C C I I V V I I L L I I Z Z A A Ç Ç Ã Ã O O B B R R A A S S I I L L E E I I R R A A
I I S S A A A A CC
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O JUDEU NÃO-JUDEU
O JUDEU NÃO-JUDEU
e outros ensaios
e outros ensaios
Coleção
Coleção
PERSPECTIVAS DO HOMEM
PERSPECTIVAS DO HOMEM
Volume 61
Volume 61
Série Política
Série Política
Direção de MOACYR FELIX
Direção de MOACYR FELIX
ISAAC DEUTSCHER
O Judeu Não-Judeu
e outros ensaios
Apresentação e Introdução de
TAMARA DEUTSCHER
Tradução de
MONIZ BANDEIRA
civilização
brasileira
TÍTULO DO ORIGINAL INGLÊS:
T h e N on-Jew i sh Jew A nd O t l i er Essaij s
©
Oxford Universitij Press 1968.Desenho de capa: MARIUS LAURITZEN BERN Diagramação: RENATO BASTOS Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA SA. Rua 7 de Setembro, 97
RIO DE JANEIRO, que se reserva a propriedade desta tradução. 1 9 7 0 Impresso no Brasil Printed in Brazil
índice
Apresentação 1
In Memoriam — Isaac Deutscher (1907-1967) 3
Introdução — A educação de uma criança judia 7
I — O judeu não-judeu 27
II — Quem é judeu? 41
III — A revolução russa e a questão judaica 57
IV — Remanescentes de uma raça 77
V — O clima espiritual de Israel 83
VI — Décimo aniversário de Israel 107
VII — A guerra entre árabes e judeus de junho de 1967 115
VIII — Marc Chagall e a imaginação judaica 139
Apresentação
p u b l i c a ç ã o
dêste volume ocorreu, pela primeira vez,
depois da morte de Isaac Deutscher. Se êle ainda vivesse,
talvez fizesse uma revisão completa de seu trabalho. Resolvi,
porém, tocar o menos possível nesses ensaios que, vez ou outra,
a imprensa publicou. Aqui e ali, Isaac Deutscher fazia uma
anotação ao pé da página ou, então, cortava alguma coisa.
Quanto à conferência sôbre a Revolução Russa e a Questão
Judaica, que ficou incompleta, coube-me a responsabilidade
de publicá-la. Já o ensaio Quem é um judeu? exigiu um
trabalho mais rigoroso de filtragem e condensação.
Numa coletânea de conferências, artigos e entrevistas,
dedicadas a um só assunto, mesmo quando tratado de diferen
tes ângulos, algumas repetições se tomam inevitáveis. O leitor
não ficará na dúvida sôbre a coerência de Isaac Deutscher
quanto ao destino trágico e ao complexo papel dos judeus na Europa e no seu próprio Estado nacional.
Creio que consegui preservar, fielmente, seu pensamento em todos os pontos, nesses ensaios. Agradeço ao Dr. R. Mi-liband e a D. Singer que leram êste volume antes de sua publicação; aos senhores John Bell e Dan M. Davin, da Edi tora da Universidade de Oxford, pela assistência c sugestões que apresentaram. Gostaria, ainda, de agradecer aos meus amigos e vizinhos, Sr. e Sra. E. F. C. Ludowyk, pelo apoio e encorajamento.
In Memoriam
ISAAC DEUTSCHER
( 1 9 0 7 1 9 6 7 )
. A l r e pu t a ç ã o
de Isaac Deutscher firmou-se, antes de
mais nada, como poeta, quando, aos dezesseis anos, seus pri
meiros poemas foram publicados em revistas literárias da Po
lônia. Alguns leitores daquela época ainda se lembram de
seus versos, que revelavam forte influência do misticismo ju
daico, versando sôbre temas da história e mitologia do povo
judeu, e mesclavam
0romantismo polonês com o rico folclore
dessa cultura, numa tentativa de unir as tradições polonesa e
iídiche. Também traduziu para o polonês muitas poesias do
hebraico, latim, alemão e iídiche.
Isaac Deutscher assistiu, como ouvinte, conferências sôbre
literatura, história e filosofia, na medieval Universidade de
Yagellon, na Cracóvia. Na vida artística dessa culta cidade
da Polônia, os serões dedicados à leitura dos seus poemas se tornaram notáveis acontecimentos.
Ató aos dezoito anos de idade, viveu em Cracóvia, indo depois para Varsóvia. Deixou também a poesia pela crítica literária e por um mais profundo estudo da filosofia, da eco nomia o do marxismo. Por volta de 1927, filiou-se ao Partido Comunista da Polônia, então proscrito, e logo se tomou reda-tor-chefe da imprensa comunista clandestina e semiclandestina. Viajou, em 1931, por tòda União Soviética, conhecendo as condições econômicas do país na época do primeiro Plano Qüinqüenal e recusou o oferecimento de cargos acadêmicos Universidades de Moscou e Minsk, como professor de História do Socialismo e da Teoria Marxista. No ano seguinte, @^ubr«nHK) do Partido Comunista.
O motivo oficial da expulsão foi o de que “êle exagerava ® praig® oaaista e espalhava o pânico nas fileiras comunistas”. TDàss tesga voltou da URSS. Isaac Deutscher fundou, com très
«pata» eanmdás, a primeira oposição anti-stalinista no ( M m Owmmwista da Pcmoia. Seu grupo protestou contra a HA* «to jMaitisfcx sumido a qual a social-democracia e o twasiarí®) “tóa temanau «típroJas, mas gêmeos*. E. certo dia «psnucefo a iMjfswtasai eswumiista dlamdlestiina estampou a man-dtóte «Sr IbiMMjriK' sàilwe a Ekiiopm’", o ledator-cfaefe
Saü « o^smomigcsfito, A jmtór dkqmdle tfa , Isaac
Den-IttfcJbfír tese «Hmua; sfimrJbflas a sfí£jmS-fc:: rnimiTm.. da pdSriia pofcraxesa. ee a «fe uramwfflBmm&amim<ijk íeW k <áb panrtóáúí
sRafemista-Etrn uíbriJl «fe MM* Hsnac Dtetmtbidiüfir totacram V^mwrxiji psnr jpuaa fflimaftc (foi (ramim xünnnísjMxmÉenilS' dg' mnn jjsarmial
jjatoih^TffllkjBÍSi, «jpjf ® (OTçntfSjiBra «IkmifflDtlíf qjnmfinnrsfe1 ama» osomio
WCWiífJJ];. T«W Sfoute; «JpmUíttfi, mm Ümaiffl (fill gmnqnrB irmTTmjptrmal
in flclbe c& ILímíálití»; mannaíiin sobíi ffanalliriíbnniçiia!) e é le fkiaxm de1-aejn^pwigííáb}, jasfe; nrito) ® (íBunupiílIim a ;«]pJlíitr;mr-w zslbgtE e
enèirgi-coamnittí' a® asUmál®«Sn I&BgiDa Kaságada de díciontiimcis.
gEam itócasi <e aaifcBÍbajiaR. (fsanesíraii swm priinmiim® artigjo> n imgjlès © ®> ©nraOTi a® TTUíe EfiiomíimnM.. Saim pimMircadss ma sjsnmamiZL
íKgJuiiiie (*'• áfesfc1fflilfcliffi, smuts «fflM M rJiçães ícsranmi legjDiIlaimiiaelmte
mBi inaffloiifiiK.
Em í®#5í, Itmrc' Btamtedkeir aüsllffi«m-se ma Esãroto pdkraís mu SJso&dm,, u s jpuüwfflmi a uminar parts- de soa vãda mmlKftaiir mos
campos de concentração, como "elemento perigoso e subver
sivo” — por causa dos seus protestos contra o anti-semitismo
predominante nas tropas. Libertado em 1942, uniu-se à equipo
do The Economvrt, tomando-se perito em assuntos soviéticos,
comentarista militar e chefe dos correspondentes europeus
dêsse periódico. Juntou-se também à equipe do The Ohterver,
para o qual trabalhou, inter alia, como correspondente itine
rante, escrevendo sob o pseudônimo de Peregrino.
Em 1940-47, deixou Fleet Street e o jornalismo regular
para dedicar-se a trabalhos menos efêmeros. Stalin, uma
Bio- grafia Política
foi publicado em 1049, Considerada "a mais
controvertida biografia do nosso tempo", apareceu em muitas
e muitas edições e em doze idiomas, A edição aumentada de
1967 contém um adendo sôbre os últimos anos de Stalin,
A
publicação de Stalin consagrou Isaac* Deutscher como
autoridade em assuntos soviéticos e historiador da revolução
russa.
A trilogia que escreveu sobre Trotski1 — O Profeta
Arma-do
(1954), O Profeta Desarmado (1959) e O Profeta Banido
(1963) — estabeleceu ainda sua reputação como mestre na
prosa inglesa. Essa biografia se baseia em minuciosa pesquisa
nos arquivos de Trotski, que se encontram na Universidade de
Harvard.
Amaior
partedo material contido no terceiro vo
lume é
único, pois oautor recebeu permissão especial da
viúva
deTrotski, Natália Sedova, para ler a Seção Reservada
dos Arquivos, que,
pela vontade do próprio Trotski, deverá
permanecer interditada até o
fim
do século.Isaac Deutscher
pretendia concluir sua série biográfica
com um estudo sôbre Lenin,
manifestando mesmo a esperança
de que se
visse
o seutrabalho como “simples ensaio 3e uma
análise marxista da
revolução de nossa época e ainda um
tríptico de alguma unidade
artística”.
Como G. 51. Trecely an
Lecturer, na Universidade de
Cam-bridge. em 1966-67, Deutscher
falou para auditórios superlo
tados e foi recompensado
por
suaextraordinária atenção e
carinho. Recolheu
a mesma recompensa em sua permanência
i K m frifaga fim pciMEcaifla peja. E®fewa CfcSJázssã© Hí^Hek»
de seis semanas na Universidade Estadual de New York, em Binghamton, Harpur Collcge e, ainda, quando fêz conferências na Universidade de New York, Princeton, Harvard e Colúmbia, na primavera de 1967. As G. M. Travehjan Lecturer aparece ram simultaneamente em quatorze ou quinze países sob o título de A Revolução Inacabada2, mas nenhum dos seus livros, em bora editados e traduzidos em vários idiomas, jamais foi publi cado no bloco soviético. É evidente, entretanto, que, mesmo lá, Isaac Deutscher possui leitores devotados e corajosos.
Fascinante orador e polemista de grande fôrça de argu mentação, Isaac Deutscher freqüentemente se dirigia a grandes audiências em ambos os lados do Atlântico. Em 1965, partici pou da primeira reunião sôbre o Vietnã, durante a qual quinze mil estudantes, no campus da Universidade de Berkeley, ouvi
ram suas invectivas contra a guerra fria.
Era tanta a extraordinária vitalidade de Isaac Deutscher que, embora engajado no seu monumental trabalho literário, èle ainda seguia o curso das correntes políticas com apaixonado interesse e, durante quinze anos, suas análises dos mais impor tantes acontecimentos internacionais foram amplamente lidas nos principais jornais da Europa, Estados Unidos, Canadá, Japão, índia e América Latina.
Trabalhou até quase o seu último dia de vida e morreu, em Roma, a 19 de asròsto de 1967.
Maio de 196S T. D.
Introdução
A Educação
de uma Criança Judia
D l h a n t e
os últimos anos de vida, Isaac Deutscher
pre-tendeu escrever sua autobiografia, ou parte dela pelo menos,
abrangendo a infância e a juventude. Queria mostrar aos lei
tores do escritor maduro qual fôra a sua origem e o meio do
qual viera. O mundo de onde surgiu já não existe mais — um
mundo brutalmente desaparecido. Jamais será recriado. Vi
verá, apenas, na memória e na sensibilidade daqueles que lhe
sobreviveram. Ao pintar para a geração de hoje o panorama
da vida secular e religiosa dos judeus, como êle a conheceu
antes do dilúvio nazista, desejava Isaac Deutscher salvá-la do
esquecimento?
Isaac examinou com cepticismo as numerosas iniciativas
das organizações judaicas do Ocidente para contar-lhes a his
tória: colecionou documentos, computou fatos, diários e tôda
a sorte de material, de modo a manter viva a tradição e a história do judaísmo europeu de antes da guerra. Essa respi ração artificial, como êle a considerava, não traria de volta o pulso e o alento a um corpo sem vida. Nenhuma riqueza do documentos, apesar de verídicos, transmitiria a contento a atmosfera, o clima espiritual e intelectual daquela comuni dade extremamente fechada, na qual Isaac passara os mais impressionantes anos de sua vida e que fôra destruída.
Teria sido, realmente, aquêles os seus anos mais impres sionantes?
Parece-me que a insistência racional do historiador em olhar o interior do passado, para fazê-lo compreensível, e em mostrar como êle evoluiu até o presente, dispôs Isaac a escre ver sôbre sua infância. Gostava de evocar os seus primeiros dias, porque lhe pareciam tão incrivelmente distantes que se tornavam irreais. Grande abismo separava aquele
menino-prudtgio Hiassidista. de Chrzanow1, imerso no Talmude e na Toriu, ou estudando na Còrte do Maravilhoso Rabino — o Tsatfík de Gera — do ateu, do marxista revolucionário, falando ein seu rio.*, sonoro e fluente inglês a milhares de estudantes americanos, às margens do Pacifico. Êsse abismo era tão imenso que o confundia e o fascinava.
Foi exatamente essa fascinação que se podia perceber na maneira de Isaac recordar a sua infância. Tanto isso o en cantava e o divertia que as passagens, os incidentes relem brados e relatados envolviam a si mesmo. Para nós, menos do que para èle, não era fácil vè-lo como um garotmho. com espessa, cabeleira preta, encacheada. com uma braraleante lâmpada a óleo nas mãos, às cinco horas da manhã, caminhan do pela ueve e lama da adormecida Chrzanow. para acordar «* vmue^ como um privilegio que lhe cabia por ser o melhor
ãkiOk
“Batia na porta, primeiro timidamente, depois mais forte, e mais forte, até que a luz fraca de uma vela aparecia na janela, A R dubeísin me deixaria entrar, murmurando alguma
1 Qtwwis&taw esfcá a nmis vimíe wflhas 3 osste de Gaeõvia, miMug,
ís® stfósrite dfe Asdhiwíta ÍOsswãeomiii^. Kmm 19ifjucimido Iszse nasíecn,
C&flaawaw tünJbiai ssís oaiJ ítufeSaarnlteSL d as quais, «jnnta» m il e qoinnissaniSiai «hk» jdstewi.
coisa de dentro de seu xale. E eu ficava na porta até que 0
rebe
viesse: magro, esquálido, com a barba ruiva ainda por
fazer. íamos então para a Sinagoga rezar as preces da manhã.
Êle, alto e andando muito rápido, segurava minha mão. Eu,
muito pequeno, parecia balançar de seus longos braços, mal
tocando o chão. Era eu realmente essa criança?” Eis a per
gunta que ficava depois desta história. A infância de Isaac
realmente influiu na sua maturidade?
Originários de Nurenberg, de onde, no
séculoXVII, seus
ancestrais vieram para a Galícia, chamavam-se, então,
Ashke-nazy (alemão, em hebreu). Houve tantos gráficos entre êles,
que a concorrência nos negócios provocou confusão e fre
qüentes querelas. Um ramo de seu clã mudou então o nome
para Deutscher. Mesmo entre os Deutscher, diversas gráficas
concorriam umas com as outras.
Isaac era o nome de seu bisavô, um aprendiz da sabedo
ria talmúdica, homem de temperamento medonho e convicções
fanáticas. Considerava o khamdwmo, — uma seita onde os
plebeus manifestavam a revolta contra a pompa e o formalis
mo da Instituição religiosa do judaísmo, — como um desvio
da ortodoxia. O khassidvsmo, entretanto, atraiu um dos filhos
do velho Isaac por causa de sua visão mais alegre da vida,
por sua disciplina mais elástica. E o jovem jurou lealdade ao
Tsadík
de Gera. Esse era um fato íncomum entre os judeus
da Galícia.
O rabino de Gera tinha sua eôrte no outro lado da fron teira, no chamado Congresso Polonês, e as restrições às viagens, especialmente para os judeus, faziam as peregrinações quase impossíveis. O bisavô de Isaac portou-se de maneira desuma na: recorreu às autoridades civis e não judaicas; apelou mesmo
para o auxílio da polícia austríaca. Denunciou o filho deso bediente, telegrafou para os guardas da fronteira e pedia que o “contrabandista” fôsse trazido de volta, sob escolta. % con
seguiu. Mas, somente por algum tempo. O fíll*> pródigo foi mais feliz na fuga seguinte, Até o fírn de seus dias perma neceu fiel adepto do 1íhaM dismof ficou com o 'Tmãík de
Gera e morreu tranqüilamente; de velhice, na soa Bet h M í- draíh — Casa das Orações, — na noite sagrada do Ano Névo,
fundadores da dinastia de Gera. E o khassidisnw conquistou a família Deutscher, apesar da ira do rabino Isaac.
Jacob Kopel, pai de Isaac, homem de grande conheci mento e cultura, também teve os seus períodos de inquietude e revolta. Viajou na juventude para a Alemanha, onde se dedicou ao estudo dos arquivos das comunidades judaicas da zona do Reno. Devotou-se, durante anos, à elaboração de exaustiva história dos judeus, baseada numa pesquisa com pleta, original e cansativa. Só quando o manuscrito estava pronto retomou ao seio da família. Aí encontrou hostilidade não só por parte do pai como da mãe. A mulher, fanática e temente a Deus, suspeitava de algumas inclinações heréticas nas intenções do filho. Seu dever, assim o concebia, era salvá-lo a tempo: lançou ao fogo o formidável manuscrito.
Jacob Kopel parecia esmagado pelo acontecimento. Sub-meteu-se, conformou-se, perdoou a mãe, mas a experiência o marcou para o resto da vida. Permaneceu angustiado entre o senso do dever, a lealdade à rígida ortodoxia de seus ances trais e uma insaciável curiosidade intelectual, que lhe criava dúvidas e o tentava, não digo a abandonar o judaísmo, mas, a ultrapassar as suas limitações. Não se rebelou. Tomou-se, como o pai e o avô, um gráfico e deu todo o seu carinho aos manuscritos dos outros.
Sob o nome de Buchruckerei Deutscher apareceram tra balhos religiosos, dissertações filosóficas, tratados históricos, e mesmo livros de matemática e álgebra, em hebreu, alemão e latim. A famosa edição da Bíblia, com ilustrações de Gustavo Doré, que saiu de sua gráfica, provocou-lhe imenso orgulho. Este quase desvio da ortodoxia foi desculpado, no caso; a satis fação profissional pesou mais do que a obediência à rígida lei mosaica que proíbe qualquer “imagem gravada”.
Isaac, seu filho, era o mais velho dos três que nasceram do segundo casamento. Destinaram-no, de acôrdo com a tradi ção familiar, à missão de rabino. Seu pai, entretanto, não o via como um rabino comum, atendendo as necessidades da fé, e sim como um sábio talmúdico. Projetou, no primeiro filho, a sua ambição intelectual frustrada, torcida. Tinha bons mo tivos.
Quando criança, Isaac era tão kha.ssidista quanto seus tios, amigos e vizinhos. A religião arcaica, preconceitos, crenças, temores, o modo anacrônico de viver, também eram os seus.
Menino precoce, com fantástica memória, espírito capaz e inco-mum habilidade para pensamentos abstratos, Isaac tornou-se rabino com a tenra idade de treze anos. A comunidade judaica de Livorno, ortodoxa, já fizera sondagens sôbre os planos futu ros para aquele menino-prodígio, vislumbrando-lhe resplan decente carreira entre os eminentes e ricos judeus italianos. Mas, lá pelos treze anos, quando se celebrava o seu Bar Mitzva, êle, proferindo um erudito discurso, pelo qual seria “consagra do” como rabino, começou a fazer perguntas (e nunca mais o parou de fazer), algumas sôbre assuntos que acreditava, como supunha na época, os assuntos de sua religião. Nada de extra ordinário: o tema de sua dissertação não poderia ser mais escolástico e arcaico, mais afastado da realidade da vida.
“Cêrca de cem rabinos vieram a nossa pequena cidade para ouvir o meu discurso, julgá-lo e, ainda, abençoar-me, ou rejeitá-lo!”, declarou Isaac. Para seu pai, para a família e certamente para tôda a sua comunidade esta era a prova suprema. Isaac estava tenso, mas não intimidado. Lembrou-se do conse lho do pai: aprume-se, ordene os pensamentos e, quando você souber o que vai dizer, fale alto e claro. Esta era uma daquelas advertências paternas repetidas muitas e muitas vêzes, e com as quais as crianças se impacientam mas sempre recordam.
Vestido com uma kapota de sêda pura, feita especialmente para a ocasião, o pequeno Iciu — como era afetuosamente chamado — “aprumou-se, ordenou seus pensamentos” e come çou um discurso de duas horas sôbre o tema de Kikiyon:
“Uma vez em cada setenta anos aparece um pássaro no mundo. O pássaro é grande, belo e diferente de todos os outros. Chama-se Kikiyon. Este curioso nome, talvez de origem grega, nunca foi explicado. Quando voa — uma vez, de setenta em setenta anos — o pássaro cospe sôbre a terra. E só cospe uma vez. Sua saliva é extremamente preciosa. Possui qualidades miraculosas que curam qualquer doença ou deformidade. E Isaac tinha que discutir e opinar sôbre se a saliva do pássaro era kosher ou treyfe. Em outras palavras, preenche ou não os requisitos do ritual judaico no que se refere à alimentação?
Isaac citou por extenso tudo o que anteriormente se escreveu sôbre o assunto — todos os comentários, tôdas as doutas dis cussões que, em milênios, houve entre os mais sábios dos sábios. Mostrou domínio de suas fontes e capacidade de lidar com os detalhes mais obscuros. A audiência ficou cativada e em com pleto silêncio. Os presentes acenavam com a cabeça, admira dos. Então, depois de rápida consulta, proclamaram-no, inevi-tàvelmente, apto e digno de se tomar um rabino.
“Quando terminei de falar, choveram as congratulações. Minha mãe, todos os meus tios e tias abraçaram-me e beijaram-me, chorando e sorrindo ao mesmo tempo. Meu pai tentava disfarçar seu profundo orgulho e satisfação. Senti-me aliviado. Mas, subitamente, um inesperado embaraço e constrangimento me tomaram. Estava representando um ato e ficara satisfeito com o lado teatral da minha atuação”.
Teve alguma utilidade êsse exercício de debate acadêmico? Foi, por acaso, uma lição de pensamento abstrato, um treino de especulação mental? Era o que Montaigne chamava “ginás tica do raciocínio?” Talvez, a primeira tentativa de uma polê mica bem sucedida? A essas perguntas a resposta de Isaac foi sempre um “não” categórico. Ao contrário. “Todo êsse pseudo-conhecimento tumultuou e esgotou minha memória, tirou-me da realidade da vida, do verdadeiro aprendizado, do real co nhecimento do mundo que nos cerca. Isto impediu meu desen volvimento físico e mental”.
Na preparação de seu tratado sôbre Kikiyon, Isaac dispen sou longas horas de estudo e leitura. Aos quatro anos foi envia do ao kheder, escola de religião judaica, da qual sempre falou com desagrado. Era um buraco fétido e sujo, com vinte ou trinta garotos espremidos uns contra os outros em bancos de madeira, com a mal cuidada e encardida professora, impingin do em suas arengas o alef, beis, gyml, o alfabeto hebraico, a Bíblia e as Escrituras numa cantilena mecânica e monótona. Freqüentemente a professora tinha que recorrer a uma vara com a qual atingia a cabeça, os ombros ou o rosto de um aluno indisciplinado.
Havia ainda outra forma de castigo: “no meu primeiro dia no kheder fiquei horrorizado com o castigo da bacuT, Isaac continuava a recordar. Ao mau aluno ordenava-se que tirasse
a roupa e ficasse em frente dos outros com os pés dentro de
uma bacia de esmalte lascada. “Jurei que isso jamais me acon
teceria. Forcei cada nervo a seguir as palavras da professora
e a estar sempre pronto para responder a qualquer pergunta”.
Apenas uma vez o pobre Iciu foi esbofeteado. Sua atenção se
desviou: um bando de gansos mostrou ser demais para sua
concentração no alfabeto hebraico.
Mesmo êsse fétido e sujo buraco tinha, porém, algo de
compensador. “Havia um professor de quem me lembro melhor
do que dos outros. Tinha a barba ruiva, longa barba ruiva,
que balançava ritmadamente durante as lições, e os olhos de
um azul muito pálido, com inocente e infantil expressão de
encantamento. O olhar sempre se fixava num canto do teto, em
algum lugar no fundo da sala, atrás de todos os meninos. Êsse
professor contava e recontava a história da fuga do Egito.
Enfeitava-a à vontade. Sua imaginação poderosa trazia para
dentro da sala abafada a melodia, o perfume e o ar do Mar
Vermelho. Podíamos sentir a suavidade da brisa que empurra
va para frente a coluna de nuvens. E a coluna de fogo ardia
diante de nossos olhos, e as chamas dardejavam, dançavam e
estouravam em cascatas de cintilantes estréias. Mas, logo, ter
rível mêdo se apossou de todos nós; podíamos escutar, como
se estivessem ao nosso encalço, os cavalos e os carros do exército
do Faraó. A tensão aumentava e parecia que, num minuto
nós, “crianças de Israel”, poderíamos elevar as nossas vozes
“até o Senhor”. Então, piedosamente, víamos estendidas sôbre
nossas cabeças a mão de Moisés e sob os pés, sêca e firme, a
reconfortante terra. Forte vento do Leste empurrava o mar.
Estávamos de nôvo salvos pelas águas, “que eram uma mura
lha” para nós. E a muralha era, na verdade, maravilhosa: feita
de puro cristal, com tôdas as côres do arco-íris refratadas e
multiplicadas milhões de vêzes. Ficamos estupefatos e quase
não podíamos respirar”.
Esse tipo de imaginação judaica nutriu e estimulou Isaac
na sua infância; e êle se relembrava disso com forte e vivida
emoção. No ensaio sôbre a arte de Marc Chagall, Isaac desceu
às raízes judaicas, que de algum modo eram comuns em ambos.
Chagall, na sua juventude, transgrediu o ortodoxismo dos rabi
nos, que “impediam o crescimento das artes visuais”. “Pintar,
para um judeu, era revoltar-se, era executar um ato de emanci pação”. Isaac conseguiu sua emancipação ao revoltar-se contra a fé messiânica e contra o khassidismo tradicional e ao aderir ao socialismo revolucionário. Vendo naquele grande artista um “garôto do kheder”, uma criança judia olhando o mundo com olhos instáveis, cheios de encantamento e fervor, Isaac se sentiu atraído pelas primeiras pinturas de Chagall. A fantasia do folclore iídiche, tão oposta à rigidez da religião ortodoxa, a poesia daqueles pobres professores “barbas-ruiva”, que teste munhavam diàriamente a passagem pelo Mar Vermelho, as canções dos bardos, pobres e errantes trovadores e, acima de tudo, o humor judeu, tudo isso representava uma inesgotável fonte de fascinação. Era sintomático e significativo, êle obser vou, que quase tôdas as piadas sôbre as quais Freud baseou o seu Wit and the unconscious tinham origem judaica, cheias de auto-ironia e zombarias e, até um pouco de autopiedade. Foi êsse humor que ajudou os perseguidos e oprimidos a suportar a incerteza e a tristeza da existência. E foi exatamente a pre cariedade dessa existência que se tomou dolorosamente óbvia para Isaac, quando, ainda menino, presenciou o massacre dos judeus na sua nativa Chrzanow.
De repente, tornou-se consciente do quanto lhes era hostil a vizinhança não-judia. Houve, na verdade, um gentil amigo de seu pai que veio para prevenir a família do iminente desas
tre; mas, poucos judeus tinham tais amigos ou protetores. “Nós vivíamos no centro da cidade, no seu lado mais rico e burguês, onde nem todos os vizinhos eram judeus. O jardim da frente vivia cuidadosamente tratado, cheio de roseiras e árvores. No térreo, ficava a gráfica de meu pai e, no andar de cima, a nossa residência. Papai resolveu fazer barricadas em tôdas as portas e janelas, para oferecer resistência aos atacantes, caso tentas sem entrar. E ficou atrás da porta trancada, armado com uma barra de ferro, que trouxera da adega. As luzes foram apaga das. Escutávamos gritos e lamentos e o tumulto da multidão que se aproximava. Os gritos e pedidos de socorro tomavam-se cada vez mais altos. Através das frestas das venezianas podía mos ver o clarão das chamas distantes. Iriam botar fogo na cidade inteira? Fiquei petrificado, sentado no pequeno degrau que liga o quarto de meu pai ao meu. Orava, sussurrando, e
apertava fervorosamente os cordões do meu pequeno Tales, que sempre usava sôbre a camisa. A multidão enraivecida estava passando por nós, pois escutávamos o quebrar de jane las na casa seguinte”.
Isaac ainda não completara onze anos. Sua fé religiosa estava algo enfraquecida. Entretanto, na hora do perigo, os cordões de sua vestimenta ortodoxa, com seus supostos poderes de prevenir o perigo, ainda lhe pareciam dotados de qualidades mágicas.
A gentalha selvagem e destruidora deixou para trás a casa dos Deutscher. Mas, a experiência ficou indelével. “Na manhã seguinte fugimos. Alcançamos a estação da estrada de ferro através das ruas entulhadas de móveis e vidros quebrados e ainda fumegantes roupas de cama. Quando chegamos na pe
quena cidade vizinha, encontramos, de nôvo, fisionomias ansio sas nos judeus locais. Havia rumores de que os camponeses das redondezas estavam de ânimos exaltados”. Os dias de feira seriam as melhores ocasiões para “lutar com os Yid”. Os cam poneses costumavam selar cada transação comercial demorada com não menos demorados torneios de bebida. Vodca ou bebi da regional circulavam livremente e, em breve, qualquer arma — uma longa faca, uma foice, um pedaço de pau ou chicote — serviria para ajustar as contas do passado ou, talvez, mesmo
as que aparecessem no futuro. Ao excitamento normal dos dias de feira, agora, em novembro de 1918, somou-se o fervor de um nôvo patriotismo mui hábil e apaixonadamente pregado em tôdas as igrejas da recobrada terra natal.
Os refugiados do massacre de Chrzanow seguiram para adiante, mas a cidade seguinte também não lhes ofereceu segu rança. “Sobrevivi a três massacres durante as primeiras semanas da renascida Polônia”, lembrava Isaac, com ódio e com triste za. “Foi como nos saudou o raiar da independência polonesa”.
“O ano de 1918 foi o mais longo de minha infância”, costu mava dizer. “Vivíamos no chamado canto dos Três Imperado res. De um lado estava a Polônia, do outro a Polônia Alemã e estávamos colocados exatamente no meio dessa população plurirracial, que constituía o Império Austro-Húngaro. Naque le canto dos Três Imperadores, o ano de 1918 pareceu ainda mais dramático do que em qualquer outro lugar da Europa.
Caíram, naquele ano, as três monarquias e estivemos sob a avalanche de três revoluções”.
Isaac guardava as mais vividas recordações daqueles anos e gostava de recordar, em particular, um incidente que consi derava sua primeira importante lição de política. Na praça do mercado de Chrzanow, não muito longe da casa dos Deutscher, ficava o mais importante prédio do distrito: a Prefeitura e a Estação de Polícia, formando um todo. Sôbre a pesada porta de entrada, num grande escudo, aparecia gravado o emblema do Império dos Habsburgos: uma águia com asas abertas e duas cabeças, ambas coroadas, olhando, uma, para a direita, e a outra, para a esquerda. Certo dia de novembro de 1918, verda deira multidão reuniu-se, em frente da Prefeitura, para comen tar as declarações do último dos Habsburgos. Um jovem corcunda, uma das pessoas menos notadas da cidade, subia numa frágil escada, encostada no prédio municipal. Todo mundò olhava seus movimentos ágeis com a respiração prêsa. Atingiu o mastro e, então, alcançou a águia de duas cabe
ças. Com duas ou três marteladas, soltou o escudo da base; depois, olhando para baixo gritou, ao povo: “Ei, vocês, afas tem-se, tomem cuidado!”. A multidão recuou um pouco. O corcunda atirou a águia austríaca diretamente sôbre o piso da praça. O escudo e a águia espatifaram-se em centenas de pe daços. No dia seguinte, nova bandeira, a da Polônia tremulava sôbre Chrzanow.
O simbolismo da cena gravou-se na memória do futuro historiador. Quando o momento chegar, “o menos notado” corcunda da pequena cidade pode fazer em pedaços a reve renciada e horrenda águia imperial.
A infância de Isaac chegava ao fim. Até a idade de treze anos, freqüentara, mais ou menos regularmente, a escola públi ca estadual. Depois de suas preces matinais na Sinagoga, vol tava para casa e, então, lá pelas oito horas, mergulhava nos diferentes mundos da patriótica e altamente religiosa Escola Católica Romana. “A nós, meninos judeus, permitia-se — na verdade, esperava-se — que deixássemos a sala quando o padre entrava para a aula diária de catecismo. Embora raramente
sentíssemos qualquer anti-semitismo consciente da parte de
nossos colegas, depois dessas aulas freqüentemente
verificava-se certa tensão entre os meninos cristãos e os que ficaram fora
da sala. Éramos levados, de algum modo, a sentirmo-nos cul
pados pelo drama da crucificação. Não se dizia uma palavra,
porém, os olhares incomodavam. Essa tensão, entretanto, não
durava muito, pois os jogos em comum novamente nos uniam”.
À tarde, depois das aulas, enquanto a maioria dos colegas
fazia seus deveres ou perambulava pelos campos vizinhos, Isaac
se dedicava aos estudos religiosos. “Suponho que as duas
orto-doxias — pela manhã, a católica e, à tarde, a judaica — se
invalidaram, mutuamente, neutralizando-se em meu cérebro;
muito cedo, eu as repudiei e me tomei ateu”, disse, quase meio
século depois1.
Aos treze anos, começou nova fase cheia de esforço e dedi
cação para o mais nôvo rabino consagrado, para o brilhante
primeiro aluno do Colégio Católico Romano local, para o escri
tor e poeta que nascia. À insatisfação da adolescência
juntou-se uma rebelião claramente definida contra sua educação
religiosa judaica e contra as cadeias do ortodoxismo. Longo
período de “regatear” com o pai começou: quantas horas por
dia precisava ficar na Sinagoga? Quantas na escola religiosa?
Quantas na escola secundária, o gymnasium polonês?
“Costumava sonhar com o gymnasium. Lá, tudo era tão
atraente: prédio modemo, iluminado, arejado, coberto com
fôlhas de era, o playground, os professores, alguns dos quais já
conhecia, mas, acima de tudo, desejava, ardentemente, vestir o
uniforme da escola. Via-me como um estudante de verdade,
com brilhantes botões no casaco, a pasta cheia de livros —
todos sôbre a história e a poesia da Polônia, é claro”. Êsse
sonho, no entanto, nunca se realizou. Sem dúvida, não se per
mitiria ao menino, que era o orgulho dos mais cultos da comu
nidade judaica, perder tempo com a educação secular polonesa.
“Com ameaças de suicídio, lágrimas de desespêro, usando
argumentos lógicos em que realmente acreditava, dobrei meu
pai e chegamos a um compromisso. Fizemos um horário, embo
ra bastante desfavorável para mim. Estudaria a Torá e o
mude pela manhã e à tarde, mas nas horas livres, poderia seguir o curriculum do gymnasium; poderia ter contato com os cole gas e professores, e preparar-me para os exames como ouvinte. Meu pai tinha idéias exageradas sôbre minhas possibilidades e tal desprezo pela educação secular polonesa que, dando de ombros, dizia: “Você não precisa de mais de duas semanas para aprender aquilo que os outros meninos levam suando um ano inteiro”.
Nem o pai nem o filho, como sempre acontece, deixaram de regatear por muito tempo. Isaac abandonava mais e mais a Sinagoga e a escola judaica pelo arejado e iluminado prédio do gymnasium. Não freqüentava regularmente qualquer curso. De tempos em tempos, escapava para as aulas do professor Urbanczyk, que ensinava literatura polonesa e saudava o curio so menino vestido com uma kapota preta e os cachos desajei tadamente escondidos atrás das orelhas. Isaac costumava dar vida às aulas, com as suas idéias, explodindo em perguntas, problemas, objeções. Quando convidado, ficava de pé, “coor denava seus pensamentos” e fazia uma análise original sôbre o assunto ou dava a própria opinião sôbre a obra literária de algum poeta polonês. Organizou ainda um círculo literário que habitualmente se reunia fora das horas de aula, para discutir questões não só de literatura como de filosofia.
Aí estourou, então, um pequeno escândalo: numa dessas reuniões, Isaac abriu os debates com um tema de sua escolha: “Cristo era judeu e comunista”. Iniciou sua dissertação, mas não pôde continuá-la; alguns dos meninos ficaram chocados, outros, horrorizados com a audácia do judeu. “Num instante me tornei intruso, estranho. Tomei-me um Yid. Por acaso, naquela mesma manhã, não lhes ensinaram que os judeus assas sinaram Cristo? Dois ou três meninos judeus silenciosamente deixaram a nossa reunião. Alguns não-judeus me defendiam. Outros estavam tão inflamados com a minha blasfêmia que tudo quase terminou em luta”. A escola, no dia seguinte, estava em pé de guerra. O diretor e os professores, que, até então, toleraram as incursões irregulares e apenas semi-autorizadas de Isaac nas salas de aula, ameaçaram impedi-lo de entrar. Foi o bondoso professor Urbanczyk que o socorreu. Serenou os animos e, finalmente, liquidou o caso. Bem cedo, porém, a
freqüência de Isaac ao gymnasium estaria novamente ameaçada
por outro motivo. Jacob Deutscher entendera chegado o mo
mento de seu filho deixar a casa paterna e dedicar-se a estudos
teológicos mais sérios, uma vez que ali não poderia realizá-los.
Devia beneficiar-se da companhia dos homens santos, apro
fundar-se na atmosfera dos debates religiosos eruditos. Jacob
decidiu enviar seu filho à Côrte do Tsadik de Gera. Isso repre
sentou um duro golpe para Isaac, que se recusava a partir e
discutia exacerbadamente com o pai. Isaac conseguiu o apoio
materno e, finalmente desesperado, cortou os cachos de seu
cabelo.
“Isso não foi um gesto de desafio e sim do mais alto deses
pero. O aparecimento de um judeu na Côrte do Tsadik de
Gera sem os seus peyes (cachos) era inconcebível. Estava
convencido de que meu pai não se exporia a esta vergonha,
que cederia, ou, pelo menos, abandonaria a idéia durante algum
tempo. Enganara-me. Primeiramente com calma, depois com
ressentimento e, logo em seguida, eu veria uma terrível fúria
dêle se apossar. Esbofeteou-me, pela primeira e única vez. Tam
bém foi a primeira vez que percebi um lampejo de fanatismo
em seus olhos”. Jacob Deutscher — atormentado por dúvidas
religiosas latentes e estrita ortodoxia, ansiando por mais largos
horizontes, temeroso de transgredir o judaísmo — vivia uma
fase de paixão religiosa que acendia a chama do fanatismo
em seus olhos. No dia seguinte, pai e filho iniciaram a pere
grinação: “Resignei-me com o destino. Meu estratagema não
me salvou. Estava plenamente consciente da enormidade da
minha ofensa: é pecado para o judeu “cortar os cachos de seu
cabelo com gilete”. Feri papai com meu pecado. Fiquei com
pena de mim e cheio de tristeza porque não sabia o quão pro
fundamente eu o magoara”.
Isaac, entretanto, não permaneceu em Gera por muito tem
po. Mais tarde justificou esta experiência com um dar de
ombros: “Estava mergulhado na idade Média. Meus correli
gionários viviam como que em transe: havia tanto fervor em
suas preces como em seus rituais. Mas, havia também um
punhado de judeus ricos nada zelosos com a observância dos
ritos. Vinham para pequenas visitas, alguns de além-mar, em
busca dos sábios conselhos do Tsadik para assuntos comerciais.
Alguns eram bastante cínicos: ofereciam ao santo uma parti cipação nos negócios em troca de sua bênção que, assim, adqui ria a forma de um seguro espiritual”. Apenas duas ou três semanas depois, Jacob Deutscher trouxe seu filho de volta ao lar. A fase de fanatismo passou. E, agora, nas relações entre pai e filho, reconciliados e, talvez, ambos com um pouco de remorso, manifestava-se novamente calor e afeição. As longas noites de inverno foram outra vez dedicadas à leitura em comum. Era a escolha dos temas que evidenciava mais cla ramente o conflito que ia na alma de seu pai. Depois de seu retomo da arcaica e austera atmosfera de Gera, marcada pelo ensino escolástico e um modo de vida do século XIII, Isaac tomou a si a tarefa de estudar as obras de Goethe e Lessing ou os tratados filosóficos de Spinoza. Tôdas as pági nas dos livros lidos juntamente com o pai, proclamavam: “DE OMNIBUS DUBITANDUM; ainda há poucas semanas, na côrte do maravilhoso rabino, a tradição, a autoridade e a cegueira da fé constituíam tudo. Spinoza, o rebelde, o ateu, o herege, o judeu excomungado, mostrou-se um bem sucedido mentor para o jovem rabino, que já abandonava a religião de uma vez para sempre. Quando estavam bem-humorados, pai e filho costumavam voltar-se para a poesia e a prosa de Heine. Outra vez, aqui, a história da religião na Alemanha, que Isaac conhecia quase de cor, não poderia levá-lo de volta à Sinago ga, mas, pelo contrário, deveria afastá-lo. Houve, então, as noites em que as poesias de Heine —poemas e versos satíricos — eram lidas em voz alta. A declamação do longo poema Disputation, na qual um pastor católico e um rabino debatem a dignidade e o valor de suas respectivas religiões causou
grande alegria. O poema termina assim:
Welcher recht hat weiss ich nicht Doch es will mich sóhier bedünken Dass der Rabbi und der Mónch Dass sie alie beide stinken °
# Numa tradução literal: Quem tem razão, isto não sei./ Mas quase me parece./ Que o rabino e o monge./ Todos os dois cheiram mal
(N. do T.)
Não é de admirar que, no dia seguinte e ainda por alguns
outros, o lugar de Isaac permanecesse vazio na Sinagoga.
“Spinoza, Heine, Lassale. . . eis os seus três heróis”, Isaac
costumava dizer para seu pai. “Você empurra as obras dêles
para as minhas mãos, lê-as comigo e me contamina com o seu
entusiasmo pela sua filosofia e pelas suas idéias. Todos os três
deixaram ou superaram o judaísmo e a religião. E você quer
que eu permaneça crente e leal ao que, já para Spinoza, no
século XVII, era um anacronismo, assim como para Heine e
Lassale, há cêrca de cem anos, era ridículo. Você quer que
eu aceite de bom grado a vida que você planejou para mim e,
no entanto, todos os seus heróis foram rebeldes, apóstatas,
subversivos”.
Não há dúvida de que Jacob Deutscher foi a maior
influência pessoal na infância e adolescência de Isaac. Havia
harmonia e comunhão intelectual entre pai e filho,
permitindo-lhes entender-se mutuamente; havia também discordância e
aborrecimentos, que tomavam suas relações, algumas vêzes,
tempestuosas, tensas, mas sempre ricas e altamente férteis.
Nesse contato, a personalidade do filho formou-se por si só.
Eis como, um mês antes de morrer, Isaac falou sôbre seu
pai:1 “Meu pai foi um judeu ortodoxo, amante da cultura, da
filosofia e da poesia alemãs. . . Sempre desejava ler comigo a
literatura e os jornais da Alemanha. Publicou, em sua juventude,
ensaios no Neue Freie Presse, o mais conhecido jomal de Viena;
foi correspondente do Hazefira, de Varsóvia, o primeiro diário
a aparecer em língua hebraica; e escreveu, ainda, um pequeno
livro em hebraico sôbre Spinoza, com o título latino Amor Dei
Intellectualis. Spinoza foi um de seus heróis, Heine, outro.
Meu pai tinha também grande respeito por Lassale, porém,
para êle, o mais alto ideal intelectual, fora dos escritores judeus,
era, sem dúvida, Goethe. Eu não compartilhava com a sua
parcialidade pela poesia alemã. Era um polonês patriota.
Mickiewicz e Slowacki eram-me, incomparàvelmente, mais que
1 Entrevista feita pela Televisão Alemã.
ridos e chegados. Por esta razão, também nunca aprendi com pletamente o alemão1. Meu pai costumava dizer: ‘Sim, você quer escrever sua boa poesia apenas em polonês. Sei que você será um dia um grande escritor’. Tinha uma idéia exagerada do meu talento literário e queria que me exercitasse numa linguagem mundial. ‘Alemão’, dizia êle, ‘é a língua universal. Por que enterraria você todo êsse talento numa língua provin ciana? Você só tem que ir além de Auschwitz. . . ’ — Auschwitz estava bem próximo de nós, na fronteira —‘você só tem que ir além de Auschwitz e, praticamente, ninguém mais o entenderá, nem você nem seu belo idioma polonês. O que vocè deve é aprender o alemão’. Êste era o seu nunca esquecido refrão. Você só tem que ir além de Auschwitz e estará completamente perdido, meu filho’. Eu já estava impaciente e, algumas vêzes, o interrompia: — Já sei o que você vai dizer, papai — você só tem que ir além de Auschwitz e estará perdido. A trágica verdade é que meu pai nunca foi além de Auschwitz. E, na Segunda Guerra Mundial, ali desapareceu”-.
Isaac reconciliou-se, afinal, com a língua e a cultura ale mãs: foram os trabalhos de Marx e Engels que conseguiram esta reconciliação. Só os leu bem mais tarde, quando adulto. “Era um menino polonês, educado numa escola polonesa. Para nós, os alemães, como os russos, eram opressores, que nos roubaram a independência por século e meio e contra quem lutamos em numerosas insurreições. Na escola cantávamos a canção de Maria Konopnicka, grande e renomada poetisa, com o seguinte refrão: ‘Os alemães não cuspirão em nossos rostos nem transformarão em alemães nossas crianças’. E, eis meu pai querendo transformarme num alemão! Essa tentativa se chocava contra minha sensibilidade pela poesia lírica polonesa e tôdas as minhas noções sôbre a independência da Polônia”. Amor Dei Intellectualis parece ter sido o lema tanto de Jacob como de Isaac Deutscher. Êsse lema contradizia todos
1 Isaac falava um alemão fluente e idiomático.
2 Durante a ocupação nazista, em Auschwitz existiu um dos mais famosos campos de concentração, onde milhares de judeus foram dizi-mados. (N. do T.)
os esforços de um pai que desejava para seu primogênito uma
carreira teológica. O próprio pai, indiretamente ou sem perce
ber, semeou a dúvida e incutiu em Isaac aquêle respeito pela
heresia, que permaneceu, caracteristicamente, até o fim de
sua existência.
Mas, em que ponto de sua vida, Isaac abandonou a religião
para sempre? Isso foi, na verdade, um processo gradativo.
Mas, sem dúvida, determinado episódio, altamente dramático,
que atraiu o senso teatral de Isaac, selou o rompimento final.
Aqui, de nôvo, de modo mais remoto, a personalidade do pai
contribuiu em alguma coisa para o desenvolvimento da perso
nalidade do filho.
Poucos meses depois de completar quatorze anos, Isaac
fêz-se amigo de um jovem aprendiz da gráfica, excelente tra
balhador, muito amadurecido para sua idade, sempre bem
informado sôbre os acontecimentos políticos de então. Era
comunista, ateu, e, ainda, o favorito de Jacob Deutscher! Êste
rapaz tratava Isaac com pouca condescendência, e um toque de
ironia. Mas gostava de envolvê-lo em todo o tipo de debate
sôbre política e religião. Em ambos os casos, parecia disposto
a converter Isaac aos seus pontos de vista. Na véspera do
Yon Kippur, o Dia da Expiação, êle provocou Isaac: “Se você
realmente não acredita em Deus” —disse —“prove-o. Faça-me
companhia amanhã na porta do cemitério judeu”. Isaac
aquies-ceu. Enquanto seus pais se dedicavam às orações os dois com
panheiros encontraram-se. O aprendiz levou o jovem Isaac
ao túmulo do rabino. Ali, êle tirou do bôlso dois sanduíches de
manteiga e presunto. Isto, sem dúvida, era uma extrema blas
fêmia; acumulavam-se pecados sôbre pecados. No dia do mais
rigoroso dos jejuns, quando nem mesmo uma gôta de água
deveria passar através dos lábios de um judeu ortodoxo, Isaac
empunhava a mais pecaminosa das comidas. A simples visão
do presunto ser-lhe-ia odiosa. Botar qualquer carne entre
camadas de manteiga constituía grave ofensa às leis do ritual;
e aí estava o presunto, o mais abominável, o mais pernicioso
dos alimentos. “Fiquei petrificado pela iniqüidade de minha
conduta. Mastiguei o sanduíche e engoli cada pedaço com
dificuldade. Estava meio esperançoso e meio temeroso de que
algo acontecesse; esperava que um relâmpago me despeda
çasse. Mas nada aconteceu. Tudo estava quieto. Meu com panheiro considerou a experiência uma grande brincadeira. Apertou minhas mãos, bateu-me nas costas. Deixei-o e corri de volta à cidade”. Na Sinagoga ninguém notara a ausência de Isaac. Voltou de sua escapada pecaminosa a tempo de misturar-se com a multidão, que, depois de um dia de rezas e jejum, retornava a seus lares para um solene banquete. “À mesa, com a família, mal podia levantar os olhos. Nunca tinha sentido tanto remorso em tôda a minha vida. Não pelo que tinha feito; não era, de modo algum, a ofensa contra as leis de Moisés que pesava tanto em minha consciência. A solici tude de meu pai, o carinho de minha mãe, que, pálida e consumida pelo longo jejum, se apressava em servir a família faminta — e a mim, antes de todos — tudo isso se tomara insuportável para mim”.
Isaac narrava êste episódio sempre com grande dose de emoção. A refeição profana sôbre o túmulo do rabino, o sacrilégio, a impiedade, seus temores, crenças e descrenças eram apenas o ápice de um longo processo no caminho do ateísmo. Mas, naquela noite, não foi Deus o ridicularizado. Seus pais é que foram ludibriados. E isto fêz o jovem peca dor, chocado, engasgar com a comida, envergonhar-se e chorar.
Isaac não viveu para descrever sua infância tal como desejava fazer, mas referências autobiográficas, em muitos de seus trabalhos, mostraram o que lhe aconteceu na sua pere grinação de fé. No primeiro ensaio dêste volume, fala, indire tamente, sôbre si próprio, sua origem, seu desenvolvimento intelectual e filosófico. Pertencia — e sentia-se pertencer — àquela estirpe de judeus não-judeus, que transcendiam o ju daísmo, para atingir os mais altos ideais da humanidade. Como Heine, Marx, Rosa Luxemburg, Trotski e Freud, Isaac achou o judaísmo e tôdas as religiões bastante limitadas e, como êles, viveu à margem de várias culturas nacionais e estava na so ciedade — polonesa, judaica, inglêsa, alemã — sem nela se integrar. Ainda aí permanecia na tradição judaica e nunca o negou.
Na última noite de sua vida, inspecionamos do alto do
Capitólio o Arco de Tito, brilhantemente iluminado pela plena
luz do verão. Em suas precisas e bem torneadas frases, em
inglês, cheias de sentimento e poesia, Isaac contava como,
apesar de odiado pelos judeus, aquêle era o símbolo do triunfo
romano.
“A batalha de Jerusalém foi prolongada. Tito desfilou suas
legiões ao longo dos muros da cidade em cêrco. Eram bem
armadas e pareciam audazes. Deviam atemorizar os sitiados.
Lembrem-se”, continuou Isaac, persuasivamente, “que os ro
manos possuíam tudo em volta — Jerusalém estava sozinha.
Havia o templo cercado de muros, e o palácio real, também
com as suas fortificações. Tinham proteções internas, defesas
cuidadosamente construídas e baluartes externos. Os defenso
res poderiam ousar sair para atacar o inimigo, mas eram obri
gados a voltar para dentro de sua enorme e aparentemente
inexpugnável fortaleza. Os romanos impacientavam-se. Seu
orgulho estava ferido e concentraram tôdas as suas fôrças no
assalto. Tito ordenou que não dessem trégua nos ataques.
Dentro da fortaleza, mais de meio milhão de homens, mulhe
res e crianças, todos armados e sem mêdo de morrer; e êles
viram o brilho do relâmpago e escutaram a voz de Deus,
dizen-do-lhes que defendessem o templo até o seu último suspiro;
e o fizeram. Tito, porém, era mais forte; investiu com tôdas as
suas fôrças contra o bastião e as paredes ruíram. Em Roma,
regozijava-se. Levantou-se o Arco para comemorar a volta
triunfal de Tito e de sua tropa da Judéia. Êste fato assinala
a queda de Jerusalém e a destruição do templo. Gerações de
judeus vêm derramando lágrimas e suspirando ao pensar nessa
calamidade”.
Mais de meio século passou desde que a imaginação de
Isaac se abalou quando ouviu esta trágica história dos lábios
do seu professor, o poeta visionário, o rabino barba vermelha
do colégio judaico. O caminho que Isaac percorreu, do kheder
de Chrzanow aos salões de conferência de Cambridge e
Har-vard, ao campus dos estudantes rebeldes de Berkeley, foi muito
longo; foi também solitário e árduo.
“A infância mostra o homem
Como a madrugada mostra o dia”
Assim escreveu Milton. Parece que Isaac obedeceu ao pre ceito do poeta:
“Sê famoso então
Pela sabedoria; como teu império deve [estender-se,
Estende tua consciência sôbre todo o mundo”. Londres, dezembro de 1967
Tamara Deutscher
I
O Judeu Não-Judeu'
I Já
u m v e l h oditado talmúdico — “o judeu que pecou
permanecerá sempre judeu”. O que penso, sem dúvida, trans
cende a idéia do pecado e do não pecado. Mas êsse preceito
me reavivou no espírito uma recordação da infância que pode
ser relevante para meu tema.
Lembro que, quando era criança, li o Midrasli e a descri
ção de uma cena muito me impressionou. Era a história do
Rabino Meir, o grande santo e sábio, o pilar da ortodoxia mo
saica e o co-autor do Mishnáh, que aprendeu teologia com um
1 Êste ensaio se baseia numa conferência pronunciada durante a Semana do Livro Judaico, para o Congresso Judaico Mundial, em feve reiro de 1958.
herege, Elisha ben Abiyuh, chamado Akher (O Estrangeiro). Certo sábado, o Rabino Meir estava com seu mestre e, como de costume, se envolviam em profundo debate. O herege ia ' num burrico e o Rabino Meir, como não podia cavalgar aos
sábados, caminhava a seu lado. Escutava tão atentamente as palavras de sabedoria saindo dos lábios do herege, que não percebeu quando ultrapassaram aquela divisa proibida aos judeus de cruzar naquele dia. O grande herege, dirigindo-se
ao aluno ortodoxo, disse: “Veja, alcançamos a divisa, devemos nos separar agora, você não mais deve acompanhar-me. Volte!” O Rabino Meir voltou para a comunidade judaica, enquanto o herege ultrapassava a divisa.
Havia muito naquela cena para preocupar um pequeno judeu ortodoxo. Por que — eu me perguntava — o Rabino
Meir, aquêle homem luminar da ortodoxia, tomava lições de um herege? Por que lhe dedicava tanta afeição? Por que o defendeu contra os outros rabinos? Meu coração, ao que pare ce, estava com o herege. E quem era êste herege? Êle parecia estar, ao mesmo tempo, dentro e fora do judaísmo. Mostrou estranho respeito pela ortodoxia de seu aluno quando o fêz retomar aos judeus, no Sábado Santo; mas, êle mesmo, des considerando os cânones e o ritual, ultrapassou a divisa. Quan do eu tinha treze anos, ou talvez quatorze, comecei a escrever uma peça sôbre Akher e o Rabino Meir e tentei encontrar mais alguma coisa a respeito do herege. Que o fêz superar o judaísmo? Era um agnóstico? Era adepto de alguma outra escola de filosofia grega ou romana? Não pude encontrar res postas e não consegui passar do primeito ato.
O judeu herege, que superou o judaísmo, pertence a uma tradição judaica. Você pode ver Akher, se quiser, como um protótipo daqueles grandes revolucionários do pensamento mo derno: Spinoza, Heine, Marx, Rosa Luxemburg, Trotski e Freud. Também pode, se assim o desejar, colocá-los dentro da tradição judaica. Todos ultrapassaram a divisa do judaísmo, que consideravam tão estreito, tão arcaico, tão constrangedor. Todos procuraram ideais e satisfação fora do judaísmo e repre sentaram a soma e a essência de tudo que é mais grandioso no pensamento moderno, a soma e a essência das mais profundas
convulsões que ocorreram na filosofia, na economia, e na polí
tica nos últimos três séculos.
Tinham alguma coisa em comum? Influenciaram, talvez,
o pensamento da humanidade por causa do seu especial gênio
judaico? Êles não acreditavam na genialidade exclusiva de
uma raça. Penso, não obstante, que, de alguma forma, foram
bastante judeus. Levavam dentro de si algo da quintessência
da vida judaica e de sua intelectualidade. Foram excepcionais
nisso, pois, como judeus, viviam nas fronteiras de várias civili
zações, religiões e culturas nacionais. Nasceram e se criaram
nas fronteiras de várias épocas. Amadureceram onde se cru
zavam as mais diversas influências culturais, fertilizando-se
umas às outras. Viveram nas margens, nos cantos ou nas fen
das de suas respectivas nações. Cada um dêles estava na socie
dade ou fora dela, pertenciam-lhe ou não. Foi isso que lhes
possibilitou elevar o pensamento acima de suas sociedades,
suas nações, suas épocas, seus contemporâneos e expandir-se
mentalmente para novos horizontes e para o futuro.
Penso que um protestante inglês, biógrafo de Spinoza, disse
que somente um judeu teria conseguido aquêle desenvolvi
mento na filosofia de sua época, como Spinoza o conseguiu —
um judeu liberto dos dogmas das igrejas cristãs, católica e
protestante, e também daqueles em que se criou1. Nem mesmo
Descartes ou Leibnitz puderam libertar-se dêsse tipo de gri
lhões que os acorrentavam às tradições da escolástica medieval
na filosofia.
Spinoza educou-se sob as influências da Espanha, Holanda,
Alemanha, Inglaterra e Itália do Renascimento. Tôdas as ten
dências do pensamento, que vigoravam naquela época, forma
ram seu caráter. Sua terra natal, a Holanda, estava em plena
1 “É uma séria desvantagem, resultante do grande triunfo externo do Cristianismo, o fato de que os pensadores da cristandade só muito raramente entraram em contato com outras religiões e com outros tipos de orientação mundial. A conseqüência dessa inexperiência consiste em que as coisas comuns foram tomadas como verdadeiras pela forma cristã de encarar o mundo. . . .O mais ousado e original pensador.. . foi Spinoza que se colocou acima dos preconceitos teológicos, dos quais
os outros não puderam libertar-se completamente” (A Correspondência de Spinoza. Introdução escrita por A. Wolf).
revolução burguesa. Seus antepassados, antes de virem para a Holanda, foram cripto-judeus maranim, judeus de coração e cristãos de fachada, assim como o eram muitos judeus espa nhóis aos quais a Inquisição impusera o batismo. Depois de chegar à Holanda, os Spinozas mostraram-se, na realidade, ju deus; mas, evidentemente, nem êles nem seus descendentes mais próximos eram estranhos ao ambiente intelectual do cato licismo.
O próprio Spinoza, quando se lançou como pensador independente e iniciador da moderna crítica à Bíblia, compre endeu, imediatamente, as principais contradições do judaísmo — a contradição entre o Deus monoteísta e universal e o con junto com o qual êle se apresenta na religião judaica — como um Deus legado somente a um povo: a contradição entre o Deus universal e seu “povo eleito”. Sabemos o que a consciên cia desta contradição provocou em Spinoza: foi banido da comunidade judaica e excomungado. Teve de lutar contra os clérigos judaicos, os quais, vítimas recentes da Inquisição, se tomaram infectados pelo seu espírito. Depois, teve de enfren tar a hostilidade dos clérigos católicos e dos padres calvinistas. Sua vida inteira constituiu uma luta para sobrepujar as limita ções das religiões e culturas de seu tempo.
Entre os judeus de grande inteligência, expostos às con tradições de várias religiões e culturas, alguns foram de tal forma impelidos em diferentes direções por influências e pres sões contraditórias que, não conseguindo encontrar o equilíbrio espiritual, fracassaram. Um dêsses foi Uriel Acosta, precursor e mais velho que Spinoza. Muitas vêzes, êle se rebelou contra o judaísmo e outras tantas se retratou. Os rabinos excomun garam-no. E sempre Uriel Acosta se prostrava diante dêles, no chão da Sinagoga de Amsterdã. Spinoza, porém, tinha a grande felicidade intelectual de não harmonizar influências conflitantes e delas tirar uma alta visão do mundo e uma filo sofia integrada.
Em quase tôdas as gerações, onde quer que o intelecto judeu, a serviço da concatenação de várias culturas, luta contra
si próprio e contra problemas do seu tempo, encontraremos alguém que, como Uriel Acosta, fracassou sob o pêso dessa tarefa e alguém, como Spinoza, que tirou desta carga as asas