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A tutela jurídica contra o superendividamento como aplicação do princípio da dignidade humana nas relações de crédito.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM DIREITO PRIVADO

VICENTE DA CUNHA PASSOS JÚNIOR

A TUTELA JURÍDICA CONTRA O SUPERENDIVIDAMENTO

COMO APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE

HUMANA NAS RELAÇÕES DE CRÉDITO

Salvador

2010

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A TUTELA JURÍDICA CONTRA O SUPERENDIVIDAMENTO COMO

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NAS

RELAÇÕES DE CRÉDITO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho.

Salvador

2010

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VICENTE DA CUNHA PASSOS JÚNIOR

A TUTELA JURÍDICA CONTRA O SUPERENDIVIDAMENTO

COMO APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE

HUMANA NAS RELAÇÕES DE CRÉDITO

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

_______________________________________ Nome: Dr. Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho Instituição: Universidade Federal da Bahia

_______________________________________

Nome: Prof. Livre docente Washington Luiz da Trindade Instituição: Universidade Federal da Bahia

________________________________________ Nome: Dr. Paulo Luiz Netto Lôbo

Instituição: Universidade Federal de Pernambuco

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A Ana Beatriz, André Henrique e Gustavo, a razão e a alegria de minha vida.

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Tantas foram as pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para a concretização deste projeto que seria impossível nominá-las, mas, não poderia deixar de agradecer a todas aquelas que me ajudaram academicamente ou que me deram suporte emocional para a continuidade do trabalho; incentivando, acreditando e contribuindo, cada uma com sua forma especial, para a realização desta pesquisa científica.

De logo, agradeço a quatro pessoas que fizeram da busca do saber um referencial de vida e que tomo como exemplo a ser seguido: Rodolfo Pamplona Filho, Hugo Amaral Villarpando, Roque Aras e Tancredo André dos Santos (in memoriam). Mais do que conhecimento, deram-me lições para toda minha vida.

Dentre eles, não poderia deixar de dar destaque ao meu orientador, Rodolfo Pamplona Filho, não só pela incomensurável paciência, bem como por ter acreditado o tempo todo neste projeto.

Aos amigos Geovane Peixoto, Jackson Azevedo e Thiago Borges, pelo apoio e pelas sugestões que me ajudaram a realizar este trabalho. Sou eternamente grato a vocês!

Aos meus colegas professores da Faculdade Dois de Julho e aos meus alunos pelo apoio e compreensão nos momentos mais delicados da elaboração desta pesquisa.

Aos amigos do grupo Caia (Cláudia Albagli, Bernardo Lima, Cláudio Azevedo, Davi Castro, Edval Borges, Fernanda Ravazanno, Matheus Barreto, Rafael Oliveira, Tagore Trajano) que, ao longo do tempo, mais do que amigos, converteram-se em irmãos!

(6)

“Todas as riquezas do mundo não valem um bom amigo” Voltaire

(7)

O tema da presente pesquisa é a tutela jurídica contra o superendividamento como aplicação do princípio da dignidade humana nas relações de crédito. O objetivo dessa pesquisa é demonstrar se há uma tutela jurídica no direito brasileiro para proteger as situações do superendividamento com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, a pesquisa foi dividida em quatro partes. Na primeira discorreu-se sobre as mudanças ocorridas no Direito Civil devido ao processo de constitucionalização e sua influência sobre matérias de cunho privado. Na mesma parte foi demonstrado como o princípio da dignidade humana influencia a legislação ordinária e em que extensão ela pode interferir nos acordos particulares. Na segunda parte foi estudado, especificamente, o crédito, sua regulamentação na legislação, as taxas de juros. No passo seguinte, houve uma discussão sobre as transformações que ocorreram nos elementos da teoria geral dos contratos e os novos princípios decorrentes do princípio da boa-fé. Na terceira parte, a pesquisa centrou-se no superendividamento propriamente dito, seu conceito, seus elementos caracterizadores, sua classificação, regulamentação legal em países estrangeiros e a quais institutos ele está associado no direito brasileiro. Finalmente, no último capítulo, foi mostrado que é assegurada uma tutela jurídica, embora não haja um dispositivo legal específico concernente ao superendividamento, carecendo, portanto, de uma adequada proteção jurídica através de uma legislação específica.

(8)

The theme of this research is the legal protection against consumer overdebtedness as an application of the Principle of human dignity. The objective of this research is to demonstrate if there is a legal protection to the one who is classified as a consumer overdebtednes in Brazilian legal sistem. For this purpose, the research was divided into four parts. In the first one it was discussed the changes in Civil Law owing to the process named constitutionalization and its influence over the private matters. In the same part it was demonstrated how the principle of human dignity influences ordinary legislation and to what extent it can interfere in private adjustments. In the second part, it was studied, especially, the credit, its regulation in legislation, the interest rates. In the following step, there was a discussion about the transformations that occurred in the elements of the general theory of contracts and the new principles created by good faith´s principle. In the third part, the research focused on the consumer overdebtedness itself, its concept, typical elements, classification, legal regulation in foreign countries and to what institutes it is associated in Brazilian Law. Finally, in the last chapter, it was demonstrated that is assured legal protection although there isn´t a specific article concerning about consumer overdebtedness lacking, therefore, its protection of a adequate legal treatment through specific legislation.

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1. INTRODUÇÃO...11

2. VISÃO CONTEMPORÂNEA DAS RELAÇÕES CIVIS NA PERSPECTIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ...15

2.1. O DIREITO CIVIL E SUA DIMENSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO ...15

2.2 O PROCESSO DE PUBLICIZAÇÃO E DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL ...18

2.3. A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS PARA A NOVA VISÃO DO DIREITO CIVIL ...25

2.4. BREVE COMENTÁRIO SOBRE A MODIFICAÇÃO DE INSTITUTOS DE DIREITO CIVIL COMO EFEITO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO...31

2.5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEUS EFEITOS NA CONCEPÇÃO CIVIL CONSTITUCIONAL ...32

2.5.1. A multiplicidade conceitual da dignidade da pessoa humana ...34

2.5.1.1 O conceito jurídico da dignidade da pessoa humana ...35

2.5.1.2 A discussão sobre a supremacia do princípio da dignidade da pessoa humana ...36

2.5.2. A influência do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações privadas ...37

2.5.2.1. Teorias acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas ...38

2.5.2.1.1 Teoria negativista ...39

2.5.2.1.2.Teoria da eficácia mediata ou indireta ...39

2.5.2.1.3 Teoria da eficácia imediata ou direta ...42

2.5.3. O processo de repersonalização do sujeito de direito ...43

2.5.4. O reconhecimento do direito ao patrimônio mínimo como reflexo do princípio da dignidade da pessoa humana ...46

3. AS RELAÇÕES DE CRÉDITO ...49

3.1. O CONCEITO DE CRÉDITO E BREVE ESCORÇO HISTÓRICO ...49

3.1.1. O papel do crédito na sociedade moderna ...50

3.1.1.1. O crédito como parte integrante do orçamento doméstico ...52

3.1.1.2. O crédito como elemento de ascensão social ...55

3.1.1.3. Mecanismos mercadológicos de estímulo ao consumo ...57

3.1.1.4. A contrapartida: o consumo consciente ...59

(10)

3.2.2.1. Os juros no Código Civil de 1916 ...61

3.2.2.2. Os juros no Código Civil de 2002 ...65

3.2.2.3. O anatocismo ...68

3.2.2.4. Os efeitos da revogação do limite constitucional dos juros e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ...70

3.2.2.5. A abusividade do “spread” ...72

3.2.2.6. A discussão sobre a impossibilidade de fixação de juros pelo Conselho Monetário Nacional ...75

3.3. REVISITANDO A TEORIA GERAL DOS CONTRATOS NAS RELAÇÕES DE CRÉDITO ...79

3.3.1. A autonomia da vontade ...80

3.3.2. A força obrigatória ...82

3.3.3. A relatividade dos efeitos ...83

3.3.4. A boa-fé objetiva e os deveres gerais de conduta ...84

3.3.4.1 O dever de informação ...90

3.3.4.2. O dever de cooperação ...91

3.3.5. A função social do contrato ...95

3.3.6. O equilíbrio material ...97 4. O SUPERENDIVIDAMENTO ...101 4.1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ...101 4.2. CONCEITO ...102 4.3. ELEMENTOS CARACTERIZADORES ...103 4.3.1. O sujeito do superendividamento ...103 4.3.2. Os elementos materiais ...107 4.3.2.1. A natureza da dívida ...107 4.3.2.1.1. A dívida de consumo ...108 4.3.2.1.2. Dívidas fiscais ...111

4.3.2.1.3. Dívidas derivadas de atos ilícitos ...113

4.3.2.1.4. Dívidas de obrigação alimentar ...113

4.3.2.2. A impossibilidade de quitação das dívidas presentes e futuras ...114

4.4. A CLASSIFICAÇÃO DO SUPERENDIVIDAMENTO ...115

(11)

4.6.2. Inglaterra ...119

4.6.3. Alemanha ...119

4.6.4. Portugal ...120

4.6.5. Estados Unidos da América ...122

4.7. A REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA NO DIREITO BRASILEIRO ...124

4.8. RELAÇÃO DO SUPERENDIVIDAMENTO COM FIGURAS AFINS ...124

4.8.1 O erro ...126

4.8.2 O dolo ...127

4.8.3 A coação ...129

4.8.4 A lesão ...130

4.8.5 A insolvência civil ...132

5. A TUTELA JURÍDICA CONTRA O SUPERENDIVIDAMENTO COMO APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NAS RELAÇÕES DE CRÉDITO ...134

5.1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS...134

5.2 OS EFEITOS SÓCIO-ECONÔMICOS DO SUPERENDIVIDAMENTO ...135

5.3. O SUPERENDIVIDAMENTO COMO OBJETO DA TUTELA JURÍDICA ...137

5.4 A (IN)EFICÁCIA DOS MEIOS TRADICIONAIS DE TUTELA JURÍDICA ...140

5.5. A POSSIBILIDADE DA EVENTUAL LIMITAÇÃO DE CONCESSÃO DE CRÉDITO COMO PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DO CONTRATANTE...142

5.6. O MANEJO DOS NOVOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E DOS DEVERES GERAIS DE CONDUTA COMO MECANISMOS DE INTERPRETAÇÃO E EXECUÇÃO CONTRATUAIS...148

5.7 À BUSCA DE UMA TUTELA JURÍDICA ESPECÍFICA ...155

6. CONCLUSÕES ...161

(12)

1 - INTRODUÇÃO

Nas últimas duas décadas, a sociedade brasileira presenciou uma acentuada oferta de crédito, fruto de uma demanda reprimida há muito tempo, notadamente para as classes menos favorecidas socialmente, em virtude de não haver uma política governamental e privada que estivesse direcionada para o oferecimento desse bem a tais extratos sociais, razão pela qual o acesso aos serviços bancários era insignificante diante das dificuldades de ingresso neste sistema.

Todavia, percebendo-se o nicho de consumo existente, este perfil foi radicalmente transformado com a proliferação das mais variadas alternativas de aquisição de crédito, com a redução significativa dos entraves, até então existentes, para a aquisição de crédito

O fato é que esta oferta aliada a diversos fatores sócio-culturais têm, muitas vezes, causado situações de prejuízo significativo aos consumidores destes créditos, por não terem como adimplir as obrigações assumidas, gerando uma gama de problemas não só relacionados à inadimplência propriamente dita, mas, também, de cunho social e psicológico.

O efeito imediato da inadimplência costuma ser de natureza econômica, pela usual inclusão do nome do consumidor devedor em sistemas de restrição de crédito, impedindo, via de regra, que este possa ter acesso a este bem para a satisfação de suas necessidades.

O baixo nível de esclarecimento da população brasileira acerca dos seus direitos, das implicações econômico-financeiras decorrentes dos contratos de fornecimento de crédito, notadamente nas camadas sociais mais carentes de conhecimentos técnicos e culturais necessários, propicia o surgimento de um nefasto quadro de endividamento crônico que, na sua feição mais extremada, alcança o patamar do superendividamento.

Em virtude de toda a problemática causada por tal situação e, pela íntima correlação deste instituto com o Direito, uma vez que deriva de relações negociais (contratos), o superendividamento não poderia passar imune à regulamentação jurídica.

Percebe-se, contudo, que o regramento jurídico existente revela-se, até o momento, escasso, porque apenas presente em poucos países europeus e outros na América do Norte, a demonstrar que o estudo sobre tal situação é ainda incipiente, em que pesem as singularidades dos países em que se adota o Common Law.

Em decorrência da preocupação com os efeitos deflagrados pelo superendividamento e, pela patente ausência de regulamentação legislativa e de institutos jurídicos que possam servir, de forma adequada, ao tratamento das questões concernentes a esta situação crônica, no nosso ordenamento jurídico, originou-se o interesse em discutir o

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tema, notadamente pelo desafio gerado pela escassa produção literária sobre o assunto, não obstante a substancial elevação do nível de endividamento da população brasileira por pesquisas efetuadas por entidades ligadas à defesa do consumidor, faculdades e centros de estudos econômicos.

Define Cláudia Lima Marques o superendividamento como “a impossibilidade de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos)”1

Tomando-se como ponto de partida, a conceituação supra formulada, tendo em vista que ela espelha basicamente o conceito do superendividamento adotado também em outros países, a exemplo do que se colhe da doutrina portuguesa e da legislação francesa sobre o tema, buscou-se perquirir a exatidão do conceito formulado e, também, refletir sobre a tutela do indivíduo superendividado por um corte constitucional que privilegiasse sua dignidade, sem a pretensão de ser uma pesquisa exauriente ou definitiva, em virtude da amplidão e incipiência da matéria.

Por força desta motivação, que serviu de referencial para o desenvolvimento do trabalho, decidiu-se analisar a tutela jurídica contra o superendividamento como aplicação do princípio da dignidade humana nas relações de crédito, o que se tornou o tema da presente dissertação.

Imaginou-se o assentar das premissas básicas para o desenvolvimento da dissertação sob o pálio do princípio da dignidade da pessoa humana, pela razão de que a prioridade que foi outorgada a este princípio, através do art. 1°, II da Constituição Federal de 1988, alçando-o à condição de fundamento da República causou radical modificação não só na dogmática civilística que influencia a teoria geral dos contratos, mas, de todos os ramos do direito atual.

A partir do momento em que o princípio da dignidade da pessoa humana assume a singular e nobre função de fundamento da República, todas as demais normas de natureza infraconstitucional lhe devem obediência, porque se projeta como a nova tábua axiológica do ordenamento jurídico pátrio, condicionando a atividade do intérprete e a atuação do legislador ordinário.

1

MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (Coord). Direitos do

consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2006, p.

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Traçado o tema do trabalho e sua premissa balizadora, surgem as questões que devem ser enfrentadas a fim que ele possa contribuir, ainda que de forma singela, para o amadurecimento da discussão sobre o fenômeno do superendividamento e as conseqüências que dele se originam.

Assim, foi necessário, na primeira parte do trabalho, verificar se o princípio da dignidade humana tem efetivamente o condão de influenciar na legislação infraconstitucional, e, mais além do que isso, se é dotada de exigibilidade diante de situações eminentemente privadas, como é o caso dos contratos firmados entre particulares.

Para tal finalidade, foi preciso efetuar uma visão panorâmica sobre o atual quadro das relações civis na perspectiva dos princípios constitucionais, discorrer sobre o direito civil, sua importância no ordenamento jurídico, e notadamente entender o processo de publicização e de constitucionalização do direito civil, assim como as conseqüências dele advindas para as relações submetidas a seu crivo.

Em ato contínuo, foi analisada a importância dos princípios no ordenamento jurídico, notadamente para inferir se os mesmos, na carência de elementos específicos para a tutela do superendividamento, poderão servir de amparo para o tratamento legal do problema.

Em seguida, foi abordado o princípio da dignidade da pessoa humana, vez que é pedra de toque e fundamento de toda a construção da tutela ao indivíduo superendividado, buscando entender sua dimensão e influência na legislação infraconstitucional e, especificamente nas relações privadas, onde estão situados os contratos de fornecimento de crédito deflagradores do problema analisado.

Em virtude da necessidade de interferência do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações de cunho privado, foi abordada a questão da eficácia dos direitos fundamentais, com o escopo de ser aferida a eventual possibilidade de tais direitos serem aptos a incidir diretamente sobre tais relações para exercer a proteção constitucional neles estabelecida.

Já, na segunda parte do trabalho, foi preciso analisar se há algum tipo de limitação ao fornecimento de crédito, bem como dos encargos sobre o mesmo incidentes, e saber se os princípios da teoria geral dos contratos, a boa-fé objetiva e os deveres gerais de conduta podem servir de elementos limitadores dos juros nas relações ora em comento.

Destarte, como os problemas do superendividamento decorrem de relações de fornecimento de crédito e dos encargos neles existentes, foi preciso passar em análise o crédito em si mesmo, a regulamentação do seu fornecimento e da cobrança dos juros. Em seguida, foram abordados tanto os tradicionais como os novos princípios da teoria geral dos

(15)

contratos, bem como foi realizada a leitura destes institutos em razão da influência do processo de constitucionalização do direito civil.

Especial atenção foi dedicada à boa-fé e aos deveres gerais de conduta dela decorrentes, para ser verificado se eles teriam algum papel fundamental na tutela contra o superendividamento, uma vez não existindo dispositivo legal específico regulamentando a matéria, se tais deveres serviriam para colmatar esta lacuna e tornar exigíveis condutas que não estão positivadas explicitamente no ordenamento pátrio.

Na terceira parte do trabalho, foi abordado o superendividamento propriamente dito, verificada a adequação de sua conceituação, a regulamentação na legislação estrangeira e a eventual existência de algum paralelo entre este instituto com os vícios de consentimento e a insolvência no direito brasileiro.

Daí, houve a necessidade de analisar pontualmente o conceito proposto pela doutrina, seus elementos caracterizadores e o comparativo entre o superendividamento e os vícios de consentimento e a insolvência para tentar aferir qualquer similitude de tratamento.

Por fim, na quarta e última parte, foi discutida a possibilidade de haver uma tutela contra o superendividamento e como esta se manifestava.

Assim, a questão central do presente trabalho é identificar a existência de tutela jurídica quer seja específica, quer seja difusa, contra o superendividamento como aplicação do princípio da dignidade humana nas relações de crédito.

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2. VISÃO CONTEMPORÂNEA DAS RELAÇÕES CIVIS NA PERSPECTIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Tem sido corrente o reconhecimento acerca da transformação operada no direito civil em virtude dos novos princípios constitucionais, notadamente o da dignidade da pessoa humana, o da solidariedade social, da função social da propriedade, entre outros, os quais estabeleceram novos paradigmas valorativos que devem ser perseguidos e concretizados pelos mecanismos postos à disposição pelo ordenamento jurídico, vinculando os mais diversos setores e órgãos da sociedade.

Sem dúvida, diante da sua dimensão, o princípio da dignidade da pessoa humana tem se sobressaído diante dos demais, em razão de seu conteúdo e da íntima correlação com os direitos fundamentais, razão pela qual servirá neste trabalho, como instrumento de repressão às relações contratuais permeadas pelo fenômeno do superendividamento.

No tocante a tal princípio, Gustavo Tepedino afirma que:

“A prioridade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoção do princípio da igualdade substancial (art. 3º, III), ao lado da isonomia formal do art. 5º, bem como a garantia residual estipulada pelo art. 5º, § 2º, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte.2

Assim, diante do que se propõe, necessário se faz analisar brevemente o direito civil na sua concepção tradicional e discutir as repercussões sofridas diante da nova ordem constitucional, para que se possa inferir a viabilidade de tal princípio como meio de tutela aos direitos dos consumidores superendividados.

2.1. O DIREITO CIVIL E SUA DIMENSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO

Em clássica definição, Clóvis Beviláqua dizia que o direito civil, no sentido objetivo, “é o complexo de normas jurídicas relativas às pessoas, na sua constituição geral e comum, nas suas relações recíprocas de família e em face dos bens considerados em seu valor de uso”3. Francisco Amaral afirma sinteticamente que “é o direito que regula a pessoa, na sua existência e atividade, a família e o patrimônio”4.

2

TEPEDINO,Gustavo. Temas de direito civil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 47.

3

BEVILÁQUA. Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Red Livros. 2001, p. 111.

4

AMARAL, Francisco. Direito civil: Introdução. 6ª. ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 107.

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Infere-se, portanto, diante desta conceituação, que o direito civil tem primordial importância no ordenamento jurídico, uma vez que ele abrange e regulamenta um sem número de atividades praticadas no quotidiano das pessoas, ao prescrever obrigações e estabelecer faculdades, ao disciplinar as relações jurídicas do indivíduo, seja de uma pessoa com a outra (física ou jurídica), envolvendo relações familiares e obrigacionais, seja com as coisas (propriedade e posse)5.

Por sua vez, Orlando Gomes ressaltava a importância do direito civil apontando-o como ramo básico do direito privado, em decorrência do fato de que, em sua dogmática situavam-se as noções essenciais e os princípios fundamentais da atividade jurídica dos particulares. Registrava, também, sua ascendência sobre os demais ramos do direito privado não só por um critério histórico, uma vez que foi a primeira regulamentação dos interesses particulares, mas, também, por um critério lógico, em razão de que os demais ramos surgiram em razão da especialização de seus institutos, ficando, assim, limitados em sua área de atuação, mantendo o direito civil as normas de maior abstração6.

Necessário registrar que o direito civil há muito regula instituições que até hoje são de fundamental significado em nossas sociedades, como o casamento, a família, a propriedade, o contrato e a responsabilidade civil, as quais já eram conhecidas desde o período romano. Nota-se, pois, que tal ramo veio se formando ao longo dos anos não só pela influência de vários povos, cujas sociedades foram conquistadas pelos romanos, ou pela manutenção de relações destes com o Império, bem como pelo fato de que as normas civis acabaram se sedimentando através das decisões dos magistrados romanos, como assevera Francisco Amaral7.

Não se pode esquecer também que o direito civil, sendo norma infraconstitucional, concretiza os comandos da Lei Maior, os quais, por sua abstração não poderiam, em sua grande parte, ser transportados diretamente para o dia-a-dia das pessoas.

Duas das características apontadas por Francisco Amaral são essenciais para o desenvolvimento do presente trabalho. A primeira delas decorre da sua natureza personalista, pois o direito civil visa à proteção da pessoa e dos seus interesses patrimoniais e familiares. A

5

GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Vol. I – Parte

Geral, 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, p.30.

6

GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 1ª ed., edição universitária. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.34.

7

AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 6ª ed., ver., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.108-109.

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segunda, por sua vez, advém do seu caráter liberal, porque ampara a liberdade jurídica, ou seja, a de produzir efeitos jurídicos por manifestação dos particulares8.

Em relação à primeira característica, pode-se dizer que a preocupação do direito civil com a proteção do patrimônio individual foi sensivelmente sedimentada através do Código Civil francês, como um reflexo econômico e político da época em que foi editado, em nítida tentativa de sepultar as práticas outrora vigentes, em que se privilegiava a classe feudal sobre os cidadãos, e dar segurança jurídica sobre o patrimônio amealhado.

Por sua vez, a liberdade jurídica é essencial porque possibilita ao indivíduo não só criar, modificar ou extinguir relações jurídicas (plano subjetivo) bem como disciplinar juridicamente tais relações (plano objetivo) dentro dos limites legais que são impostos.

Afirma Pietro Perlingieri ao estabelecer um conceito inicial sobre autonomia privada, fazendo, de logo, a ressalva que tal definição tratava-se apenas de um ponto de partida, que esta é “[...] em geral, o poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento jurídico a um indivíduo, de determinar vicissitudes jurídicas como conseqüências de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos”9

Assevera Perlingieri, contudo, que a autonomia privada não se identifica com a iniciativa econômica, nem com a autonomia contratual em sentido estrito, uma vez que o contrato não tem o condão de exaurir a “área de relevância da liberdade dos particulares” porque outras variantes (notadamente, a predominância do valor da pessoa) servirão como limites à liberdade estabelecida.10

Tais características serão passadas em revista em razão da sua importância em face do tema abordado neste trabalho, sempre tendo como norte balizador a nova interpretação dos institutos jurídicos, diante dos valores estabelecidos e concretizados pela Constituição Federal de 1988, que forçaram a reformulação dos institutos jurídicos com o escopo de construção de uma sociedade mais justa e solidária.

Durante sua longa trajetória, o direito civil findou por gerar novos ramos que, paulatinamente, já estabeleceram sua própria autonomia, ou vêm diferenciando-se por conta das suas normas específicas, pautando-se por novos critérios interpretativos, a exemplo do direito do trabalho, econômico e o do consumidor.

Não se pode deixar de mencionar que muitos destes ramos têm tido questionada sua taxionomia, para tentar classificá-los como situados no direito privado ou no público, em

8

AMARAL, Francisco. Op. cit, p.109-110.

9

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional.. 2ª Ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 17-19.

10

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virtude da intervenção estatal sobre suas relações como forma de dar efetividade aos preceitos normativos que visam à proteção de categorias economicamente mais frágeis na sociedade.

Em razão da longevidade e da importância na regulamentação de setores sensíveis das sociedades, o direito civil findou por se tornar um norte interpretativo das relações jurídicas, pela sua magnitude. Daí se extrai a razão pela qual se lhe atribui, habitualmente, a preponderância de seus institutos na análise das situações cotidianas, as quais, hodiernamente, têm sofrido o reflexo das normas constitucionais em sua aplicação.

2.2 O PROCESSO DE PUBLICIZAÇÃO E DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Levando-se em consideração a importância do direito civil, costumava ele ser apontado como a constituição do homem comum11, especialmente ao recordar que, através do fenômeno das grandes codificações (a exemplo da francesa e da alemã, cujos códigos foram editados em 1804 e 1896, respectivamente), vigorou a pretensão de estabelecer por meio de seus diplomas normativos a completude do ordenamento jurídico, servindo tais códigos como uma bula para toda sorte de “patologias” que poderiam ser sanadas juridicamente.

Mister se faz esclarecer que as codificações surgiram nos séculos XVIII e XIX, em razão do jusracionalismo12 e da necessidade de se unificar e uniformizar a legislação vigente, permitindo seu conhecimento e gerando mais certeza com tal procedimento, uma vez que a imensa quantidade de normas existentes em cada Estado, em razão de influências das mais diversas origens (religiosas, jurídicas, políticas, costumes etc) criava dificuldades na aplicação do direito.

Estas codificações amparavam-se em um sistema lógico-formal que tinha como premissa a inexistência de contradição (compatibilidade lógica entre as proposições) e a completude. Este sistema foi adotado pelo positivismo jurídico e é fruto da idéia de que a produção jurídica é um monopólio estatal, porque, ao mesmo tempo em que o Estado crescia, necessitava absorver as fontes de emanação de normas jurídicas, restringindo-as àquelas

11

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 358.

12 Por esta corrente, o direito natural passa a ser visto como um conjunto de normas que decorrem da razão humana e exigida pela própria recta ratio, visando, essencialmente estabelecer uma cisão do direito face à teologia. Teve como base a idéia de que a razão individual, existente em qualquer homem, detecte o justo e o verdadeiro para todos os tempos e todos os lugares. Teve como principais expoentes: Grócio, Pufendorf, Barbeyrac e Burlamaqui. Disponível em: http://farolpolitico.blogspot.com/2007/07/jusracionalismo.html. Acesso em 25 jan. 2010.

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originadas pela lei ou do comando do soberano, pois, admitir que houvesse outras fontes jurídicas seria aceitar a existência de um direito concorrente ao monopolizado pelo Estado.

Afirma Norberto Bobbio, em adequada analogia, que “a miragem da codificação é a completude: uma regra para cada caso. O código é para o juiz um prontuário que lhe deve servir infalivelmente e do qual não se pode afastar-se”.13

Ora, dentro de uma realidade sócio-econômica que já começava a reclamar por uma maior celeridade no trato comercial, porque representava mecanismo de circulação de riqueza, valor tão caro à burguesia que ascendia como classe detentora dos meios de produção, fazia-se necessária a padronização desta imensa gama de normas que vigoravam dentro de cada Estado.

Em virtude de tal quadro, os Códigos tinham como escopo dar um corpo uniforme às normas vigentes, bem como regulamentar todas as situações de âmbito privado ocorrentes na sociedade, de forma abrangente e completa, não sendo necessário, portanto, recorrer a qualquer outro ramo do direito, ou em norma que não se encontrasse em tal diploma normativo, dentro da lógica que se instaurava da exauriente regulamentação dos eventuais problemas surgidos entre os particulares.

Assim, dentro de tal conjunção de fatores, nada mais natural que houvesse um afastamento entre o direito civil e o constitucional, até porque não se pode perder de mente que tal dissociação justificava-se, também, em virtude de o direito civil lhe ser anterior e mais sedimentado historicamente, bastando que se recorde que o direito constitucional é construção muito mais recente que o longevo direito civil.

Assevera Paulo Luiz Netto Lôbo, discorrendo sobre esta mudança de perspectiva:

A mudança de atitude também envolve uma certa dose de humildade epistemológica. O direito civil sempre forneceu as categorias, os conceitos e classificações que serviram para a consolidação dos vários ramos do direito público, inclusive o constitucional, em virtude de sua mais antiga evolução (o constitucionalismo e os direitos públicos são mais recentes, não alcançando um décimo do tempo histórico do direito civil). Agora, ladeia os demais na mesma sujeição aos valores, princípios e normas consagrados na Constituição. Daí a necessidade que sentem os civilistas do manejo das categorias fundamentais da Constituição. Sem elas, a interpretação do Código e das leis civis desvia-se de seu correto significado.14

Com o passar do tempo, notou-se, contudo, que a postura liberal do direito civil, reflexo da ideologia predominante após a Revolução Francesa de 1789, ao invés de permitir o alcance dos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade preconizados por aquele movimento,

13 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Universidade de Brasília, 1999, p. 121.

14 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. In: Jus Navigandi, n. 33. [Internet] http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=507. Acesso em 11 fev 2002.

(21)

apenas legitimou e consolidou o abismo entre as classes sociais, agora calcado no elemento econômico e não mais no critério nobiliárquico.

A evolução social fez com que se percebesse que os princípios do direito civil, quando vistos pela sua ótica tradicional, não conseguiam refletir toda a necessidade de adequação a uma sociedade de valores cambiantes que não mais encontravam guarida dentro de uma moldura arcaica e amparada em parâmetros seculares.

Através de um processo histórico marcado por movimentos sociais, como o sindicalismo, anarquismo, socialismo e o comunismo, tornou-se possível questionar a postura de não interferência do Estado em matéria privada, causado pelo clamor da população por outro papel a ser desempenhado pelo ente público, o qual, gradualmente, sai do seu perfil liberal para assumir a feição do Welfare State (Estado do bem-estar social, já no século XX).

Registra esta pressão social, Ingo Wolfgang Sarlet:

O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração formal de liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram já no correr do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social.15

A este processo de intervenção estatal em matéria de direito privado convencionou-se chamar de publicização do direito civil, caracterizado pela gradual e crescente intervenção estatal, especialmente por meio de edição de leis que atenuavam a autonomia privada dada às partes na consecução dos contratos e negócios firmados sob o, até então, sagrado manto da liberdade negocial.

O processo de publicização, contudo, não se confunde com o processo de constitucionalização do direito civil, uma vez que este se reflete na busca da adequação das normas de direito positivo às normas, aos princípios e fundamentos do direito constitucional16.

Deve-se ter em mente, porém, que esta perspectiva só se tornou possível, em decorrência de um processo de evolução do próprio direito constitucional, ao modificar sensivelmente sua feição liberal, para migrar para o papel de agente promocional de políticas desenvolvidas como o escopo de reduzir as desigualdades sociais.

Modificou, assim, seu papel anterior em que interferia minimamente na esfera privada, atuando basicamente nesta esfera para garantir a manifestação da suposta liberdade

15

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 56.

16

(22)

conquistada pelos particulares, sem se imiscuir, contudo, no conteúdo dos seus ajustes, nem nos institutos de natureza privada.

Registra tal mudança, Paulo Luiz Netto Lôbo:

As primeiras constituições, portanto, nada regularam sobre as relações privadas, cumprindo sua função de delimitação do Estado mínimo. Ao Estado coube apenas estabelecer as regras do jogo das liberdades privadas, no plano infraconstitucional, de sujeitos de direitos formalmente iguais, abstraídos de suas desigualdades reais. Consumou-se o darwinismo jurídico, com a hegemonia dos economicamente mais fortes, sem qualquer espaço para a justiça social. Como a dura lição da história demonstrou, a codificação liberal e a ausência da constituição econômica serviram de instrumento de exploração dos mais fracos pelos mais fortes, gerando reações e conflitos que redundaram no advento do Estado Social.

Em verdade, houve duas etapas na evolução do movimento liberal e do Estado liberal: a primeira, a da conquista da liberdade; a segunda, a da exploração da liberdade. 17

Neste gradual processo de mudança do perfil do Estado, alguns direitos passaram a ser tutelados especificamente como forma de assegurar condições básicas de sobrevivência aos que dela necessitavam, como é o caso do trabalho, da seguridade social, da saúde, entre outros valores que se revelaram indispensáveis ao desenvolvimento do ser humano.

Anota Marília de Ávila e Silva Sampaio que:

O Estado Social representa assim a tentativa de adaptação do Estado burguês, dito tradicional, às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial, com suas novas demandas, principalmente a tentativa de remediar as péssimas condições de vida das camadas mais desamparadas da população. Não obstante, o que começou como uma política setorial de alguns países tornou-se uma política social generalizada, que não pretende mais ser uma reação às demandas sociais, senão uma tentativa de programação integrada e sistemática da atuação do Estado.18

Passou o Estado a atuar de forma incisiva e determinante na esfera econômica como mecanismo de repulsa aos excessos perpetrados pelos detentores dos mecanismos de produção, sendo tal postura essencial para minimizar os efeitos de práticas que se aproveitem das desigualdades econômicas.

A modificação do perfil das Constituições modernas causou reflexo no direito civil, gerando, segundo informa Gustavo Tepedino19, alguma resistência de parcela da doutrina e da jurisprudência, por conta de antigos valores já sedimentados20, e que ainda eram

17 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 33, jul. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=507>. Acesso em: 11 fev. 2002.

18 SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. Aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares

e a boa-fé objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 49-50.

19

TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano V, Nº 5 - 2003-2004, p. 168.

20

Leasing. Mora do arrendatário. Contrato de leasing. Mora. Rompimento do pacto e suas conseqüências. Verba honorária, em litígios conexos, com dupla sucumbência. Havendo estipulação livre no contrato, e as disposições clausuladas não se opõem às normas de ordem publica, antes com elas se compatibilizando, os contratantes se submetem ao pactuado em suas boas ou más conseqüências, conquanto gravosas além do desejado ou previsto, porque o ato jurídico se posiciona perfeito e intocável, sagrado pelo princípio dogmático do pacta sunt servanda.

(23)

difíceis de serem vencidos, em razão da mentalidade ainda existente acerca do papel de tal ramo do direito para a sociedade, sem se perceber que ele estava agonizante ao não contemplar os anseios sociais que não mais se enquadravam nos vetustos padrões calcados no individualismo jurídico e nos valores patrimoniais.

Esta resistência foi anotada por Gustavo Tepedino, que a sintetizou em quatro eixos centrais:

Mesmo admitindo-se difusamente a força normativa da Constituição, a aplicação direta dos princípios constitucionais, cujo conteúdo normativo foi proclamado pelos civilistas há vinte anos, nas relações de direito privado encontrou na doutrina e jurisprudência críticas que podem ser agrupadas em quatro objeções centrais: (i) os princípios constitucionais, mesmo tomados como preceitos normativos, constituem-se em normas de organização política e social e, portanto, valer-constituem-se deles para a regulamentação das relações jurídicas interindividuais traduziria verdadeiro salto sobre o legislador ordinário, ao qual é dado disciplinar o direito privado; (ii) a baixa concretude dos princípios constitucionais suscitaria exagerada e por vezes perigosa subjetividade dos juízes; (iii) as normas constitucionais sujeitam-se a reformas, compromissos e contingências políticas, ao contrário das normas do direito privado, muito mais afeitas à estabilidade própria da sua dogmática, em grande parte herdada, quase de forma intacta, desde o direito romano; e (iv) o controle de merecimento de tutela imposto pela aplicação automática das normas constitucionais, para além do juízo de ilicitude dos atos em geral, representaria uma ingerência valorativa indevida nos espaços privados, reduzindo o campo das escolhas e liberdades individuais21.

Tendo em vista os argumentos supra elencados, assevera Gustavo Tepedino que, apesar de respeitáveis, eles não se justificam diante da nova dinâmica social, que clama pelo reconhecimento de outros valores e em face de novos paradigmas jurídicos, notadamente quando se tem em mente que a inserção do princípio da dignidade humana22 como fundamento da República causou radical modificação na dogmática civilística, “estabelecendo uma dicotomia essencial entre as relações jurídicas existenciais e as relações jurídicas patrimoniais.”23

Cabe registrar que a própria extinção gradual da summa divisio entre o direito público e o privado, ao se perceber a necessidade de interpenetração de seus conteúdos, faz com que tais fundamentos venham sendo diluídos ao se demonstrar sua incompatibilidade com a realidade vigente.

O leasing, na observação do ministro Sálvio de Figueiredo, com base em Arnold Wald, é uma "fórmula intermediária entre a compra e venda e a locação, exercendo função parecida com a da venda com reserva de domínio e com a alienação fiduciária, oferecendo ao usuário maior leque de opções" (rev. STJ 3/366). Os alimentos da inflação são, ao que todos sabem, as oscilações do mercado financeiro, tornando voltarias as taxas remuneratórias de capital, para mais, vezes outras para menos, risco inerente a todos negócios que ficam na sua dependência. A cláusula resolutiva expressa enseja, por si, na configuração da mora, acaso inadimplida a obrigação. [...] Sentença mantida por seus acertados fundamentos. (TJ-RJ; AC 1500/1991; Rio de Janeiro; 1ª Câmara Cível; Rel. Des. Ellis Hermydio Figueira; Julg. 03/09/1991).

21

TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano V, nº 5 - 2003-2004, p. 169.

22

Tal princípio será objeto de estudo a partir do item 2.5.

23

(24)

E nesse sentido é a lição de Pietro Perlingieri:

O Direito Civil não se apresenta em antítese ao Direito Público, mas é apenas um ramo que se justifica por razões didáticas e sistemáticas, e que recolhe e evidencia os institutos atinentes com a estrutura da sociedade, com a vida dos cidadãos como titulares de direitos civis. Retorna-se às origens do direito civil como direito dos cidadãos, titulares de direitos frente ao Estado. Neste enfoque, não existe contraposição entre privado e público, na medida em que o próprio direito civil faz parte de um ordenamento unitário.24

Tem a doutrina25 cada vez mais se debruçado sobre questão, repensando as eventuais fronteiras entre o público e o privado, para que se possa estabelecer a exata dimensão de tais referenciais, empenhando-se em rechaçar alguns dogmas estabelecidos, redimensionando-os ao perfil da sociedade moderna, para a implementação de alguns princípios e valores sociais necessários para o devido respeito à dignidade humana.

E não poderia ser de outra forma, se for levado em consideração o comando normativo estabelecido no artigo 3º, I, da Constituição Federal de 1988, ao dispor que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”.

Ora, ao estabelecer o desejo da construção de uma sociedade em tais moldes, necessário se faz dar conteúdo prático ao princípio da solidariedade social, para que sua efetivação torne possível tal desiderato, sob pena de ser mais uma previsão retórica sem qualquer efeito prático para os eventuais destinatários da norma.

Há muito, Duguit já afirmava que "o homem desfruta o direito de desenvolver sua atividade com liberdade, mas, ao mesmo tempo, só possui esse direito enquanto consagra seu exercício à realização da solidariedade social.”26

Sobre tal princípio, afirma Maria Celina Bodin de Morais que ele pode ser considerado como “o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados”27.

Por sua vez, J. J. Calmon de Passos demonstrava ceticismo sobre a influência do direito sobre a solidariedade:

[...] o Mercado e o Estado, para se realizarem plenamente, apóiam-se no poder e na dominação, enquanto a Comunidade tem suas raízes na renúncia à submissão do

24

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: uma introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 2. ed., Editora Renovar: Rio de Janeiro, 2002, p. 55.

25

Entre os muitos doutrinadores nacionais que tratam sobre a questão: Daniel Sarmento, Humberto Ávila, Claudia Lima Marques, Cristiano Chaves. Na doutrina alienígena, são exemplos: Mauro Cappelletti e Pietro Perlingieri.

26 DUGUIT, Pierre M. N. Léon. Fundamentos do Direito. São Paulo: Ícone, 1996, p. 28.

27 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil constitucional dos danos

(25)

outro pelo poder e põe sua fé na integração com o outro pela solidariedade. E se o paradigma do direito foi operacional para o Mercado e para o Estado, porque se associa indissoluvelmente à coerção, não pôde, nem poderá servir à Comunidade, que pede a consciência moral do dever para com o outro, que importa em alguma forma de renúncia e de respeito pela singularidade do outro.28

Contudo, defendia ele que a solidariedade só alcançaria eficácia social, se decorrente de um novo paradigma que não se assentasse na típica estrutura coercitiva dos fenômenos jurídicos, mas, na construção de um referencial calcado no dever e na dignidade existente no próximo, reconhecendo-o como humano quanto cada um dos indivíduos.

Assim, ponderava Calmon de Passos:

A solidariedade jamais será compatível com a coerção, donde a impossibilidade de sua convivência com o jurídico. Por isso mesmo falar-se em direito de solidariedade é tentar associar incompatíveis. A solidariedade somente se revestirá de eficácia social se for instituído um novo paradigma, centrado no dever. Não à semelhança daquele que informou o pensamento da pré-modernidade, caracterizado como renúncia em face de um Todo Poderoso transcendente, metafísico, dominador, mas de um dever alicerçado na projeção para o outro, humano tanto quanto humano eu sou, da dignidade que me atribuo, por força da valia que experimento em mim mesmo, a partir de minha condição humana. Dito melhor, mediante a projeção no outro de tudo quanto tenho como valioso em mim para configurar a minha dignidade humana.29

Logo em seguida, ele afirmava que::

Esta solidariedade imposta - mesmo quando não tenha o pressuposto da vontade declarada (fruto de um negócio jurídico) pode ser utilizada como um instrumento do que denominamos de "justiça social" e erigida à condição de um direito de solidariedade ou direito à solidariedade, marcado pela mesma indiferença ou insensibilidade humana que a solidariedade pressupõe no campo das relações privadas. Sou solidário compulsoriamente, por conveniência ou por necessidade de obediência, não por consciência e por exigência do coração.30

Em que pese a afirmação de Calmon de Passos, no sentido da incompatibilidade da efetiva e desejada solidariedade com a coerção jurídica, o reconhecimento da exigibilidade do dever de solidariedade social, como fenômeno já existente, é partilhado por alguns doutrinadores, como é o caso de Tiago Fensterseifer:

A solidariedade expressa a necessidade fundamental de coexistência do ser humano em um corpo social, formatando a teia de relações intersubjetivas e sociais que se traçam no espaço da comunidade estatal. Só que aqui, para além de uma obrigação ou dever unicamente moral de solidariedade, há que se trazer para o plano jurídico-normativo tal compreensão, como pilar fundamental à construção de uma sociedade e de um Estado de Direito guardiões dos direitos fundamentais de todos os seus integrantes, sem exclusões.31

28 PASSOS, J.J. Calmon de. Direito de Solidariedade. DVD Magister nº 13, mai-jun 2007. 29 Ibidem.

30

Ibidem.

31

FENSTERSEIFER, Tiago. O princípio da solidariedade como marco jurídico-constitucional do Estado socioambiental de direito contemporâneo. DVD Magister nº 13, mai-jun 2007.

(26)

Destarte, em razão da inserção como fundamentos da República, os princípios da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana, este, inclusive, objeto de estudo específico adiante (item 2.5), pode-se inferir que uma nova plataforma hermenêutica foi instaurada no ordenamento brasileiro, através de valores moralmente significativos e que tendem a deslocar os interesses individuais para segundo plano, quando sobreleve o interesse coletivo em eventual colisão com aqueles.

Percebe-se, ainda, que, cada vez mais, os princípios encontram-se realçados dentro da estrutura normativa pátria, porque se mostram como meio adequado para a consecução dos fins a que se propõem.

Por tal motivo é preciso, ainda que de forma não exaustiva, abordar o conceito e a importância dos princípios jurídicos, notadamente na esfera do Direito Civil.

2.3. A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS PARA A NOVA VISÃO DO DIREITO CIVIL

Há muito a doutrina estrangeira (Dworkin32, Alexy33, entre outros) e a nacional (Humberto Ávila34) vêm tentando estabelecer um conceito preciso de princípio, tendo em vista que, não obstante a pluralidade de definições que a tal termos são imputadas, tem sido pensamento corrente tanto entre os doutrinadores, como nas manifestações jurisprudenciais, que os princípios representam as normas mais importantes de um ordenamento jurídico.

Na doutrina nacional, é conhecido o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre tal instituto.

Segundo ele, princípio:

É, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência justamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.35

Em seguida, ele arremata:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento

32

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 33 ALEXY, Robert.Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

34

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003.

35

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros Editores: São Paulo, 2001, p. 771-772.

(27)

obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.36

Por sua vez, Paulo Bonavides entende que os “princípios são verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser, senão do dever-ser, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade.37

Afirma Roque Antônio Carraza que:

[...] princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.. 38

Esclarece Luís Roberto Barroso que:

[...] a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as princípios e as disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas as quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema.39

Da doutrina estrangeira, pode ser citada a distinção feita por Canotilho, entre regras e princípios, utilizando-se de cinco critérios, quais sejam:

a) O ‘grau de abstracção’ (abstração): os princípios são normas com um grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as ‘regras’ possuem uma abstracção relativamente reduzida.

b) ‘Grau de determinabilidade’ na aplicação do caso concreto: os princípio, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? Do juiz? ), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa. c) ‘Caráter de fundamentalidade no sistema’ das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).

d) ‘Proximidade da idéia de direito’: os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’ (Dworkin) ou na ‘idéia de direito’(Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

e) ‘Natureza normogenética’: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ‘ratio’ de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamental40.

36

Op. cit., p. 772.

37

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 229.

38

CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 7ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 29.

39

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2ª ed. Saraiva: São Paulo, 1998, p.141.

40

(28)

Em matéria de direitos fundamentais, a importância dos princípios torna-se ainda mais significativa, tanto é que Robert Alexy afirma que a distinção entre regras e princípios “é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais”41, uma vez que, sem este tipo de distinção, segundo ele, não se poderia estabelecer, entre outras coisas, o papel dos direitos fundamentais, a restrição ao seu uso e uma doutrina adequada sobre as colisões porventura existentes.

A tríplice função dos princípios (como referencial para o legislador, para o intérprete e para o cidadão) impele seu estudo de forma mais acurada para entendimento de sua importância jurídica.

Dworkin, ao trabalhar com as noções de padrões, discorre sobre “políticas” e “princípios”, informando que, enquanto a política seria um padrão que objetiva alcançar um melhoramento em aspectos econômicos, políticos ou sociais, os “princípios” seriam “um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social que seja considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”.42

Em momento distinto de sua obra, Dworkin estabelece a distinção entre regras e princípios, dizendo que “as regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.”43

Ao tratar sobre a dimensão dos princípios, assevera Dworkin que:

Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou da importância. Quando os princípios se intercruzam [...], aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é.44

Por sua vez, Alexy tem o seguinte entendimento:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das

41

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. Malheiros Editores: São Paulo, 2008, p. 85.

42

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36.

43

Op. cit., p. 39.

44

(29)

possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve-se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isto significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.45

Segundo Alexy, não há uma prevalência imediata de um princípio sobre outro em caso de colisão entre eles, uma vez que a solução em caso de conflito dar-se-á pela ponderação entre os princípios colidentes. Na análise do caso concreto, é que se observará qual o princípio que receberá a prevalência de tratamento sem que o outro seja tido por inválido, ou que seja criada uma cláusula de exceção, como acontece, segundo o doutrinador alemão, em relação à colisão entre as regras.

Com efeito, para Alexy, “um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida”.46 Para sanar tais conflitos, Alexy aponta também os critérios clássicos para solução de antinomias dados pela especialidade, cronológico e hierárquico47.

Convém registrar, contudo, que tais critérios distintivos entre regras e princípios, embora amplamente difundidos, têm sofrido a crítica de diversos doutrinadores, que refutam a aceitação da forma preconizada por Dworkin e Alexy, a exemplo, em nosso direito, de Humberto Ávila, que faz uma releitura de tais critérios, apontando as falhas neles existentes.

Por não ser objeto do presente trabalho, será efetuada apenas uma breve síntese das críticas tecidas por Humberto Ávila aos critérios apontados pela doutrina, notadamente aqueles elencados por Alexy na distinção entre regras e princípios48.

Esclarece Humberto Ávila que a doutrina estabelece quatro critérios, quais sejam: a) o caráter hipotético-dedutivo; b) modo final de aplicação; c) relacionamento normativo e; d) fundamento axiológico. Todavia, todos eles conteriam falhas em sua concepção, não podendo ser aceitos fielmente da forma como são preconizados pelos seus defensores.

45

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. Malheiros Editores: São Paulo, 2008, p. 90-91.

46

Op. cit. ,p. 92.

47

Op. cit., p. 93.

48

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 31-55.

(30)

De acordo com o critério distintivo pautado no caráter hipotético-dedutivo, se uma norma tiver um conteúdo em que exista uma hipótese de incidência e uma conseqüência a predeterminar uma decisão, o que ensejaria um raciocínio calcado no “se, então”, estaríamos diante de regras. Os princípios, por seu turno, indicariam apenas o fundamento a ser usado pelo intérprete, devendo este buscar a regra aplicável no caso concreto.

Afirma Humberto Ávila, todavia, que tal critério é falho, porque a hipótese de incidência é mera questão lingüística, podendo os princípios também estar presentes em tal tipo de estrutura. Além disso, argumenta ele, não se pode atribuir à regra o condão de previamente dar o último passo no processo de descoberta do conteúdo normativo, pois este conteúdo depende de possibilidades normativas e fáticas.

Analisando o critério do modo final de aplicação, segundo o qual, as regras são aplicadas de modo absoluto, ou seja, na base do tudo ou nada (all-or-nothing, Alles-oder-Nichts), e, portanto, havendo o preenchimento da hipótese de incidência só podem ocorrer duas situações: ou a regra é válida e a conseqüência normativa deve ser necessariamente aplicada ou, então, a regra não é considerada como válida. Enquanto isso, os princípios não determinam a decisão ao caso analisado, apenas possuem fundamentos que devem ser conjugados com outros fundamentos que são decorrentes dos princípios colidentes.

Diverge deste critério, Humberto Ávila, dizendo que há situações em que a norma tem um conteúdo normativo que impõe limites objetivos, cuja violação aparenta estabelecer de modo absoluto uma conseqüência, porém, esta pode ceder em face de razões contrárias, oriundas de elementos da vida não previstos no comando normativo49, que acabam por sobrepô-la. Destarte, não é a regra que traz em si, de forma antecipada, o modo de aplicação, uma vez que a aplicação decorrerá das conexões axiológicas dadas ou intensificadas, podendo superar, com isso, o caráter absoluto da regra.

Afirma ele que:

Vale dizer: a distinção entre princípios e regras não pode ser baseada no suposto método tudo ou nada de aplicação das regras, pois também elas precisam, para que sejam implementadas suas conseqüências, de um processo prévio – e, por vezes, longo e complexo como o dos princípios – de interpretação que demonstre quais as conseqüências que serão implementadas”.50

Segundo ele, a distinção permaneceria apenas no fato de que o grau de abstração anterior à interpretação, pois, no caso dos princípios, este será maior relativamente à norma de

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