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Moral e religião em Freud

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO EM FILOSOFIA

SANDRA MARIA KRINDGES

MORAL E RELIGIÃO EM FREUD

CAXIAS DO SUL 2016

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SANDRA MARIA KRINDGES

MORAL E RELIGIÃO EM FREUD

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Mestrado em Filosofia, da Universidade de Caxias do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Área de Concentração: Ética. Linha de Pesquisa: Problemas Interdisciplinares de Ética.

Orientador: Prof. Dr. Paulo César Nodari.

Caxias do Sul 2016

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Krindges, Sandra Maria Moral e religião em Freud / Sandra Maria Krindges. – 2016. 115 f. Dissertação (Mestrado) ­ Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós­Graduação em Filosofia, 2016. Orientação: Paulo César Nodari. 1. Moral e religião nos textos freudianos.  2. Moral em Freud e a ética na psicanálise. 3. Freud e o fenômeno religioso.  I. Nodari, Paulo  César, orient. II. Título. K92m Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UCS com os  dados fornecidos pelo(a) autor(a).

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SANDRA MARIA KRINDGES

MORAL E RELIGIÃO EM FREUD

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Mestrado em Filosofia, da Universidade de Caxias do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Área de Concentração: Ética. Linha de Pesquisa: Problemas Interdisciplinares de Ética.

Orientador: Prof. Dr. Paulo César Nodari.

BANCA EXAMINADORA:

--- Prof. Dr. Paulo César Nodari (UCS)

(Orientador)

--- Prof. Dr. Everaldo Cescon (UCS)

--- Prof. Dr. Delamar José Volpato Dutra (UFSC)

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AGRADECIMENTOS

A Deus.

Aos amigos e familiares, especialmente a meu irmão, Paulo José Krindges, pelo apoio e incentivo.

Ao Prof. Dr. Paulo César Nodari, pela disponibilidade e dedicação na orientação do trabalho dissertativo. Pela caminhada de aprendizado.

Aos demais professores que compõem a Banca Examinadora, Prof. Dr. Everaldo Cescon e Prof. Dr. Delamar José Volpato Dutra, pelo trabalho de avaliação da presente dissertação.

Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade de Caxias do Sul, e aos demais professores do Programa, meu reconhecimento, carinho e amizade.

A Daniela Bortoncello, por seu trabalho e dedicação junto à Secretaria do Programa de Mestrado em Filosofia, pela amizade e carinho com que auxilia a todos.

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RESUMO

Partindo-se da ideia em torno do lugar e da importância da religião na vida humana, como também da existência de uma crise ética na atualidade, a dissertação de Mestrado em Filosofia, Moral e Religião em Freud, estuda a crítica freudiana à religião e a proposta moral em Freud. Toma-se em conta que as transformações ocorridas no campo religioso na pós-modernidade, no seio de instituições tradicionais como a família e a religião, e o declínio da função simbólica da representação paterna de autoridade, são aspectos de significativa influência no cenário atual, quando modelos tradicionais e verticalizados migram para formatos horizontalizados no estabelecimento das relações, dos vínculos e na transmissão de valores. E a partir da proposta moral na psicanálise freudiana, busca-se analisar e estabelecer relações com o comportamento religioso na atualidade e suas possíveis implicações com a crise ética vigente, de valores de referência e de sentido. Em um primeiro momento, na análise dos principais textos freudianos que tratam do tema da religião, a saber: Atos obsessivos e práticas religiosas (1907); Totem e Tabu (1913); Moisés e o Monoteísmo (1939); O futuro de uma ilusão (1927) e O Mal-Estar na Civilização (1930) sublinha-se aspectos que sinalizam sua proposta moral e crítica à religião. No segundo momento, com base nos textos referenciados, aprofundam-se conceitos da moral freudiana, relacionando-os a alguns dos pressupostos da psicologia moral, tais como o desejo, a culpa e os sentimentos de obrigatoriedade como motivadores da ação moral. Em torno de tais pressupostos, analisa-se o modo como está posta a questão paterna na moral freudiana e, a partir dela, a ética na psicanálise, bem como algumas de suas contribuições para a leitura da crise ética na atualidade. No terceiro momento desta proposta de estudos, adentra-se no tema da religião, seu papel na dimensão humana e em algumas configurações do cenário religioso da atualidade. Neste campo do fenômeno religioso, o trânsito religioso revela-se, em algumas de suas nuanças, como um comportamento sintomático, decorrente do declínio da religião, como tradicionalmente herdada, bem como relacionado com a crise ética referida. A moral em Freud e a ética na psicanálise são vistas, portanto, como contribuições relevantes na compreensão do cenário atual, de culturas flutuantes que instigam a baixa tolerância à frustração. Nessa perspectiva de análise, observa-se que o mercado religioso, por sua vez, ao mesmo tempo em que se apresenta como a possibilidade do livre exercício religioso, configura-se, também, como um recurso externo ao sujeito, que nem sempre o instiga ao autoconhecimento e a uma maior e melhor consciência de seus valores morais e religiosos.

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ABSTRACT

Based on the idea about the place and the importance of religion in human life, and the idea about the existence of an ethical crisis today, this Master’s dissertation in philosophy, Moral and religion in Freud, studies Freud’s criticism of religion and Freud’s proposal on moral. Transformations occurred in the field of religion in post-modernity, in the bosom of traditional institutions such as family and religion, and the decline of the symbolic function of paternal representation of authority are aspects of significant influence in the current scenario, when traditional and verticalized models migrate to horizontalized formats in establishing relationships, bonds, and in transmitting values. Starting from the moral proposal in Freudian psychoanalysis, it is attempted to analyze and establish relationships with today's religious behavior and its possible implications with the current ethical crisis of values of reference and sense. Firstly, by analyzing Freud’s major texts dealing with the subject of religion, namely Obsessive actions and religious practices (1907); Totem and Taboo (1913); Moses and monotheism (1939); The future of an illusion (1927), and Civilization and its Discontents (1930), aspects that point out to Freud’s moral proposal and his criticism to religion are highlighted. Secondly, based on these texts, the understanding of concepts of Freudian moral is deepened, and related to some of the assumptions of moral psychology, such as desire, guilt, and obligatory feelings as triggers of moral action. Based on these assumptions, an analysis is performed on how the father issue is placed in Freudian morality, and how it appears in the ethics in psychoanalysis, as well as some of its contributions to the reading of the ethical crisis today. Thirdly, the subject of religion, its role in the human dimension, and in some aspects of today’s religious scenario is dealt with. In this field of religious phenomenon, religious transit unveils in some of its nuances as a symptomatic behavior resultant from the decline of religion as traditionally inherited, as well as related to the aforementioned ethical crisis. Morality in Freud and ethics in psychoanalysis are therefore seen as relevant contributions to understanding the current scenario of fluctuating cultures that instigate low frustration tolerance. In this perspective of analysis, it is observed that the religious market, in turn, at the same time that presents itself as a possibility for the free religious exercise, is also a resource that is external to the subject, and which not always instigates the subject to self-knowledgement, and to a greater and better awareness of his/her moral and religious values.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. ... 9

1 MORAL E RELIGIÃO NOS TEXTOS FREUDIANOS ... 13

1.1 Atos Obsessivos e práticas religiosas (1907) ... 13

1.2 Totem e Tabu (1913) ... 16

1.3 Moisés e o Monoteísmo (1939) ... 23

1.4 O futuro de uma ilusão (1927) ... 28

1.5 O mal-estar na civilização (1930)... 33

2 MORAL EM FREUD E A ÉTICA NA PSICANÁLISE ... 40

2.1 Complexo de Édipo ... 51

2.2 Desejo ... 55

2.3 Supereu ... 59

2.4 Culpa ... 61

2.5 A questão paterna na moral freudiana ... 65

2.6 A crise ética na atualidade e as contribuições da Psicanálise ... 72

3 FREUD E O FENÔMENO RELIGIOSO ... 81

3.1 A dimensão religiosa na vida humana ... 81

3.2 Trânsito religioso como uma das formas de manifestação do fenômeno religioso na atualidade ... 90

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 102

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INTRODUÇÃO

O momento da sociedade atual é de declínio das representações da autoridade paterna. A forma verticalizada de se estabelecer as relações familiares, também no contexto de instituições tradicionais como a religião, na transmissão de valores morais, costumes, regras e normas de comportamento, foi sendo substituída pela forma horizontalizada de transmissão desses valores. E, se outrora havia o exercício definido de papéis, hoje tudo e todos apontam caminhos e possibilidades, não havendo um único agente moral a orientar e direcionar o homem.

Neste contexto, em que as relações familiares pautadas por dinâmicas de convivência que colocam pais e filhos em níveis de igualdade e horizontalidade na configuração dos papéis familiares, não há somente o declínio da representação da imagem e da autoridade paterna, mas, especialmente, de sua função. E, nesse sentido, e somados outros fatores da cultura pós-moderna, instalam-se estados de vazio e angústia. Com a representação e a função paterna de autoridade destituindo-se do lugar do saber e da sustentação de valores morais e éticos, tais funções cedem espaço, hoje, dentre outros, a valores compartilhados por vias midiáticas e tecnológicas.

Um definhamento gradativo de valores e de sentido de vida é, então, percebido. Aspectos essenciais na transmissão de princípios e valores, através das relações e dos vínculos parentais, vão sendo dissolvidos, configurando-se em acentuado adoecimento do homem frente a uma cultura de valores líquidos vigentes. Todavia, é parte da condição humana a necessidade de crer em algo maior que o próprio homem e a busca permanente pela felicidade.

A religião, nesse sentido, vem a ser uma das principais fontes do homem de haver-se com a sua finitude e com as demais inquietudes próprias da condição humana, da mesma forma que se caracteriza como um dos temas mais discutidos quando se trata de pensar o próprio homem. Por tais razões, dentre outras, a religião é um aspecto da vida que não desaparece, mas, também, transforma-se e reconfigura-se. E a articulação entre as concepções religiosas tradicionais com os novos modelos e propostas do homem de se relacionar com a sua religiosidade e, muito especialmente, a partir de si mesmo, é um dos aspectos que

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envolvem tais transformações e, que, por sua vez, caracterizam novas formas de comportamento religioso.

Tendo presente o significado do problema da religião no cotidiano da vida humana, buscou-se nas contribuições da psicanálise construir algumas relações entre moral, ética e religião. Assim, pelo viés de compreensão da psicanálise, trata-se de trabalhar a proposta freudiana da moral e da crítica à religião, das possíveis relações entre os conceitos freudianos e o cenário contemporâneo, que indica uma crise ética, cujos efeitos revelam comportamentos sintomáticos e psicopatologias do vazio. Nesse ínterim, a religião, para além de seu papel tradicional, mas, especialmente, a partir de um mercado religioso, se apresenta como um dos caminhos de fuga e refúgio do homem contemporâneo, diante do declínio das influências de instituições como a família e a religião em seus valores como tradicionalmente herdados.

Partindo-se, pois, da importância da religião na vida humana e sendo um tema consideravelmente presente nas obras de Freud, no capítulo primeiro, busca-se identificar, nos principais textos freudianos que tratam do tema da religião, seus principais conceitos de interpretação para o fenômeno religioso, a saber: Atos obsessivos e práticas religiosas (1907); Totem e Tabu (1913); Moises e o Monoteísmo (1939); O futuro de uma ilusão (1927) e O Mal-Estar na Civilização (1930). Trata-se, também, a partir desses textos, de identificar aspectos que já indicam a proposta moral em Freud.

No capítulo segundo, disserta-se sobre a proposta moral freudiana, pensando-a, inicialmente, em torno de alguns conceitos com os quais trabalha a psicologia moral, ainda que não seja possível tomá-los em uma mesma direção ou por sinonímia. As relações que se empreende se dão a partir dos referenciais na psicologia moral de ser a psicanálise uma das teorias representativas da dimensão afetiva e a dimensão afetiva, necessariamente, presente na moral. Ainda neste capítulo busca-se adentrar, de forma mais detalhada, em conceitos específicos da teoria freudiana e importantes, tanto para o pensamento acerca da moral em Freud, como também para a ética na psicanálise, quais sejam: o complexo de Édipo, desejo, supereu e culpa. Neste viés, empreende-se a leitura dos conceitos da moral e da ética na psicanálise freudiana para abordar alguns dos aspectos envoltos na crise ética na atualidade e de que forma a religião pode se situar neste contexto.

No capítulo terceiro, de início, são contempladas breves considerações em torno do papel e da importância da religião na vida humana. E, tendo-se presente a amplitude e a complexidade presentes na temática da religião, o enfoque se dá, especialmente, àqueles

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aspectos que se compreende relacionados com a presente proposta dissertativa, ou seja, aspectos que indicam algumas das transformações no cenário religioso na atualidade e que sinalizam novas posturas e comportamentos religiosos. E, a partir dessa ideia, trabalham-se, neste capítulo, algumas nuanças que envolvem o trânsito religioso, correlacionando-o com as argumentações freudianas sobre a religião. Por fim, aborda-se o trânsito religioso a partir da crítica freudiana à religião e como umas das manifestações de comportamentos sintomáticos na atualidade e frente à crise ética referenciada, bem como certos pressupostos em torno da ética e da religião que se compreende relevantes ao tema ora proposto.

Esta proposta de pesquisa tem o seguinte problema a ser perseguido. Considerando-se, por um lado, a importância, o papel e o lugar ocupados pela religião na vida do ser humano, as transformações ocorridas no campo religioso na atualidade, quando a religião, em seu formato tradicional e institucionalizado, deixa de ser fonte articuladora de sentido, e, por outro, constatando-se, também, um significativo movimento de retorno ao sagrado, ainda que não nas formas da religião tradicional, busca-se investigar, neste trabalho dissertativo, as relações entre moral e religião, em Freud, visando estabelecer nexos entre a concepção freudiana da religião e o comportamento religioso delineado na atualidade.

Tendo em vista o presente problema de pesquisa, a metodologia de trabalho adotada consistiu de uma pesquisa bibliográfica de método analítico-interpretativo, a partir do qual se constatou ser a ética na psicanálise uma proposta não somente polêmica, mas, também, desafiadora. De argumentos em torno dos quais a crise ética vigente na atualidade, e na leitura aqui empreendida, perpassa o papel e a função paterna como um aspecto importante de análise na proposta moral e crítica freudiana à religião. Da mesma forma, lê-se o declínio das influências de instituições tradicionais, tais como a família e a religião, em suas relações com o mercado e o trânsito religioso, atualmente, muito bem explorado, e, de certo modo, manipulado.

A psicanálise sustenta a possibilidade de uma ética do desejo a partir da existência da instância inconsciente na psique humana o que, sob alguns aspectos, relaciona-se com pressupostos da ética clássica tradicional, ainda que não possua tal intuito ou objetivo. Ou seja, à psicanálise importa que o sujeito busque conhecer a si mesmo e nesse empreendimento acesse o desejo inconsciente, responsabilizando-se não somente por seus sintomas, implicados nas formas como estabelece sua vida e suas relações, mas igualmente pela causa de seus

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sintomas; pelo desejo que o move. Portanto, trata-se de uma proposta de ética que implica uma postura e responsabilidade individual, mas que, inevitavelmente, interfere no laço social.

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1 MORAL E RELIGIÃO NOS TEXTOS FREUDIANOS

Os textos de referência neste capítulo são aqueles que, da obra freudiana, entende-se como os que mais diretamente abordam os temas propostos: a religião ou a crítica freudiana à religião, de onde igualmente se extrai a proposta moral em Freud. Tais obras são também, comumente, as mais referidas por teóricos de diferentes áreas quando as análises visam o tema da moral e da religião em Freud, não obstante o tema da religião, especialmente, permear toda a obra freudiana e alguns de seus casos clínicos mais discutidos.

Desta forma, tomando-se por base os principais textos de Freud que referenciam a questão da religião, como também contribuições de alguns comentadores, busca-se identificar os aspectos que dizem da moral freudiana e, consequentemente, da ética proposta pela psicanálise. Todavia, quanto ao interesse na crítica freudiana à religião, não se intenta, aqui, realizar uma análise pormenorizada da crítica, mas, antes, delinear o lugar do pai na concepção moral e religiosa em Freud e os aspectos possíveis de relação com o fenômeno religioso na atualidade.

Trata-se, a seguir, de analisar, a possível relação entre moral e religião, sublinhando de maneira muito particular a figura do pai, que surge como um elemento central nas abordagens freudianas que aqui se destaca.

1.1 Atos obsessivos e práticas religiosas (1907)

No texto Atos obsessivos e práticas religiosas (1907), segundo nota do editor, Freud teria feito sua incursão inicial na psicologia da religião. Este teria sido um passo decisivo para abordagens mais extensas do assunto e retomadas mais tarde, primeiramente, com Totem e Tabu (1912-1913), quando, entre outros aspectos, Freud toma a repressão dos instintos constitutivos que promovem a satisfação primária do ego, como uma das bases da civilização humana (FREUD, 1907, p. 116). Em Atos obsessivos e práticas religiosas, ele relaciona a religião como um mecanismo ou processo psicopatológico, descrevendo a neurose obsessiva, em seus atos obsessivos e ritos cerimoniais, como correlatos com a formação da religião.

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Freud descreve a “neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal.” (1907, p. 116).

Os ritos cerimoniais são elementos de semelhança com os atos obsessivos1 e as práticas religiosas. “A compreensão interna (insight) da origem do cerimonial do neurótico pode, por analogia, estimular-nos a estabelecer inferências sobre os processos psicológicos da vida religiosa” (FREUD, 1907, p. 109). O cerimonial é, pois, sempre uma ação que deve seguir determinadas regras que o próprio sujeito se impõe. E é sempre executado como se tivesse de obedecer a certas leis tácitas2 (FREUD, 1907, p. 110).

A neurose obsessiva se apresenta na vida cotidiana, inicialmente, a partir de situações banais e corriqueiras, mas, quando reprimidas da consciência, se utilizam de símbolos banais como substitutos. Ou seja, “cerimoniais que se prendem aos atos menores da vida cotidiana e se expressam através de restrições e regulamentações tolas em conexão com eles”. (FREUD, 1907, p. 115). Referente à formação religiosa, no que tange à percepção das semelhanças, mas também diferenças, Freud argumenta:

É fácil perceber onde se encontram as semelhanças entre cerimoniais neuróticos e atos sagrados do ritual religioso: nos escrúpulos de consciência que a negligência dos mesmos acarreta, na completa exclusão de todos os outros atos (revelada na proibição de interrupções) e na extrema consciência com que são executados em todas as minúcias. Mas as diferenças são igualmente óbvias, e algumas tão gritantes que tornam qualquer comparação um sacrilégio: a grande diversidade individual dos atos cerimoniais (neuróticos) em oposição ao caráter estereotipado dos rituais (as orações, o curvar-se para o leste, etc.), o caráter privado dos primeiros em oposição ao caráter público e comunitário das práticas religiosas, e acima de tudo o fato de que, enquanto todas as minúcias do cerimonial religioso são significativas e possuem um sentido simbólico, as dos neuróticos parecem tolas e absurdas.

(FREUD, 1907, pp. 110-111)3.

Na relação que Freud apresenta entre a neurose obsessiva e as práticas religiosas há o elemento da compulsão, enquanto uma condição da neurose obsessiva, que somado às proibições, gera sentimentos inconscientes de culpa. Os sentimentos inconscientes de culpa

1 Atos obsessivos referem-se a pensamentos, ideias, impulsos obsessivos, o que para Freud constitui uma

“entidade clínica especial, que comumente se denomina de neurose obsessiva”. Trata-se de pequenas alterações em “certos atos cotidianos, em pequenos acréscimos, restrições ou arranjos que devem ser sempre realizados numa mesma ordem, ou com variações regulares. [...]. O próprio paciente não as julga diversamente, mas é incapaz de renunciar a elas.” (FREUD, 1907, p. 109).

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“Uma das condições da doença é o fato de que a pessoa que obedece a uma compulsão, o faz sem compreender- lhe o sentido – ou pelo menos, o sentido principal [...]. Esse fato importante pode ser expresso da seguinte forma: o ato obsessivo serve para expressar motivos e ideias inconscientes” (FREUD, 1907, p. 113).

3 Nesta referência que ele faz às diferenças, tem-se o tom que dá adiante, quando toma a religião como ilusão,

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provêm de eventos mentais primitivos, elementos instintivos, mas constantemente revividos e ligados a sentimentos de ansiedade e temores de infortúnios, a partir de ideias punitivas4.

O sentimento de culpa dos neuróticos obsessivos corresponde à convicção dos indivíduos piedosos de serem, no íntimo, apenas miseráveis pecadores; e as práticas devotas (tais como orações, invocações, etc.) com que tais indivíduos precedem cada ato cotidiano, especialmente os empreendimentos não habituais, parecem ter o valor de medidas protetoras ou de defesa [...]. Assim, os atos cerimoniais e obsessivos surgem, em parte, como uma proteção contra a tentação e, em parte, como proteção contra o mal esperado. (FREUD, 1907, pp. 114-115).

O aspecto da culpa é um elemento importante que compõe a moral em Freud e já se encontra presente em sua leitura dos povos primitivos, com a morte do pai da horda e os demais desenlaces que proporá em Totem e Tabu para o sentimento moral da culpa. Mas referentemente à religião ou às práticas religiosas os sentimentos de culpa, ansiedades e expectativas estariam postos na forma de medo da punição divina e isso nos seria familiar há mais tempo no campo da religião do que no campo da neurose (FREUD, 1907, p. 115).

Das características da neurose obsessiva, portanto, seus cerimoniais estão ligados a atos corriqueiros e banais da vida cotidiana; resultam de deslocamento psíquico que visa à substituição de ideias e fatos importantes e inconscientes para situações triviais, como forma de supressão de angústias e temores provenientes de compulsões, ideias obsessivas, sentimentos de culpa e proibições reprimidos da consciência.

Na referência de Freud sobre a tendência de deslocamento de valores psíquicos para o campo religioso, considera que:

O caráter de conciliação que os atos obsessivos possuem em sua qualidade de sintomas neuróticos não é tão evidente nas práticas religiosas correspondentes. Mas também nestas descobrimos esses aspectos das neuroses quando lembramos a frequência com que são cometidos, justamente em nome da religião e aparentemente por sua causa, todos os atos proibidos pela mesma – ou seja, as expressões dos instintos por ela reprimidos. [...]. A semelhança fundamental residiria na renúncia implícita à ativação dos instintos constitucionalmente presentes; e a principal diferença residiria na natureza desses instintos, que na neurose são exclusivamente sexuais em sua origem, enquanto na religião procedem de fontes egoístas. (FREUD, 1907, p. 116).

4 Ideias punitivas e o sentimento de culpa são argumentos relacionados com a questão do complexo paterno e a

necessidade de proteção presentes nas ideias e práticas religiosas em O futuro de uma ilusão (1928) e O mal estar na civilização (1930).

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Assim, em Atos obsessivos e práticas religiosas Freud associa o fenômeno religioso à neurose obsessiva, em que o cerimonial neurótico se parece muito com os atos sagrados do rito religioso, e a neurose obsessiva torna-se uma religião íntima. São esses os aspectos a se tomar como foco de atenção. A analogia de Freud para a necessidade ou o desejo do neurótico e do homem de fé de serem salvos é, também, em parte, a analogia que se faz do comportamento religioso quando destituído de uma consciência pessoal, para um escoamento, apenas, de medos e culpas sem maiores responsabilidades. Um fenômeno, se não o único, presente no trânsito religioso na atualidade, e indicativo de uma necessidade da religião, em alguns aspectos, como refúgio e proteção frente a sentimentos de desamparo.

Para a moral freudiana, portanto, há nos sentimentos de culpa e nas proibições reprimidas da consciência características da neurose. Elementos que têm sua origem nas primeiras relações parentais e, que, demarcam e inscrevem a moral justamente a partir das primeiras proibições que daí advém. Essas marcas são, muito especialmente, as marcas paternas, conforme a psicanálise freudiana, e elas se mantêm carregadas de simbolismos em torno dessa necessidade do homem religioso de ter proteção e de ser salvo.

1.2 Totem e Tabu (1913)

Em Totem e Tabu (1913) Freud adentra, pela via da compreensão mitológica, e, do ponto de vista da psicanálise, numa tentativa de elucidar o totemismo e os tabus. Ele se interessa pela vida mental de povos primitivos quanto à transmissão de tradições, lendas e mitos e de que forma isto estaria presente ou retratado nos estágios primitivos de nosso próprio desenvolvimento. E acerca de suas próprias suposições, Freud defende que “uma comparação entre a psicologia dos povos primitivos, como é vista pela antropologia, e a psicologia dos neuróticos, como foi revelada pela psicanálise, está destinada a mostrar numerosos pontos de concordância e lançará nova luz sobre fatos familiares às duas ciências.” (FREUD, 1913, p. 21).

Nesta obra, Freud descreve o sistema de vida e sobrevivência de tribos aborígenes da Austrália, especialmente, e consideradas distintas. E, uma peculiaridade está no fato de os

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assuntos comuns a essas tribos estarem no comando de um conselho de anciãs5. Igualmente, a hipótese de Freud de não ser possível atribuir a essas tribos quaisquer sistemas de religião a partir da adoração de seres superiores, mas ao fato de que “estabelecem para si próprios, com maior escrúpulo e o mais severo rigor, o propósito de evitar relações sexuais incestuosas.” (FREUD, 1913, p. 22).

O totemismo se configura, pois, como um sistema subdividido em grupos menores chamados de clãs, e cada um desses clãs denominados segundo o seu totem. Este, “via de regra, é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã.” (FREUD, 1913, p. 22). O totem é, então, um antepassado de cada clã e tem a função de guardião e, mesmo oferecendo perigo, pois pode ser um animal também perigoso, protege e poupa seus filhos. E os integrantes do clã têm a obrigação sagrada de não matá-lo, comer sua carne ou tirar proveito de outras maneiras (FREUD, 1913, p. 22). Todavia,

O caráter totêmico é inerente, não apenas a algum animal ou entidade individual, mas a todos os indivíduos de uma determinada classe. [...]. O totem pode ser herdado tanto pela linha feminina quando pela masculina. É possível que originalmente o primeiro método de descendência predominasse em toda a parte e só subsequentemente fosse substituído pelo último. (FREUD, 1913, p. 22).

Este aspecto, do primeiro método de descendência ser pela linhagem feminina, referencia, novamente, o poder da função materna. Porém essa veneração é substituída e há o aspecto de que o animal, no totemismo, e as relações que se estabelecem nessas tribos primitivas, superam e sobrepõem-se aos laços de sangue ou familiares e na forma como os compreendemos hoje (KÜNG, 1996). Para o autor, o animal venerado do totem é símbolo do pai, do primeiro progenitor. Também em Goldemberg, se lê que “Freud afirma que o animal morto, lamentado e comido não pode ser outro que o pai.” (GOLDEMBERG, 1994, p. 26). Tais conclusões de Freud viriam, também, de seus próprios dados clínicos, por exemplo, fobias infantis em pacientes adultos cujo animal temido seria o pai (GOLDEMBERG, 1994, p. 27).

5 A função materna, já nos povos primitivos, é determinante das leis. Freud recupera a função paterna – o lugar

do pai na constituição psíquica do sujeito, especialmente a partir da conflitiva edípica, bem como a transfere em seus conceitos e crítica à religião. As determinações das funções materna e paterna no desenvolvimento do aparelho psíquico são pontos de discussões importantes, mas as determinações da função materna são ainda e tradicionalmente fundamentais na psicologia humana, todavia a figura e papel do pai tem grande peso para o entendimento da moral em Freud.

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No sistema de tais tribos primitivas Freud identifica a severa obrigatoriedade e os primeiros registros de proibição do incesto. Ou seja, o desejo incestuoso que é interditado especialmente pela função paterna, o totem, vem a ser a base de todas as obrigações sociais, não se vinculando a nenhum lugar ou clã específico, pois seus membros se distribuem e convivem, a partir de tais obrigações, com membros de outros clãs totêmicos. Em torno de tais aspectos que Freud referirá e exogamia, “esta proibição é notável por sua severa obrigatoriedade.” (FREUD, 1913, p. 23).

Freud refere ser difícil compreender como a exogamia tornou-se parte do sistema totêmico. E, em nota, ele sinaliza que alguns conceitos do próprio sistema totêmico são assunto que gera discussões e no qual os próprios fatos seriam “difíceis de serem expressos em termos gerais. [...]. Quase não existe uma afirmação que não comporte exceções ou contradições.” (FREUD, 1913, p. 23). Todavia, o foco dado por Freud à exogamia, como também aos significados das proibições no sistema totêmico, se configura como os principais interesses de investigação do sistema de vida desses povos primitivos e enquanto sistemas. Freud interessa-se em analisá-los na medida em que se caracterizam como uma gênese da proibição do incesto. Chama atenção para a maneira enérgica e a severidade com que a violação de tais proibições é conduzida, uma vez que tais povos estariam “longe de serem morais segundo nossos padrões” (FREUD, 1913, p. 24). Ou seja, a força da lei do incesto e o tratamento severo que suas transgressões recebem são aspectos presentes nessa lei universal e que perpassam a história. Assim, a exogamia ligada ao sistema totêmico já diz da lei do incesto e não somente das relações de consanguinidade, mas das relações de parentesco, como lembra Lobatto (1999), em sua leitura da proibição do incesto em Lévi-Strauss.

Para a autora, uma das crenças muito difundidas acerca da proibição do incesto está relacionada às crenças de sua proibição com vistas a proteger a espécie humana de consequências genéticas trágicas da união entre parentes próximos, ainda que a fragilidade desse tipo de explicação não “leva em conta um fator inegável: o de que é sobre as relações de parentesco, e não sobre as relações de consanguinidade, que a proibição do incesto se constitui.” (LOBATO, 1999, p. 14). Segundo a autora “a proibição do incesto institui não só o casamento, mas, também, e simultaneamente, o parentesco.” (LOBATO, 1999, p. 18). Contudo, “um sistema de parentesco não consiste nos elos objetivos de filiação ou consanguinidade dados entre indivíduos; só existe na consciência dos homens, é um sistema

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arbitrário de representações” (LÉVI-STRAUSS, apud LOBATO, 1999, p. 19). Tais aspectos, Freud identifica na exogamia ligada ao sistema totêmico, sendo que para ele esse sistema:

Realiza mais (e, assim, visa a mais) do que a prevenção do incesto com a própria mãe e irmãs. Torna impossível ao homem as relações sexuais com todas as mulheres de seu próprio clã (ou seja, com um certo numero de mulheres que não são suas parentas consanguíneas), tratando-as como se fossem parentes pelo sangue [...]. Todos os que descendem do mesmo totem são parentes consanguíneos, formam uma família única e, dentro dela, mesmo o mais distante grau de parentesco é encarado como impedimento absoluto para as relações sexuais. (FREUD, 1913, p. 25).

Das outras formas de grau de parentesco presentes entre essas tribos, Freud descreve a exogamia, em seus diferentes tipos e configurações, e não somente a totêmica, como seu principal foco de investigação. Isto é, a proibição do incesto enquanto um aspecto central e fundante da constituição psíquica dos sujeitos, bem como sua relação com os tabus.

Referente aos tabus, Freud não os configura tal como as proibições religiosas e morais, porque essas se baseiam em ordem divina ou em sistemas que declaram que certas abstinências devem ser mantidas e os motivos para tal. E as proibições dos tabus, por sua vez, são de origem desconhecida e, embora “ininteligíveis para nós, para aqueles que por elas são dominados são aceitos como coisa natural.” (FREUD, 1913, p. 37). Freud caracteriza os tabus como algo de difícil tradução e divergindo, em dois sentidos:

Para nós significa, por um lado, ‘sagrado’, ‘consagrado’, e, por outro, ‘misterioso’, ‘perigoso’, ‘proibido’, ‘impuro’. O inverso de tabu em polinésio é ‘noa’, que significa ‘comum’ ou ‘geralmente acessível’. Assim, ‘tabu’ traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. Nossa acepção de ‘temor sagrado’ muitas vezes pode coincidir em significado com o ‘tabu’ [...]. Wundt (1906, 38) descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem. É suposição geral que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a um período anterior à existência de qualquer espécie de religião. (FREUD, 1913, p.37).

Inúmeras são as possibilidades de observação e pesquisa que podem ser feitas em torno dos tabus, mas muitas inacessíveis devido às vinculações com o totemismo, segundo Freud, e outras ainda inúteis quanto as finalidade da psicanálise, por exemplo. O enfoque, pois, está na relação dos tabus com a neurose obsessiva e sua relação com a religião e a moral. Mas há no texto freudiano a seguinte questão: por que devemos nos preocupar com o enigma do tabu?

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Penso que não somente vale a pena tentar solucionar qualquer problema psicológico por ele mesmo, mas por outras razões também. Uma delas é começarmos a ver que os tabus dos selvagens polinésios, afinal de contas, não se acham tão longe de nós como estivemos inclinados a pensar, a princípio; outra é que as proibições morais e as convenções pelas quais nos regemos podem ter uma relação fundamental com esses tabus primitivos e, finalmente, porque uma explicação do tabu pode lançar luz sobre origem obscura de nosso “imperativo categórico”. (FREUD, 1913, pp. 40-41).

A esse respeito para Goldemberg (1994), Freud analisa o totemismo, e através da etnologia que utiliza como referência, como uma “proto-religião” da humanidade (GOLDEMBERG, 1994, p. 25). E, ao tratar da questão do tabu, está referindo a moral.

O tabu não difere em sua natureza psicológica do imperativo categórico kantiano, uma vez que opera de forma compulsiva e rejeita motivos conscientes. Seu operador teórico será o complexo de Édipo que vai instituir a moral e dar origem, eventualmente, ao sentimento religioso [...]. Da religião – do totem – deriva o tabu, ou seja, a moral. Todavia é da moral já estabelecida por obra do Édipo que deriva, como um sintoma homeomorfo com a neurose obsessiva, a religião (GOLDEMBERG, 1994, p. 26).

Ou seja, da doença obsessiva, Freud faz a relação direta com a doença do tabu, e refere, ainda, que apesar da etiologia clínica e mecanismos psíquicos aprendidos pela via da psicanálise, tal conhecimento não pode eximir-se de aplicação ao “fenômeno sociológico paralelo” (FREUD, 1913, p. 44). E das similaridades entre ambas, explica:

O ponto de concordância mais evidente e marcante entre as proibições obsessivas dos neuróticos e os tabus é que essas proibições são igualmente destituídas de motivos, sendo do mesmo modo misteriosas em suas origens. Tendo surgido em certo momento não especificado, são forçosamente mantidas por um medo irresistível. Não se faz necessária nenhuma ameaça externa de punição, pois há uma certeza interna, uma convicção moral, de que qualquer violação conduzirá à desgraça insuportável. [...]. (FREUD, 1913, pp. 44-46).

Vê-se, pois, sempre presente, a ideia de sacrifício, culpa e a referência a certa convicção moral interna do sujeito para com seu compromisso da não violação das leis incestuosas. Os determinantes psicológicos do tabu, conhecidos pela via da neurose obsessiva, Freud reforça serem derivados de “impulsos ambivalentes, quer correspondendo simultaneamente tanto a um desejo como a um contra desejo, quer atuando de forma predominante em nome de uma das tendências opostas.” (FREUD, 1913, p. 52). A correspondência simultânea com relação a um desejo ou a um contra desejo e frente a forças opostas são as marcas da ambivalência do complexo de Édipo. Freud quer construir o Édipo como uma forma a priori em cada ser humano, sem lhe dar nenhum conteúdo concreto, mas

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como conjunto das relações, e não enquanto ideia inata, para poder concluir que a “fonte do tabu, e assim também da consciência moral, é a ambivalência” (FARIA GABBI Jr. Apud GOLDEMBERG, 1994, p. 26).

A atitude ambivalente é uma importante característica psicológica na relação entre tabu e neurose obsessiva. A proibição é consciente e o desejo inconsciente, lembrando que o sujeito nada sabe a respeito de tal desejo inconsciente. “Se não fosse o fator psicológico, uma ambivalência como esta não poderia durar tanto tempo e nem conduzir a tais consequências” (FREUD, 1913, p. 47), como, por exemplo, as fixações psíquicas, conflitos entre as proibições e os instintos, que seriam uma dessas consequências. Assim, a ambivalência é um atributo importante nessa compreensão, “um atributo perigoso que permanece sempre, a exercitar a ambivalência dos homens e de tentá-los a transgredir a proibição.” (FREUD, 1913, p. 49). Brunner, no entanto, apresenta uma interessante crítica acerca da ambivalência, tanto nas propostas freudianas, quanto nas manifestações acerca delas. Ele sinaliza que Freud, em sua construção da dinâmica edipiana, coloca-a do “terreno privado da família e do desenvolvimento infantil individual (ontogênese) para os aspectos públicos do desenvolvimento da humanidade como um todo (filogênese).” (BRUNNER, 2000, pp. 83-84).

De fato, a perspectiva edipiana em torno do pai da horda primeva é transposta também para os demais textos em que Freud trata, mais diretamente, do tema da religião e de análises do processo civilizatório e da cultura, que são os textos analisados aqui. Mas, no que se refere a ambivalência, o modelo do complexo de Édipo de Freud “une a complexidade ao reducionismo e, com isso, desperta justamente o afeto que procura explicar – a ambivalência”. (BRUNNER, 2000, p. 86). Para o autor, por um lado, Freud busca um discernimento crítico das relações sociais e, por outro, seu constructo teórico constitui-se reducionista (BRUNNER, 2000, p. 86). Nas relações sociais, ele procura revelar, “a dialética subjacente a todas as suas manifestações e indo buscar a origem dela na dualidade complexa do antagonismo e da complementaridade entre corpo e sociedade, sexualidade e civilização, amor e ódio, autoridade e autonomia, filhos e pais” (BRUNNER, 2000, p. 86). Em seu paradigma teórico, ele “faz do desenvolvimento masculino a norma, é intensamente falocêntrico e autoritário e resvala para uma universalização mítica. Daí o fato de esta discussão [...] ter sido, ao mesmo tempo, crítica e simpática – ou seja, ambivalente.” (BRUNNER, 2000, p. 86).

Desta crítica de Brunner destaca-se o papel do masculino, ou seja, novamente do pai, que se caracteriza como uma das principais referências na obra de Freud acerca das restrições

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morais mais fundamentais, e, se origina, no totemismo. No texto Totem e Tabu a importância do pai já é lida como sendo ele a referência na refeição totêmica, o animal totêmico ou o ancestral que é morto e referenciado por seu clã é um substituto paterno. O texto, em sua construção filogenética, é uma “teoria da gênese da civilização, e é ao mesmo tempo, uma exposição fundamental sobre a agressividade humana.” (GRUBRICH-SIMITIS, 2000, p. 31). Para a autora, tais hipóteses em torno da família pré-histórica e no assassinato do pai primevo se constituem “como origem do sentimento de culpa e das instituições culturais” (GRUBRICH-SIMITIS, 2000, p. 31).

Di Matteo (2011) refere que o sentimento de culpa, presente na moral, mas conectado com a dupla origem – ontogenética e filogenética – é um elemento novo considerado por Freud, na abordagem do sentimento de culpa. Nesse “modelo filogenético do assassinato do pai primevo” e porque de uma “agressividade efetivamente consumada”, tem-se a culpa primária e o papel do amor ou do temor da perda do amor, no desamparo infantil, como determinantes no sentimento de culpa (DI MATTEO, 2011, p. 279). Com a passagem do texto freudiano, o autor justifica que “fica evidenciado o importante papel desempenhado pelo amor na origem da consciência moral e a fatal inevitabilidade do sentimento de culpa” (FREUD, 1930, apud DI MATTEO, 2011, p. 279), bem como, o sentimento de culpa igualmente presente nas forças ambivalentes na luta entre Eros e Tanatos6. “Expressa-se inicialmente no complexo edipiano da família nuclear, seguida da família ampliada em comunidades e destas até a humanidade como um todo. A esse aumento do poder de Eros se encontra inextricavelmente ligado um aumento de sentimento de culpa.” (DI MATTEO, 2011, p. 279). Dessa forma enfocam-se, na moral freudiana, os aspectos primitivos da morte do pai, da horda primitiva, e o desejo e a culpa que daí se originam, como aspectos sempre presentes na compreensão do desenvolvimento da moral nos sujeitos em Freud. Ou seja, as leis básicas do totemismo presentes na conflitiva edípica e em qualquer tempo, na ambivalência dos filhos frente ao desejo incestuoso primitivo e presente nas pulsões do Id e a culpa e a ambivalência presentes na moral a partir da lei primitiva e primordial do incesto. E o fundamento máximo da religião a partir do desamparo infantil do homem, diante de sua intolerância de ser privado das figuras parentais, recriando-as a partir do Deus Pai e a Mãe Natureza, de acordo com a leitura de Grubrich-Simitis (2000, p. 30).

6 Pulsão de morte presente no ser humano e defendida por Freud como uma natural inclinação humana para a

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Totem e Tabu trata, pois, da proibição do incesto e dos tabus a partir do primitivismo e dos conteúdos míticos. E a religião, que ali se fundamenta, a partir da culpa do assassinato do pai e no sentimento do desamparo infantil primordial, porque o ódio e a disputa com o pai não anulam o amor e a admiração com tal poder. Corrobora-se, assim, da crítica de Brunner (2000) que, não obstante possíveis falhas, lacunas e os preconceitos, tratam-se, ainda hoje, de contribuições e de um modelo que fornece muito material para análises e reflexões.

1.3 Moisés e o Monoteísmo (1939)

Para alguns autores o texto de 1939, Moisés e o Monoteísmo, é uma das obras mais ousadas de Freud. Conforme Gaviria (2014), além disso, é a obra de maior controvérsia entre os especialistas. Trata-se de um texto sobre um assunto de interesse vital ao próprio Freud. Em nota do editor, o texto possui irregularidades e excentricidades não conhecidas em outros textos de Freud: o longo tempo para a composição do livro, constantes revisões, dificuldades na fase final devido ao período marcado pela ocupação nazista de Viena e a migração de Freud para a Inglaterra, entre outros.

Para Kramer (2008), Freud transforma suas preocupações com a religião em inspiração a partir de seu fascínio pelo herói. Combinando seu receio em relação à religião, volta sua atenção para o líder Moisés, desafia a fé convencional e defende a religião como sendo uma neurose da humanidade, referindo seu enorme poder numa analogia com a compulsão neurótica em pacientes individuais. Da relação da figura do pai com o herói e o mito, Gaviria pontua que, “o mito do nascimento do herói fica na imaginação do povo como um comportamento comum ao modelo de herói.” (2014, p. 145).

Trata-se, pois, de um texto bastante amplo, de considerações sobre as origens do nome Moisés7; a lenda de Moisés e suas intenções secretas e ou reveladas sobre a religião egípcia e judaica; motivos para o êxodo; a introdução da circuncisão; premissas históricas e políticas desses povos à época; as considerações de Freud para com as suspeitas e hostilidades da parte da Igreja Católica; relações com o Cristianismo, bem como para com o sucesso ou insucesso das teses que busca provar, através de sua interpretação analítica em torno do homem Moisés

7 Freud apresenta questionamentos em torno da origem do nome de Moisés e sua suposta nacionalidade, como

um elemento fundamental para a compreensão posterior dos demais aspectos que envolveriam o mito, a vida e os mandamentos de Moisés, não obstante as inúmeras críticas acerca das incursões de Freud neste terreno.

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e do monoteísmo judaico, entre outros. Porém, de todos esses aspectos referidos por Freud, seu interesse na figura paterna e no mito do herói, é também o aspecto que se enfoca nesta reflexão.

Do desenvolvimento da neurose (na renúncia aos instintos), e na analogia que faz da religião com a neurose para justificar, analiticamente, a história da religião judaica, Freud retoma conceitos como latência, compulsões e subjugação do pensamento lógico. Sendo o retorno do reprimido uma das características essenciais da neurose, e a defesa freudiana da religião como uma neurose obsessiva, cabe saber o que Freud entenderá como sendo neurose ou o retorno do reprimido na religião monoteísta, ou qual a relação que faz em Moisés e Monoteísmo a esse respeito.

Tem-se, a esse respeito, que “a analogia é encontrada na psicopatologia, na gênese das neuroses humanas, num campo pertencente à psicologia dos indivíduos, ao passo que os fenômenos religiosos, naturalmente, têm de ser considerados como parte da psicologia grupal.” (FREUD, 1939, p. 87). Não obstante, uma das principais dificuldades apontadas por Freud em suas tentativas de analogia dos processos neuróticos e os acontecimentos religiosos esteja na “[...] transferência da psicologia individual para a de grupo [...].” (FREUD, 1939, p. 107). Dessas dificuldades, ele reconhece algumas limitações em sua análise ao referir que “lidamos aqui com apenas um exemplo isolado da copiosa fenomenologia das religiões, e não lançamos luz sobre quaisquer outras” (FREUD, 1939, p. 107).

Outra importante dificuldade envolve a psicologia de grupo. Freud a sinaliza por trazer um problema novo e fundamental, de se saber “sob que forma a tradição operante na vida do povo se apresenta, questão que não ocorre com os indivíduos, visto que é solucionada pela existência, no inconsciente, de traços mnêmicos do passado.” (FREUD, 1939, p. 108). E referindo-se aos processos de latência e transpondo-os na tradição de Moisés e da religião monoteísta, Freud se reporta sempre ao totemismo e à existência de um pai primevo e seu destino. Uma existência também esquecida, da mesma forma, segundo Freud, que não se poderia supor a existência de qualquer tradição oral a esse respeito, como teria sido no caso de Moisés. E Freud questiona, “em que sentido, então, uma tradição se torna importante?” (FREUD, 1939, p. 108), e dirá que também no grupo uma “impressão do passado é retida em traços mnêmicos inconscientes.” (FREUD, 1939, p. 108).

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Do que vem a ser o reprimido e de que forma seus traços mnêmicos se mostram, têm-se as distinções topográficas8 que nos processos psíquicos envolvem “as impressões de traumas primitivos, heranças arcaicas [...], traços de memória da experiência de gerações anteriores”, entre outros (FREUD, 1939, p. 112). As heranças arcaicas dos seres humanos não seriam apenas disposições, mas traços de memória de gerações anteriores, ampliadas em sua extensão e importância. “[...] se presumirmos a sobrevivência desses traços de memória na herança arcaica, teremos cruzado o abismo existente entre a psicologia individual e de grupo: podemos lidar com povos tal como fazemos com um indivíduo neurótico.” (FREUD, 1939, p. 114). Tal herança está, também, na tradição religiosa.

Uma tradição que se baseasse unicamente na comunicação não poderia conduzir ao caráter compulsivo que se liga aos fenômenos religiosos. [...]. Ela deve ter experimentado a sorte de ser reprimida, o estado de demorar-se no inconsciente, antes de ser capaz de apresentar efeitos tão poderosos quando de seu retorno, de colocar as massas sob seu fascínio, como vimos com espanto, e, até aqui, sem compreensão, no caso da tradição religiosa. (FREUD, 1930, pp. 115-116).

Na religião monoteísta o povo judeu teria tido em Moisés a figura do pai no “grande homem”, porque, inicialmente, um grande homem não influencia um povo somente por ser muito eficiente em alguma coisa especificamente. Para Freud, um grande homem influencia um povo por sua personalidade, ideias que representa acentuando antigos desejos ou apontando novos objetivos às massas, sendo que nas massas humanas existe uma poderosa necessidade de uma autoridade que as conduza; a quem admirar, curvar-se e até mesmo por quem sermos maltratados (FREUD, 1939, pp. 123-124). Da origem dessa necessidade, dirá:

Trata-se de um anseio pelo pai que é sentido por todos, da infância em diante. [...]. A decisão do pensamento, a força de vontade, a energia da ação fazem parte do retrato de um pai – mas, acima de tudo, a autonomia e independência do grande homem,

sua indiferença divina que pode transformar-se em crueldade9. Tem-se de admirá-lo,

pode-se confiar nele, mas não se pode deixar de temê-lo também. Deveríamos ter sido levados a entender isso pela própria expressão: quem, senão o pai pode ter sido o ‘o homem grande’ na infância? (FREUD, 1939, pp. 123-124).

8 Na metapsicologia freudiana há três formas de se compreender o aparelho psíquico. Através dos pontos de vista

topográfico, econômico e dinâmico. O ponto de vista tópico ou topográfico vem a ser uma das formas ou um modelo metapsicológico, e “supõe o aparelho psíquico como uma organização dividida em sistemas ou instâncias” (KUSNETZOFF, 1982, p. 120). O aparelho psíquico do primeiro tópico compreende três sistemas: o Inconsciente; o Pré-Consciente e o Consciente. O segundo tópico que na metapsicologia não exclui o primeiro, refere-se ao Id, ao Ego e ao Superego.

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Na origem dessa necessidade,a figura paterna caracteriza a marca da ambivalência na moral freudiana, isto é, o pai como referência central e o desejo de seu amor e proteção de um lado e, de outro, a sua crueldade, pelo poder que detém e a interdição do desejo que ele executa. E juntamente com essa significação da figura paterna na psicologia individual (e também na psicologia dos grupos), está a instância superegóica, instituinte dos aspectos da ordem moral e social, o supereu, que deve inscrever no ego os sentidos críticos e proibitivos, advindo daí a expressão de que o pai torna-se também cruel.

O superego é sucessor e o representante dos pais (e educadores) do indivíduo, que lhe supervisionaram as ações no primeiro período de sua vida; ele continua as funções deles quase sem mudança. Mantém o ego num permanente estado de dependência e exerce pressão constante sobre ele. Tal como na infância, o ego fica apreensivo em pôr em risco o amor de seu senhor supremo; sente sua aprovação como libertação e satisfação, e suas censuras como tormentos de consciência. Quando o ego traz ao superego o sacrifício de uma renuncia instintual, ele espera ser recompensado recebendo mais amor desse último. A consciência de merecer esse amor é sentida por ele como orgulho. (FREUD, 1939, p. 132).

Portanto, o grande homem que opera em sua semelhança à figura do pai tem na psicologia de grupo o papel do superego a ele atribuído, o que, também, segundo Freud, “se aplicaria ao homem Moisés em relação ao povo judeu.” (FREUD, 1939, p. 132). Então, para Freud, a renúncia instintual e a ética nela fundada estão muito proximamente vinculadas com a religião, e refere:

Uma parte de seus preceitos se justifica racionalmente pela necessidade de delimitar os direitos da sociedade contra o indivíduo, os direitos do indivíduo contra a sociedade, e os dos indivíduos uns contra os outros. Mas o que nos parece tão grandioso a respeito da ética, tão misterioso e, de modo místico, tão evidente, deve essas características à sua vinculação com a religião, à sua origem na vontade do pai. (FREUD, 1939, p. 136).

No decurso do desenvolvimento dos indivíduos está a autoridade dos pais desde a infância, mais tarde transposta para a sociedade e no superego que assume esse lugar dos pais, ou ainda outras figuras de autoridade, sejam elas religiosas ou não religiosas. Mas trata-se sempre, para Freud, da renúncia instintual, de indivíduos ou de grupos sob a pressão de autoridades que vão substituindo e prolongando a figura paterna (FREUD, 1939, pp. 133-134).

Dos questionamentos de Freud está saber o que a religião de Moisés teria proporcionado ao povo judeu, além de autoestima, consciência e orgulho de ter sido o povo

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escolhido. Para Freud, a religião do monoteísmo, “trouxe aos judeus uma concepção mais grandiosa de Deus [...], ou a concepção de um Deus mais grandioso” (1939, p. 126). E essa ideia Freud a relaciona com um avanço em intelectualidade da parte do povo judeu, sentimentos de segurança e proteção que se relacionam com essa concepção de um Deus grandioso, através do orgulho da grandeza de Deus e de ser escolhido por ele (1939, pp. 126-127). Há nessa grandeza de Deus o aspecto da intelectualidade e seu triunfo, ou seja, o que Freud refere como um “fenômeno mental que descrevemos como sendo uma crença na onipotência de pensamentos.” (FREUD, 1939, p. 127). Com a sucessão da ordem social matriarcal pela patriarcal, houve a supremacia da intelectualidade, atribuída à matriz patriarcal sobre a matriz matriarcal, sempre relacionada com a predominância das vias dos sentidos e dos afetos. E, tendo havido a predominância da matriz patriarcal as “alterações da ideia de Deus, provenientes da religião e proibições mosaicas, teriam elevado Deus, ao povo judeu, a um grau superior de intelectualidade”. (FREUD, 1939, p. 129).

Moisés, na leitura freudiana, não teria instituído uma novidade ao levar ao povo judeu a ideia de um Deus único, mas antes teria sido ou significado a revivescência de experiências das eras primevas da família humana. E a circuncisão, um substituto simbólico da castração que o pai primevo infligira a seus filhos na plenitude de seu poder absoluto, desvanecida na memória dos homens e perpetuada em traços e efeitos permanentes, mas, que, segundo Freud, podem ser comparados à tradição. A religião, neste texto, retoma o totemismo, renova o crime do assassinato do pai da horda primitiva fortalecendo e sublimando a figura do pai e reconciliando-se com ele, porém o aspecto da culpa sempre preservado. E Gaviria (2014), salienta que desde Totem e Tabu a Moisés e Monoteísmo tem-se a repetição do retorno da instância que impulsiona o homem a superar o desejo da criança como sendo a mesma que o impulsiona de volta. “A religião é para Freud, na repetição monótona de suas próprias origens. É um eterno chutar o chão de sua própria historia arcaica.” (GAVIRIA, 2014, pp.154-155).

A referência ao pai é, portanto, elemento central para pensar a moral freudiana, bem como a figura do grande homem e do mito do herói e as demais figuras de autoridade, que na vida do sujeito adquirem um papel superegóico ou reforçam nele as forças do supereu. E quanto à religião, sua característica ética10, em Freud, está na origem da vontade do pai; o resgate do pai primevo na grandiosidade, intelectualidade e unicidade de Deus, não obstante o

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sentimento de ambivalência – a necessidade de proteção e de amor e o sentimento também do povo judeu de ser merecedor desse amor, ao ser escolhido. Enquanto ama e confia, ele também não pode deixar de temer a indiferença divina, tal qual a indiferença do pai, o grande homem da infância a quem se ama e odeia por ser detentor de um poder que o sujeito almeja para si e que pode se transformar em crueldade, hostilidade. Contudo, a religião é aqui concebida, principalmente, a partir do reconhecimento do amor, da vontade, da grandiosidade e intelectualidade do Deus Pai, trazida por Moisés em seu papel também de pai, de grande homem, no mito do herói, na autoridade que conduz.

1.4 O futuro de uma ilusão (1927)

Neste texto a religião é lida por Freud, especialmente, como um fenômeno cultural. Segundo David (2003), propondo uma analogia entre indivíduo e a cultura. Enquanto um fenômeno histórico e social contemporâneo, conforme Küng (2006), e, para Kramer, iniciando um “ataque mais formal” à religião (2008, p. 207). Freud refere-se, pois, aos sujeitos inseridos numa civilização que ele qualifica como sendo tudo aquilo que se elevou e difere da vida dos animais. A civilização representa e compõe o conhecimento e a capacidade que o homem adquiriu para controlar a natureza e dela extrair riqueza para a satisfação das necessidades humanas, bem como os regulamentos necessários ao ajustamento das relações dos homens uns com os outros para a distribuição dessas riquezas.

Muitas dificuldades do homem frente aos processos civilizatórios são criações humanas. A ciência e a tecnologia, por exemplo, são dificuldades provenientes dessas criações humanas e utilizadas pelo homem para a sua própria aniquilação. Freud salienta, no entanto, que não são dificuldades inerentes ao processo civilizatório em si, mas, antes, determinantes das próprias imperfeições culturais que se desenvolveram (FREUD, 1927, p. 16). E nessas imperfeições culturais também se encontram as tendências destrutivas do homem, antissociais e anticulturais, a repressão e a coerção frente aos instintos presentes no homem e que influenciam seu comportamento na vida em sociedade.

Em O futuro de uma ilusão, Freud desenvolve uma significação psicológica para as ideias religiosas, a partir da hostilidade do homem para com a civilização, pela pressão que a civilização exerce e as renúncias instintivas que exige. Da necessidade de defesa contra a

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força esmagadoramente superior da natureza surge o impulso a retificar as deficiências da civilização, sentidas de maneira dolorosa e a partir de sofrimento ou sacrifícios. (FREUD, 1927, p. 30). Todavia, dos campos que o homem atinge em sua atividade humana, e não obstante seus avanços e tentativas de controle sobre a natureza, não é possível dizer que o mesmo tenha ocorrido no âmbito das relações humanas. As imperfeições da civilização, entre elas os meios de posse de poder e coerção, são determinados pelas imperfeições da cultura, segundo Freud. As tendências destrutivas, antissociais e anticulturais presentes em todos os homens, e, a partir de sua natureza instintiva, determinam muito das ações humanas.

A natureza instintiva é suficientemente forte para determinar o comportamento na vida em sociedade e isso se caracteriza como um fator psicológico e, para Freud, de importância decisiva no julgamento da civilização humana. Ou seja, uma questão que passa a ter um enfoque no entendimento psicológico, de se saber até que ponto “é possível diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais impostos aos homens, reconciliá-los com aqueles que realmente devem permanecer e fornecer-lhes uma compensação.” (FREUD, 1927, p. 17).

Das coerções impostas ao homem pela civilização poderiam ser sublinhadas, a frustração para os instintos que não podem ser satisfeitos; a proibição como o regulamento pelo qual essa frustração é estabelecida e a privação como a condição produzida pela proibição são aspectos centrais. Porquanto dos desejos instintuais que ressurgem em cada criança, essas primeiras renúncias já envolveriam um fator psicológico, e as privações, portanto, afetam a todos e são as mais antigas, diz Freud. As proibições, fruto da civilização que foi separando o homem de sua condição animal primordial, e as privações daí advindas, continuam operantes e se constituem no âmago da hostilidade para com a civilização. E, sendo que o homem, no processo civilizatório, passa também por progressos mentais, na leitura freudiana um agente especial nesse progresso é o supereu (superego) do homem, instância psíquica através da qual a criança se torna um ser moral e social (FREUD, 1927, pp. 20-21).

Esses elementos de frustração, proibição e privação são aqueles sempre presentes ao entendimento da moral em Freud, a partir da interdição dos instintos primitivos, do desejo primordial e incestuoso, mas também aqueles com os quais o homem, em grupo, se vê impelido pela civilização e pela cultura na satisfação do desejo. Nesses impedimentos da satisfação dos desejos, no processo civilizatório, segundo Freud, está o fato de que os homens não são essencialmente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma sobre

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suas paixões (FREUD, 1927, p. 18). Ou seja, no tocante ao trabalho há as classes favorecidas e as menos privilegiadas, que, permanecendo dentro da cultura geram revoltas, e as pessoas oprimidas desenvolvem a hostilidade. E nessa crítica mais aberta à religião, está também o questionamento freudiano em torno de outros predicados culturais, pelos quais a vida humana é também governada e que, igualmente, colocam o homem numa condição de ilusão: as suposições que determinam as regulamentações políticas, as relações e as relações entre os sexos.

Frente aos aspectos da civilização hostis ao homem, naquilo em que se vê impedido em sua natureza instintual, na consciência de sua finitude e naquilo em que se vê cerceado pela cultura, que a religião se propõe garantir conforto na desventura; estabelecer preceitos, proibições e restrições, visando abolir o mal estar na cultura, segundo Freud. E em suas tentativas de tornar tolerável seu desamparo, o homem busca por sentidos e propósitos mais elevados, por uma inteligência superior ou, então, por um “pai mais poderoso” (FREUD, 1927, p. 39).

Freud dirá que as ideias religiosas surgem da mesma necessidade de onde se originam todas as outras realizações da civilização, que vem a ser a necessária defesa frente às “forças esmagadoras da natureza”, e a comprovação das deficiências da civilização que são fortemente sentidas (FREUD, 1927, p. 30). Contudo, há, ainda, um terceiro ponto em torno das ideias religiosas e que está no complexo paterno, no sentimento de desamparo e na necessidade de proteção do homem. No desamparo da criança que perdura no adulto e será compensado e, ou, recompensado através das ilusões nas ideias religiosas.

Portanto, há um aspecto pertinente à análise, a referência de Freud de que as ideias religiosas enquanto ensinamento11 são ilusões, e se originam dos mais remotos e iminentes desejos da humanidade, ou seja, da forte impressão de desamparo na infância e a necessidade de proteção através da figura paterna. O fato de tal impressão perdurar na vida adulta leva o homem à busca de prender-se à existência e proteção de um pai mais poderoso, e as benevolências de uma providência divina. Freud sustenta que os conflitos advindos do complexo paterno, por sua vez, originados na conflitiva edípica12, nunca são totalmente superados, perdurando na vida adulta.

11 Ênfase que dá ao processo civilizatório que a partir de uma cultura de castração transmite ao homem a

necessidade da religião.

12 A conflitiva edípica compreende o “Complexo de Édipo, nome atribuído por Freud em analogia ao antigo

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