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Dez anos de temperos, memórias e histórias no Jardim Lapenna

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Academic year: 2021

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Dez anos de temperos,

memórias e histórias no

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SUMÁRIO

Editorial

04 Dez anos aprEsEntação

06 Memórias & afeto introdução 08 O Começo de tudo 14 Quem ensina 20 Um caminho de possibilidades 24 Ana Teixeira 32 Edicleuma Nogueira 42 Eliana Zanão 50 Joseilda Silva 60 Jussara Silva 68 Leila Andrade 78 Maisa Melo 86 Nena Maria 96 Sabrina Duarte 104 Sandra Abrantes 30 Torta salgada 38 Pão de mel 48 Bolo de fubá cremoso 56 Pão de beterraba 66 Bolo fofura 74 Bolo de maçã 84 Torta de morango

92 Bolo de cenoura com cobertura de brigadeiro 102 Sopa de ervilha 110 Brigadeiro de laranja

O Projeto

As

Histórias

Receitas

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Aos dez anos de idade, já temos muitas cer-tezas: da grandeza do mundo, da delicadeza das coisas, de que as nossas vontades são nossas, assim como os nossos desejos. Este livro celebra exatamente isso, o número dez. Mas de uma maneira diferente, sem teorias, entraves, máscaras. Ele festeja a primeira década como festa de criança, com bolo, salgadinhos, doces, brincadeiras, desejos ao cortar o primeiro pedaço do bolo, abraços, fotografias para guardar no álbum da vida, felicidade e amor.

Ana Claudia, Edicleuma, Eliana, Joseil-da, Jussara, Leila, Maísa, Nena, Sabrina, Sandra. Dez nomes e um elo em comum: a cozinha. Melhor, a cozinha da Oficina Esco-la de Culinária da Fundação Tide Setubal, no Jardim Lapena, em São Miguel Paulista, São Paulo. Dez mulheres que, por meio de suas histórias, recontam os dez anos da Ofi-cina. Esse é o olhar escolhido para traçar a

última década do lugar. Não por números, mas pela jornada de cada uma. Não por te-orias de como a comida pode ter papel im-portante para transformar as pessoas, mas pela vida de cada uma delas. Um olhar ge-neroso, humano e afetuoso como a comida pede. São histórias de mudança, reconcilia-ção, reencontro, transformareconcilia-ção, superareconcilia-ção, liberdade. Isso porque, por meio da comida, elas conseguiram mostrar para o mundo aquilo que elas já carregavam dentro. São mulheres de força, que descobriram no simples ato de cozinhar um caminho para conquistar o que desejavam, queriam e so-nhavam ser.

Ao longo de dois meses, eu e mais dois jornalistas de olhar aguçado e delicado, Dé-bora Gomes e Eduardo Alves, nos aproxi-mamos e ouvimos essas dez mulheres, que passaram por vários cursos da Oficina, que vivenciaram o Galpão, que descobriam na

Dez anos

EDITORIAL

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Cozinha de afetos — O prOjetO 5

proximidade do fogão um lugar de acon-chego. Conversamos também com os pro-fessores e com pessoas que, de alguma forma, fizeram parte dessa década. Nessas conversas teve lugar para lágrimas, para lembranças doídas, para pequenas e gran-des alegrias. Foi intenso e profundo. Por muitas vezes, me perguntei: “será que elas têm ideia da força que carregam?”. Per-ceber em algo tão simples e corriqueiro, como o cozinhar, um caminho de sabedoria e de construção é para poucos, para aque-les que sabem se enxergar.

Este livro traz, assim, a reunião de tudo isso: a saga da Oficina – e como tudo come-çou – e a história dessas mulheres que ilus-tram de maneira poderosa os dez anos do lugar e as centenas de tantas outras alunas que passaram por aquela cozinha. Cada história é seguida de uma receita sugerida e um texto escrito corajosamente por cada

uma delas. Livro para ler, guardar na cozi-nha ou ao alcance das mãos, para consul-tar quando der vontade de preparar aquela receita que aquece o coração, ou simples-mente para nos fazer recordar que comida nunca é só comida. É história, memória, afeto, revolução, transformação e cura.

Meu muito obrigada a Fernanda, Gui-né, Andrelissa e a todos da Fundação que, de alguma maneira, cruzaram meu canho, que acreditaram e confiaram na mi-nha condução e abriram espaço para que este livro nascesse do jeito mais lindo que se pode vir ao mundo... com amor.

ana Holanda

*AnA HolAndA é jornalista, escritora, professora e autora do livro Minha Mãe Fazia – Crônicas e Receitas Saborosas e Cheias de Afeto (editora Rocco), e editou este livro com a mesma ansiedade e prazer com que uma criança espera o bolo sair quentinho do forno.

“Perceber em algo tão simples e corriqueiro,

como o cozinhar, um caminho de sabedoria

e de construção é para poucos, para aqueles

que sabem se enxergar”

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Minha relação com a Oficina Escola vem da paixão por culinária que começou na infân-cia, ao conviver com minha avó e minha mãe na cozinha, e da convicção de que cozinhar pode transformar mais que alimentos. É ex-pressão de afeto e generosidade, que pode mo-dificar vidas e diz muito sobre quem somos e de onde viemos.

Sempre que chegava da escola com meus irmãos, no meio da tarde, encontrava a mi-nha avó na cozimi-nha preparando nosso lan-che. Ela tinha origem americana-alemã, era uma mulher dura e severa consigo mesma e com os outros, mas que sabia demonstrar seu afeto cozinhando. Ali, entre as panelas, ela se transformava em uma pessoa amorosa que, ao longo de suas tardes, nos preparava pães e doces maravilhosos. Lembro-me bem dos so-nhos, que faziam jus ao nome, dos pãezinhos quentes e dos pasteizinhos de massa podre, recheados de geleia de morango.

O tempo passou, mas as lembranças dessas tardes adocicadas nunca saíram de mim. Até que, na época em que trabalhei no Centro de Voluntariado de São Paulo, meu caminho se cruzou novamente com o cozinhar. Conheci dois projetos ligados à culinária: um na favela

do Jaguaré, de capacitação de jovens para tra-balhar com chefs de cozinha, e que depois se tornaria a “Gastromotiva”, e o outro, “Alimen-te-se bem por R$ 1”, do SESI. Vi nessas propos-tas a perspectiva de agregar muito em termos sociais: capacitação para o trabalho, inclusão social, redução de desperdício de comida e melhoria de conhecimentos sobre nutrição, beneficiando a saúde.

Alguns anos depois, como conselheira da Fundação Tide Setubal, quis contribuir com nossos objetivos trazendo algum projeto nes-sa área. Naquele momento, estávamos atuan-do na região de São Miguel com o Programa Ação Família, que desenvolvia várias oficinas com as comunidades. Ali, identificamos a pos-sibilidade de parceria com o SESI para levar o caminhão-oficina, equipado com uma cozi-nha, e oferecer o curso “Alimente-se bem por R$ 1” para o público do entorno do CDC – Tide Setubal.

A adesão nos surpreendeu: foi muito dis-putado e me lembro de os monitores comenta-rem que os alunos tratavam a apostila de re-ceitas com muito cuidado, valorizando aquele material, que seria dado àqueles que tivessem frequência mínima de 80% do curso. A partir

Memórias

& afeto

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Cozinha de afetos — O prOjetO 7

dessa experiência, decidimos implementar um projeto mais perene nessa área e fomos buscar caminhos para captar recursos – e assim montar uma cozinha no Galpão de Cultura e Cidadania. Inicialmente, o espaço oferecia módulos básicos, como confecção de salgadinhos e bolos. Com o passar do tempo, evoluiu muito, tendo contado até com algu-mas aulas especiais de nossa grande parcei-ra, a chef Mara Sales.

Ao longo desses anos, muitas mulheres tiveram a oportunidade de frequentar a Ofi-cina e perceber que se aventurar nesses mó-dulos era como abrir uma caixa de surpresas: ali puderam se reconhecer como mulheres capazes de realizar algo significativo, recupe-rar sua autoestima, escolher novos caminhos e possibilidades. Algumas conseguiram, in-clusive, independência financeira.

O ato de cozinhar lhes trouxe a possibili-dade de ser escutada, de dividir experiências, de se identificar, de ter uma vivência em um local acolhedor, só com outras mulheres. Em suma, de criar um espaço e um tempo só delas. Nada melhor do que registrar as histó-rias dessas mulheres para celebrar os dez anos desse projeto. Foi assim que nasceu a

ideia deste livro. Para que ele se tornasse re-alidade, propusemos a realização de uma ofi-cina de escrita. Nela, pudemos ouvir vários depoimentos emocionantes, histórias inspi-radoras, com muitos momentos de dificul-dades, mas também de superação. Creio que todas que participaram saíram fortalecidas e confiantes para prosseguir nesse caminho de transformação, mudando suas vidas, de suas famílias e comunidades.

Como conselheira da Fundação, me sinto gratificada por saber que ajudamos a ressig-nificar a vida de várias pessoas que por ali passaram de uma maneira bonita e potente. Olhando, com respeito e afeto, para o poten-cial delas, e não para a carência. Mostrando a elas que são capazes de ser e de realizar muitas coisas.

rosE nugEnt sEtubal

Conselheira da Fundação Tide Setubal

“Ao longo desses anos, muitas mulheres tiveram a

oportunidade de frequentar a Oficina e perceber que

se aventurar nesses módulos era como abrir uma

caixa de surpresas: ali puderam se reconhecer como

mulheres capazes de realizar algo significativo”

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O

COMEÇO

DE

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Cozinha de afetos — O prOjetO 9

A frase é de Rose Nugent Setubal,

conselheira da Fundação Tide Setubal e uma das responsáveis pela Oficina de Culinária ter saído do espaço do sonho e ter ocupado o lugar da presença. Rose sempre olhou com simpatia projetos que transformavam a vida das pessoas por meio da gastronomia e acreditava que algo assim poderia ser possí-vel no Galpão, espaço em São Miguel Paulis-ta, no Jardim Lapena, na Zona Leste de São Paulo, onde já aconteciam projetos e ações capitaneados pela Fundação Tide Setubal. Foi ela quem alimentou a ideia deste espaço de ensinar a cozinhar dentro do Galpão e quem buscou os recursos e parcerias para que a Oficina nascesse, o que aconteceu em julho de 2009. E o que a ajudou nessa certe-za de necessidade de um espaço para o co-zinhar foi uma pesquisa feita entre as pes-soas que frequentavam, naquele tempo, o Galpão, pelo Programa Ação Família. Nesse material, descobriu-se que muitas mulheres

acreditavam que poderiam ganhar mais ou ajudar nas despesas da casa se soubessem cozinhar – vendendo comida ou trabalhan-do com isso. Estava aí um ótimo motivo para fazer o sonho acontecer: ser caminho para essas pessoas darem passos mais largos na vida por meio dos aprendizados que vi-nham da cozinha.

O primeiro parceiro foi o Sesi, que levou para a cozinha do Galpão professores e a técnica do ensinar – o canal de divulgação inicial era, além do tradicional boca a boca, o jornal Metrô News, distribuído no metrô. “Foi importante porque trouxe credibilida-de para o espaço quando ele ainda dava seus primeiros passos. Conseguimos, por meio dessa parceria, levar o nome da oficina-es-cola para outros bairros e assim veio gente de muitos territórios aprender no Galpão de São Miguel”, conta Wagner Luciano da Silva, ou Guiné, como é conhecido na Fun-dação e na vida. A história de Guiné, aliás, se

“Cozinhar é um ato de afeto,

de entregar algo para o outro e

o acolher por meio da comida.

É também uma maneira de a

pessoa dizer para si mesma:

consigo, independentemente

da minha situação”

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cruza e se confunde com a Oficina Escola de Culinária. Ele começou a trabalhar na Fundação para atuar no Programa Ação Família, mas logo se transformou no elo de conexão e de construção da Oficina. A parceria com o Sesi se manteve por dois anos até que se percebeu a necessidade de seguir com as próprias pernas. Além de ensinar a técnica, a oficina precisava ser um espaço de acolhimento. “Sentí-amos que precisáv“Sentí-amos ter um maior entendimento sobre a realidade daque-las pessoas, a origem, a trajetória. Era necessário ir além da técnica e somar a isso um olhar humanizado”, diz Guiné. Foi nesse momento que duas pessoas

essenciais para compor essa história entraram: Lúcio Roberto Batista da Sil-va, o Lúcio, e Daniela Romão da Costa, a Dani. Os dois, naquela época, tinham negócios apoiados pelo Fundo Zona Les-te SusLes-tentável, um programa de recurso financeiro e apoio de formação para em-preendedorismo, por meio de editais. Os dois tinham formação em gastronomia e foram convidados para fazer parte da Oficina como professores. Dani dando aula de confeitaria, ensinando a prepa-rar docinhos e bolos, e Lúcio, de salga-dos. Juntos, eles davam início à forma-ção que se transformou no carro-chefe da Oficina: o kit festa.

Juri reunindo para avaliação e finalização de um dos cursos da Oficina Escola

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Cozinha de afetos — O prOjetO 11

Os primeiros cursos da Oficina eram rá-pidos, de duração de, no máximo, quatro au-las: bolos, tortas, comidas típicas regionais, salgados. Sempre tendo como fio condutor a qualidade. “Salgados e bolos sempre foram nossos cursos mais concorridos. Podíamos colocá-los 15 vezes na grade que sempre lo-tava. Sem contar as pessoas que faziam 15 vezes o mesmo curso”, revela, sorrindo, Gui-né. Naquele momento, era possível repetir quantas vezes quisesse a mesma aula. Hoje, não mais. Isso é feito para garantir uma ro-tatividade maior e oferecer a oportunidade de aprender para outras pessoas – todos são gratuitos. As turmas iniciais eram ex-clusivas dos participantes do Programa Ação Família, oferecido para os moradores da região de São Miguel, no Galpão. Mas, como lembra Guiné, “nunca foi só sobre co-zinhar, era também um espaço terapêutico, de encontro, para se relacionar com o outro, ampliar a rede de amigos, ocupar o tempo com uma atividade lúdica, saudável. Era uma rede de apoio para essas mulheres”. E completa: “Lúcio e Dani também sempre foram mais do que professores, eles são par-ceiros. Não iam para o Galpão só para dar aulas, mas se envolviam com as pessoas. Eles entendiam a dinâmica das pessoas, os problemas. Tornaram disponível a agenda e os telefones para muitas delas. Os dois iam muito além do espaço e foi assim que se ini-ciou uma relação próxima e orgânica, que ultrapassou a troca de receitas. Era uma troca de experiência de vida”.

A preocupação com a realidade das pes-soas da região sempre deu o tom dos cursos da Oficina Escola de Culinária, no Jardim Lapena. Os cursos oferecidos sempre tive-ram relação com o cotidiano delas: bolos, salgados, técnicas de congelamento, além das aulas especiais para datas específicas, como a Páscoa. Apesar desse olhar tão apu-rado, no início, alguns tropeços acontece-ram. Um exemplo lembrado por todos foi a compra de equipamentos industriais para a cozinha – batedeira, liquidificador, tudo grande. Depois que tudo estava ali foi que se deram conta de que aqueles acessórios não combinavam com a vida de todo dia. E os equipamentos foram trocados por algo mais simples, que poderia estar numa cozinha da casa de qualquer um. Outro desafio foi adaptar as receitas não apenas para a reali-dade de todos, mas para a bagagem de cada um, acolhendo ali as dificuldades de leitura, por exemplo. Foi um trabalho de construção delicada e atenta, a partir da troca entre alu-nos, professores e equipe técnica.

Com o tempo e o caminhar da oficina, as alunas mais frequentes – e que faziam re-petidamente os cursos – começaram a pe-dir um cardápio mais amplo de aulas, com formações mais profundas. Elas queriam ir além. Foi assim que nasceu o primeiro cur-so de confeitaria profissional, o Básico de Confeitaria, para aquelas que precisavam realizar encomendas com uma variedade e quantidade maior de doces e com bolos de tamanhos mais generosos. Quem iria

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ensi-nar? Dani, claro. A Lúcio coube a tarefa de pensar em um curso que pudesse ajudar as alunas a fortalecer seus negócios – sim, muitas já vislumbravam na cozinha um ca-minho – com ensinamentos sobre entrada e saída de recursos, controle de estoque, ges-tão e como, afinal, poderiam chegar ao pre-ço final do que preparavam. Pararam por aí? Não. Nessa mesma época, o ano era 2012, nasceu também o curso de panificação.

Ao dar passos mais largos, foi necessário se aproximar também daqueles que pode-riam dar suporte para a nova caminhada. E foi assim que aconteceu a aproximação com o Sebrae e o Fundo Zona Leste Sustentável, por exemplo. Tudo feito com o olhar para

aquelas mulheres que queriam ir mais lon-ge – e elas não só queriam como foram bem mais longe do que supunham. “Hoje, esta-mos avançando para oferecer uma forma-ção para pessoas que já enxergam a comida como um negócio”, revela Guiné. “A história da oficina faz parte dessas mulheres e essas mulheres fazem parte da história da ofici-na. Fomos transformando a Oficina Escola a partir de cada pedido”, complementa. Foi assim que surgiu o Curso de Gestão, com dez aulas concebidas a partir da metodologia do microempreendedor paulista. As aulas aconteceram dentro da Universidade Cru-zeiro do Sul. Mas essa foi uma experiência única, que não se repetiu.

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Cozinha de afetos — O prOjetO 13

Em 2013, veio mais uma etapa impor-tante para a Oficina. Além do apoio de Rose Setubal, que seguiu ao longo dos anos dan-do suporte para a continuidade dan-do espaço, a Fundação conseguiu a aprovação do pri-meiro edital e a captação de recursos junto ao Instituto Lojas Renner. Isso ampliou a capacidade dos cursos da Oficina Escola. “Crescemos, expandimos os cursos, que eram de dois meses, para quatro. E come-çamos a ter mais experiência com aulas mais elaboradas e especiais. Isso começou a atrair outras pessoas da cidade”, recorda--se Guiné. Foi nesse mesmo período que a Oficina conquistou também a parceria do Instituto Consulado da Mulher, que apoia programas voltados para o fortalecimento de mulheres que empreendem nas perife-rias. “Abriram um edital em São Miguel Paulista e começaram a operar, fazendo um acompanhamento com um capital semente e mais uma mentoria para estruturação dos negócios”, explica Guiné. Assim, por três anos consecutivos, a Oficina contou com o Instituto Lojas Renner, que trouxe para as alunas uma metodologia de forta-lecimento de empreendedores – foram três turmas que se formaram por essa metodo-logia e puderam, a partir disso, entender e estruturar melhor seus negócios ligados à comida – e de parceria com o Consulado da Mulher.

Dez anos depois, a cozinha se renova. No final de 2018, fechou por alguns meses para ser reformada e, a partir daí, ter mais

espaço para um novo movimento, o de se-guir ensinando os princípios básicos da culinária, mas, também, apoiar e apontar caminhos para quem percebe na cozinha um lugar de crescimento. “O Galpão vai seguir tendo muita força nessa agenda de empreendedorismo, com seu poder mobi-lizador, de geração de renda e de espaço de conexões, mas mantendo o acolhimento, com cursos introdutórios. É um espaço, aci-ma de tudo, terapêutico”, acredita Guiné. Os cursos seguem abertos e gratuitos para todos e todas (homens e mulheres), com mais de 16 anos. E qual o horizonte para os próximos dez anos? “Manter a relação de confiança com a comunidade. A Oficina Escola nunca foi da Fundação. A Fundação trouxe a ideia, o projeto, implementou, mas o cuidado daquele espaço para que pudesse existir ao longo do tempo só aconteceu pela parceria com as pessoas da região, em espe-cial aquelas do Jardim Lapena, onde fica o Galpão. É um espaço cuidado por todos”, fi-naliza Guiné, para quem a comida carrega o poder da celebração. Para Rose Setubal, a Oficina tem na sua natureza a longevidade. Por quê? “Porque ela traz autoconfiança, o sentimento de que eu posso, eu consigo. É para si, é para se olhar, conectar-se e ver nisso um caminho de possibilidades a par-tir de algo que não é, teoricamente, comple-xo. É algo que sempre esteve presente na vida dessas pessoas, no entorno. A Oficina transforma vidas e isso faz com que a mu-dança ao redor também aconteça”, acredita.

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Cozinha de afetos — O prOjetO 15

Não dá para contar

a história da

Ofici-na sem falar dos professores Dani e Lúcio. Os dois têm papel importante nisso tudo. Para as alunas, eles não só ensinam, mas apontam ca-minho, as instigam a dar passos mais largos e acolhem quando o momento pede. Quem pas-sa por suas aulas fala de ambos com carinho e admiração. Tanto Dani quanto Lúcio têm na cozinha uma história que se confunde com a da própria vida. Não é lugar só para estar, mas também para ser.

Daniela Romão começou a cozinhar em casa, com a mãe, que fazia doces, bolos e sal-gados para fora. Ela preparava e Dani vendia. Mais tarde, a mãe abriu um bufê e, quando as encomendas eram maiores do que a sua capa-cidade de produzir, era a filha quem a ajudava na empreitada. “Mas eu achava que meu cami-nho era outro. Não enxergava que a comida poderia fazer parte da minha jornada”, diz.

Foi estudar teatro, mas trabalhava, veja só, na cozinha de restaurantes – porque era o que sabia fazer – para pagar as contas. Foi a mãe quem a ensinou a confeitar, a preparar lindos e delicados doces finos, a decorar bolos com pasta americana. Até que, em um determi-nado momento, a mãe precisou de uma ajuda extra e lá foi a filha dar apoio. O pagamento foi tão robusto que Dani começou a entender que a cozinha podia ser, sim, meio de vida. A mãe, claro, a incentivou a fazer gastronomia. E lá foi ela. Depois da faculdade, seguiu tra-balhando com comida até que seu caminho se cruzou com o da Fundação Tide Setubal e com o da Oficina, sempre nas aulas de confeitaria. “A confeitaria, os doces são como um elo de conexão com a minha mãe”, diz. Mas como é dar aula na Oficina? “Minha linguagem tem que chegar a todas, incluir todas. Muitas vão fazer o curso porque estão numa situação de

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depressão, precisam de uma cura. E a gas-tronomia é um veículo para que se abram, comecem a falar, e é tão lindo de ver como uma vai ficando íntima da outra... Enquanto cozinham, elas vão se fortalecendo e perce-bendo que não estão sozinhas, que perten-cem a um grupo”, reflete. Dani conta que a força e a sensação de que podem realizar algo surge de uma maneira simples, en-quanto cozinham. “Quando veem um doce bonito, muitas deixam escapar um ‘nem parece que fui eu que fiz’. Elas chegam, no início do curso, com uma autoestima baixa, mas, ao longo das aulas, percebem que são capazes, que podem ganhar dinheiro com aquilo e, a partir daí, entendem seu valor. Elas começam a se enxergar.” Um exemplo disso é a transformação, visível, que acon-tece ao longo do curso. No primeiro dia de aula, muitas chegam com um avental sim-ples. Depois, a vestimenta vai ganhando graça e cor. E elas aparecem com roupas vis-tosas, coloridas, bonitas. Algumas chegam a comprar um dólmã, uniforme usado por cozinheiros profissionais. Querem estar

bo-nitas para as selfies na cozinha, para postar nas redes sociais e mostrar para o mundo aquilo que são capazes de realizar – e, em consequência disso, conseguir suas pri-meiras encomendas. “Aquilo que elas não enxergavam na casa delas, que era a pane-la, a colher, que era algo marginalizado, des-valorizado, começam a olhar de uma outra forma. Compram os utensílios e fotografam. Tiram fotos dentro da própria cozinha. Pas-sam a ter orgulho daquele lugar e daquele fazer”, comenta a professora.

Daniela Romão, ou a “professora Dani”, como é carinhosamente chamada pelas alu-nas, tem história e caminho parecido com o de suas pupilas: nunca achou que a cozinha ou a confeitaria a levaria para esse lugar de realização. “Quando entro na sala de aula, tenho a consciência de que não vou ensinar a fazer bolo, mas a fazer outra coisa. O bolo, o doce, é a ferramenta que tenho. Porque o que se aprende lá é outra coisa. É sobre a vida. As alunas voltam a ter contato com a beleza, que podem fazer coisas lindas. Que elas podem. Elas aprendem a estar juntas,

“Minha linguagem tem

que chegar a todas,

incluir todas”

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Cozinha de afetos — O prOjetO 17

“A alimentação tinha

trans-formado a minha vida, e na

Oficina eu via essa

opor-tunidade de transformar

a vida do outro”

Lúcio Roberto Batista da Silva

aprendem a força do coletivo. Numa sala de aula tem desde aquela que já vende comida e está indo para aperfeiçoar até a outra que quer aprender como não queimar o bolo. Uma vai aprendendo com a outra. É a força da partilha”, pondera Dani. “A cozinha, hoje, é o que me move”, resume.

Lúcio Roberto Batista da Silva, o profes-sor Lúcio, também tem trajetória similar. Na sua casa de infância, a cozinha sempre foi ponto de encontro e de união. Ele vem de uma família em que as mulheres – mãe e tias – cozinhavam muito bem. E, quando se juntavam, o resultado era uma mesa far-ta, com todos à sua volta. Lúcio se lembra da mãe fazendo bolo e da magia que era vê-lo se transformar no forno. Foi a cozinha, ali-ás, que financiou a educação de Lúcio e do irmão. A mãe preparava, todos os dias, cem sanduíches para que levassem para a escola. O lanche era vendido aos colegas no horá-rio do recreio e os irmãos sempre voltavam para casa com a sacola vazia. Mas o pessoal da cantina começou a se incomodar com a concorrência e Lúcio precisou parar de

ven-der os sanduíches. Mas isso não desanimou os irmãos Batista da Silva, nem a mãe deles. E a dupla passou a vender trufas no bairro de São Miguel, onde moravam. Na hora de decidir qual faculdade fazer, Lúcio viu com naturalidade a possibilidade de fazer gas-tronomia, e foi. “Lá se abriu um novo mundo para mim. As coisas começaram a fazer sen-tido”, diz. Ao longo da faculdade, trabalhou em restaurantes e, depois, com eventos cor-porativos até que começou a dar aulas para a Oficina, no Galpão. “A alimentação tinha transformado a minha vida, e na Oficina eu via essa oportunidade de transformar a vida do outro.” Lúcio se lembra de Dona Ma-ria, que na aula sobre como elaborar uma fi-cha técnica percebeu que os bolos que fazia para vender estavam baratos demais. “Mais do que a técnica, as aulas na Oficina fazem bem para a vida delas”, afirma. “Naquele es-paço da sala de aula, elas também percebem que estão sendo olhadas e cuidadas. Dentro do seu território, que é agressivo, difícil, existe alguém que está ali por elas. Tem o acolhimento, o lugar de refúgio, um ponto

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de fuga e de válvula de escape de uma reali-dade feroz”, fala Lúcio sobre a importância da Oficina na vida das alunas. “Ali, elas são acolhidas sem serem julgadas. Eu as vejo crescerem. Não é só uma aula de culinária, é uma transformação social, é um casulo de onde sai uma borboleta. Eu estou sempre tentando tirá-las desse olhar da vitimização. Chegar ao final de um curso é o primeiro ‘posso’ da vida delas”, diz lindamente. O que é dar aula de culinária na Oficina? “É perce-ber que meu trabalho ganha mais sentido. Tenho muita gratidão em vê-las seguir em frente”, responde com a firmeza de quem sabe que cozinha é território de realização, mas também de sentir.

A cozinheira Mara Salles (ela não gosta de ser chamada de chef, mas de cozinhei-ra) sabe muito bem disso. Mara é uma das principais chefs do país. Ela gosta de prepa-rar comida brasileira e se tornou uma das grandes divulgadoras dos nossos pratos por aqui. Carrega títulos e prêmios, apesar de não gostar de ostentá-los. É proprietária do restaurante Tordesilhas, de comida

brasi-leira (claro!), em São Paulo, e parceira antiga da Oficina, desde o início de tudo. Mara gos-ta de comida boa, simples e bem-feitinha. E gosta de difundir esse olhar em aulas espe-ciais, que ministra pelo menos uma vez ao ano na Oficina Escola – aulas para lá de con-corridas e esperadas. Mas engana-se quem pensa que ela ensina algo sofisticado ou gourmet. Mara é dessas pessoas que gostam de mostrar como fazer o melhor arroz e fei-jão da vida. “O propósito das minhas aulas na Oficina não é dar capacitação, não tenho essa capacidade. Para mim, a cozinha é lu-gar para transformar a vida pessoal e pro-fissional”, diz Mara, para quem a cozinha sempre teve conexão com o afeto e a vida fa-miliar. “Sabe aquela história do medo que as mães têm de que a criança possa ser atraída pelo tráfico, para o crime, na volta da esco-la? Eu achava e ainda acredito que a comida feita em casa pode servir grandemente para evitar isso. Desde que eu era jovem, a casa me chamava. Todas as sextas, eu ia direto para casa, depois da aula, porque era o dia de comer sardinha que a minha mãe fazia.

“Para mim, a

cozinha é lugar para

transformar a vida

pessoal e profissional”

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Cozinha de afetos — O prOjetO 19

Comida quente, fazer um feijão, um pão com manteiga, um caldo para aliviar a dor do ou-tro, um carinho. A comida traz esse gestual de carinho, de proximidade e transforma a vida. É uma forma de afeto”, acredita. É esse viés do afeto que Mara leva para a Oficina, dando aulas da “cozinha do dia a dia”, como ela faz questão de dizer. “Ensino algo que elas podem fazer rapidamente, com o que tem a mão. Quero tirar esse bicho-papão de que sem dinheiro você não faz comida boa. Dá para fazer algo muito bom com arroz, fei-jão, linguiça e ovo. Tem um apelo mais emo-cional do que você ensinar a fazer reapro-veitamento”, conta. Um dos pratos que gosta de ensinar, revela Mara, é o arroz. Mas não

qualquer um, ela gosta de mostrar como fa-zer um arroz bem-feito, com gosto de quero mais, daqueles que dão vontade de comer puro, como prato principal. “Fica uma de-lícia”, garante. O resultado? “Uma aluna me disse, depois de fazer a aula do arroz: ‘meni-na, sabe que depois da sua aula nunca mais joguei arroz fora?’”, responde Mara. “Essa história, para mim, valeu todo o tempo do curso. Você precisa fazer uma comida que te emocione. Gosto desse resgate da comida simples, cotidiana”, conta ela, que é filha de um pai lavrador e aprendeu, desde cedo, a cozinhar aquilo que plantava. “Trouxe isso para a minha profissão, a comida como um elo de conexão com a vida.”

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Cozinha de afetos — O prOjetO 21

A Oficina Escola de Culinária

é

caminho para as centenas de pessoas que já passaram por sua cozinha. Ensina e mo-difica não apenas as alunas e alunos, mas também quem ali está, trabalha, se dedica ao espaço e às pessoas.

Lucia Vianna Saboya Salles Real Ama-deo é uma delas. Ela coordenou o programa Ação Família de 2009 a 2016. Quando come-çou a atuar no Galpão, a cozinha da Oficina já funcionava a todo vapor. De cara, ela se apaixonou pelo lugar. “Fiquei encantada pela oportunidade que ela dá para as mu-lheres, o que oferece para a comunidade. Algumas pessoas vão para sociabilizar, ou-tras para transformar aquilo num negócio. E a Oficina abre portas e fortalece a

autoes-tima”, acredita Lucia. Para ela, ali é um espa-ço mágico. “Dentro de toda vulnerabilidade em que estão inseridas, elas aprendem, têm um espaço de escuta, colocam ali seus dons.” Sim, a cozinha do Galpão é um espaço em que delicadeza e força se encontram. “As alunas chegam, deixam a bolsa, a sacola, do lado de fora, e entram ali para ter um momento delas. Dignidade, respeito. Elas sabem que aquele espaço é para elas. Se vão com alguma criança, o pequeno fica em um outro espa-ço, como o Ponto de Leitura, participando de uma oficina infantil. Ali, elas são ouvidas. E por isso as transformações acontecem o tem-po todo”, conta Lucia de um jeito delicado e, ao mesmo tempo, profundo. Qual o papel da comida nisso tudo? “Aprendi muito com os

UM CAMINHO

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professores e com a Mara (Salles). Ela sem-pre falou desse prazer do cozinhar, na comi-da simples, do arroz, do feijão. A Mara me mostrou essa paixão que ela tinha em fazer um arroz, um feijão, com amor, com afeto. Isso eu aprendi ali”, conclui.

O Ponto de Leitura, citado por Lucia, tem, aliás, uma história que se entrelaça o tem-po todo com o da Oficina. Ambos existem há dez anos. Um existindo ao lado do outro, numa simbiose linda de se ver. O lugar é co-ordenado por Antônia Marlucia Martins, Gomes, a Malu, que fala do local de leitura que existe dentro do Galpão com o mesmo orgulho de uma mãe ao citar as qualidades de um filho. “O Ponto de Leitura é o coração da comunidade, é um ponto de terapia ou um ponto de luz, um lugar que aproxima as pessoas da leitura, dos livros, mas também um local seguro de escuta. Gosto que as pes-soas entrem e mexam nos livros sem receio”, diz ela. Malu cria, ao longo do ano, uma série de oficinas e outros projetos que incluem lei-tura e culinária. Todos os anos, nos meses de novembro, ela organiza o Festival do Li-vro e de Literatura de São Miguel Paulista. Desse festival nasceu, por exemplo, livretos sobre a relação entre a comida, a leitura e o afeto. “Nos reuníamos com as mulheres da oficina para falar sobre as lembranças que elas traziam relacionadas à comida e à vida, e depois transformamos isso em histórias”,

recorda Malu. “Ao ter contato com os livros, elas se descobrem leitoras e, ao ver suas his-tórias ali, entendem o valor que têm. É tam-bém um caminho para se abrir e falar de si. E falar de si é algo muito difícil”, pontua ela com sabedoria. Malu também gosta de dei-xar sempre à vista livros que falam sobre comida, como os da poetisa Cora Coralina, para que as mulheres, antes de entrarem na Oficina, possam folhear. “Faço isso para ins-tigá-las. O livro nutre, então ajustamos dois prazeres: a comida e a leitura. Um alimenta o corpo e o outro, a alma”, finaliza.

Quem também aprendeu e ainda apren-de na pequena cozinha afetiva da Oficina Escola é Talita Fernanda Ferreira Ramos, agente de proteção da Fundação, que orga-niza a lista de presença, as apostilas e au-xilia os professores. “Na Oficina aprendi que aquele espaço era muito mais do que cozinhar. Às vezes elas chegavam dizendo que o médico tinha recomendado uma tera-pia, uma atividade de integração. Decidiam fazer as aulas de culinária e, ao longo do curso, dava para ver um fortalecimento. Elas iam para curar um problema do corpo, mas encontravam a si mesmas na cozinha. Curavam a alma. Algumas se reconstruíam. Entravam com a cabeça baixa, não conver-savam, e saíam do curso falando com todo mundo, passavam a entrar na cozinha com a cabeça erguida pelo simples fato, às vezes,

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Cozinha de afetos — O prOjetO 23

de ter conseguido fazer um bolo de aniver-sário para o filho. A comida para mim se tornou, a partir do que vivenciei nas ofi-cinas, um momento de prazer, de troca, de aconchego”, diz Talita, que fala com orgulho e brilho nos olhos sobre aquilo que realiza todos os dias no Galpão.

Como diria Guiné, desde o início dessa história, há dez anos, a Oficina não nasceu apenas para ensinar a cozinhar. Ela sempre teve uma função maior – e ainda tem – na vida das pessoas que passam por ali. Não é só sobre cozinhar, mas sobre ser uma rede

de apoio, de escuta, de acolhimento – feito passarinho que precisa se refazer no ninho para, depois de fortalecido e alimentado, poder voltar a voar. É sobre crescer, saber, conhecer, aprender mais sobre elas mes-mas, sobre sua capacidade de realização e, assim, munidas de tantas certezas, seguir com mais garra, coragem e amor por elas mesmas e pelo outro. Porque, como bem acredita Mara Salles, a comida é também uma conexão com a vida.

Vidas que serão apresentadas nas dez histórias a seguir.

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NO SABOR

DE UMA

SAUDADE

Ana

Teixeira

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O barulho da panela

de pressão e o cheirinho vindo da cozinha não deixavam enganar: era dia de casa cheia. Com uma mistura de mandioca e outros ingredientes, a avó de Ana Cláudia preparava bem rapidinho o famo-so bolo de panela de sua infância, para receber a família, no interior de Per-nambuco. Quando o cheiro começava a se espalhar pelos quatro cantos da casa, até chegar ao portão que dava para a rua, todo mundo já sabia que muito riso, conversa fiada e brincadeiras em torno da mesa tomariam conta do dia. Hoje Ana se lembra de tudo como se não existisse distância nem tempo, e com o carinho de quem tateia com delicadeza as gavetas guardadas da memória.

Ana saiu do Nordeste em 2009, em um desejo de que as coisas fossem di-ferentes da forma como se desenrolavam por lá até então. Na época, ainda sem nem imaginar o quanto a vida se transformaria, Ana trabalhava como doméstica para uma família em Pernambuco, e ouvia vez ou outra os chama-dos insistentes da cunhada, que já morava em São Paulo e tinha o desejo de reunir por perto todos os parentes mais próximos. Quando decidiu fazer as malas e partir, deixando para trás um pedacinho da família e grande par-te do coração, Ana não foi só: par-teve o apoio do marido – que embarcou junto rumo à nova vida – e dos outros familiares que já moravam há mais tempo na Zona Leste paulista: a sogra e o sogro, a cunhada, amigos. Morando assim, bem pertinho uns dos outros, era como se aquela lembrança de união que sempre fez parte de sua infância ainda prevalecesse, só que com outros per-sonagens, em um cenário bastante diferente daquele de sua lembrança, mas preparado com carinho para receber uma nova história que começava a se desenhar diante dela.

Até aí, Ana se virava na cozinha da forma como aprendeu sozinha: pelo olho e pela curiosidade, sem seguir muita receita. Além da avó e sua vocação para preparar bolos e lanches com tanto apreço, de uma forma tão rápida fei-to mágica, na casa de Ana ninguém nunca gosfei-tou de cozinhar. E nem adianta-va pedir com jeitinho: a mãe, Dona Maria, não se rendia de maneira alguma

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à ideia da mudança de cardápio. Se o assunto fosse doce ou sobremesa, então, aí é que ela desconversava mesmo. Mas o gosto infantil por bolos levou Ana, ainda criança, a arriscar em sua primeira aventura na cozi-nha. Aos 7 anos, a pequena juntou uma porção de ingredientes que tinha em casa, em uma massa que ficou tão mole, que nem sequer cresceu. Mas Ana não desistiu. Enquanto não viu pronto o seu primeiro bolo de fubá, o preferido de um dos irmãos, a menina não sossegou: continuou misturan-do ingredientes e sonhos nas panelas de casa, até conseguir assar o bolo perfeito (e saboroso) que tanto queria.

Por um longo espaço de tempo, a vida foi assim: era só a mãe sair e do-brar a esquina que os quatro irmãos corriam para mexer nas coisas da cozinha e descobrir novas travessuras. Nem a cabra que vivia no quintal da casa da família Ribeiro escapou dos experimentos das crianças. Junta-vam-se os irmãos, amarravam as pernas da cabrinha e tiravam o leite que conseguiam, para fazer um pouco de doce e deixar o dia mais gostoso. A bagunça era tanta que bastava a cabra ver de longe um dos quatro que logo saía correndo para fugir e se esconder. E aí, só mesmo muita disposição para conseguir encontrá-la de novo e não levar de volta uns bons coices.

Esses traços e sorrisos de uma infância divertida, cheia de descober-tas e aventuras, não se apagaram nem diante da velocidade do tempo. Fi-caram ainda mais fortes e também se tornaram os principais responsá-veis por preservar dentro do coração de Ana a certeza de que, acontecesse fosse o que fosse durante o percurso da vida, a casa guardada entre tantas lembranças e a saudade das coisas que pareciam passageiras seriam sem-pre um alento e uma força para continuar seguindo adiante.

Caixinha de surpresas

E assim aconteceu. A partir dessas pequenas delicadezas e memórias, Ana foi construindo sua força entre doses diárias de coragem, de uma maneira só dela. Tão ansiosa e agitada que sempre foi desde bem peque-na, assim que chegou a São Paulo deu logo um jeito de começar a traba-lhar como caixa da padaria que fica em uma espécie de grande mercado, na região de São Miguel Paulista. Ali, no espaço em que alguns de seus familiares também trabalhavam (e ainda trabalham), podia se encontrar de tudo: carnes, utensílios, uma pequena mercearia e a panificadora, que até hoje serve pão quentinho desde bem cedo, todos os dias. O trabalho que acolheu Ana era quase uma extensão de casa, já que boa parte de seus dias ela passava ali, entre os números das calculadoras e o cheirinho de pão vindo da cozinha.

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Só que antes mesmo que tudo mudasse de direção outra vez, a vida lhe trouxe um presente mais doce que os recheios dos bolos de pote que hoje ela faz para vender aos fins de semana. Logo ali, nesse primeiro ano de tantas mudanças, mais uma marcaria o coração de Ana para sempre: a notícia da chegada de sua primeira filha. Aí, foi um misto de emoções tão grande, mas tão grande, que Ana, por muitos dias, só sabia chorar de alegria e de dúvidas. Foi também nesse período que até pensou por várias vezes em voltar para a casa da mãe e em suas formas de viver de um jeito mais leve, sem tanta pressa nem tantas distâncias como em São Paulo. “Aqui (em São Paulo) é tudo demais: tudo acontece muito rápido. E nada de vida tranquila. Em Pernambuco, a vida era difícil, mas tudo era mais perto. Inclusive minha mãe, de quem eu senti e sinto tanta falta.”

Mas Ana firmou o passo e não partiu. Continuou escrevendo seu caminho na cidade grande e, nove meses depois, a pequena Camille chegava para lhe ensinar outras formas de amor, outras cores, cheiros e sabores. Hoje, com 9 anos, a menina é a maior companheira de Ana. Ajuda nas tarefas de casa, mexe nas panelas, adora quebrar os ovos, protagoniza grandes descobertas atrás do fogão e está sempre por perto para experimentar ou aprovar algu-ma receita que sai da cozinha de casa, principalmente os doces e cupcakes que a mãe faz sempre que não está na padaria cuidando das fornadas de pães fresquinhos.

Após o período de licença-maternidade, logo que voltou ao trabalho na pa-daria, Ana assumiu o cargo de ajudante de padeiro, mesmo sem saber direito o que fazer. Mas de tanto observar o trabalho, ela aprendeu a sovar a massa, a assar cada pão na temperatura e no tempo corretos e a acompanhar o período de crescimento de cada produto. Aos poucos, aquele universo de misturar farinha e ovos se tornou mais claro e familiar em seu caminho, quase como uma preparação para um futuro não muito distante. Mais precisamente, para um domingo de Dia das Mães, em que o padeiro, o mesmo a quem ela auxiliava todos os dias já havia algum tempo, não foi trabalhar: desapareceu sem dar notícias, deixando para trás toda a produção do dia e uma padaria inteira sem um pãozinho sequer.

Quietinha e com um frio danado na barriga, já habituada à rotina de fabri-car primeiro as coisas salgadas para depois iniciar a produção doce e formar toda a vitrine, lá foi Ana, com a cara e a coragem, assumir por um dia a cozi-nha da padaria. Mas, às vezes, a prática (ou, literalmente, a mão na massa) é bem diferente da teoria. E, naquele dia, a primeira fornada de pães feitos por ela foi um desastre! Alguns cresceram demais, outros nem sequer fermenta-ram, alguns ficaram até bonitos na vitrine, mas nem tão agradáveis no sabor.

"Aqui (em

São Paulo) é

tudo demais:

tudo acontece

muito rápido.

E nada de vida

tranquila. Em

Pernambuco, a

vida era difícil,

mas tudo era

mais perto.

Inclusive minha

mãe, de quem

eu senti e sinto

tanta falta"

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Porém, como naquele tempo de infância em que seus bolos não cresciam, Ana persistiu por dias na tentativa de acerto na cozinha. E o prazo de uma semana sem o padeiro aparecer foi mais que suficiente para que ela aperfeiçoasse o que já sabia e se tornasse craque na produção da panificadora, função que do-mina e comanda até hoje, com maestria. “Hoje nem sinto mais o cheiro do pão assando, por costume do dia a dia. Quando tive férias a primeira vez e fiquei 20 dias longe da padaria, voltei e estranhei: lá de fora eu senti o cheiro de pão assando. O costume faz a gente deixar de perceber um pouco as coisas”. Mas quem passa pertinho da padaria, principalmente pelas manhãs, garante: de lá de dentro saem pães tão gostosos quanto o aroma que se espalha pelo lado de fora e toma conta da rua.

De dentro para fora

Quando está em casa, Ana deixa os aromas só para a padaria e não faz pão caseiro nem para vender. Mas, assim como a avó ainda faz até hoje, ela adora preparar lanches e cafés para receber a família e os amigos: faz bolo, ham-búrguer, biscoito, suco, café e uma porção de guloseimas. Também nas horas vagas e nos finais de semana, quando não está na padaria, Ana prepara bolos por encomenda para festas, aniversários e todo evento em que o desejo maior é ter por perto afeto em forma de comida. É assim que consegue colocar em prática o que mais gosta de fazer, que é dar cara, cor e vida aos bolos que hoje saem delicadamente de sua cozinha, nesse movimento doce que ganhou seu coração lá no Galpão. Ana foi aluna logo nas primeiras turmas dos cursos de culinária e aprendeu ali vários truques de confeitaria. Quando chegou, por indicação de uma amiga, era quase Páscoa de 2010 e, mais que aprender sobre a temperatura correta do chocolate para os bombons, a aula despertou nela o desejo de conhecer mais coisas novas. E também se aperfeiçoar na arte que já morava bem dentro dela e só precisava de um empurrãozinho para ganhar vida do lado de fora.

Com o tempo, ali mesmo no Galpão, Ana passou por outros cursos, como o de confeitaria e decoração de bolos, panificação, massas e doces, além das aulas de capacitação, que foram tão importantes para o seu desenvolvimento profissional e pessoal. Afinal, aprender a precificar os produtos feitos por ela, a quantificar e medir os ingredientes, e a dar valor em seu próprio traba-lho, era algo novo em sua vida. Mas, bem aos pouquinhos, essa ideia de que as coisas precisam do espaço e do tempo delas para crescerem, assim como todos os pães fermentados, ganhou espaço em sua vida, junto com um ver-dadeiro amor por ela mesma e por cada coisa pequena que se viu capaz de realizar. “Antes eu era fechada, tinha uma cabeça muito parada, não corria

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atrás de muita coisa para mim. Hoje em dia, sei que eu posso fazer muito. Pos-so trabalhar fora, fazer minhas coisas dentro de casa, viajar Pos-sozinha, com minha filha ou podemos ir os três juntos. Antigamente eu não pensava assim. Hoje em dia, acho que a minha cabeça abriu.”

E tantos caminhos se abriram que, atualmente, quando se lembra da me-nina travessa que se aventurava pelos cômodos da antiga casa no interior de Pernambuco, sem nem imaginar que aqueles momentos de união e afeto seriam tão importantes em sua caminhada, Ana se emociona e sente não só saudade, mas também orgulho da mulher que se tornou e da história que con-tinua a escrever entre linhas cheias de propósito, encontro e sabores doces.

Morada de aconchego

Para curar um pouquinho essa tão sentida saudade, Ana tenta visitar os pais em Pernambuco a cada dois anos. É que quando ela – a saudade – aperta de-mais, nada, nem telefone dá jeito: é preciso sentir o gosto, o toque e o cheiro da presença. Os pais, já mais velhos, não se animam a voar até São Paulo. En-tão, quando chegam as férias, ela dá seu jeitinho de embarcar para seu lugar de afeto. É engraçado como facilmente misturamos do lado de dentro de nós alguns ingredientes que fazem as distâncias, as ausências e a saudade cres-cerem de um jeito lento, em fogo baixo para não queimar. E cada coração tem lá a sua maneira de identificar quando é hora de tirar a receita do forno e transformar tudo em abraço. Então, quando o encontro acontece, é só festa! “Tem dias em que eu ligo para a minha avó, que tem hoje 80 e poucos anos. E no telefone ela diz, brincando: ô minha filha, fiz café, você não quer um pouquinho, não? Aí eu respondo com o coração apertado: hoje não, vó. Deixa para outro dia”, diz. Nessas horas, a saudade ganha a forma das xícaras de café da infância, dos adultos sentados à mesa e das crianças todas no chão, esperando o bolo de mandioca ficar pronto em seus minutinhos de panela de pressão. Um tempo que não volta mais, mas que vai viver gravado para sempre na memória e no coração de Ana.

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30 Receitas — Cozinha de afetos

Torta

salgada

Ingredientes

3 ovos 50 g de queijo ralado 200 ml de leite 100 ml de óleo 2 xícaras (chá) de farinha de trigo 1 colher (sopa) de fermento em pó

Modo de fazer

Coloque o leite, os ovos, o queijo e o óleo no liquidificador. Bata por três minutos. Depois adicione a farinha aos poucos e, por último, o fermento.

Para o recheio, a sugestão é frango com requeijão, frango com palmito ou atum. Coloque metade da massa numa forma untada, uma camada de recheio e depois cubra com o restante. Leve ao forno, pré-aquecido a 180 graus, por cerca de 30 minutos (até que a massa fique dourada).

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“Minha melhor lembrança

de cozinha – e de comida – são as reuniões de família na casa da minha avó. Havia sempre muita gente, muitas brincadeiras e sempre muita comida: bolos, pipo-ca, gelatina, café. Só o que eu guardo mais forte na lembrança é o bolo de panela de pressão que mi-nha avó fazia e faz até hoje. Ela está com mais de 80 anos. Mas, se chega uma visita na casa dela, ela corre para fazer esse bolo maravilhoso e super-rá-pido. São lembranças boas da família toda reuni-da, filhos, netos e a casa sempre cheia.

Minha mãe não era de cozinhar, mas, sempre que fazia algo, era com muito amor. E hoje passo para a minha filha o gosto de fazer mesmo o mais simples prato sempre com amor. Hoje, eu sei que tudo o que aprendi na cozinha tem a ver com as pessoas que passaram pela minha vida, sua força e seu incentivo. Mas o Galpão foi o maior e melhor incentivo que pude ter. Tenho muito orgulho de fa-zer parte dessa escola e de ter construído a minha história ali.”

“Tudo o que

aprendi na

cozinha tem a ver

com as pessoas

que passaram

pela minha vida”

Ana Cláudia Ribeiro Teixeira

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TEMPERO

ESPECIAL

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Edicleuma

Nogueira

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A presença de Edicleuma Nogueira,

ou Edi, seu apelido, adoça corações. Ela é aquela dose de calmaria que alcança a alma pela fala tranquila, pelo ouvido atento e, principalmente, pelo senso de respeito ao próximo. Seu sorriso é cativante e abre portas para que um pote de açúcar esparrame doçu-ra pelas situações amargas que a vida apresenta. Desde muito cedo, Edi vive transformações que vão além da sua idade e, com isso, aprende sobre o tempo. Seus caminhos são pautados por quem sabe construir a própria jornada. É essa a lição vivida em casa, com sua mãe, que, segundo ela, é sua heroína, e também é essa que agora transmite para suas filhas. De punhado em punhado, Edi acrescenta ingredientes à receita de sua vida, que não é nada trivial e, sim, recheada de cotidianos desafiadores.

“Comida na Bahia é tudo de bom”, diz Edi, logo após um suspiro de sau-dade. “Uma coisa que me marca até hoje é o macarrão da minha avó. Ela faz com açafrão e fica bem amarelinho…”, recorda e, após alguns segundos de silêncio, ainda solta: “e ela encharca de óleo”. A frase chega como acompa-nhamento de uma gargalhada de quem hoje continua gostando do prato des-se mesmo jeitinho, des-sem tirar nem pôr. Quando questionada des-se sabe fazer o famoso macarrão, logo responde: “aqui a gente não faz, não. Na verdade, o tempero de vó é diferente. É tão gostoso que dá vontade de comer puro”. A criadora dessa maravilha é a Ivanilde, apelidada de Duzinha. Ela mora ainda hoje em Irecê, cidade natal de Edi, que fica no sertão da Bahia. Ela conta que Duzinha planta coentro no quintal e, por isso, sempre tem tempero fresco. “A avó colhe e amassa a cabeça do coentro, a semente dele, com sal e outras especiarias.” Sempre que vai para lá, Edi já faz esse pedido especial para a avó, e assim traz na bagagem o tempero que, de certa forma, a ajuda a matar a saudade, aos poucos.

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Relembrando a infância, Edi diz que quase não chovia em Irecê, mas, quando acontecia, aproveitava para brincar de umas das coisas mais favo-ritas: “Lá a terra é vermelha e, quando chovia, fazia aquele barro gostoso de brincar. Eu fazia panelinha, fogãozinho…”. Naquela época, também não havia energia na cidade e, enquanto sua avó cuidava dos afazeres na co-zinha, seu avô assumia o papel de distrair os netos até a hora de dormir. “Lembro do vô contando história no escuro para todos os netos juntos. Era muito bom e divertido.”

Bairro Pantanal

Edi nasceu em 1989, em Irecê, e, aos 6 anos, junto com os pais e a irmã mais velha, chegou a São Paulo. Depois de dois dias de viagem de ônibus, desem-barcaram todos na capital paulista e foram para a Zona Leste. Fizeram morada em Artur Alvim e Engenheiro Goulart até comprarem uma casa no que, na época, se chamava bairro Pantanal, hoje Vila Nova. De lá para cá, ela não deixou mais esse lugar.

A infância foi toda vivida pelo bairro e rodeada de crianças. “A gente se juntava e fazia pipoca e chá-mate. Sempre tinha comida envolvida.” A quituteira do bairro, que era paranaense, trouxe uma iguaria de sua terra que conquistou o paladar baiano de Edi. Com a boca cheia d’água, conta que ela fazia “Cueca Virada”. “Essa é outra lembrança que tenho da infân-cia. Era uma massinha com açúcar, parecia um bolinho de chuva.” Trata-se de uma massa feita de farinha de trigo e ovos que é aberta para formar uma tira larga e fina, depois frita e polvilhada com açúcar.

Foi ainda no começo da juventude que Edi conheceu Leandro, que, mais tarde, se tornou seu marido, pai de Letícia, hoje com 14 anos, e de Larissa, de 12. Ela conta que ele morava próximo de sua casa. “Não lembro muito dele quando eu era mais nova. Minha mãe trabalhava fora e teve um tempo que precisou me mudar de escola e horário.” Foi nesse período que ela o conheceu. Anos depois, ele a pediu em namoro. Edi casou-se cedo, aos 15 anos, e isso mudou o rumo de sua vida. Ainda durante o período escolar, dedicou-se a cuidar das filhas e, quando elas já estavam um pouco maiores, sentiu que era o momento de retomar seus caminhos.

Foi participando do Programa Ação Família, da Fundação Tide Setu-bal, que Edi ficou sabendo das oficinas. Ela conta que conheceu, pela tia, o Programa, que tem como objetivo melhorar a qualidade de vida e contri-buir para o fortalecimento social dos moradores de São Miguel e região. As duas frequentavam, semanalmente, encontros promovidos pela Ação.

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Foi lá que ouviu, pela primeira vez, falar das formações em culinária e gas-tronomia. “A assistente social falou que eles tinham cursos, e então eu fui conhecer”, conta. E aí não saiu mais de lá. Edi ingressou na turma de 2012. Ela conheceu vários professores ali, mas foi com Dani e Lúcio com quem mais se identificou. “Eles eram mais do que professores, viraram amigos. Eles se preo-cupavam com a gente.” Entre suas lembranças, conta que, certa vez, preparou o que chama de Bolo Boneca. Nele, uma boneca (de verdade) fazia parte da decoração. O bolo era o vestido do brinquedo, que, como uma princesa em pé na mesa, virava a protagonista da festa. O primeiro bolo feito assim pela Edi foi para o aniversário de 6 anos da Larissa, sua filha. Ela já havia começado a frequentar o Galpão e, mais tarde, refez o feito por lá, agora com a ajuda da dupla de professores. “Eu ganhei do Lúcio uma fôrma no modelo de uma saia e fiquei muito feliz. Esse segundo (bolo) ficou mais bonito”, diz, rindo e olhando para a foto de sua apresentação durante o curso. Segundo Edi, o curso que mais marcou sua passagem pela Oficina foi o de panificação e confeitaria. Das formações feitas, foi a que mais a fez viver experiências na cozinha, colocar a mão na massa. Já o curso “Gastronomia, agora eu posso” expandiu sua cons-ciência sobre até onde pode ir com o aprendizado adquirido na Fundação. Ali teve aulas que iam além dos ingredientes, viu que cozinhar e empreender podiam andar lado a lado.

Mas o tempo passado nas oficinas vai além do preparo do bolo, do enrolar docinhos, sovar o pão. Ele ensinou a Edi muito mais do que receitas prontas ou preparos: deu-lhe material para criar e abrir portas em sua vida. Emociona-da, ela conta que o convívio diário na Oficina melhorou sua forma de se rela-cionar com as pessoas. “Eu era muito tímida e ir lá, estar com outras pessoas, me ajudou muito a passar por isso. Durante os cursos, precisávamos falar em público, fazer apresentações. Lembro-me de um dia o Lúcio me pedir ‘tenta me vender alguma coisa’. Fiquei nervosa e tremia, mas foi muito bom para mim”, finaliza. O gosto pela culinária foi tanto que Edi aceitou o conselho dado pelos professores Dani e Lúcio. “Eles me incentivaram a estudar. Disseram para eu fazer cursos e ver se era isso mesmo que eu queria para mim.” Em 2017, Edi ingressou em um curso profissionalizante e, no meio de 2018, se formou Técnica em Cozinha. “O curso me fez ver que eu gosto mesmo é de doce”, disse, aos risos. Quando perguntada sobre o motivo, diz que aprendeu muito sobre cozinha brasileira e internacional, mas panificação e confeitaria mesmo foi pouco. Seu aprendizado nesse sentido é baseado nos conhecimentos recebi-dos em seu tempo na Oficina. Além disso, atribui sua habilidade no curso ao fato de ter recebido muita informação durante o tempo passado na Fundação.

“Eu era muito

tímida e

ir lá, estar

com outras

pessoas, me

ajudou muito

a passar por

isso. Durante

os cursos,

precisávamos

falar em

público, fazer

apresentações.

Lembro-me de

um dia o Lúcio

me pedir ‘tenta

me vender

alguma coisa”

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“Aprendi muita coisa lá no Galpão, a ficha técnica, por exemplo, o Lúcio me ensinou, e eu revisei durante meu curso técnico. Tudo que eu aprendi antes me ajudou nesse momento”, fala, orgulhosa de suas conquistas.

Minutos em silêncio, olhando para aquela porção de certificados dos cur-sos vividos, as fotos que registram momentos inesperados e, mais do que isso, memórias de uma transformação ocorrida no tempo e no espaço, fazem com que uma imensa sensação de gratidão invada o peito de Edi. Emocionada, diz se sentir muito bem ao saber que tem gente que gosta dela. De saber que co-nheceu pessoas que estarão consigo para o resto de sua vida. “É gostoso falar que tem pessoas que se importam com a gente. O pessoal da Fundação é como se fosse uma segunda família para mim.”

Mão na massa

Entre fotos e lembranças, Edi conta que um de seus primeiros trabalhos na área foi conquistado ao lado da professora Dani. Segundo ela, a chef realizava na comunidade alguns eventos que envolviam uma experiência de história, por meio de diferentes aspectos, como música, vestuário, artesanato e, claro, comida. Edi foi convocada para ficar na cozinha ao lado da Dani no preparo do cardápio. “Ela já me dava aula nessa época. Foi muito legal trabalhar nesse projeto e ver que eu conseguia.” E a Oficina também lhe proporcionou outros momentos como esse. No evento de confraternização da própria Fundação, experimentou, mais uma vez, a sensação de se ver completa por meio da co-mida. “Fomos trabalhar na cozinha e, também, servir. Foi muito bom, juntou trabalhar ao lado de quem se admira e com o que gosta.”

Em 2014, após passar um período morando na Bahia com toda a família, Edi voltou a São Paulo e resolveu empreender. Bolo de pote, pão de mel e cal-dos eram comercializacal-dos na porta de sua casa, num pequeno balcão impro-visado em sua garagem. O objetivo era complementar a renda da família. No início de 2015, com a chegada da crise econômica, resolveu fechar o negócio, mas não o sonho de ser sua própria chefe. Apesar de não ter mais o balcão em casa, seguiu aceitando encomendas para bolos e doces – todos os itens ensinados a ela durante a Oficina. E Edi faz questão de dizer isso. Durante sua formação na Oficina, por exemplo, aprendeu a melhor maneira de fazer o docinho mais amado do Brasil, o brigadeiro. “Muitas vezes, a gente erra o ponto. Deixa tempo demais no cozimento, deixa duro para enrolar... para co-mer fica mais difícil ainda. Errando o ponto, ele também pode ficar mole e, daí a pouco, começa a murchar. A Dani ensina a gente a colocar ovo no brigadeiro e ele, então, fica perfeito.” Edi foi além e aprendeu que era possível fazê-lo

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com líquidos. “Eu aprendi a fazer brigadeiro de hortelã lá na Oficina. Fiz com chocolate branco, leite condensado, manteiga e o chá de hortelã. Lembro-me que, no dia, fizemos três testes. No último, o Lúcio deu a dica de batermos com um pouco da folha e, assim, ele ficaria verdinho”, relembra. “Meu mundo para quando estou na cozinha. Mesmo quando chega o cansaço, ainda é gostoso. Principalmente se eu estiver preparando um doce, aí parece mesmo que o mundo parou de girar.”

Quando o assunto são as filhas, Edi já vê mais características semelhantes do que só a aparência. “A Letícia é muito parecida comigo. Quando está na cozinha, vejo que ela também para no tempo fazendo comida.” Edi conta que as duas sempre a ajudaram cortando ingredientes, untando a forma e com ou-tros afazeres. “A bagunça é muita, mas eu gosto de vê-las na cozinha”, diz. “A Letícia fez pudim sozinha. Eu estava no serviço e ela me mandou mensagem: ‘mãe, não briga comigo, não, mas vou fazer pudim’”, diz, achando graça de a filha gostar de estar no mesmo lugar que ela. Por meio da comida, percebe, elas fortalecem sua relação e criam novas formas de demonstrar afeto e amor.

Por fim, ao ser perguntada sobre qual receita traduz sua história de vida, responde: pão de mel. “Eu aprendi nos primeiros cursos, que eram sobre geração de renda. Eu fiz direitinho e é a mesma receita que uso até hoje. A massa é bem gostosa e fica sequinha. Adoro quando sobe aquele cheirinho de canela pela casa no momento em que o pão de mel está assando.” Edi diz que seu recheio preferido é de beijinho, mas ela faz o tradicional, de doce de leite, e também de brigadeiro. A cozinha, enfim, é um encontro consigo mesma. É dedicação ao seu próprio prazer.

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38 Receitas — Cozinha de afetos

Pão

de mel

Ingredientes

2 xícaras (chá) de leite 1 xícara (chá) de açúcar mascavo 1 colher (chá) de canela em pó 1 colher (café) de cravo em pó ½ xícara (chá) de mel ½ xícara (chá) de chocolate em pó 2 xícaras (chá) e farinha de trigo 2 colheres (chá) de fermento em pó 2 colheres (chá) de bicarbonato de sódio

Modo de fazer

Para a massa: coloque todos os ingredientes da massa no

liquidificador e bata até homogeneizar. Unte as fôrmas próprias para pão de mel, preencha pela metade e leve para assar, por aproximadamente 25 minutos. Para o recheio: misture o doce de leite ao creme de leite. Montagem: desenforme os pães de mel e corte-os ao meio, sem separá-los completamente. Recheie cada um e os banhe em cobertura fracionada derretida. Disponha os pães de mel sobre papel-manteiga ou grade e aguarde secar em temperatura ambiente. Após 2 a 4 horas, corte as rebarbas de chocolate e os embale. Dica: nunca banhe o pão de mel ainda morno. Deixe esfriar bem a massa para rechear e banhar no chocolate. Isso garante uma melhor qualidade.

Recheio

1 xícara (chá) de doce de leite ½ xícara (chá) de creme de leite

Cobertura

Cobertura fracionada de chocolate ao leite

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No Galpão, cresci demais.

A minha vida pessoal e profissional mudou muito a partir dali. Eu perdi muito da minha timidez, conheci muita gente que foi importante para mim. São pessoas que carrego comigo até hoje. Me lembro das coisas que eu fazia no começo, quando ia na Fundação. Comecei fazendo bolo para a minha família. Lembro da minha tia pedir bolo para seus filhos. Foi um período muito importante. No Galpão, aprendemos a ser mais profissional e aprendemos técnicas. Para mim, era uma esco-la para a vida. Lembro de quando apresentamos

o TCC e, para mim, que sempre fui tímida, foi um desafio expor meu trabalho para os colegas. Mas sempre fomos incentivadas a atravessar nossos desafios. E isso foi muito bom para me ajudar. Sou muito grata a todos que trabalha-ram e trabalham por lá. Foi uma oportunidade para conhecer pessoas e me desenvolver a par-tir disso. Apesar de não ter começado meu em-preendimento ainda, estou trabalhando na área da alimentação e sou muito grata por isso. Torço muito pelo sucesso de todas que fizeram parte da minha história.”

“Uma escola

para a vida”

Edicleuma Nogueira 39 39

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Aulas na Oficina Escola de Culinária

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A ARTE

DE SE

REINVENTAR

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Eliana

Zanão

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Quase todo mundo tem um sabor

de bolo preferido. Às vezes, o cheiro da massa de abacaxi ainda no forno lembra os domingos na casa da avó quando, junto a uma xícara de café, tudo ficava mais gostoso. Os sentidos e o paladar também guardam lembranças que, por tanto tempo vivendo dentro da gente, passam mesmo a fazer parte de nós e de nossa história, sem que nem imaginemos que eles podem ainda, em algum momento, desenhar reinven-ções e recomeços em nossa vida.

Foi mais ou menos assim que aconteceu com a Eliana. Os sabores e todas as novas possibilidades presentes dentro deles a ajudaram a encontrar uma direção um tanto quanto diferente para o seu caminho e a traçar suas formas de se reinventar diante das surpresas que, às vezes, nos seguram pelo braço e nos obrigam a seguir em frente em meio às adversidades. Hoje, Eliana é confeiteira de mão cheia. Pense em um bolo, em um recheio, em uma decora-ção e descreva para ela: mesmo que não saiba muito bem como realizar esse desejo no momento, é só dar um tempinho e logo estará pronto aquele bolo dos sonhos.

Antes de se aventurar nesse mundo da confeitaria, Eliana, que se formou no curso de Administração, trabalhou por um bom tempo nessa área, dentro de uma grande empresa em São Paulo. A rotina de trabalho, oito horas por dia (e às vezes um pouco mais), de segunda a sexta-feira, nunca lhe foi um proble-ma. Pelo contrário: Eliana sempre lidou bem com essas questões e nunca teve medo de muito trabalho. Mas nessas voltas que o mundo (e a vida) dá, Eliana precisou se afastar do cargo e da rotina que levava entre reuniões e planilhas para cuidar da saúde, que andava meio esquecida.

O tempo continuou passando e os cuidados de Eliana consigo mesma pre-cisaram também continuar, e o trabalho administrativo foi ficando cada vez mais para trás. Mesmo quando as coisas tranquilizaram, a dificuldade em en-contrar uma nova vaga que valesse realmente a pena manteve Eliana por mais um tempo em casa, cuidando dos afazeres domésticos. O que ela não sabia ainda é que a vida estava, escondidinha, preparando-lhe uma surpresa que mudaria completamente a direção de seus sonhos e também de seu trabalho.

Eliana Amorim de Castro Zanão, 37 anos

Q

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Eliana sempre teve o hábito de cozinhar, em casa mesmo, as refeições co-muns do dia a dia – nada que fosse muito elaborado. Até que, um dia, entre as suas tarefas rotineiras em casa, viu em uma rede social a foto de um pão caseiro, que havia sido feito por uma amiga e vizinha. Curiosa e sempre inte-ressada em um bom desafio, tratou de pedir a receita. O problema é que não deu muito certo: um fermento diferente foi o suficiente para o pão não crescer. E foi aí, justo nessa hora, que a vontade de fazer um pão perfeito tomou uma proporção maior em seu caminho, abrindo uma brechinha para os doces e os segredos da cozinha roubarem seu coração.

Mesmo morando em São Miguel, bem pertinho do Galpão, Eliana não sabia da existência das aulas de culinária. Mais ou menos em 2015, na mesma época em que se arriscou na produção de seu primeiro pão, a sogra lhe contou sobre todos os cursos oferecidos na escola e a convidou para conhecer o Galpão – e, quem sabe, se inscrever em algum curso. Rapidinho ela se interessou e quis saber um pouco mais sobre os processos e ensinamentos oferecidos ali. E foi adiante, participando primeiro de um curso livre, onde aprendeu a fazer uma massa de pão de ló, um recheio simples para bolo, bater o chantili da forma correta. As horas passadas em sala de aula foram o suficiente para despertar nela o desejo de participar de novos cursos, aprender mais sobre fermentação de pães, decoração de bolos e confeitaria. E aí Eliana passou a ter em mãos o fermento que faltava para fazer os seus sonhos crescerem.

A primeira encomenda

Aluna aplicada, tudo o que aprendia em sala de aula, Eliana levava para testar em casa. Nesses momentos, aproveitava para identificar suas próprias dúvi-das ou ter certeza de que realmente tinha absorvido 100% o conteúdo ensi-nado em cada dia de curso. Foi ali, na pequena cozinha do apartamento em que mora com o marido e com a cadelinha Nina, que Eliana fez um bolo com a massa, o recheio e a decoração com chantili, como aprendeu em seu primeiro curso no Galpão. O orgulho em ver pronto aquele bolo que fez sozinha foi tão grande que logo rendeu uma primeira encomenda: a partir da foto que postou em suas redes sociais, uma colega de trabalho do marido de Eliana pediu gen-tilmente que ela produzisse seu bolo de casamento. “Eu só sabia fazer um tipo de massa e um tipo de recheio. Também não tinha ideia de como fazer um bolo maior que aquele que aprendi, de dois quilos. Como era casamento, precisaria ser um bolo de 15 quilos. Fiquei indecisa se aceitava ou não a encomenda, que para mim era um desafio.”

Mas é claro que ela aceitou. Com medo mesmo, mas também com a certe-za de que, se aquela ideia de fazer bolos para vender fosse mesmo algo para

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