano de compreender o ser humano como máquina, e no seu lugar passar a compartilhar o seu processo de trabalho com um sujeito humano que ama, que sonha, que tem projetos de vida e que muitas vezes busca o serviço de saúde não só para a cura de desgastes físicos, mas sim de desgastes decorrentes da sua forma de andar a vida e este não é mente e corpo separados, eles se fazem mente e corpo intrinsecamente.

Em meio às reflexões possibilitadas no GRECOM, em especial as viabilizadas pelo atelier de pesquisa Conhecimento Científico e Saberes da Tradição, realizado sob coordenação de Ceiça e contando com a presença de Daniel Munduruku, realizei novas incursões pelo mundo do conhecimento e encontrei na relação ciência e saberes da tradição um lugar privilegiado para compor as minhas novas cartografias cognitivas frente ao processo de produção do conhecimento, com consequente repercussão no espaço da formação em saúde/enfermagem.

Com os conhecimentos produzidos a partir dos Saberes da Tradição, ampliamos nosso olhar para a possibilidade de se refletir o processo ensino/aprendizagem em saúde/enfermagem, tomando como base as ideias de Claude Lévi-Strauss (2005), que nos convida a pensar o conhecimento mais próximo da lógica do sensível. Ao se romper com a lógica assumida pelo pensamento domesticado, um encontro com estratégias de pensamento mais sensíveis permitiria aos trabalhadores da saúde um encontro com sujeitos mais humanos e menos fragmentados pelo processo de construção maquinal estabelecido pela ciência cartesiana.

Minhas leituras e encantos com a possibilidade de diálogo entre as Ciências da Saúde e os Saberes da Tradição foram fortalecidos a partir do meu encontro com o Piató, um lugar muito especial ao GRECOM, espaço de muitas aprendizagens e inúmeras produções do grupo. No Piató, tive a grata alegria de conhecer o intelectual da tradição Francisco Lucas da Silva, um mestre que com muita sabedoria foi capaz de nutrir reencontros e reencantos que mudaram meu modo de ver a vida e consequentemente o processo de formação que questionava durante os meus estudos doutorais.

Tornou-se impossível não repensar minha vida pessoal e, consequentemente, minha prática profissional, depois das minhas constantes idas ao Piató.

Com Chico Lucas aprendi lições que a natureza colocava à minha frente e eu não sabia identificar. Com ele, as lições do vivo tornaram-se mais claras e isso me ajudou a perceber que, como profissionais da saúde, devemos pensar modelos que inspirem um verdadeiro compromisso com a vida das pessoas que estão à nossa volta. Com os saberes da tradição complementei o conhecimento presente nos livros técnicos das ciências da vida, passando a entender detalhes que não me foram explicados durante a minha graduação. Com a minha imersão no Piató, tive a oportunidade de construir um imenso arsenal de informações e conhecimentos que me são essenciais para o meu constante processo de mudança pessoal. São conhecimentos sobre biologia, economia, política, farmacologia, anatomia das plantas e animais, genética, ecologia, agronomia, veterinária, entre tantos outros, que me ajudaram a pensar não só a minha formação doutoral, mas principalmente o meu modo de ver o mundo.

O GRECOM, como espaço privilegiado da minha formação doutoral, funcionou como um grande laboratório para as minhas metamorfoses. Nesse lugar, aprendi que os saberes acadêmicos precisam alimentar, com esperança, a vida daqueles que se dispõem a viver a academia. Não cabe mais à universidade o distanciamento entre sujeito e objeto, entre razão e emoção, afinal, como humanos, somos sujeitos multidimensionais, carregados de sonhos, desejos, paixões que nos mobilizam e nos põem em movimento.

Esse movimento vivido no GRECOM, por ocasião do doutorado, possibilitou-me repensar os meus conceitos e a minha prática como profissional de saúde e educador. As ideias que me habitavam foram sendo refletidas, discutidas e, acima de tudo, repensadas. Importante destacar que, nesse processo, o meu desejo de religação entre as diversas formas de conhecimento foi sendo alimentado cotidianamente, e a cada possibilidade de leitura e discussão com o grupo, o exercício de uma atitude complexa me

fez perceber a importância de se ouvir, de se abrir as ideias diferentes. Aprendi que não é preciso diabolizar um saber e sacralizar o outro e, sim, é importante possibilitar um diálogo entre os saberes, de modo ético e respeitoso.

A conclusão do doutorado me possibilitou ser inserido como pesquisador permanente do grupo, o que me provoca profundo orgulho, afinal, para aqueles que assumem o GRECOM em toda sua complexidade e dinamicidade, ser membro desse grupo é carregar um sobrenome acadêmico profundamente respeitado, pelo trabalho ético e político que vem sendo produzido desde os anos de 1990. Estar no GRECOM é ter a oportunidade de estar em constante contato com o calor de ideias mobilizadoras de transformações, de movimentos que nos põem em constante fluxo de vida.

Viver o GRECOM é encontrar palavras transformadas em atos, é viver o significado das palavras amizade, solidariedade, cumplicidade, amor, ética, política, transformadas em atitudes, pois ser GRECOM é assumir um compromisso com um mundo mais justo, humano, diverso, plural e ético, através do exercício cotidiano de politização do pensamento.

Nesse sentido, finalizo esta minha narrativa com profunda gratidão ao GRECOM e a todos aqueles com os quais convivi e ainda convivo atualmente, pois, nesse lugar compreendi que a vida e, consequentemente, o meu trabalho, podem ser nutridos pela alegria, pelo amor e pela amizade. Porque aprendi que as diferenças são essenciais para que possamos avançar rumo a novos caminhos os quais, carregados de incertezas, podem nos possibilitar grandes aprendizagens.

Algumas pessoas podem ler essa narrativa e dizer: “o GRECOM é um lugar encantado, sem problemas...”. Não é bem assim. O grande encanto do grupo consiste em reconhecer os potenciais de cada um e estimulá-los ao crescimento; é identificar limites e buscar superá-los, é lidar com tranquilidade frente as diferenças e a diversidade de ideias e sujeitos, e diante dos problemas, assumi-los e transformá-los em oxigênio essencial para a combustão da vida.

No documento A história como testemunho, "eu estava lá" (páginas 101-109)