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3. AS RELAÇÕES DE CRÉDITO

4.8. RELAÇÃO DO SUPERENDIVIDAMENTO COM FIGURAS AFINS

4.8.2 O dolo

Na clássica lição de Clóvis Bevilaqua, dolo “é o artifício ou expediente astucioso empregado para induzir alguém à prática de um ato jurídico que o prejudica, aproveitando ao autor do dolo ou a terceiro”301.

Tal vício de consentimento está previsto no artigo 145 do Código Civil pátrio302, e chama a atenção em relação ao presente trabalho a discussão sobre o chamado “dolus bonus”, que é o artifício utilizado para realçar as boas características de um determinado produto ou serviço.

300 Antes mesmo da Lei 11.785/2008, houve decisão liminar proferida, em ação civil pública, pela 2ª Vara Cível de Taguatinga, determinando ao Bradesco que usasse linguagem clara e objetiva nos contratos de empréstimos consignados, bem como destacasse o percentual de juros cobrados ao mês, os valores em moeda corrente a título de juros e comissões, o número de parcelas e o montante tomado em empréstimo, adotando o espaçamento duplo entre linhas e letra "Times New Roman", tamanho 12. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/noticias/14156/decisao-inedita-obriga-bradesco-a-utilizar-linguagem-clara-nos- contratos-de-emprestimos-consignados. Acesso em 13/02/2010.

301

BEVILÁQUA. Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Red Livros. 2001, p. 299.

302

A doutrina majoritária303 entende que tal mecanismo não se confunde com o dolo propriamente dito (dolus malus) e, desde que praticado razoavelmente, não invalida o negócio jurídico levado a efeito. Isto não legitima, contudo, alguma postura do contratante que afirme a existência de qualidades ou de garantias inexistentes; o que ensejaria a configuração da propaganda abusiva ou enganosa; prática que é vedada tanto no artigo 37, CDC, quando se tratar de relação de consumo, como impedida nas relações cíveis pela boa-fé objetiva estabelecida no CC, mais precisamente no artigo 422 deste diploma legislativo.

Relevante se faz registrar que há divergência quanto a este entendimento, através da opinião de Fábio Ulhoa Coelho, que assevera não ser mais possível a aceitação do “dolus bonus”, quer seja, em razão das normas do CDC, bem como pelas regras acerca da boa-fé previstas no Código Civil vigente.304

A discussão não tem cunho meramente acadêmico, mas, essencialmente, de natureza prática, porque possui repercussão clara na análise da utilização das diversas técnicas mercadológicas disponíveis, as quais podem, eventualmente, extrapolar a linha tênue entre a criatividade e a persuasão ilícita, com mensagens e apelos subliminares, violando o princípio da boa-fé objetiva.

De fato, diante de todo o aparato de marketing existente, apto não só a convencer da qualidade do produto ou do serviço, sua segurança e confiabilidade, mas, essencialmente, predisposto a criar a necessidade dos mesmos para o consumidor, através de estímulos que estabeleçam a suposta indispensabilidade de tal bem ou serviço, meticulosa terá que ser a apreciação da licitude dos meios empregados para ensejar a contratação entre as partes, avaliando se não houve o rompimento dos princípios norteadores das relações contratuais consumeristas.305

Cláudia Lima Marques, ao analisar a nova realidade contratual massificada, aborda o fenômeno por ela denominado de contratos cativos de longa duração306.

Com esta nomenclatura, ela refere-se a uma série de novos contratos que se utilizam os métodos de contratação de massa, fornecendo serviços especiais, estabelecendo

303

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, 1° volume: teoria geral do direito civil. 24ª ed., rev e atual. de acordo com a reforma do CPC. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p.454, STOLZE, Pablo e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Parte Geral, Vol. I, 10ª ed., rev e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 352-353, RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, Vol. I, 34ª ed., atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n° 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p. 196-197, GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume 1: parte geral. São Paulo: Editora Saraiva, 4ª ed., 2007, p. 378-379.

304

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, Vol. I. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 336.

305

Aqui nos reportamos ao que foi abordado nos tópicos 3.3.4.1 (O dever de informação) e 3.3.4.2 (O dever de cooperação) acerca dos deveres que são gerados dos novos princípios contratuais.

relações jurídicas complexas, múltiplas e de longa duração. Nestes contratos se faz presente uma cadeia de fornecedores organizados entre si e com uma característica marcante: a posição de “catividade” ou “dependência” dos consumidores.307

Afirma Cláudia Lima Marques:

Esta posição de dependência ou, como aqui estamos denominando, de "catividade", só pode ser entendida no exame do contexto das relações atuais, onde determinados serviços prestados no mercado asseguram (ou prometem) ao consumidor e sua família "status", "segurança", "crédito renovado", "escola ou formação universitária certa e qualificada", "moradia assegurada" ou mesmo "saúde" no futuro. A catividade há de ser entendida no contexto do mundo atual, de indução ao consumo de bens materiais e imateriais, de publicidade massiva e métodos agressivos de marketing, de graves e renovados riscos na vida em sociedade, e de grande insegurança quanto ao futuro.308

Diante de tal realidade, a opção apontada por Cláudia Lima Marques para controle da conduta dos contratantes direciona-se para a aplicação da boa-fé objetiva, em decorrência do fato de que tal princípio possibilita estabelecer limites ao exercício de direitos subjetivos, podendo, portanto, ao limitar direitos (poderes) definir um novo “grau” de abusividade das cláusulas e práticas comerciais presentes nos contratos cativos que estejam disponíveis no mercado.309

O dolo, ao lado da lesão (e sua variante, o estado de perigo), provavelmente são os maiores responsáveis pelo superendividamento, porque, naquele há a intenção de ludibriar o contratante, neste, o aproveitamento se dá pela assunção de prestação manifestamente desproporcional ao valor da contraprestação, ferindo o equilíbrio contratual.