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A BUSCA PELA INDIVIDUAÇÃO ATRAVÉS DA RELIGIÃO: QUANDO O INDIVÍDUO ESTÁ PRIVADO DE SUA LIBERDADE

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Maria Carolina Rissoni Andery

A BUSCA PELA INDIVIDUAÇÃO ATRAVÉS DA

RELIGIÃO: QUANDO O INDIVÍDUO ESTÁ PRIVADO DE

SUA LIBERDADE

Faculdade de Psicologia

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Maria Carolina Rissoni Andery

A BUSCA PELA INDIVIDUAÇÃO ATRAVÉS DA

RELIGIÃO: QUANDO O INDIVÍDUO ESTÁ PRIVADO DE

SUA LIBERDADE

Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial da graduação no curso de Psicologia, sob orientação do Prof. Dr. Sergio Ozella.

Faculdade de Psicologia

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Agradecimentos

Aos meus pais, pelo financiamento. A eles, meu irmão e familiares pelo carinho, incentivo, paciência e confiança que depositaram em mim nesses anos de trabalho e luta para conquistar meu objetivo.

Aos amigos, sempre presentes, pelo apoio e incentivo, principalmente a Andrea, pela convivência harmoniosa, confiança e cooperação para que eu conseguisse atingir este objetivo.

À professora Graziela Acquaviva Pavez que me incentivou a continuar o projeto feito em 2005, no qual foi orientadora.

Ao prof. Dr. Sergio Ozella que aceitou orientar meu trabalho, mesmo não sendo da sua área. Por ter me ajudado com discussões, conversas e ter acreditado em meu projeto.

À profa. Noely Moraes que aceitou ser co-orientadora, ajudando-me nas questões relacionadas à teoria e dispendendo seu tempo para discutir alguns assuntos comigo.

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No silêncio do si mesmo encontra-se o que não tem representação, o que está para além de qualquer suposta identidade.

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7.07.00.00-1

Ma Carolina Rissoni Andery: A Busca pela Individuação Através da Religião: Quando o Indivíduo está Privado de Sua Liberdade, 2008.

Orientador: Prof. Dr. Sergio Ozella

Palavras-chave: Presidiário, Religião, Processo de Individuação.

Resumo

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Sumário

Introdução ... 1

Método ... 5

1. Sistema Prisional e Religião ... 8

1.1 Sistema Prisional ... 8

1.2 Sistema Prisional e Religião ... 11

1.3 Presídio Militar “Romão Gomes” ... 15

2. Estado, Sociedade e Sistema Prisional / Penal ... 16

3. Psicologia Analítica ... 24

3.1 Psicologia Analítica e Religião ... 31

4. Análise: Como se dá o Processo de Individuação Dentro do Presídio?... 37

4.1 Relações entre Presídio e Religião ... 37

4.2 Análise do relato de um interno ... 41

5. Considerações Finais ... 49

Referências Bibliográficas ... 52

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Introdução

“O lugar de origem de uma fé verdadeira não é a consciência e sim a experiência religiosa espontânea que estabelece um elo direto entre o sentimento de fé e sua relação com Deus” (JUNG, [s.d.])1

O individualismo presente na sociedade de hoje é muito grande, principalmente nas grandes cidades, onde as relações estão cada vez mais frias. Nas palavras de Bezerra (1995) vive-se a ‘solidão das massas’, o ‘stress urbano’, o consumismo, e este conjunto torna o contato humano cada vez mais difícil e distanciado. A mesma autora ainda comenta que no nosso mundo globalizado, onde o indivíduo é reduzido apenas a uma “unidade econômica”, produto do trabalho e do consumo, a busca da individuação2 começa a surgir como único valor que ainda faz sentido. Em meio a esse processo, tem aumentado a procura por uma religião, o desejo de pertencer a um grupo que possa diminuir as angústias e de alguma forma oferecer respostas,

Muitas pessoas hoje buscam uma religião como forma de reencontrar-se. Essa busca em geral se dá nos momentos em que ele já não encontra mais respostas às suas questões existenciais. Surge o desespero, angústia e todos os recursos encontram-se esgotados, então o homem reza e suplica sem saber a quem. A religião se propõe através dos símbolos utilizados pelo homem, a ser portadora de um mundo que faça sentido, tornando desta forma o fiel mais forte. (BEZERRA, 1995: 25-26)

Considerando que a sociedade vive um momento de crise, a religião vem acenando às pessoas a possibilidade de pertencerem a um mundo que propõe um sentido para suas questões existenciais. Em outras palavras, a busca pela religião tem crescido devido ao desejo das pessoas de pertencerem a um grupo já que nossa sociedade vive um momento de crise. (BEZERRA, 1995; ANDERY, 2005)

1 In ANSPACH, Sílvia. C.G. Jung Rituais, Dogmas e Identidade Humana e Religiosa, p 62

2 Ou seja, a busca por si – mesmo, tornar-se único. Quando o indivíduo passa pela individuação ele entra em

contato com o mundo externo e interno, “deixando” de lado as características que não são dele, que são de sua família / cultura e passa a ser mais dono de si. Ampliando sua consciência através da integração dos

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Discorrendo um pouco sobre a crise atual, pode-se dar destaque para o problema da criminalidade no Brasil. A impunidade é muito grande. Segundo o NEVUSP3 (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo) de 1980 a 2006 houve 568 linchamentos; 8422 casos de execução sumária; e 5371 casos de violência policial no Estado de São Paulo. A violência está cada vez maior, as pessoas mais descrentes em relação à polícia, ao governo, enfim, não se sentem protegidas pelos órgãos que deveriam dar segurança, prevalece a descrença e a sensação de impunidade.

Nessa linha de raciocínio em 2005, desenvolvi um estudo que tinha como hipótese verificar se a religião era utilizada pelos presidiários (estes, ex-militares) como válvula de escape. Observou-se que estes indivíduos apegavam-se a ela (religião) pelo seu simbolismo e para conseguir continuar convivendo com a privação de liberdade, distanciamento da família e cumprimento da pena. (ANDERY, 2005)

As religiões, muito antes de qualquer prática psicológica, procuram através de suas visões de mundo, de homem, ritos e sacramentos dar respostas e significados às necessidades existenciais humanas, baseadas nas normas estabelecidas e que devem ser seguidas por aqueles que têm fé e almejam as dádivas “prometidas”. Pode ser vista como um conjunto de pensamentos e ações em torno do divino, tendo por finalidade tornar o Ser Divino propício e favorável ao indivíduo ou comunidade. (BEZERRA, 1995: 8 - 22)

Hoje em dia há um grande número de Religiões que procuram ampliar o número de devotos e movimentos, como por exemplo: Cristãos, Espíritas, Adventistas, Evangélicos, entre outros. Falando particularmente sobre a religião Evangélica têm-se várias ramificações, e dentro de cada movimento existem diversas Igrejas correspondentes. Dentre as religiões optei, em 2005 abordar presidiários devotos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Igreja que pertence ao Neopentecostalismo Autônomo. No presente o estudo tinha a mesma intenção, mas devido a saída da IURD desse presídio, fiz minha investigação com um presidiário evangélico.

As Igrejas Neopentecostais surgiram do movimento pentecostal, de Igrejas Evangélicas, onde a Palavra de Deus, é levada ao indivíduo através do Evangelho. Tais Igrejas têm a fé como mecanismo solucionador da crise existencial do ser humano, que procura pertencer a um grupo, mesmo que a sociedade e as próprias Igrejas o enxerguem

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através do individualismo. Esse movimento especializou-se em propor soluções para pessoas que vivem em sociedades como o Brasil, assimétricas, dizendo respeito a problemas de ordem material e espiritual. As igrejas neopentecostais têm em seu ideário e culto características da contemporaneidade: o uso dos meios de comunicação de massa, valorização do corpo como lugar em que as forças físicas e espirituais se encontram; o exercício da cura obtida pelo poder do Espírito Santo; e a demonização do erro, do sofrimento, e do ‘outro’. (MACHADO, 2000; SILVA, 1998)

Verifica-se hoje, na nossa sociedade, uma grande valorização da mercadoria. As relações estão progressivamente frágeis e as pessoas sentem cada vez mais medo e vêem-se desamparadas. Projetam suas expectativas, vontades e medos nos outros e nas instituições, principalmente nas governamentais, pois são estas instituições que deveriam dar suporte e segurança às pessoas; demonstrando que os indivíduos passam por muitas mudanças, crises e falta de assistência. No caso dos presidiários o problema parece ainda maior. Na maioria das vezes, o presidiário (homem) é o provedor da família e alguém que finge estar bem onde está para não preocupar seus entes ainda mais, pois, estes, quando vão visitá-lo estão preocupados com sua situação e em deixá-lo o menos preocupado possível com os problemas da família. (ANDERY, 2005)

Levando em consideração a questão dos indivíduos que cometeram crimes e são presos não se pode deixar de considerar o fato de o sistema prisional ser um sistema falho, ou seja, não propõe mudanças para o indivíduo e não cumpre com seus deveres – não dá o respaldo suficiente para que o indivíduo se ressocialize. (TORRES, 2001) Ele (Sistema Prisional) é regulamentado pela Lei de Execução Penal – Nº 7.210 de 11/07/1984 (LEP), que se fosse cumprida conseguiria reeducar e ressocializar pelo menos uma parcela da população carcerária e transparecer seu nível de eficiência e competência.

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A população do estudo de Andery (2005) envolveu presidiários que foram policiais militares (PM), portanto, é possível que eles se sentissem poderosos ou até onipotentes, pois tinham a incumbência de prender, matar, decidir pela vida de um terceiro. Com a falta de preparo e infra-estrutura vista hoje (baixo salário, falta de cursos de reciclagem e supervisão durante o dia de trabalho), esse poder tornou-se conflituoso fazendo com que, em muitos momentos, o indivíduo não separe mais sua individualidade como PM de sua individualidade como cidadão e provedor de família. Quando o policial é detido acontece uma mudança em sua identificação, pois passa de militar para um presidiário, alguém que precisa conviver com a ausência de sua família e do poder, a privação de liberdade e os problemas do sistema prisional, razões pelas quais, provavelmente o indivíduo busca a religião, um grupo para sentir-se amparado. Então, o presidiário passa a ser um ex-policial, presidiário e religioso, ou seja, parece ter três individualidades diferentes, (ANDERY, 2005)

A assistência religiosa no presídio é forte, existem muitas Igrejas trabalhando dentro dele, que procuram dar respaldo e conforto para os indivíduos. No caso dos freqüentadores das Igrejas Evangélicas, estas buscam fazer um trabalho para “tirar o demônio do corpo”, pois o erro foi do outro (demônio) e não do indivíduo. Nesse caso é dito que foi o demônio quem o cometeu e não o José / Paulo/ João, por exemplo, o que de alguma forma os alivia bastante, pois tira o peso da culpa.

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O presente estudo tem por objetivo investigar como se dá o processo de individuação para o indivíduo religioso que está no presídio cumprindo pena privativa de liberdade. Ou seja, como a pessoa que teve sua liberdade privada consegue enxergar a si própria, tendo passado por uma completa mudança de vida e sendo obrigada a ficar em um lugar repleto de novas regras, sendo esta, religiosa ou não antes de sua entrada no presídio, mas que tenha se tornado ou continuado a freqüentar cultos de Igrejas Evangélicas. Como entende a mudança que aconteceu e se vê como pessoa, como alguém que infringiu a lei, não é mais policial e ao mesmo tempo continua sendo o pai, marido, irmão, filho de determinada família. Segundo Bezerra (1995), o homem é o único ser que se pergunta a respeito de sua identidade, “seu modo de ser no mundo” e sente necessidade de elaborar suas angústias, o que o faz sair à procura de formas alternativas que o auxiliem a resgatar sua identidade.

Para tanto, foi feita uma pesquisa bibliográfica sobre o assunto – religião, sistema prisional e violência e foi estruturado um capítulo de fundamentação teórica de acordo com conceitos da Psicologia Analítica que permitirão a discussão dos resultados obtidos.

Método

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a discussão dos resultados procurando fazer uma articulação dos primeiros capítulos com as informações obtidas através da tradução (delimitação do contexto) e associação.

Para execução das entrevistas houve contato com o Presídio Militar Romão Gomes, local onde foi feita a pesquisa anterior, buscando a possibilidade de fazer o presente estudo como extensão do trabalho realizado em 2005. Nesse contato foi detalhado o objetivo da pesquisa,; comentado sobre as entrevistas anteriores (como foram realizadas); falado sobre a necessidade de mais de um encontro para que os objetivos da pesquisa fossem alcançados e apresentado um termo de consentimento livre e esclarecido.

O “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, e a pesquisa em geral, levaram em consideração as questões éticas e estão de acordo com as normas previstas pelo Conselho Nacional de Saúde (Resolução 196/96), garantindo sigilo profissional pelo comprometimento de não divulgar a identidade dos participantes, bem como a utilização dos registros obtidos apenas no âmbito acadêmico4.

A Psicologia Analítica trabalha com conceitos como: inconsciente coletivo, inconsciente pessoal, arquétipo, complexo, símbolo, entre outros. Tais conceitos dizem respeito ao modo de o indivíduo se portar e estabelecer suas relações com o mundo e o outro. Estão relacionados também à história da cultura, como, por exemplo, os arquétipos que dizem respeito a padrões de comportamentos comuns à humanidade e se expressam de formas diferentes na cultura. Os símbolos são a conexão do consciente com o inconsciente e o fenômeno psíquico possível de ser analisado, ou seja, dizem respeito a algo vivido ou chamativo para o indivíduo, pois lhe causa emoção. Eles “podem ser interpretados a partir de um contexto psicológico histórico, cultural ou generalizado5”.

Por meio desta abordagem foram discutidas e analisadas as entrevistas feitas com presidiários que cumprem pena no Presídio Militar Romão Gomes e que, no interior do mesmo, freqüentam cultos de Igrejas Evangélicas. Para escolha do sujeito houve uma

4 O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

com protocolo sob no 070/2008

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conversa com o Coronel do presídio, onde foi esclarecido que para cumprir o objetivo da pesquisa seria necessário entrevistar presidiários religiosos que freqüentassem cultos evangélicos. Primeiramente foram escolhidos três sujeitos, estes foram indicados pelo Coronel, houve uma entrevista com os três na qual houve a participação de um sargento na sala. As entrevistas podiam acontecer durante uma hora e meia e foram feitas perguntas mais diretivas, não tão profundas. Após essa entrevista foi escolhido um dos três entrevistados que havia iniciado freqüência às Igrejas Evangélicas dentro do presídio e falou mais sobre as mudanças que ocorreram em sua vida. Por meio das entrevistas, buscou-se identificar a forma como se dá o processo de individuação dos presidiários devido às mudanças que sofrem dentro do presídio. Ou seja, como o indivíduo se vê dentro daquele contexto, se conseguiu se singularizar, construir novas formas de ser dentro do ambiente restritivo de liberdade.

A análise das entrevistas foi feita com base na Psicologia Analítica, como dito acima, e teve como critério a transcrição, leitura e separação de algumas categorias, como: busca pela religião; relação Deus - Demônio; transformações ocorridas; relação Deus – pai; relação com a família; e escolha da profissão, ligada a poder. A partir dessas categorias foram encontrados símbolos na fala do sujeito, levando em conta, principalmente os momentos em que ele demonstrou emoção.

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1. Sistema Prisional e Religião

1.1Sistema Prisional

“As prisões estão dentro das cidades e ninguém as vê” (Michel Foucault, [s.n.t.] apud ANDERY, 2005)

No Brasil até o século XIX, a repressão penal não distinguia os crimes de ordem moral, religiosa, política ou econômica. Após a chegada da Família Real no Brasil em 1808 é que surgiu a gênese moderna das prisões e com a Constituição Imperial de 1824 organizou-se um código criminal que determinava a pena privativa de liberdade e a existência de prisões sob condições de higiene e funcionamento. (TORRES, 2005) “O uso da prisão enquanto sanção penal e autônoma aparece a partir do desenvolvimento da sociedade organizada sob os modelos do capitalismo”. (SOUZA, 2004:1)

Segundo Torres (2005), a prisão recolhe intencionalmente o indivíduo a um sistema social fechado de poder, com cultura, regime e conflitos internos próprios que não se reduzem aos muros, grades, celas e trancas. “Estabelece o cunho terapêutico e correcional, institucionalizando as relações e os comportamentos de funcionários, técnicos e massa carcerária, falaciosamente acreditando que levará o indivíduo, supostamente adaptado pela prisão, a viver livremente” (p. 36) Concebida pelos reformadores progressistas do século XIX como local de meditação e arrependimento interior, como instituição total, não cumpre suas funções regeneradoras dos homens que são encaminhados para lá pelo Judiciário. Segundo Zaluar (1994), a prisão é, de fato, o lugar onde se completam os circuitos da revolta por ser pobre, do aprendizado do crime e da aquisição de vícios pelo ócio, na visão dos criminosos de Cidade Deus – tenham, estes, passado pela instituição ou não. E a passagem por ela causa silêncio, o que acontece em seu interior não é muito comentado pelos que lá estiveram, embora mencionem “horrores”; é como se a lei da prisão (não ter olhos, ouvidos, boca) continuasse a impor proibições além dos muros. (p. 85 -86)

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demonstra que, se cumprida integralmente, ressocializaria e reeducaria o presidiário. Mas este sistema apresenta grandes problemas em seu funcionamento, como: superlotação (“a superlotação foi constante nos cárceres brasileiros desde o século XIX e no século XX, a prisão crescerá se alimentando do contingente de excluídos sociais” (TORRES, 2001:58)) e desrespeito aos direitos humanos, demonstrando, então, que a ressocialização dificilmente irá acontecer. (ANDERY, 2005) Segundo Marchezi & Menandro (2004), as prisões brasileiras funcionam como mecanismo de oficialização da exclusão que já paira sobre os detentos, o descrédito e rejeição como um atestado de exclusão com firma reconhecida.

Contudo, não podemos falar sobre esse assunto sem pensar na conjuntura social, política e cultural na qual estamos inseridos, “pois a realidade carcerária brasileira é o retrato fiel da questão social numa sociedade desigual e de excluídos sociais” (TORRES, 2001:78) O indivíduo sofre muitas violências em seu dia-a-dia, principalmente aqueles que estão na margem de exclusão.

O empobrecimento dos mecanismos tradicionais de socialização, o enfraquecimento de algumas instituições, e a desresponsabilização do Estado para com os seus deveres de garantir os direitos de cidadania desencadeou uma crise de valores que fez surgir uma ideologia individualista onde o sujeito passa a ter como ideal uma liberdade exacerbada. Hoje, a sociedade “pede” que seus membros sejam consumidores através dos meios de comunicação de massa. Quem não pode participar desse consumismo acaba ficando excluído e, alguns partem para a vida de crimes em busca de dinheiro ou poder para conseguir ter tudo aquilo que almejam, ou seja, o não consumismo leva à exclusão da sociedade. (ANDERY, 2005:21)

Entretanto, essa realidade em que nos encontramos, na qual o individualismo está muito presente e o consumismo exacerbado, faz com que as pessoas percam seu valor. Não diz respeito somente à diferença de classe, rico e pobre, mas, também, ao que Bauman chama de sociedade líquido – moderna.

‘Líquido – moderna’ é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir e onde o lixo é o principal e, comprovadamente, mais abundante produto da sociedade líquido-moderna de consumo (BAUMAN, 2007:6 – 17, grifo nosso)

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são jogadas no lixo rapidamente, pois perdem seu valor de uso para que sejam substituídas por outras melhores ou citadas como melhores. As realizações individuais não se tornam permanentes porque as mudanças são bruscas, as capacidades se tornam incapacidades rapidamente. “Entre as artes da vida líquido – moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade em adquiri-las” (BAUMAN, 2007: 8)

O resultado disso tudo está estampado através dos meios de comunicação e nas ruas através do medo, da intolerância e da grande violência. Esquece-se das pessoas e das relações como se esquecem das coisas. As pessoas que estão em privação de liberdade são um grande exemplo. Muitas delas não recebem visita o que faz com que precisem comercializar ou pedir à Assistente Social ajuda para conseguir as coisas para sua necessidade básica, gerando o crescimento do comércio também dentro dos presídios, que não se resume aos produtos de necessidade básica.

O Estado de São Paulo é o mais problemático, a situação carcerária é a mais desordenada, proporcionando diversas rebeliões que são mostradas pelos meios de comunicação com um certo sensacionalismo, o que causa revolta e preocupação na população. Mas, também fica evidente um outro lado, que é a precariedade do sistema. Marchezi & Menandro (2004) dizem que o trajeto de exclusão que os presidiários brasileiros sofrem são expressos através das rebeliões: desejo de ser gente e angústia por se sentirem inferiores, sem valor, procurando por um reconhecimento social. (ANDERY, 2005)

Existe uma “desassistência” em relação a população carcerária que é o sinal da “ausência de uma política pública séria voltada para este segmento da população em situação de reclusão e portadora de necessidades sociais muito específicas” (TORRES, 2005:17) Fato comemorado pela sociedade - que concorda e autoriza o Estado a punir quem comete crime - , destacando que a situação das prisões é problema político, pois a falta de verba não é pior que a desorganização e desumanização encontradas.

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hoje se impõe, sobretudo, aos que têm o poder da criminalização stricto sensu; pois têm, igualmente, o poder de reencontrar o território da cidadania. (ANDRADE, 2003:30)

Combinando as condições das prisões com as condições sociais no Brasil, verifica-se que para o detento não há prognóstico, há apenas diagnóstico - bandido - verifica-segundo Marchezi & Menandro (2004), pois as prisões devolvem para sociedade o indivíduo destruído por ter passado por exclusão social, desigualdade e pobreza com grande intensificação em relação a tudo que passava fora, já que aconteciam em um local que não mostrava saída. (ANDERY, 2005)

Segundo a mesma autora, por esses e outros motivos, como, por exemplo, agüentar o período de privação de liberdade, a religião é um instrumento bastante utilizado por essas pessoas. Muitas delas quando saem do presídio são devotas, estão seguindo uma religião. Sendo as evangélicas, pentecostais, as mais presentes, cujos cultos são mais procurados pelos devotos para ouvir a “palavra de Deus”, sem que se preocupem com o nome da Igreja. Segundo Machado (2000), praticamente todo sistema religioso tem uma narrativa mítica que procura explicar o surgimento da mulher, do homem, da natureza. Com isso dá para perceber que a religiosidade está intrinsecamente relacionada com o imaginário de cada grupo social, já que a obsessão do homem para circunscrever o bem e o mal varia de cultura para cultura.

1.2 Sistema Prisional e Religião

Existe relação entre o sistema prisional e a religião, pois a assistência religiosa é prevista pela LEP, assim como as assistências: psicológica, médica, jurídica, social e educacional.

Como previsto no artigo 24 da citada Lei:

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§ 1o No estabelecimento haverá local apropriado para os cultos religiosos

§ 2o Nenhum preso ou internado poderá ser obrigado a participar de atividade religiosa.

Esta é uma assistência muito importante para os presidiários, principalmente porque como verificado em estudo realizado anteriormente, a religião é usada como válvula de escape, um meio para que os mesmos continuem convivendo com a privação de liberdade e outras mudanças decorrentes do encarceramento. (ANDERY, 2005)

A religião é importante para a sociedade moderna, onde o distanciamento dos indivíduos e a perda do espírito coletivo são mais freqüentes, levando a solidariedade à morte. Ou seja, é uma necessidade social que utiliza Deus como garantia para algum imprevisto.

O Brasil é um país onde a mistura de crenças e rituais é bastante freqüente. “O sincretismo configura um quadro de fronteiras indefinidas, em que possuir uma crença não exclui a aceitação de outra”. (MACHADO, 2000:50) Muitos fiéis freqüentam a Igreja Católica, mas vão algumas vezes a cultos evangélicos ou espíritas, buscando uma resposta ou um conforto maior, para então decidirem qual religião vão seguir, pelo menos por um certo período.

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Segundo a psicóloga Karina Prates da Fonseca6, o trabalho religioso acaba sendo muito rico para os presidiários, pois além de mostrar uma outra saída para os mesmos, “a partir do momento em que o preso ‘encontra Deus’ toda a vida passada dele é apagada e a responsabilidade por seus atos, destruída. Acontece a construção de um ‘novo homem’”.

A assistência social não pode ocorrer como deveria por falta de recursos, e a psicológica nem sempre é encontrada dentro do presídio. Tal fato deixa o presidiário sem respaldo e convivendo com mais uma carência. Então, a religião traz a relação com o transcendente através de seu simbolismo e em alguns casos a ajuda material que o sujeito precisa, o que demonstra a diferença promovida pelo trabalho religioso, que compensa a falha da necessidade assistencial que os presidiários deveriam receber.

Por ser a religião importante atualmente e um dos temas do trabalho, foram escolhidas como foco as Igrejas Evangélicas, hoje conhecidas como pentecostais. Por serem estas Igrejas as mais fortes dentro do presídio, e existir uma Associação Religiosa de Policiais Militares, onde não existe uma Igreja “comandando”, mas o Evangelho, a Palavra de Deus é levada por um conjunto de Igrejas Evangélicas, considerando, especialmente, que, segundo Durkheim [s.d.], é preciso saber atingir a realidade e a verdadeira significação que o símbolo figura, já que todas as religiões são comparáveis, espécies do mesmo gênero e têm elementos que lhes são comuns.

Nos últimos 20 anos estão emergindo novas religiões, caracterizadas por novas formas da prática religiosa que trazem consigo novas configurações de Deus e resquícios de religiões tradicionais. Contudo, a palavra Igreja continua sendo usada para “designar uma manifestação organizacional de um conjunto de crenças, doutrinas e práticas que ligam pessoas através de rituais coletivos, aos quais se atribuem uma eficácia de origem sagrada” (CAMPOS, 1997:14), além de propiciar a interação coletiva entre o grupo religioso e a sociedade que o contém.

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Podemos identificar esse “excesso de ofertas de produtos religiosos” como uma comprovação de que estamos vivendo num momento onde convivem muitos tipos de credos que não permitem o abandono da secularização da religião, ou seja, apesar de existirem muitos credos, não podemos abandonar a passagem das crenças que estavam sob o domínio religioso, a despeito de termos abandonado a tendência à universalização desse processo. (CAMPOS, 1997) Além disso, podemos, também, identificar que as diferentes religiões oferecem experiências diferenciadas em relação à superação de sentimentos como abandono, desemprego, autodepreciação, entre outros, e fortalecem a dignidade pessoal.

As Igrejas Pentecostais participam do processo de “reencantamento” do mundo. Esse movimento pentecostal propõe dar soluções rápidas aos problemas das pessoas, de ordem material e espiritual, e tem a fé como elemento indispensável para seu sucesso e podendo ser identificado, também, como Pentecostalismo Autônomo (Neopentecostalis- mo). (CAMPOS, 1997; ANDERY, 2005)

Enfim, segundo Campos (1997), as mudanças dos papéis sociais das organizações religiosas, a exacerbação da competição entre agências produtoras de sentido, a possibilidade de escolherem estilos religiosos a partir dos resultados observados constituem-se como apropriação subjetiva e individualizante do sagrado. (34)

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1.3 Presídio Militar “Romão Gomes”7

O Presídio da Polícia Militar “Romão Gomes” – PMRG foi inaugurado em 21 de abril de 1949 e foi oficializado pelo Decreto no 28.653 em 1957, como Unidade Administrativa Autônoma.

Foi criado com o nome Presídio Militar “Romão Gomes” no tempo da Força Pública do Estado de São Paulo. Quando houve a junção da mesma com a Guarda Civil, que resultou na Polícia Militar. Em 1975, com a edição do Decreto no 7290 seu nome foi mudado para Presídio da Polícia Militar “Romão Gomes”. Recebeu esse nome como homenagem ao Coronel Dr. Romão Gomes, o primeiro militar juiz do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Nesse presídio os internos seguem normas como as de um quartel, de forma que acabam sendo resguardadas práticas anteriores, e nesse ponto não saem muito da rotina, já que antes de serem presidiários tinham o cargo de Policiais Militares. Segundo a Assistente Social, o presídio tem um regulamento próprio, não segue a LEP. (ANDERY, 2005)

Existe um diferencial deste com os outros presídios, pois os internos têm assistência social, psicológica e religiosa, todos trabalham em empresas que ficam dentro do presídio e ainda existem civis voluntários que aplicam acupuntura e reiki nos internos. (ANDERY, 2005)

O presídio é dividido em dois prédios: o da administração e o da subseção, neles os presidiários são divididos por estágios. O ambiente parece tranqüilo, todos se cumprimentam pelo nome ou seguindo a hierarquia que existe dentro da polícia militar – isso acontece mesmo entre internos, apesar de não serem mais militares. É um lugar regido pela norma militar, com limites e uma certa liberdade para os presidiários, sendo diferente em alguns aspectos, do que se ouve dos outros presídios. E como muitos outros, recebe as mais diferentes Igrejas para darem assistência a seus internos. (ANDERY, 2005)

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2. Estado, Sociedade e Sistema Prisional/ Penal

“Emancipação ou barbárie, eis o desafio” (RORHER, 2001)

Vive-se sob a égide de um Estado Neoliberal, ou seja, um Estado Mínimo quando se refere aos elementos pertencentes à sociedade e um Estado Máximo para o capital, o que faz com que exista, hoje, uma crise estrutural da sociedade. Dentro dessa perspectiva, Demo (1995) discute quatro paradigmas8 de Estado, quando fala sobre a qualificação do mesmo, apresentando alguns conceitos de uma nação: legítima, democrática e de serviço público. Em relação aos itens citados, pretende-se discorrer sobre o Estado Capitalista Máximo por ser, segundo Demo (1995: 20), o paradigma que representa a ideologia atual dominante, que tem como carro-chefe a privatização crescente de empresas públicas e a diminuição da área de abrangência da atuação do Estado. Faz parte dessa tendência a definição do Estado como promotor de políticas sociais compensatórias, para assistir aos que não conseguem se inserir adequadamente no mercado.

Esse modo de funcionamento do Estado tem como regra básica as relações de mercado, que, do ponto de vista econômico, impõem-se como fim de tudo. “É da lógica do mercado a tendência monopolista e concentradora, por privilegiar os que têm sobre os que não têm, e todas as estratégias políticas que facilitam manter ou alargar as vantagens disponíveis e desejáveis” (DEMO, 1995: 6-7). Segundo o mesmo autor, tal modo de funcionar do Estado é o que faz com que os indivíduos se vejam perdidos, pois a mercadoria tem valor maior, o ter é mais importante que o ser. A prioridade concedida ao sistema financeiro faz com que cresça a ignorância9 entre as pessoas – levando em conta que a educação também foi privatizada e cada vez menos pessoas têm acesso a ela – e o sistema seja mantido, pois a partir do momento em que se evita que o trabalhador se

8 Esses quatro paradigmas dizem respeito ao sistema capitalista e ao socialista. Para Demo (1995) teríamos no

sistema socialista o Estado Socialista Mínimo, pretendido por Marx, e o Estado Socialista Máximo, imposto por Lênin desde a revolução russa de 1917. No sistema capitalista o Estado Capitalista Mínimo, modelo norte-americano, onde a economia de mercado é o regulador central da sociedade e do Estado e o Estado Capitalista Máximo representado pelo Welfare state. (p 9-10)

9 Quando falamos sobre aumento da ignorância na sociedade, estamos falando da falta de recursos existentes,

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conscientize, revolte-se e interfira nas relações de mercado, elas acontecem como “leis naturais”.

Por conseqüência, esse modo de funcionamento influencia a constituição da sociedade que hoje está organizada de uma forma em que as mudanças são bruscas, as coisas acontecem rapidamente, e as pessoas não têm tempo de significar tudo o que acontece em seu dia-a-dia, precisando estar sempre prontas para o novo, para se transformarem em indivíduos diferentes, visto que, na modernidade, sentem-se ameaçadas pelos mais variados riscos, tais como tecnológicos, econômicos, sanitários, entre outros. “Afinal, a ‘identidade’ (tal como costumavam ser a reencarnação e a ressurreição dos velhos tempos) se refere à possibilidade de ‘renascer’, de deixar de ser o que é para se transformar em alguém que não é”. (BAUMAN, 2007:15-16) Ao mesmo tempo em que o indivíduo faz parte da sociedade, convivendo em situações igualitárias com outros indivíduos, ele precisa ser diferente, para ocupar um lugar próprio na estrutura social, havendo necessidade de se destacar de alguma forma, a fim de conquistar seus objetivos. “O perigo não é mais o fato do ambiente, mas os riscos atribuídos às conseqüências das decisões” (MARTUCCELLI, 1999: 160), pois, conforme citado acima, o indivíduo precisa ser diferente, mas ao mesmo tempo sua singularidade é muito parecida com os demais, já que o novo é sempre validado e os símbolos passam a ser os mesmos para todos, de modo que não haja muita diferença entre as pessoas, por mais que busquem, intensamente, constituírem-se em indivíduos únicos.

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valor. Ulrich Beck10 denomina essas instituições como “instituições zumbis”, afirmando que as mesmas “estão mortas e ainda vivas”.

Segundo Andery (2005), essa crise estrutural do Estado – impunidade, aumento da violência, descrença institucional, entre outros - no Brasil, faz com que os cidadãos vivam na barbárie e tem como conseqüência um aumento da violência que perpassa por todos os setores, não deixando a Polícia imune a essa contaminação e, conseqüentemente, obrigando os indivíduos a viverem com o mínimo possível, sem padrões de referência.

Temos uma versão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos (...) os padrões e configurações não são mais “dados”, e menos ainda “auto-evidentes”; eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir. (BAUMAN, 2001:14)

Levando em conta que a violência varia histórica e culturalmente, pois está relacionada com as normas e tratos vigentes em cada sociedade, é possível perceber como os princípios têm sido desconsiderados na atualidade, o limite tem sido ultrapassado (não é mais respeitado o espaço de cada indivíduo, por exemplo) e com isso a perturbação em relação aos outros tem aumentado, mostrando o desrespeito às regras e ao outro. A questão da legalidade e legitimidade é fundamental quando discutida a violência, pois se a questão da legitimidade não for contida satisfatoriamente, “se aqueles que cometeram violência, não sofrem sanções, a população tende a perder a confiança nas instituições”. (FERREIRA, 2002:40) Seguindo esse raciocínio, encontra-se a definição de violência de Yves Michaud:

Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indiretamente, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses ou em suas participações simbólicas e culturais. (MICHAUD, 2001: 10-11)

A partir do exposto por Michaud (2001), e considerando que o estudo ora elaborado também trata a questão da polícia, é possível pensar que com o aumento da violência e as peculiaridades encontradas no trabalho dos policiais, estes vivem numa linha muito tênue,

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pois convivem com a violência na maior parte do tempo em que estão desempenhando suas funções.

A Polícia é um órgão que oferece proteção e pode coagir indivíduos que ultrapassem os limites da lei. Trabalha com a relação proteção/ segurança x punição, uma herança da ditadura militar, e é necessária para a sociedade atual. (ANDERY, 2005) Segundo Dias Neto (2000), citado por Rorher (2001:17), a “Instituição policial é um órgão do Estado que tem autoridade (grande) para intervir na privacidade, na autonomia e na integridade física e psíquica dos cidadãos”. Por ter esse grande poder em suas mãos, é que muitas vezes os indivíduos se encontram numa situação difícil, onde se vêem com grande poder ao mesmo tempo em que são cidadãos comuns (ressalte-se que têm família, necessidades básicas, também sentem angústia, amor, dificuldades financeiras, etc), o que muitas vezes é esquecido pelas pessoas quando olham para a polícia, pois olham para o órgão do Estado, somente, e não para o órgão do Estado e para a pessoa que o representa, que não deixa de ser um indivíduo, embora vestido do fardamento policial. “A questão da violência policial é importante pelo fato de o Estado não ter mecanismos de conter o uso desnecessário de violência pelos seus próprios agentes”.(FERREIRA, 2002: 58)

Como diz Rorher (2001) vivemos numa situação conflitiva entre o impacto sobre a segurança e a qualidade de vida, e entre confiança ou não na justiça. Na pesquisa realizada por Zaluar (1994) citada por Ferreira (2002: 41), existem dados que mostram uma ambigüidade em relação a confiar ou não na polícia e os mesmos sugerem que “o nível de confiança nas ações do Estado interfere no tipo de repressão esperada e que quanto mais grave a situação dos órgãos de questão da segurança é percebida, mais medidas repressivas são propostas”.

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cena foi presenciada, se foi um homicídio ou uma pequena batida de carro onde só é necessário fazer o Boletim de Ocorrência (B.O.). Pinheiro (1998), citado por Ferreira (2002), fez um diagnóstico da polícia destacando questões de racionalização dos gastos de segurança e de adaptação das instituições policiais às regras de uma sociedade democrática, onde devem vigorar os direitos dos cidadãos e o controle da violência. Nesse diagnóstico, destacou pontos como:

Descompasso entre o dever de assegurar os direitos democráticos e a segurança, dizendo que a polícia continua atuando como guarda - fronteiras entre as classes; diferenciação regional; ineficiência da organização em controlar o arbítrio e melhorar o desempenho de seus membros; autonomia excessiva e a falta de controle das policias pelos governos estaduais; incentivo ao uso de armas das corporações e de armas particulares por policiais fora de serviço; má divisão dos recursos para pagamento de pessoal na polícia, incentivando os ‘bicos’ e aumentando a vulnerabilidade dos policiais à violência; precariedade da investigação criminal; e anacronismo de uma policia ostensiva militarizada pelo fato de não haver maiores ameaças violentas aos governos estaduais. (PINHEIRO, 1998 apud FERREIRA, 2002: 58-59)

Por esses e outros motivos os PMs estão se organizando em associações que visam parcialmente atendê-los em situações de acidente de trabalho, separações conjugais, tentativas de suicídio e associações religiosas. Ou seja, associações que atuem sobre o impacto da violência ou outros aspectos na vida pessoal dos policiais11.

A Associação PMs de Cristo, que será apresentada na presente pesquisa por ser religiosa, tem como missão apoiar psicologicamente os policiais, fazendo um trabalho de ronda para valorizar a vida do policial, atendendo-o no próprio lugar de trabalho, no hospital e no presídio Romão Gomes. Existe, dentro da associação, um aconselhamento pastoral, um serviço de plantão que ajuda o policial e sua família. Esse trabalho é desempenhado por um pastor com experiência nessa atividade específica, pois, para dar o aconselhamento, precisa passar por um treinamento e ter um bom “currículo”. A diferença entre a associação e uma igreja é que, a primeira, conhece melhor tudo aquilo pelo que o policial passa e vai ao encontro deste, fazendo com que aceite com maior facilidade seu auxílio, pois individualiza o ser humano e começa sua ação levando Deus e a palavra, não a

11 In ANDERY (2005) e discussões feitas no Núcleo de Violência e Justiça da Faculdade de Serviço Social da

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igreja. Por esse motivo sua ação não diz respeito a uma Igreja, leva o nome da mesma, mas relaciona-se a muitas Igrejas Evangélicas12.

Segundo o Ex-Tenente Zeza (da Associação dos PMS de Cristo), o Policial Militar, por estar em contato com a violência o tempo todo, não percebe que essa o ultrapassou, ou seja, que está agindo com violência em seu cotidiano. Fica em “guarda”, como se estivesse trabalhando, o que pode desestruturar sua família e a si próprio. Não tem momentos de paz, tranqüilidade e distanciamento, necessários para repor as energias. “Segurança pública não depende só do policial, mas a sociedade quando fala em segurança olha para o policial, não pensa em infrações que as pessoas fazem que causem insegurança. É preciso que a sociedade veja que ela também contribui para segurança. Se a sociedade rejeita o policial, muitas vezes ele leva consigo essa rejeição, por isso é preciso que a sociedade mude de comportamento”13.

Esse contexto, violência no cotidiano e modo de agir do policial quando não está no exercício do trabalho, demonstra uma parcela dos problemas que ocorrem em nossa sociedade, onde os indivíduos vivem em crise, pois não sabem em quem podem confiar e está cada vez mais difícil sair de determinadas situações, já que o grande valor é dado ao capital. A globalização neoliberal tem como conseqüência o desemprego estrutural e a radicalização da pobreza e da exclusão social, pois “dificilmente são encontradas políticas sociais que não sejam apenas compensatórias, no sentindo estrito de salvaguardar as relações de mercado e compensar mazelas frente às massas marginalizadas através de ofertas clientelistas ou assistencialistas”. (DEMO, 1995: 23; ANDERY, 2005)

Contudo, pode-se pensar no sistema penal (exercício institucionalizado de poder punitivo), por ser “a dimensão de controle e regulação social. Nele, não é consolidada a proteção do indivíduo e sim a reprodução de estruturas e instituições sociais”. (ANDRADE, 2003:22). A mesma autora afirma que esse sistema aproveita que o fato de o senso comum enxergar as manifestações de criminalidade de uma maneira maniqueísta,

12 Idem.

13 Entrevista feita com o Ex-tenente Zeza na Associação dos PMs de Cristo, no primeiro semestre de 2005.

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onde o bem e o mal estão divididos na sociedade. Aparentemente, através dos homens bons (pessoas que garantem a cidadania) e dos homens maus, simbolizados pelos criminosos: observa-se um fator preocupante, pois radica tudo no sujeito e acaba imunizando as estruturas e relações sociais da culpa, já que é a ação bondosa ou maldosa do sujeito que determina sua conduta. Segundo Sequeira (2000), muitas vezes justifica-se o comportamento do criminoso a partir de fatores sociais ou então a partir de explicações moralistas, como se características intrínsecas ao sujeito fossem responsáveis pelos atos delituosos.

Andrade (2003) diz que se tudo radica no sujeito, estão sendo imunizandas de culpa as estruturas e relações sociais, pois a bondade ou maldade do sujeito é que determina sua conduta. O que demonstra pouca expectativa nos indivíduos em relação ao seu modo de viver e enfrentar os problemas ou em relação ao crescimento dos mesmos, já que são vistos somente pelo causal e como mercadorias, com valor de uso.

Só como mercadorias, só se forem capazes de demonstrar seu próprio valor de uso, é que os consumidores podem ter acesso à vida de consumo. Na vida líquida, a distinção entre consumidores e objetos de consumo é, com muita freqüência momentânea e efêmera, e sempre condicional (BAUMAN, 2007: 18)

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Martuccelli (1999), relata que existem dois fenômenos, diversos, que interferem no modo em que a violência na modernidade é interpretada. Um deles é a

Deslegitimação crescente das práticas violentas, que doravante não possuem mais nenhuma significação positiva no seio das sociedades modernas. E outro diz que o aumento da consciência dos perigos e dos riscos possíveis no mundo moderno pode enraizar-se e prolongar-se na estética da violência proposta pela mídia, ele se refere antes de tudo, e de maneira substancial, à vontade do projeto moderno de domínio crescente do ambiente e à consciência de seus limites. (p 172)

Na sociedade atual, tem-se também grande influência da mídia na vida das pessoas, a propagação de informações é muito grande e os meios de comunicação têm crescido e demonstrado mais agilidade e rapidez a cada momento. No mesmo âmbito de pensamento, encontra-se Caldeira (1991), citado por Ferreira (2002:12), que identificou na mídia dois discursos defendendo soluções concorrentes para o crescimento da criminalidade violenta. “De um lado, a defesa da contenção da criminalidade por meio de uma ação mais truculenta do sistema de segurança e justiça penal junto ‘aos bandidos’” (demonstrando que o combate à criminalidade se coloca acima dos direitos dos cidadãos).

De outro, a defesa do controle da violência, incluindo a limitação legal da atuação policial e a punição de justiçamentos privados (por meio da ação de grupos de extermínio e justiceiros) e linchamentos. A divulgação destas posições na mídia pode acabar contribuindo para reforçar ou mudar posições existentes na população de forma geral.

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3. Psicologia Analítica

A Psicologia Analítica foi estruturada por Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, na primeira metade do século XX. Sua teoria tem como foco estudar o desenvolvimento da psique na “segunda metade da vida”, como denominou a fase adulta. Seus conceitos são complexos e como ele mesmo fez, é necessário vivenciá-los para poder compreendê-los e melhor assimilá-los.

Jung, antes de formular sua própria teoria, foi parceiro de Freud, com quem teve grandes discussões. Dentre os diversos conceitos discutidos, apreendidos e divergentes entre eles, estão o inconsciente e a religião, que são importantes para esse trabalho. “Para Jung a religião apresenta-se como um fenômeno genuíno; para Freud é um derivado do complexo paterno e uma das sublimações possíveis do instinto sexual”. (SILVEIRA, 1997:125)

Para Freud, o inconsciente existe e nele são colocados os materiais reprimidos que se pode dizer que nunca foram conscientes, pois assim que surgem para consciência são recalcados. “De acordo com a concepção desta escola [de FREUD], o homem, como ser civilizado, não pode vivenciar uma série de instintos e desejos simplesmente porque são incompatíveis com a lei e com a moral. O homem, desde que queira adaptar-se à sociedade, é obrigado a reprimir estes desejos”.(JUNG, 2007, grifo nosso)

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O inconsciente pessoal diz respeito a aquisições derivadas da vida individual e fatores psicológicos; são ditos de natureza pessoal porque podemos reconhecer seus efeitos na história de uma pessoa, manifestação parcial ou origem específica. O inconsciente coletivo é a camada mais profunda, fonte inesgotável de energia e de conteúdos à priori, portanto criativo em relação à psique. Segundo Jung (2000), essa esfera do inconsciente é de natureza universal, possui conteúdos e modos de comportamento, estando estes em toda parte e em todos os indivíduos. “Constituem um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo (...) o inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência”.(p 15 - 54)

Os arquétipos aparecem em forma de símbolos arquetípicos, em determinada era e local de determinada maneira, conforme citação acima, “representam essencialmente um conteúdo do inconsciente coletivo, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matrizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifestam”. (JUNG, 2000: 17) “O arquétipo é uma fonte primária de energia e padronização psíquica. Constitui a fonte essencial de símbolos psíquicos, os quais atraem energia, estruturam-na e levam, em última instância, à criação de civilização e cultura” (STEIN, 1998b: 81; JUNG, 1987a), pois dão a base para os comportamentos de cada etapa da vida. A manifestação do arquétipo é vista de forma polarizada, mas de acordo com cada comportamento, surgimento de símbolos/ imagens, é possível analisar e identificar qual é o arquétipo que está “agindo” naquele momento, o que faz com que se torne consciente.

Isto posto, os símbolos são a conexão do consciente com o inconsciente e o fenômeno psíquico possível de ser analisado, ou seja, dizem respeito a algo vivido ou chamativo para o indivíduo, pois causam emoção.

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percebido pelo consciente, falamos então de símbolo” (opc.cit. p 7214). Através desse fenômeno psíquico, o conhecimento do inconsciente torna-se possível por via indireta. (PENNA, 2003: 169)

Estes (símbolos) “podem ser interpretados a partir de um contexto psicológico histórico, cultural ou generalizado15”. Através deles é possível identificar os complexos que temos, pois segundo Penna (2003), permitem a apreensão e compreensão da realidade psíquica. (p 170)

O complexo, conteúdo do inconsciente pessoal, é um núcleo de energia com carga afetiva forte que tem associado elementos que dizem respeito a um aspecto da vida individual. São imagens inconscientes e responsáveis por perturbações da consciência. Caracterizam os pontos suscetíveis de crise do indivíduo, quando vão para consciência, através dos símbolos, causam grande emoção e fazem com que em alguns momentos o indivíduo fique paralisado, não conseguindo agir naturalmente em determinadas situações.

Todos temos complexos, eles são expressão de temas da vida, que são também problemas da vida. Eles constituem nossa disposição psíquica, da qual ninguém pode fugir. Desse modo, os símbolos seriam expressão de complexos, mas seriam ao mesmo tempo, estações de processamento dos complexos. Ora, os complexos em si não são evidentes. Experienciável é a emoção que lhe é própria; perceptíveis são os modos estereotipados de comportamento que ocorrem no âmbito do complexo. Nos símbolos, por assim dizer, os complexos se desdobram em fantasias. (KAST, 1997:42)

Por esse motivo, quando um complexo está ativado o comportamento do indivíduo é diferente, o desenvolvimento da individualidade não acontece normalmente, o que para Jung é chamado de processo de individuação. Processo, esse, em que o Self convoca o Ego a tornar-se aquilo que é, por meio do contato entre o mundo interno e externo, através do qual é buscado um equilíbrio entre as polaridades (consciente e inconsciente) para chegar à totalidade. Através dele os indivíduos se transformam em seres únicos e repletos de possibilidades. “Pode ser considerado como um processo que busca a ampliação da consciência, por existir conscientização de conteúdos desconhecidos pela consciência”. (ZENI, 2005) Portanto, a individuação, segundo Jung (1987a), significa um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas e

14 JACOBI,J Complexo Arquétipo Símbolo na Psicologia de C. G. Jung São Paulo: Editora Cultrix,

[1957], 1986

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adquiridas. Com esse processo, as características do indivíduo tornam-se cada vez mais pessoais e menos tomadas de características familiares, por exemplo.

As pessoas desenvolvem-se sob muitos aspectos ao longo de suas vidas, e passam por múltiplas mudanças em muitos níveis. A experiência total de integridade ao longo de uma vida inteira – o surgimento do si-mesmo na estrutura psicológica e na consciência – é conceituada por Jung e denominada individuação. (STEIN, 1998: 153b)

O si-mesmo é mais conhecido como Self e diz respeito à totalidade psíquica, para Jung. Segundo Bezerra (1995), pode ser chamado de “Deus dentro de nós” e tem como linguagem o símbolo. De acordo com Stein (1998b), situa-se além do domínio psíquico, definindo-o como o mais impessoal dos arquétipos. “O Self gera impulso para individuação, dele fluem nossas aspirações e instintos que suscitam a ânsia de nos tornarmos aquilo que somos genuinamente, é o si mesmo que exige a concretização dos seus potenciais”. (ZENI, 2005:20-21)

A sintonia com o self acontece através da auto-regulação, movimento que ocorre naturalmente e diz respeito à dinâmica dos contrários como, por exemplo, a relação ego-sombra16. Esse movimento tenta equilibrar tal relação, pois regula os conteúdos da sombra com os do ego. Por esse motivo, as pessoas que não estão em equilíbrio, e acabam tendo os conteúdos da sombra muito evidentes, agem de forma incomum, levando em conta o modo de agir habitual.

Uma vez que apenas o bem é reconhecido, somos incapazes de aceitar e enfrentar a violência, a agressão e o sofrimento, a não ser tentando, impotentes, legislar de modo a afastar ou execrar essas manifestações (...) Dado que não tem um lugar significativo em nosso universo, a morte e a destruição geram terror e condenação moral. (WHITMONT, 1991:110)

O que quer dizer que muitos conteúdos, que vão para sombra, não são bem vistos pela sociedade e precisam ficar “escondidos” junto a outros com os quais não queremos entrar em contato no momento, sendo eles mal-vistos ou não.

16 Sombra é uma das estruturas da psique, diz respeito aos conteúdos reprimidos pelo ego, ou seja,

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Byington, um dos seguidores de Jung, nomeou de dinamismo psíquico ou ciclos arquetípicos, os períodos da vida em que arquétipos são ativados na consciência. Denominou de ciclos/ dinamismos porque estes arquétipos podem ser ativados em qualquer momento da vida.

Para Byington,

os ciclos arquetípicos são uma forma de abordarmos certas características evolutivas da consciência individual e coletivas em conjunto (...) por um lado, ele expressa a implantação progressiva de um determinado padrão de funcionamento da consciência; por outro, mantém a ação criativa do inconsciente coletivo durante toda a vida através do arquétipo regente que coordena cada ciclo. (BYINGTON, 1986:41)

Ele denominou quatro ciclos: matriarcal, patriarcal, alteridade (conhecido também como coniuntio por Jung e conjugalidade por outros) e cósmico. Serão apresentadas considerações sobre os ciclos matriarcal e patriarcal, que para o estudo são mais importantes.

No dinamismo matriarcal tem-se a predominância do arquétipo da grande mãe, que tem seu símbolo derivado do arquétipo materno;

seus atributos são o ‘maternal’: simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal. Existemas qualidades opostas desses atributos que correspondem à mãe amorosa e à mãe terrível. (JUNG, 2000:92, grifo nosso)

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O mesmo autor continua:

o comportamento mágico é pré-moral ou amoral, da mesma forma como é pré-consciente segundo nossos padrões de consciência. O indivíduo é um membro do rebanho, participante e beneficiário ou vítima de um processo não-pessoal cujo padrão é grupal. As contingências da vida são uma questão a ser enfrentada em grupo. A consciência é uma consciência grupal. A vontade é do coletivo. O que chamamos de bom ou correto é, simplesmente, o que propicia terror e perigo, o que beneficia e sustenta a vida do grupo. O que hoje consideramos necessidades ou direitos individuais são coisas irrelevantes e até mesmo impensáveis nesse nível. (WHITMONT, 1991:64)

A passagem do dinamismo matriarcal para o patriarcal, segundo Whitmont (1991) se deu através da fase mitológica, momento em que começa a surgir a diferenciação entre eu e o outro, mente e corpo; a razão começa ser bem presente no pensamento humano; as questões grupais deixam de ter tanta força, o individual passa a ser importante também.

O dinamismo patriarcal opera sob a predominância do arquétipo do pai. Nesse dinamismo começam a surgir os conceitos, as formas, o deus passa a ser único e o feminino não é tão valorizado; esse dinamismo também é denominado como fase mental por Whitmont. Essas separações: entre eu e outro, homem e mulher, são necessárias para a formação do ego. É nesse momento que ele começa se consolidar e passa a existir a sombra e o indivíduo através do inconsciente coletivo e da consciência coletiva já existente. Ou seja, começam a se formar as sociedades organizadas, a cultura e o pensamento se torna lógico.

A relação com o Deus também se transforma, não existem mais diversas Deusas, quem prevalece é o masculino – o pai – e passa a existir um único Deus, homem que vai dar as regras e o estado e a sociedade como entidades separadas. Segundo Whitmont, a fase patriarcal:

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Na atualidade, vive-se num momento de transição, ao mesmo tempo em que o dinamismo patriarcal e seu modo de ver o mundo estão imbricados no modo de as pessoas viverem, existe, também, grande influência do dinamismo matriarcal. Pois, as religiões, buscam por grupos onde se pode agir menos pela razão e pensar como o todo. Em razão desse comportamento, as pessoas querem viver de forma individualista, nos desvinculando-se da natureza e tendo relações cada vez mais rápidas, onde os laços não ficam tão duradouros (como apresentado com referência a Bauman nos capítulos anteriores).

No dinamismo patriarcal, “em virtude de sua ênfase sobre a imagem do pai, e de o conteúdo do superego ser constituído por regras e normas sociais, a consciência fundamenta-se na autoridade paterna” (STEIN, 1998a: 24), e pode ser denominada como solar. Nesse dinamismo encontramos o símbolo do bode expiatório que é usado como mecanismo de exclusão, pois deixa algo que não é bem visto e não suportável (por incomodar) fora da consciência; diz respeito às coisas que se acredita serem ruins. Pode-se usar como exemplo a relação ego – sombra. O ego é o que é mostrado (persona17), “a parte bonita” e a sombra algo reprimido, que não pode ser colocado em público e usado como persona.

“O modelo patriarcal propiciatório para se lidar com o instinto do inconformismo e com a agressão pode ser ilustrado pela antiga cerimônia israelita do bode expiatório” (WHITMONT, 1991: 124-125) onde existem dois bodes, um será destinado ao Senhor e o outro será apresentado vivo ao Senhor e enviado para o deserto para Azazel.

Nem toda força vital pode ser sacrificada e dedicada à observância da lei. Há ânsias inaceitáveis, que não podem ser erradicadas. Devemos então nos distanciar delas e enviá-las para longe. (...) A diferença entre destruir e banir é a diferença entre a repressão e a disciplina. A repressão tenta matar o impulso, tornando-o inconsciente. A disciplina reconhece e acolhe o impulso, mas escolhe não agir em função dele. Ele pode viver embora banido para o deserto, em território adequado a ele, até que chegue o momento em que possa ganhar uma expressão conveniente nas festividades dedicadas a Dionísio, nas orgias ou em outros ritos para descarga da violência. (WHITMONT, 1991: 127-128)

17 Persona - máscara da psique coletiva que aparenta uma individualidade, apresenta um compromisso entre o

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Esse símbolo do bode expiatório é visto hoje em todas as pessoas, pois todos precisam carregar a culpa e a alienação. Vive-se um momento onde só as nossas crenças é que são boas e têm valor, as dos outros são ruins e não levam à libertação. Os impulsos, a agressividade e outros sentimentos relacionados são vistos como ruins e por isso precisam ser reprimidos ou colocados no outro, projetados, para que nossa imagem seja sempre boa. “Torna-nos a todos andarilhos solitários perdidos num grande deserto, sentindo-nos alheios e distantes de uma origem divina transpessoal, para sempre fadados ao ‘pecado’”. (WHITMONT, 1991:138) E só é possível sair desse local, onde todos são bodes expiatórios e não olham para os próprios sentimentos, quando reconhecem e aprendem a lidar com o lado bom e o mal que temos dentro de nós.

Entretanto,

não podemos perder de vista o fato de que a disciplina do superego ainda é essencial para aquelas pessoas que ainda não alcançaram a consciência moderna, quer dizer, que não consolidaram uma plena estabilidade do ego. Para esse grupo, o conformismo (incluindo o padrão de bode expiatório) ajuda a construir a personalidade através de sua resistência, de sua frustração, de sua autodisciplina. (WHITMONT, 1991: 135)

Em razão do homem viver no dinamismo patriarcal, em que a ordem e a consciência racional imperam, apresenta medo de mudança, pois ela ameaça seu estado atual de consciência e a continuidade do “modus vivendi”. O ego patriarcal teme a mudança porque se assenta na ilusão da mesmice. “Deseja a vida, mas cria exatamente a destruição e o mal que teme e renega. (...) Tememos a violência porque fomos levados a esperar uma vida organizada, racional, pacífica e perpétua”. (WHITMOTN, 1991: 32-33)

3.1 Psicologia Analítica e Religião

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ninguém sabe com o que se parece, pois quem o fizesse seria, ele próprio, um deus” (Jung, apud Aranha, 2004).

Jung acredita que “todas as religiões são válidas na medida em que recolhem e conservam as imagens simbólicas oriundas das profundezas do inconsciente e elaboram seus dogmas, promovendo assim conexões com as estruturas básicas da vida psíquica”. (SILVEIRA, 1997:125) Entende religião pelo latim Religio (re – ligare), que quer dizer tornar a ligar, ou seja, ligar o consciente com fatores do inconsciente; fatores estes que têm grande carga energética e intensos dinamismos. “Aqueles que os defrontam falam de uma emoção impossível de ser descrita, de um sentimento de mistério que faz estremecer (mysterium tremendum)”.(SILVEIRA, 1997: 126)

Com concentração da atenção do inconsciente, as religiões provocam também um extravasamento de conteúdos e forças inconscientes na vida consciente, influenciando-a e alterando-a (...) Confere ao conteúdo inconsciente um valor considerável, através de um dogma de fé ou de uma superstição, isto é, por meio de um conceito carregado de emoção. (JUNG, 2007:23)

Para Jung é uma acurada e conscienciosa observação do que Rudolf Otto denomina de numinoso – “ato ou efeito dinâmico não causado por um ato arbritário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador (...) constitui uma condição do sujeito e é independente de sua vontade”. (JUNG, 1987b: 9) A religião é entendida como uma atitude do espírito humano, pois designa uma atitude da consciência, particular, transformada pela experiência do numinoso. Essa vivência do numinoso e a realização de opostos proporcionada pelo diálogo entre o Ego e o Self seria a religiosidade. E o numinoso, segundo Zeni (2005:22), é uma “energia capaz de provocar grandes mudanças através da ativação de emoções conscientes ou não”.

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O mesmo autor quando fala de religião não diz respeito a uma Igreja ou crença em particular, fala sobre a experiência religiosa como processo psíquico e a atitude religiosa como função psíquica natural. Interessa-se pela simbologia das religiões, pois a linguagem das mesmas é feita de símbolos que atuam sobre a vida dos homens, cada vez mais profundamente. Tais símbolos têm a função de promover o processo de individuação e favorecer a ampliação da consciência através da comunicação entre o inconsciente e o consciente, por isso têm um significado diferente para cada um dos homens (SILVEIRA, 1997; ZENI, 2005)

Gostaria de deixar claro que, com o termo “religião”, não me refiro a uma determinada profissão de fé religiosa. A verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência do numinoso, e, por outro lado, também na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. (Jung, 1987b: 10).

Segundo Aranha (2004), para Jung a numinosidade encontrava expressão ou correspondência na “imagem de Deus” (Imago Dei) de indivíduos que expressassem o conteúdo arquetípico de forma reconhecível. Sendo assim, a função religiosa passava a estar intimamente ligada ao conceito de arquétipo, ou seja, aos elementos primordiais da psiquê humana que “se apresentam como idéias e imagens” (Jung, 1971d: CW 8ii, par. 435 apud ARANHA, 2004).

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