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minha mente

começou a criar

imaginações”

Jussara Ferreira da Silva

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Cozinha de afetos — Jussara da silva

insisti muito e ela não só fez como também me ensi- nou a fazer. Então eu ia fazendo e vendendo. Cada dia que passava eu ia melhorando e os salgados iam ficando mais gostosos. Só que, do nada, apa- receu uma outra pessoa vendendo também e, por incrível que pareça, era da minha idade, 10 anos. No primeiro dia, senti muita raiva dela e queria atropelá-la, mas não era possível. Já no quarto dia, fiquei com muito dó dela, porque percebi que ela voltava com todas as beiras secas para casa. Então decidi ensiná-la e vender as delas, logo depois que as minhas acabavam. O negócio ia dando certo. E eu estava muito feliz. Consegui juntar dinheiro e pedir para minha mãe montar uma minimercearia num espaço pequeno que tinha na minha casa. Eu pagava para os meus irmãos mais velhos cuidarem e continuava vendendo minhas beiras secas.

Mas, devido a problemas com minha mãe, de- cidi ir embora da cidade. Depois disso, parei de trabalhar por conta. Pensei ‘deixa que minha mãe se vira do jeito que ela quiser’. E comecei a fase da

minha adolescência curtindo, não me importan- do com o que tinha ou deixava de ter e nem lem- brando o que minha mãe fazia. Aos 16, casei. Então resolvi montar uma lan house, de onde me cansei muito rápido. Fechei o negócio e fui me dedicar só à minha família. Mas ficar parada era pior que na época da lan house. Então pesquisei na internet algum curso que poderia fazer para trabalhar em casa. E no meio da pesquisa apareceu o Galpão Tide Setubal, que oferecia cursos gratuitos. Era tudo o que precisa, afinal eu não tinha uma renda para pagar pelo curso. Pensei que aquilo seria interes- sante para aprender a cozinhar para as crianças. Chegando ao Galpão, entre vários cursos e pessoas, minha mente começou a criar imaginações. Minha confiança, daquela menininha que vendia aquelas beiras secas, estava voltando a ter vida. Seria pos- sível? Então me inscrevi no Galpão para aprender confeitaria e terminei o curso. E me senti mais apta. Estava, assim, pronta para dar vida ao Point Tropi- cal, a melhor lanchonete do bairro.”

O DOM

DE

CUIDAR

4 1 A n O s

Leila

Andrade

No tacho em que a vida é feita

, Leila tem como ingredientes a per- sonalidade forte e carinhosa do pai e também a habilidade de mostrar afeto por meio da comida, herança da mãe. Essa alquimia lhe ensina a pegar no colo quem precisa de amparo e, com isso, o seu dom, o cuidar, se fortalece quando ela abre espaço para o propósito de sua vida. Leila nutre quem está à sua volta com carinho, amor e alimento, que, mais do que nutrientes, leva emoções e sensações que vão além do que se pode explicar em uma simples receita. Sua história é recheada de muitos sabores que se apresentam em forma de coragem, compaixão, alegrias e experiências das mais diversas. De tudo que já viveu, aprendeu a usar o tempo como ferramenta principal para a sua transformação, e agora sabe a importância de acreditar no seu potencial.

Leila nasceu e cresceu em São Paulo. Sua mãe, Waldeci, a Wal, nasceu no interior da Bahia e, com 17 anos, foi para a capital paulista, onde ficou. Seu pai, David, é pernambucano, de Pesqueira, mas cresceu no Piauí. “Meu pai conta que, quando ele era criança, houve uma seca muito grande e a família saiu da cidade e se arranjou no Piauí.” Aos poucos, os irmãos de seu pai migraram para São Paulo até a hora em que chegou a vez do próprio David.

Da união de David e Waldeci, Leila é a filha do meio. Ednaldo é o mais velho e Luciana, a caçula.

Era começar a juntar o óleo, o alho e a cebola no fundo de uma panela e Leila e Luciana, irmãs inseparáveis desde a infância, já se aconchegavam pela cozinha, o mais próximo do fogão que podiam. “O cheiro de arroz frito lembra muito a minha infância. Minha mãe deixava a gente comer ele assim, e adoráva- mos”, diz, fechando os olhos para voltar no tempo. Outra delícia preparada na cozinha da Wal era a carne cozida com legumes. “Ela colocava batata, cebola, abóbora e, depois de feito, ia tudo para um prato só na mesa, e fazia o famoso

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capitão. Ela amassava a comida com a mão, fazendo um bolinho, e nos dava o almoço enquanto eu e minha irmã pulávamos pela sala.” Leila conta que o sabor dessa carne era único e que a lembrança ficou para sempre com ela. Na casa, dificilmente entrava algo industrializado. A mãe preparava tudo com muito amor e carinho. “Minha mãe fazia cocada, doces, pães e sempre foi natural para a gente ter tudo fresco desse jeito. É a forma dela de dar carinho.”

Pão de mel

Leila conta que considera o pão de mel seu filho. Ele surgiu em sua vida num momento muito delicado e importante, como uma luz no escuro. “A partir dele, eu consegui começar, mesmo de forma inconsciente, a ir saindo da depressão”, conta. Anos antes, Leila já vinha vivendo com depressão e síndrome do pânico, mas, durante seu emprego em uma clínica, sentiu os sintomas mais fortes em decorrência do alto estresse que encontrou por ali e que não combinava com seu estilo de vida. Seu chamado para trabalhar na área da saúde começou muito antes daquela experiência, quando a vida lhe dizia sobre seu dom, o cuidar. “Durante muito tempo, um hospital quis me contratar, me oferecer um plano de carreira, mas eu dizia que aquilo não era para mim.”

Mais tarde, no entanto, Leila começou a trabalhar em um consultório médico, como secretária, e se aproximou um pouco desse universo. Com o objetivo de evoluir, aceitou uma posição em uma clínica dermatológica, que lhe abriu a oportunidade de se aprofundar em alguns procedimentos e, então, resolveu investir em uma formação como auxiliar de enfermagem. Lá, conheceu a professora Luciana, que lhe deixou um ensinamento impor- tante. “Ela é um ser humano sem igual. Dizia que o curso de enfermagem abria um leque gigante para a gente. O cuidar não era só a enfermagem, que podíamos ir além. Aquilo me marcou muito e, mais tarde, fui entender.”

Durante o tempo na clínica, sentiu seus limites serem testados, princi- palmente porque não queria ficar desempregada. “A gente se acostuma a ter nossa rotina, então fui brigando comigo mesma. Eu pensava em estudar mais o assunto, mesmo sabendo que não era minha vocação. Eu queria me estabilizar.” E emenda: “mas, em um determinado momento, eu parei mesmo. De repente, me vi não tirando um prato do lugar, era como se eu tivesse parado de funcionar”, finaliza. Na ocasião, Leila conta que só saía de casa para ir ao terapeuta, uma vez por semana, e ao médico, uma vez por mês. “Ficava tanto tempo em casa, no silêncio e no escuro, que, quando saía, a luz do dia fazia meus olhos doerem”, diz.

Em casa, Leila, aos poucos, voltou seus esforços para uma atividade que lhe acompanhava sempre: preparar trufas. Sua mãe era promotora de vendas na época e, então, tudo que a Leila preparava, ela levava para vender entre as co- legas de trabalho. “Eu sempre mexi com chocolate, algo que aprendi com uma amiga e, naquele momento, vi que era uma forma de ajudar na renda da casa.” Até que um dia chegou um pedido das colegas de trabalho da mãe de Leila: por que você não faz pão de mel? “Achei uma receita, comecei a testar e gostei. Aí fui fazendo, e as meninas que trabalhavam com a minha mãe compravam e até botavam preço”, diz, rindo hoje dos pequenos empurrões que a vida dá. Leila ficou tão especialista em pão de mel que ganhou fãs, inclusive entre pessoas que não comiam o doce. Seu segredo, conta ela, é olhar para ele percebendo mais do que alimento, é ver no doce algo para aguçar sensações. O pão de mel fez isso por ela, deu um sentido para as emoções de Leila. E, como se a vida dela fosse um tacho de doce de leite sendo preparado para aquela receita, ela, inconscientemente, sentiu novamente sua jornada se movimentar.

O próximo passo dessa receita foi dado com a ajuda de sua amiga, Priscila, que então a convidou para fazer os doces de seu casamento. “Eu nunca tinha feito, então disse que precisava aprender”, comenta. Na época, ela ainda estava em depressão, e sua amiga disse que seu irmão conhecia uma chef, e que ele poderia ajudá-la a encontrar um curso. Foi assim que Leila teve o primeiro contato com Daniela Romão. Coincidentemente, ela estava para iniciar o cur- so de doces finos para casamento. “No meu primeiro dia na Oficina Escola de Culinária, minha cunhada, Cristiane, me levou até lá. Eu não conhecia a comu- nidade em que o Galpão estava, mesmo morando na região há algum tempo.” Essa sensação do desconhecido assombrou Leila, que ainda vivia os sintomas da depressão e do pânico na pele. Ela se recorda de entrar e fazer a inscrição, assistir à aula e sentir os sintomas de quem ainda não estava pronta para lidar com o inexplorado. “Eu pensava em como sairia dali. Aí pedi para acompanhar as meninas que iam para o mesmo sentido que eu. Meu coração estava muito acelerado e me lembro do alívio ao chegar em casa.”

Na segurança do lar, ela resolveu conversar sobre a experiência com a irmã, Luciana, que a incentivou a se manter por lá. “Eu estava assustada, vivia com medo de tudo, mas ela me tranquilizou e consegui voltar, sozinha.” Leila havia gostado da experiência na Oficina e, de alguma forma, queria seguir. “Mais do que a Oficina, me senti acolhida pelo Jardim Lapena e por todas aque- las pessoas, e fui ficando.” Leila conta que foi fazendo curso após curso. “Para mim, era o modo de eu conseguir sair de casa que não fosse ir para a terapia ou para o médico”, diz, relembrando esses tempos. Quando estava no fim das capacitações, começou a se preocupar em, sem a Oficina, não conseguir mais

“No meu