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Academic year: 2021

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ESSE DESEJO DE VER CLARO …

Philip Cabau

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O universo curricular das formações na nossa Escola constitui um diversificado painel de matérias. A sua função é proporcionar aos alunos uma experimentação, pedagogicamente contextualizada, das ferramentas que lhes permitirão, um dia, trabalhar autonomamente na área profissional onde embarcarem. Nesse vasto painel, fundamentado, em grande parte, por conteúdos de natureza visual, o Desenho ocupa um lugar transversal. Uma análise dos currículos pedagógicos das áreas em questão – tanto aqui como em outras escolas – revela uma aparentemente consensualidade no que respeita à importância do desenho nas diferentes formações. Os conteúdos do Desenho, ou melhor, aquilo que eles proporcionam nesse quadro de aprendizagens, são considerados, inquestionavelmente, essenciais. Em menor ou maior grau, com incidências mais finas nesta ou naquela questão, dir-se-ia que o Desenho cumpre funções comuns a todos os cursos. Pois não implicarão todos eles conteúdos visuais, apesar das distâncias mais ou menos evidentes?

A Aula Aberta anterior1 já abordou esta temática, partindo do pressuposto dessa unidade do desenho como um lugar partilhado. A partir do (enunciado do) Exercício de Desenho, efectuou-se então uma espécie de cartografia do território do desenho comum ao Design e às Artes Plásticas (no que diz respeito ao trabalho em ambiente pedagógico, apresentado como enunciado e exercício). Desta vez, gostaria de avançar a hipótese contrária e tentar identificar aquilo que, na prática

1 Esta Aula Aberta

teve lugar no dia 8 de Maio de 2007, também apresentada em colaboração com Fernando Poeiras. Cf. Cadernos PAR nº2 (2007). ESAD.CR./IPLEIRIA

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do desenho como no seu ensino, conforma um território claramente disjuntivo entre ambos. Isto tem directamente a ver com a formulação que figura no título da nossa aula comum: o “desejo de ver claro...”. O contexto onde esta expressão se manifesta com maior evidência é o Projecto ou, mais exactamente, o papel do desenho no processo de ‘ver claro’ do Projecto. Nesse sentido, pretendo aqui lançar algumas suposições, suspeições e perguntas, para as quais não tenho respostas definidas ou definitivas. Concretamente: o que persegue o desenho das Artes Plásticas que é distinto do desenho do Design? E, alternativamente, que trata o desenho do Design que é diferente do desenho das Artes Plásticas? Em primeiro lugar, o desejo de ver claro implica a precedência de uma experimentação: só podemos desejar uma coisa se, de algum modo, ela – ou a esfera de significados que a configura - já for conhecida. Uma vez que nos referimos ao desenho no interior de um contexto pedagógico elementar, evidentemente que esse pressuposto não pode constituir a pedra de fundação. Por outro lado (e este é um pormenor significativo para a questão), falamos do desejo de ver claro... mas ver claro o quê? Ver claro o objectivo para o qual nos dirigimos? Ver claro o caminho que percorremos? Ou apenas isto: ver claro – um desejo de inteligibilidade tout court.

Tentemos fixar esta questão para identificar as distâncias, neste assunto do desenho, entre o Design e as Artes Plásticas. Para o Design não faz sentido querer ver claro sem saber, de antemão, qual a natureza do objecto porvir (e qual o seu contexto, sócio-cultural, técnico, etc.) que se pretende assim esclarecer. Por outras palavras, o desenho age como uma ferramenta capaz de proporcionar um olhar mais eficaz sobre a negociação que envolve Projecto e Mundo, numa relação biunívoca de iluminação dos contornos.

Importa lembrar que, etimologicamente, a palavra desenho se encontra próxima da palavra desígnio (em francês ela apresenta ainda a dicotomia dessin/ dessain, palavras que correspondem, aproximadamente, a estes significados.2 O “desenho de uma coisa” é uma expressão que é frequentemente utilizada não como substantivo ou objecto, mas como acção, verbo, com um sentido próximo de projecto (palavra esta que, por sua vez, se encontra directamente associada à

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palavra projéctil – algo que é dirigido a um local preciso, com uma função precisa. Portanto, desenho, design(io), projecto e projéctil estabelecem uma linha de significados afins. Em todos eles, o mundo, com tudo aquilo que o compõe, está presente, determinando-os.

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O Projecto em Design pressupõe sempre o Outro. Interlocutor ou adversário omnipresente, ele constitui o mundo perante o qual o projecto se afirmará eficazmente (se resultar e for bem sucedido). Esta representação do terreno do Projecto em “vol-d’oiseaux”3 permite, a quem trabalha o objecto-em- -construção, conceber os seus procedimentos – e comunicá- -los – a partir de uma nomenclatura que os descreve como se se tratasse de uma linguagem militar. Palavras como Acção, Procedência, Estratégia, Tácticas, Elaboração, Expedientes, Desvio, Conjectura, Antecipação, Posição, Situação, Objectivo, Eficácia atravessam o vocabulário do discurso sobre o Projecto. Também o desenho, na sua utilização “ao serviço” do Projecto tende a acompanhar esta terminologia. É mesmo possível identificar, para as várias fases do desenho associado ao desenvolvimento do Projecto, qual o termo adequado a uma determinada fase de desenvolvimento do trabalho. Este uso do desenho (tal como o Projecto) está no mundo e falará a sua linguagem, topológica, estruturada e sem ambiguidade.

Também nas Artes Plásticas é habitual falar de Projecto.4 Contudo, a facilidade com que usamos esta palavra no contexto das artes constitui uma imprudência, senão mesmo um equívoco. Derivando de outras áreas que necessitam,

2 Dessin, in SOURIAU,

A. (2004) Vocabulaire d’esthétique. Paris. PUF: 566.

3 A expressão, em

francês, significa literalmente ‘em voo de pássaro’, ou seja, em vista aérea, sobrevoo.

4 O uso corrente da

denominação de Projecto nas Artes Plásticas implantou-se aquando do esbatimento das fronteiras entre as produções específicas das disciplinas

tradicionais (uma pintura, uma escultura, etc.) por forma a colmatar a lacuna terminológica resultante dos novos objectos que escapavam às categorias instituídas. Simultaneamente, o termo permitia falar, numa sensibilidade característica do moderno, do processo de elaboração artística.

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hoje como outrora, de salvaguardar a previsibilidade do caminho que percorrem de modo a garantir o investimento efectuado, o desenho das Artes Plásticas, ao contrário das funções que desempenha no Design ou na Arquitectura, pouco tem de calculável. Nas Artes Plásticas, o assunto-desenho não ocorre exactamente da mesma maneira. Aqui, a entidade composta por projecto e mundo não fazem parte do núcleo fundamental do problema. Ou, pelo menos, nunca nos mesmos moldes. Nem poderia ser de outro modo, pois num procedimento artístico, identificar absoluta e previamente o objecto porvir não é apenas ingénuo mas implica a aceitação de uma espécie de geometrização prévia e programática que tenderá a comprometer o próprio processo em curso. “Esse desejo de ver claro” é, em Arte, uma necessidade que se manifesta noutros planos. Ele ocupa lugares que poderão ser identificados como centros geradores de sentido, ou, mesmo, categorias de procedimentos, mas nunca como peças, topologicamente definidas, de um puzzle (mesmo que se trate de um puzzle que consiga assumir diversas configurações distintas). O desenho em Arte simplesmente não assenta na representação (nos moldes do Design). Pode dizer-se mesmo que ele se escapa a ela. E que a sua capacidade de renovação decorre da capacidade que o desenho possui de inventar sempre novos modos de não ser representação.

Tentarei, para abordar a questão do papel do desenho no desenvolvimento de um trabalho em Design e em Artes Plásticas, apresentar duas áreas instrumentais (duas ferramentas) que considero capazes de exemplificar os terrenos que definem o lugar do Design e o lugar das Artes.

a. A primeira trata da relação entre eficácia e mundo. Se a eficácia do objecto no mundo constitui o chão primário do Design, já nas Artes Plásticas esta forma de abordar o assunto, ao contrário, de pouco ou nada serve. A título de exemplificação ilustrativa, para abordar a questão da eficácia e do mundo recorrerei, ao nível do desenho, à questão da ferramenta informática de (apoio ao) desenho enquanto utensílio e prótese mimética.

b. A segunda aborda a presença daquilo que poderíamos chamar a presença da sombra e da ressonância, que constituem a própria condição do trabalho artístico – nisto pouco tendo a ver com o Design. Para este efeito,

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remeterei a análise para uma entidade gráfica precisa: a linha de contorno.

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O Design é, por natureza, mundano. Ao longo de todo o processo que envolve a criação de um novo objecto, o designer deve saber relacionar-se (e interagir) com os múltiplos agentes que viabilizarão a existência dessa proposta. Em todo este processo, o desenho cumpre um papel importante. Esse desempenho – precisamente porque o design está no mundo, vem do mundo e é dirigido ao mundo – decorre sobretudo ao nível da comunicação. Entendemos aqui o termo no seu sentido mais vasto. A comunicação acontece desde o instante em que é lançado (identificado) o propósito do projecto, em que cruzamos o fluxo do nosso desejo (ainda difuso) de produzir um objecto, com o vasto acervo constituído pelas imagens do mundo, até à informação final (capaz de esclarecer dados sobre as derradeiras instâncias da produção desse objecto). O desenho no Design constitui-se necessariamente como representação e assenta nela ao longo de todo o processo. Esta realidade consolida o território da comunicação que o sustenta. Por outras palavras, o desenho representa porque tem que comunicar e controlar a comunicação, não o contrário. Neste sentido, a abordagem pedagógica do desenho para o Design deve constituir sobretudo uma pragmática do desenho. Uma pragmática complexa, consciente dos mecanismos e dos operadores que participam no processo colectivo do Design, mas também das potencialidades que o desenho pode promover no interior do próprio desenvolvimento do projecto. Esse desenho ao serviço da comunicação é exterior ao corpo. Toda a panóplia de ligações e mecanismos de subjectivação associados ao desenho são delegados para um segundo plano em detrimento da eficácia do projecto (no mundo). O desenho como acontecimento háptico, cinestésico, táctil e performativo, alvo de suspensões e zonas de sombra pode, para os objectivos do projecto de Design, ser distractivo.5 A construção do desenho do projecto possui sempre uma dependência, um espectro prático (que está no mundo): a solução para que se dirige, essa solução porvir, sustentada geralmente pelo contrato do programa que o originou. A panóplia instrumental informática em uso no Design (tanto no que refere ao hardware como ao software) confirma esta geometria, este movimento

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dirigido do projecto. Na cadeia de utensílios de desenho utilizados no Design (como na arquitectura) existe sempre uma antecipação do produto. Essa é, como veremos adiante, uma das maiores diferenças perante os procedimentos e usos do desenho no processo artístico. Esta urgência da antecipação promove (do ponto de vista do fazer artístico) uma assimetria de efeitos imprevisíveis pois, na verdade, em vez da desejada antecipação do produto, é a antecipação da imagem do produto que é “visualizada”, tendendo a impor-se como uma espécie de figuração obsessiva essencial – que obriga à invenção de um contrapeso, uma postura suplementar de defesa das liberdades experimentais do desenho no projecto, sem as quais não chega a formar-se a consciencialização da importância que os mecanismos da imaginação ali desempenham.6 Complementarmente ao desenho como utensílio de comunicação é aqui, a meu ver, que o desenho cumpre uma função insubstituível.

Com a progressiva monopolização do CAD – Computer Aided Design (em português: Desenho Assistido por Computador) como ferramenta reguladora dos procedimentos do desenho no projecto de Design, esse contrapeso é radicalmente reduzido. Os utensílios de desenho assistido por computador partem frequentemente de uma aparente operação mimética das acções tradicionais do desenho resultando em simplificações extremadas e imprecisas, eliminando a complexidade da ferramenta original. Eles constituem uma dupla representação: representação do objecto e representação da ferramenta. Eliminar o corpo rudimentar que os utensílios básicos proporcionavam (fundamento do corpo artesanal) é uma hipótese, a meu ver, arriscada. Não tanto pelo empobrecimento do processo e das experiências do corpo (particularmente do processo pedagógico), mas sobretudo porque não substituem uma

5 SENNETT, R. (2008)

The Craftsman. London: Allen Lane-Penguin: 43. “The tactile, the relational, and the incomplete are physical experiences that occur in the act of drawing. Drawing stands for a larger range of experiences, such as the way of writing that embraces editing and rewriting, or of playing music to explore again and again the puzzling qualities of a particular chord. The difficult and the incomplete should be positive events in our understanding; they should stimulate us as simulation and facile manipulation of complete objects cannot. [...] The problem, as Victor Weisskopf says, is that people may let the machines do this learning, the person serving as a passive witness to and consumer of expanding competence, not participating in it.”

6 Ao contrário do que

habitualmente se pensa, o que faz o artista plástico desconfiar dos denominados “métodos de representação” é precisamente este perigoso “efeito de proximidade” perante a coisa ela-mesma – e não a dificuldade metodológica e técnica do artifício. Para o artista - e para o seu trabalho – a utilidade do recurso é, simplesmente, irrisória.

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potencialidade discretamente presente nas tradicionais ferramentas rudimentares: a possibilidade da sua re-inven-ção. Por outras palavras, as ferramentas simples tornam-se, pelo uso intensivo, um prolongamento do corpo. Mão, olho, corpo, pensamento constituem-se no trabalho numa unidade inventiva capaz de se refazer conforme aos requisitos e surpresas que o projecto aporta. Alterar o uso, criar novas possibilidades de uso dessas ferramentas não é apenas ampliar a gama técnica dos usos que essas ferramentas (ou a conjugação entre elas) permite, mas aumentar as possibilidades da imaginação sobre o projecto e, consequentemente, da maturidade autoral do designer. Se, por um lado, com o CAD temos acesso a uma modelação instantânea do produto, facilitando operações miméticas, “equivalentes” aos modelos físicos reais (tal como a alteração das proporções e a formulação das relações entre o todo e as partes do objecto, a manipulação da visualização espacial, etc.), por outro lado, o CDA elimina a duração da aprendizagem pessoal do processo. Por outras palavras, o CAD institui um equívoco fundamental: dá ao utilizador- -projectista a ilusão de que a operação está a ser realizada por ele mesmo quando, na verdade, essa experimentação coube ao computador. As operações mentais e intelectuais envolvidas (e desenvolvidas) numa experimentação sustentada por um campo de hipóteses e possibilidades em aberto e que deverão ser, progressivamente, fixadas pelo autor, são assim integralmente transferidas para a surpreendente agilidade desta ferramenta digital. Do ponto de vista de quem projecta, o processo de maturação é, consequentemente, empobrecido, pois não chega a permitir-se a duração através da qual as inscrições (da solução integrada) são fixadas no real.7 Cada operação, cuja concepção depende ainda de uma adaptação da sua origem no universo projectual pré-informático,

7 O arquitecto Renzo Piano, descrevendo os procedimentos do desenho utilizados na projectação, diz: “Começamos por desenhar, depois fazemos uma maqueta, e depois retornamos ao real – ao local do projecto – e depois voltamos de novo ao desenho. Construímos uma circularidade entre desenhar e fazer. [...] Isto (esta circularidade e repetição) é muito típico da abordagem artesanal. Pensamos e fazemos ao mesmo tempo. Desenhamos e fazemos. O desenho é revisitado. Desenhamos, redesenhamos e redesenhamos de novo.” (citado em ROBBINS, E. (1994) Why Architects Draw. Cambridge. Mass.: MIT Press: 126.

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tenderá a ser menos cuidada e considerada. A própria solução-em-construção tende a adquirir o peso de uma imagem contratual, sobredeterminada, como se desde o início o objecto se configurasse como “a solução”: um objecto sempre acabado, comprometendo a própria compreensão relacional do projecto e, consequentemente, a sua aprendizagem.

A nova realidade das ferramentas do desenho de apoio ao projecto coloca- -nos ainda um outro problema, que diz respeito ao referente, ao património de conhecimento do real que essas ferramentas pressupõem. O fundo naturalista das ferramentas (naturalismo este escondido por detrás da proficiência e da agilidade da informação técnica) necessita que o projectista, pela sua experiência e pela sua cultura visual, se salvaguarde, numa distância crítica, da dupla dobra de representação ali presente. O efeito da utilização exclusiva (ou mesmo preponderante) destas ferramentas ao nível pedagógico, onde esse património é escasso ou mesmo inexistente, é evidente.

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Nas Artes Plásticas os pressupostos da comunicação não constituem uma categoria do desenho, ou sequer uma formulação relevante para a sua prática. Não é a explanação das comunicações, internas e externas, do que decorre no interior do fluxo (criativo) aquilo que constitui o cerne do trabalho do desenho nas Artes Plásticas. No processo artístico, a comunicação pode (e muitas vezes acontece) perturbar ou comprometer o próprio processo criativo. O esforço da comunicação interrompe, distrai, perturba. Obriga – numa escala que nada tem a ver, precisamente, com o projecto no Design ou na Arquitectura – a uma postura de exposição, de explicação que não poderia ser mais exógena ao próprio processo artístico. Apenas nalguns casos, raros e singulares, o equívoco é contornado, por via de um invulgar desdobramento (permanecendo o assunto autoral resguardado por debaixo dessa desenvoltura expositiva). O papel do desenho aqui é outro, não assumindo a natureza de uma pragmática. Trata sobretudo do esclarecimento do próprio trabalho de atenção (no sentido da escuta) aos acontecimentos, procedimentos e afectos que por ali se manifestam

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e ganham forma, às suas velocidades e lentidões, às ressonâncias e, sobretudo, à salvaguarda da área secreta de sombra. Numa simplificação: onde o desenho, no Design, é uma ferramenta de iluminação do caminho, ele torna-se, para o desenho nas Artes Plásticas, o lugar de enriquecimento das reservas – no duplo sentido da palavra, simultaneamente refúgio e retenção. Naturalmente, esta hipótese não identifica fronteiras estanques, mas serve apenas para identificar naturezas e tendências predominantes de uso e utilidade do desenho, numa e outra área. O desenho no Design usa também, naturalmente, da atenção que foi aqui resgatada para as Artes Plásticas. Mas desenvolve essa atenção numa articulação distinta com o mundo. Do mesmo modo, também o processo artístico recorre à vertente comunicacional do desenho, muito particularmente, para esclarecimento do “seu mundo”. Simplesmente, ela não constitui o seu fundamento.

Enquanto no desenho do Design a presença (ou a iminência) do Outro determina, em grande parte, o caminho, já nas Artes Plásticas são os caminhos que dão corpo ao Outro. O mundo e as suas negociações de eficácia não constituem o chão primordial das Artes Plásticas. Consequentemente, não é sobre o mundo que o desenho artístico – e as directrizes do seu ensino - deverá incidir. A arte organiza e revela. Ao artista cabe dar significados ao mundo, não construí-lo ou controlá-lo. Segundo Mário Perniola, aquilo que separa a Arte das restantes produções é que aqui o assunto está sempre, de certo modo, naquele lugar a que o autor chama a Sombra. Na introdução ao seu livro A arte e a sua sombra, o autor apresenta aquilo que considera as duas posturas ingénuas que caracterizam hoje o olhar dominante sobre a Arte e a produção artística. Depois de descrever uma e outra – a postura que identifica estritamente a Arte com o objecto produzido (a que chama a perspectiva do proprietário), e a outra, igualmente ingénua, que identifica arte e vida, diluindo-a nas inúmeras manifestações mundanas (frequentemente performativas) que constituem o quotidiano contemporâneo –, diz:

“A ingenuidade das duas posições está na pretensão comum de detectar a arte na sua totalidade, como entidade bem determinada ou como comunicação imediata, ignorando a sombra que inseparavelmente acompanha tanto a obra

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como a operação artística. Por outras palavras, a arte, hoje, mais que nunca, deixa atrás de si uma sombra, um perfil menos luminoso, que retrata o que de mais inquietante e enigmático lhe pertence. Quanto mais violenta é a luz que se pretende investir na obra e na operação artística, tanto mais nítida é a sombra projectada; quanto mais diurna e banalizante é a aproximação feita à experiência artística, tanto mais o seu essencial se retrai e protege na sombra.”8

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Quais são então os conteúdos que caracterizam a natureza do desenho das Artes Plásticas, por oposição ao Design? Para dar um exemplo mais concreto sobre este ponto, gostaria de tratar brevemente um elemento básico e habitual do desenho: a linha de contorno. Evoquemos, por momentos, aquilo que caracteriza a natureza do desenho de representação. Este tipo de desenho recorre, maioritariamente, ao desenho linear, à linha que define os contornos do objecto em representação. Descrever, identificar, medir e relacionar são algumas das operações fundamentais dessa representação que a linha singular, mais que qualquer outro dispositivo de inscrição gráfica, pode (se a soubermos utilizar adequadamente) efectuar com a máxima eficácia e economia. Quem comece a desenhar – seja ele um adulto ou uma criança – concentra- -se geralmente nos contornos dos objectos que pretende representar e tenta fixá-los no seu papel, pela simples razão que a primeira coisa que quer encontrar, e à qual se pode ater, é a extensão de cada objecto e as características da sua forma. Além disso, as linhas de contorno permitem colocar uma coisa no seu lugar certo no papel e atribuir-lhe as proporções correctas.

8 PERNIOLA, M. (2006)

A arte e a sua sombra. Lisboa: Assírio & Alvim: 8.

9 DELACROIX, E. (2006)

The Journal of Eugène Delacroix. London: Phaidon.

10 “A arte não reproduz

o visível, torna visível.” KLEE, P. in “O credo do criador”, Escritos sobre arte (2001). Lisboa: Cotovia: 38.

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A linha de contorno contém três qualidades: 1. por um lado, unifica aquilo que circunscreve; 2. por outro, um desenho realizado por linhas de contorno cumpre sempre este requisito; 3. finalmente, o contorno torna um desenho de representação facilmente inteligível: é um modo de simplificar a representação. Mas, se a utilidade destes atributos em Design é inquestionável, nas Artes Plásticas o desenho não é tanto determinado pelas formas naturais (que não são, na verdade, aquelas do mundo mas as do artista) como pelos métodos através dos quais é possível realizá-las. Neste sentido, existem duas grandes vias gráficas para desenhar os objectos visíveis: por via dos contornos ou por via das massas. A diferença entre ambas é suficientemente importante para nos atermos ao que está implicado nessa operação.

A predominância do contorno no desenho utilizado pelo Design é evidente e justificado pelas características acima expostas. Mesmo em Arte, muitos foram os artistas notáveis (e mesmo escolas inteiras) que seguiram exclusivamente este método, por muito que o tenham refinado e complexificado. Desenharam sempre as suas imagens como um sistema de linhas de contorno – um procedimento aparentemente natural e óbvio. Mas a linha de contorno tem, de facto, limitações e desvantagens (que já Delacroix enunciara): uniformiza excessivamente a inscrição gráfica, destrói a plasticidade e planifica o espaço, prejudicando os volumes. Para evitar este equívoco, Delacroix defendia que para desenhar e entender as formas era preciso “les prendre par les milieux”9, agarrá-las pelos seus centros. Esta maneira de percepcionar a forma pelo centro implica aceder- -lhes pela massa – e não pelos contornos. A ideia dominante por detrás deste procedimento nada mais pressupõe do que aplicar ao desenho os processos da nossa visão, apreendendo as formas em toda a sua plenitude e potência. Naturalmente, este outro método de que fala Delacroix não pode prescindir absolutamente da linha de contorno. Dá-lhe apenas uma ampliação do sentido, enriquecendo-o. Aquilo que importa aqui reter é que, como se percebe através deste exemplo, nas Artes Plásticas o acesso ao desenho não depende tanto da representação do visível como da apresentação, do “tornar visível” (para usar a conhecida expressão de Paul Klee10). As linhas são sempre abstracções e tanto descrevem indiferenciadamente o momento onde o objecto nos escapa no espaço, como uma mera mudança de cor sobre o mesmo plano.

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Tanto no Design como nas Artes Plásticas, talvez a aceitação universal (particularmente por parte daqueles que lidam com formas volumétricas) de códigos simplistas e ferramentas inadequadas para trabalhar imagens bidimensionais de entidades espacialmente mais complexas esteja relacionada com o empobrecimento da própria experiência dos objectos (e das suas imagens). Os recentes desenvolvimentos na área da modulação digital, com toda a panóplia de ferramentas de mimetização, tentarão talvez, num futuro próximo, colmatar esta imensa lacuna que a cadeia de procedimentos artesanais outrora resolvia naturalmente.11 Essa permanente simulação do objecto produzido ao longo de todo o processo, desse objecto-já-no-mundo é, no entanto, apenas uma das muitas direcções que o desenho como ferramenta de projecto proporciona... Outras ferramentas e modos poderão (e deverão) acompanhar, critica e imaginativamente, o desenho enquanto meio de invenção, aceitando a sua indispensável complexidade. Num texto onde se desenvolve, a partir de algumas observações dos Diários de Delacroix,12 uma elaborada exposição sobre a natureza das linhas de um desenho (artístico) e as funções que estas desempenham, Kurt Badt (numa obra de 1946, The Drawins of Delacroix13) pergunta-se:

“O problema com que nos deparamos é: como se ensina um procedimento cuja natureza é tão espiritual, tão individual? Num primeiro relance, este parece ser um problema estritamente profissional. Contudo, nas Artes Plásticas, o conhecimento do método de execução coincide, em larga medida, com o conhecimento da coisa executada; o assunto apresentado é assim de importância crucial.”

11 A título de exemplo,

Ron Aarad utiliza hoje, no seu ateliê e em projectos, meios estritamente digitais, criados para o efeito, para desenvolver a progressão que medeia entre os seus esboços diagramáticos e a representação do projecto final enquanto informação para execução e produção do objecto.

12 DELACROIX, E. (2006)

The Journal of Eugène Delacroix. London: Phaidon.

13 BADT, K. (1946) Eugène

Delacroix, Drawins of Delacroix. Oxford: Bruno Cassirer: 52.

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O desenho não existe independente do corpo que o produz. Não existe fora da equação que constitui esse corpo que trabalha e do seu contrato com o mundo. Ele poderá aquilo que pode o corpo que trabalha – e onde trabalha, nesse corpo e com esse corpo. Para entendermos a natureza e as potencialidades do desenho é um erro considerá-lo uma

ur-ferramenta,14 uma pré-existência exterior à própria

matéria-em-formação, uma mera técnica. Até porque, nos

processos de trabalho utilizados pelas Artes Plásticas e pelo Design, a técnica é uma técnica de natureza muito singular: ela comporta já uma componente expressiva.15 O desenho deverá, nas Artes Plásticas, promover sobretudo o trabalho da atenção, uma espécie de sensibilidade às “ressonâncias interiores” de que falava Kandinsky.

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Gostaria de, para concluir esta Aula Aberta (e também para relativizar a eventual distância criada pelas clivagens insinuadas nos dois pontos enunciados atrás), avançar com duas citações que incidem sobre uma zona onde o desenho pode contribuir significativamente para ambas as áreas em questão (o Design e as Artes Plásticas): a zona do trabalho e das suas condições oficinais (no sentido intraduzível do “craft”). Uma e outra citações andam à volta desse centro autoral que são a própria sustentação das duas práticas, onde se misturam a persistência e a motivação, a disciplina e a surpresa, e que constituem a pedra de toque do quotidiano do artista como do designer. As citações são apresentadas sem comentários ou desenvolvimentos. Aforismos certeiros, (a meu ver) de que o aluno saberá deduzir, pela sua expe-riência (por breve que ela, ainda, seja), a matéria e a utilidade.

14 ‘Ur-‘, prefixo

alemão, que significa primordial, arquétipo simultaneamente fundador e eterno.

15 Esta hipótese coloca

naturalmente algumas dificuldades quando se trata de definir e fixar programas e currículos para o Desenho nas Artes Plásticas - onde o objecto do “ver claro” não possui a palpabilidade das outras áreas de utilidade mundana.

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A primeira citação encontra-se num pequeno subcapítulo de um livro de Richard Sennett sobre cultura material. O livro pretende ser o primeiro volume de uma trilogia, ainda em construção, e chama-se “The Craftsman”16. O fragmento é denominado “Como o artesão consegue trabalhar com a resistência” (pág. 215), e é parte do capítulo “Resistência e ambiguidade”.

“Nós queremos começar com resistências, esses aconteci-mentos que surgem no trajecto da vontade. As resistências podem ser de dois tipos: encontradas ou fabricadas. Tal como o carpinteiro se depara com nós imprevistos numa tábua de madeira, também um construtor pode surpreender um leito lamacento por debaixo das fundações de uma casa em construção. Estas resistências, subitamente encontradas, contrastam com aquilo que um pintor faz quando raspa a tinta da superfície acabada de um muito satisfatório retrato, decidindo recomeçar de novo; aqui o artista decide colocar um obstáculo no seu próprio caminho. Os dois tipos de resistência aparentam ser absolutamente distintos: no primeiro, algo nos bloqueia, no segundo, somos nós a criar as nossas próprias dificuldades.”17

A segunda citação é parte de uma entrevista de um artista plástico que não poderia estar mais longe do Design, Joseph Beuys, mas que toca aqui um ponto crucial, transversal a todo o desenho: o da sua utilidade fundamental no processo de trabalho – de qualquer trabalho. Trata-se de uma observação do artista, posterior à produção dos desenhos em questão:

"Só posso dizer que se não tivesse feito essa grande quantidade de desenhos, também não poderia ter feito o trabalho político. Creio também que estaria dando voltas

16 A presente obra

constitui o primeiro volume de uma série de três livros sobre cultura material, sendo, até esta data, o único publicado.

17 SENNETT, R. (2008)

The Craftsman. London: Allen Lane-Penguin: 215.

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à cabeça a conceitos totalmente errados se não tivesse feito esse trabalho. Continuo a considerar estes desenhos como uma das coisas mais importantes que fiz, pois todos esses ensaios ou experiências com o desenho constituem para mim um material imensamente valioso. Quando agora vejo os desenhos, já certamente antigos, penso: isto não está feito, isto não está realizado, isto não está nem sequer tocado. Aí dentro há uma enorme quantidade de coisas. Ou seja, para mim este é um elemento de importância vital".18 r 18 BEYS, J. (2004) What

is Art? Conversations with Joseph Beys. Clairview: Edited by Volker Harlan : 24.

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