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CARLOS HENRIQUE LISBOA FONTES

No documento A história como testemunho, "eu estava lá" (páginas 126-130)

ELES ESTAVAM LÁ! POLIFONIA DO TESTEMUNHO

Testemunho 12: CARLOS HENRIQUE LISBOA FONTES

Ator, Diretor da Casa da Ribeira. Fez Mestrado em Ciências Sociais, ligado ao GRECOM. A dissertação intitulada Ciência como montagem, montagem como ciência (2006) foi escrita ao mesmo tempo que a peça de teatro O tempo da chuva.

Eu encontrei o GRECOM num período bem peculiar da minha trajetória, quando a Casa da Ribeira fechou de 2002 para 2003, e aquilo me deu muita inquietação, devido ao contexto da época, por várias questões políticas, mas também de cunho sociológico. Eu pensei que deveria estudar sobre isso. Fui buscar primeiro o curso de Comunicação Social, que foi o curso que eu tinha feito, para ver se tinha entrada para mestrado ou especialização, e não tinha. Daí eu saí andando por ali e alguém me disse que nas Ciências Sociais seria capaz de encontrar o que eu estava procurando. Completamente por acaso entrei numa sala no CCHLA e encontrei o nome de Ceiça e vi as áreas que ela atuava na complexidade.

Eu nem sabia o que era complexidade. Me interessei e fiz um anteprojeto, conversei com ela rapidamente e ela ficou super empolgada porque talvez eu tenha sido o primeiro das artes a ser orientado por ela. O anteprojeto questionava o lugar do artista em relação ao público e porque não conseguimos fazer a ligação para criar uma rede sólida e talvez sobreviver. Claro que o projeto mudou muito e acabamos seguindo pela epistemologia. Foi incrível, porque Ceiça me apresentou a física quântica, me apresentou Werner Heisenberg, A parte e o todo, livro que foi central da minha dissertação. Ali eu vi muitos paralelos mesmo entre a teoria científica e a montagem de uma peça de teatro e foi amor à primeira vista, por que realmente não me imaginava na vida acadêmica, pelo que eu vejo. Hoje eu vejo um embate político muito forte, uma briga de egos muito forte. Um compromisso muito mais com a defesa de sua base em detrimento da pesquisa em si.

No GRECOM eu não via isso, eu via um encontro de várias mentes, de vários corpos, várias pessoas incríveis que estavam ali realmente inquietas, querendo questionar os vários aspectos da sociedade e isso eu achei muito motivador. Os dois anos que passei lá realmente impactaram em tudo que eu faço hoje, porque eu consigo ter um pensamento um pouco mais integrador. Hoje eu não vejo as coisas separadas, mas integradas. Eu vejo a possibilidade de áreas muito diferentes estarem dialogando pela arte. O lugar da arte precisar de outras áreas do conhecimento para se explicar, isso é fantástico. Tem realmente um divisor de águas aí. Ceiça disse que inaugurou a orientação debaixo das árvores comigo, porque, como ela fuma muito e eu não aguentava, então sugeri a orientação lá fora, embaixo das árvores, e ela topou. É isso, eu acho que Ceiça tem essa abertura e essa grande sagacidade em relação ao meio em que vive, em relação a várias coisas.

Sobre as atividades do grupo, eu acho primeiramente tudo muito ousado, uma vez que a estrutura do GRECOM, para quem está de fora, imagina que é algo gigantesco, e na verdade é mínima, para tudo o que eles se propõem a fazer. É uma estrutura precária. Tem até aquela história de dois professores portugueses que chegaram na UFRN procurando o prédio do GRECOM e encontraram apenas uma sala, e se perguntavam: mas como?

Como toda aquela produção, todas aquelas publicações podem sair dali? Eu acho isso tudo uma loucura, uma insanidade, porque a equipe é muito pequena, todo mundo que entra acaba se desdobrando muito, trabalhando muito. Ceiça envolve todo mundo, não só ela, mas todo mundo que está lá, compondo e resistindo com o GRECOM, [ela] convida quem entra a colocar a mão na massa. Não tem isso de você ser só um estudante visitante, fazer seu trabalho e ir embora, não, você tem que colocar a mão na massa, tem que atuar, tem que fazer as coisas. e isso eu acho incrível, eu acho que é um dos maiores méritos do grupo. É isso, é pensar a academia de novo como o lugar da produção do conhecimento integrado e do envolvimento numa relação com a comunidade.

Eu lembro que uma das coisas que era inquietante para Ceiça era que nós extrapolássemos, as portas, as barreiras, os muros da universidade, e hoje já é uma coisa natural, hoje já acontece, a exemplo do último evento ocorrido agora em setembro, coordenado pelo GRUPECOM, em Ceará Mirim. Se formou um grupo lá e fizemos uma performance lá. Quer dizer, é muito livre mesmo.

Eu gosto de pensar o grupo como uma coisa etérea ou gasosa, que penetra e que está como o ar em vários lugares, essa deve ser a vontade e a vocação do GRECOM. Há duas coisas que eu lembro para registrar, uma delas é, tendo aula de Ceiça, a qual era muito aberta e debatida por todos. Lembro que Ronaldo, diretor da Escola de Música, na época, participou comigo intensivamente das discussões para desmistificar a ideia da arte como adorno, como cereja do bolo, como festa ou retoque pitoresco. A arte é discussão, é produção do conhecimento. É muito diferente você citar uma obra e viver a produção da arte. E Ronaldo entendia isso comigo e levávamos o debate ao longo dessa disciplina.

Mas um fato interessante para relatar foi que, bem pertinho do final e da minha defesa, numa das últimas orientações, Ceiça leu o texto e me disse “Henrique tá ótimo, com tudo no lugar, mas tá chato. Você é um artista, ator, um dramaturgo, como você vai fazer um texto desses, tão acadêmico?!” Então, eu lhe disse: “mas Ceiça, não é isso que eles esperam?!” e ela me disse: “mas não precisamos fazer o que eles esperam”. Isso foi muito louco porque eu voltei para casa perturbado e tive que reescrever a dissertação do ponto zero, num modelo novo em 15 dias. Ela foi escrita num formato romanceado, pelo menos os dois primeiros capítulos. Enfim, isso é outro diferencial do GRECOM, a transgressão à norma. Paula Vanina, anos depois fez um trabalho no formato de uma caixa de brinquedos, puxando para Manoel de Barros. Isso é a transgressão.

Essa experiência transformou minha prática artística. Cada vez que estou fazendo uma peça, me sinto escrevendo uma nova dissertação ou uma tese. Um o exemplo disso é a Peça “A invenção do Nordeste”, foram dois anos de pesquisa intensiva, o processo é muito parecido.

Sobre a metáfora para o GRECOM, para mim, pensando rapidamente, ele é uma chave múltipla, uma chave-mestra que abre várias portas. Ela abre as portas de formação, de conhecimento, de pensamento. Essa chave é cada vez mais cara e rara e é usada principalmente para abrir a caixa do pensar. Esse lugar onde a gente acessa para produzir pensamento reflexivo, integrador, que não exclui, que está preocupado com o hoje. Mas é uma chave para fazer nascer a antropoética do pensamento, que nos permite entender o quanto somos múltiplos, diversos, complexos e só podemos dar o próximo passo se tivermos uma chave como essa.

O GRECOM é uma dessas chaves que facilitam o caminho. É difícil você facilitar caminhos para o pensamento, porque todos nós estamos em nossas caixinhas fragmentadas, caixas da formatação. Ainda hoje eu uso essa chave-mestra, na minha prática profissional e na vida. Uma outra metáfora possível é a matrioska, aquelas bonequinhas que guardam outras bonequinhas. Quem sabe a chave não abre a caixa das matrioskas?

No seu roteiro você também pergunta sobre as dificuldades e necroses. Eu acho que todo agrupamento de pessoas sempre vai haver uma briga de egos e eu acho que o GRECOM tem evitado isso. É preciso estar vigilante. Mas eles são inevitáveis. Vejo que ainda acabamos esbarrando numa política institucional, ainda vejo uma dificuldade de a universidade se abrir e abraçar o GRECOM. Não sei hoje, mas no passado havia esse ranço que não sei se era uma inveja, um ranço de outros professores e grupos de resistir em reconhecer aquilo como pesquisa, como ciência.

É necessário combater esses egos, mas eles são inevitáveis. Daí vêm novas possibilidades.

No documento A história como testemunho, "eu estava lá" (páginas 126-130)