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A Dimensão do Atlântico Sul na Política Externa e na Defesa do Brasil, dos Anos 70 ao Limiar do Século XXI DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Edson Tomaz de Aquino

A Dimensão do Atlântico Sul na Política Externa e na Defesa do Brasil, dos Anos 70 ao Limiar do Século XXI

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Edson Tomaz de Aquino

A Dimensão do Atlântico Sul na Política Externa e na Defesa do Brasil, dos Anos 70 ao Limiar do Século XXI

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor Paulo Edgar Almeida Rezende.

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AGRADECIMENTOS

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RESUMO

O objetivo principal deste trabalho consiste em demonstrar a crescente importância do Atlântico Sul na política externa e nos assuntos de defesa do Brasil, desde a década de 70 até o limiar do século XXI.

A crise do petróleo, no início da década de 70 transformou a percepção do Brasil sobre sua fronteira marítima. O alargamento do mar territorial para 200 milhas e a aproximação diplomática da África foram estratégicos para assegurar os interesses do Brasil no Atlântico Sul.

O papel central do Brasil em construir a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul reforçou a escolha pelo multilateralismo e pelo direito internacional. Essa escolha foi decorrente do contexto regional e hemisférico.

No início do século XXI, o Brasil percebe possibilidades de projetar uma capacidade militar para defender sua fronteira marítima. Recursos econômicos, como grandes reservas de petróleo, podem tornar o Atlântico Sul uma área vulnerável para os interesses brasileiros.

No entanto, idealismo e realismo em política externa e defesa tendem a combinar-se na projeção do Brasil no Atlântico Sul.

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ABSTRACT

The main purpose of this work is to show the growing importance of South Atlantic Ocean to Brazil’s foreign policy and security issues, from the seventies to 21st century.

The oil crises in the early seventies changed brazilian perception about its maritime frontier. The enlargement of territorial sea to 200 miles and a diplomatic approach to Africa were strategic to assure Brazilian interests in the South Atlantic.

The central role of Brazil to build the Zone of Peace and Cooperation of the South Atlantic stresses the choice to the multilateralism and the international law. This choice results from regional and hemispheric context.

In the early 21st century, the international system allows Brazil to drawn a military capability towards its maritime frontier. Economic resources as great stocks of oil could turn the South Atlantic a vulnerable zone to Brazilian interests.

Idealism and Realism on foreign politics and defense issues tend to combine themselves on Brazil’s projection at South Atlantic.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mapa da América do Sul e do Atlântico Sul...18

Figura 2 - Mapa do Atlântico Sul de Henderine Drogenhams (1600)...21

Figura 3 - Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul – ZPCAS...488

Figura 4 - Reivindicações sobre os territórios antárticos...52

Figura 5 - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP...677

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Países visitados por Fernando Henrique Cardoso em seus dois mandatos...823

Tabela 2 - Comércio Brasil-África (Em bilhões de Dólares)...98

Tabela 3 - Embaixadas brasileiras na África...106

Tabela 4- Orçamento da Marinha...110

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LISTA DE SÍMBOLOS

AGI Ano Geofísico Internacional

ALCSA Área de Livre Comércio Sul-Americana

BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CIB Comissão Internacional da Baleia

CNUDM Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

CSN Conselho de Segurança Nacional

ESG Escola Superior de Guerra

EUA Estados Unidos da América

FHC Fernando Henrique Cardoso

FNLA Frente Nacional para a Libertação de Angola IBAS Índia, Brasil e África do Sul

INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

IIRSA Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul Americana ISBA Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos

LEPLAC Limites Exteriores da Plataforma Continental

LOA Lei Orçamentária Anual

MDB Movimento Democrático Brasileiro MERCOSUL Mercado Comum do Sul

MPLA Movimento Para a Libertação de Angola

NAFTA Acordo de Livre Comércio da América do Norte OEA Organização dos Estados Americanos

OMC Organização Mundial do Comércio

ONU Organização das Nações Unidas

OPA Operação Pan-Americana

OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte PALOP Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa PDN Política de Defesa Nacional

P&D Pesquisa e Desenvolvimento PEI Política Externa Independente

PIB Produto Interno Bruto

PND Plano Nacional de Desenvolvimento PROANTAR Programa Antártico Brasileiro

PT Partido dos Trabalhadores

SADC Southern África Development Council

SEAP/PR Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República SIVAN Sistema de Vigilância da Amazônia

TIAR Tratado Interamericano de Assistência Recíproca TNP Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares UNAVEN United Nations Angola Verification Mission

UNITA União Nacional pela Independência de Angola VANT Veículo Aéreo Não Tripulado

ZEE Zona Econômica Exclusiva

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SUMÁRIO

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1 INTRODUÇÃO

Diz a lenda que, no século XVII, piratas ingleses saquearam um galeão espanhol carregado com centenas de objetos de ouro e prata, roubados da catedral de Lima, após a independência do Peru. Esconderam o tesouro num túnel esculpido pelo mar, no paredão da ilha de vários cumes, o maior chegando a 600 metros de altura.

Além desse tesouro, até hoje não encontrado, a ilha foi palco de diversos naufrágios, o que fortalece boatos sobre supostos tesouros que repousam há séculos no fundo do mar.

Em 1501, o navegante espanhol João da Nova, a serviço da corte portuguesa, partiu de Lisboa com destino à Índia. Quando se encontrava na costa africana, uma forte tempestade forçou-o a mudar de rota. Alguns dias depois avistou, no meio do Atlântico Sul uma porção de terra, o que resultou no descobrimento da Ilha de Assunção.

No ano seguinte, Estevão da Gama, navegador português aportou na ilha, dando a ela o nome de Trindade, sem saber que outro desbravador já lá estivera.

Passaram-se muitos anos, com tentativas de colonização e disputas entre Portugal e Inglaterra pela posse da ilha de pouco mais de 9 quilômetros quadrados.

Foi quando em 1895, no início da vida republicana brasileira, que a Inglaterra voltou a ocupar a ilha, desta vez sob o pretexto de usá-la como ponto de apoio ao projeto de ligar Londres a Buenos Aires com cabo submarino. Era o auge da presença inglesa na América do Sul, com negócios que se multiplicavam a cada dia. A comunicação via telégrafo tornava-se uma das marcas do imperialismo britânico.

O Brasil evitou o enfrentamento militar para retomar o controle sobre Trindade. Utilizou as vias diplomáticas e ganhou a questão com o arbitramento de Portugal.

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um marco que até hoje lá se encontra com a seguinte inscrição: “O direito vence a força”.1

Desde o período colonial, o oceano foi para o Brasil porta de entrada e de partida, tanto de pessoas quanto de mercadorias. Ao longo da costa, pode-se ainda hoje observar a existência de diversas fortificações, usadas para repelir visitantes indesejados, enquanto o desbravamento do interior ia delineando novas fronteiras ao que viria a ser o Brasil.

Um século após o trabalho de Rio Branco nas negociações dos marcos terrestres, a questão da fronteira ainda se constitui como um desafio à diplomacia e à defesa.

E não é apenas a porosidade da Amazônia que se constitui como questão a ser enfrentada pela política externa e pela defesa nacional. O Atlântico Sul é a última fronteira nacional a ser consolidada. Não apenas como porta de entrada e saída, mas um limite a ser expandido, onde riquezas se encontram desde a superfície até as profundezas.

O Brasil possui 7.480 quilômetros de fronteira marítima, um convite permanente para a reflexão e busca da ressignificação do oceano, lido freqüentemente como espaço vazio e de implicações menores aos interesses nacionais, principalmente quando comparado à fronteira terrestre.

O crescente uso dos recursos econômicos do planeta tende a provocar cobiças, e quiçá, conflitos. Tornar-se soberano sobre esses recursos e diminuir a vulnerabilidade do país frente às potências estrangeiras surgem como desafios ao Brasil no século XXI.

Para tanto, o país pode apoiar-se no direito e no pressuposto que os outros o respeitará. Na insuficiência desse recurso quando as circunstâncias se mostrarem adversas, o uso da força pode ser considerada.

Assim surge o Atlântico Sul para o Brasil, no limiar do século XXI.

O Atlântico Sul foi porta de entrada dos europeus, primeiramente e de grande parte dos contatos estabelecidos pelo Brasil com o mundo. Comércio, mão-de-obra escrava e imigrante, construção do território e das identidades culturais, relações políticas, enfim, impossível falar sobre o percurso do Brasil, do período colonial ao século XXI sem considerar o papel do Atlântico Sul.

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Entretanto, não se deve perder de vista que a idéia de que o Atlântico Sul é, sobretudo uma designação geográfica de uma área que engloba distintas regiões e sub-regiões, nem sempre maleáveis a um enfoque generalizador. No âmbito desse espaço, subsumem-se outros conceitos espaciais tão específicos ou fluidos como América do Sul, América Latina, América Portuguesa, América Espanhola, América Amazônica, América Platina, Mercosul, África Ocidental, África Subsaariana, África Austral, África Portuguesa, África Negra, Hemisfério Sul, Hemisfério Ocidental, Antártida, dentre outros.

No âmbito regional, as relações do Brasil com seus vizinhos platinos, andinos e amazônicos surgem de modo cada vez mais intenso nos meios governamentais, empresariais e acadêmicos. A superação de tensões e desconfianças tende a abrir novas perspectivas à integração sul-americana. E a imagem de um Brasil “de costas” aos seus vizinhos desvanece paulatinamente.

Em momento propício a discutir arranjos regionais, fenômeno favorecido por um sistema internacional multipolar, a dimensão atlântica surge de modo crescente como área vital aos interesses do Brasil em diversos aspectos.

O Atlântico Sul une o Brasil à África. Do ponto de vista geográfico, o Brasil está mais próximo da África do que da América do Norte. Da perspectiva histórica, é uma das principais referências da construção da cultura brasileira. A África é o continente que busca superar no século XXI os traumas produzidos pelo colonialismo. O aprofundamento de relações com povos do outro lado do Atlântico não representa apenas novas oportunidades em política externa e comércio, mas também a possibilidade de redescobrir raízes da cultura brasileira.

E o Atlântico Sul permite ao país participar do futuro da Antártica, um continente inóspito, mas essencial para a biodiversidade do planeta e dos oceanos, em especial. Alvo de especulações sobre riquezas minerais, a Antártica abriga bases de diversos países, de todos os continentes. A influencia sobre o clima, a flora e a fauna das águas que banham grande parte da costa brasileira, também tornam o continente antártico relevante para o Brasil.

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Basicamente, defender-se-á que o Atlântico Sul tem se projetado de forma mais intensa na política externa brasileira e no delineamento de uma política de defesa nacional, a partir dos anos 70, principalmente. As crises do petróleo e a nítida mudança de postura em relação à África são emblemáticas a esse aspecto.

O aprofundamento de uma valorização da fronteira atlântica, nos planos militar e diplomático, no entanto, se faz perceber no limiar do século XXI, com o aumento de sua relevância como depositária de recursos econômicos, sobretudo o petróleo.

O objetivo central deste trabalho consiste em contribuir para uma reflexão sobre a projeção de interesses do Brasil na sua fronteira marítima, o Atlântico Sul, da década de 70 do século XX ao primeiro decênio do século XXI, que engloba parte do segundo mandato do presidente Lula. Buscaremos verificar a elaboração e aplicação de políticas, tanto no aspecto diplomático quanto no da defesa nacional, que demonstrem a crescente importância do Atlântico Sul para o país.

Nessa trilha, surge a África na outra margem, com seu papel histórico e cultural para o Brasil. Em que medida o continente africano pode contribuir para a consecução dos interesses do Brasil no Atlântico Sul?

A Antártica, com sua importância para o clima e o ecossistema marinho da costa brasileira, também pode converter-se em elemento para garantir os interesses do Brasil na sua fronteira atlântica?

E no seu entorno imediato, a América do Sul, também investigaremos de que forma as relações entre Brasil e Argentina, principalmente, repercutem para a vertente sul-atlântica da política externa e da defesa do país.

Não menos importante será a análise sobre a relevância estratégica do Atlântico Sul para o sistema internacional no período coberto por este trabalho. Os Estados Unidos, principalmente, a margem de autonomia que permitem ao Brasil atuar no Atlântico Sul também será perquirido, haja vista seu papel hegemônico hemisférico e global.

E afinal, quais são os interesses do Brasil no Atlântico Sul e que meios tem sido usados, diante das oportunidades e desafios que se colocam, para a defesa dos mesmos?

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confluem ao objeto aqui estudado. Também se buscará subsídios à analise em fontes primárias, como discursos, declarações e entrevistas de representantes governamentais e autoridades em áreas específicas.

No capitulo I, buscar-se-á uma abordagem histórica sucinta do papel do Atlântico Sul na formação do Brasil, do ponto de vista territorial, diplomático, econômico e cultural.

O capítulo II se pautará pela nova perspectiva que o Atlântico Sul adquiriu no âmbito diplomático, especialmente nas relações do Brasil com a África dos anos 70. É nesse período que o Brasil proclama seu mar territorial de duzentas milhas e muda significativamente sua política para o continente africano. Esses dois acontecimentos estão estreitamente relacionados com a crise do petróleo e seus impactos para o desenvolvimento econômico do país.

Nesse mesmo capítulo, o trabalho avança para a década de 80, período de significativas transformações no plano doméstico e no entorno regional do Brasil. A liderança do país em construir acordos de cooperação, como a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPCAS), a aproximação com os países africanos de Língua Portuguesa e o início do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), denotam o redimensionamento do Atlântico Sul na política externa brasileira.

No terceiro capítulo será abordado o período pós Guerra Fria e seus reflexos para o país na sua fronteira marítima. O Consenso de Washington e suas implicações para a soberania nacional e a questão ambiental estarão presentes nesse mesmo capítulo. O Plano de Defesa Nacional (PDN), de 1996, do governo FHC, até a atualização desse documento, ocorrida em 2005, no governo Lula encaminham ponderações sobre as conexões do Atlântico Sul com a defesa nacional.

No IV e último capítulo será analisada a crescente projeção do Atlântico Sul para a política externa e a defesa nacional. A promulgação de uma nova PDN em 2005, a ampliação da soberania na plataforma continental, o surgimento da designação “Amazônia Azul” para o Atlântico Sul, o significativo aumento de produção de petróleo no mar, tendo em consideração o pós 11/09, a vulnerabilidade energética mundial e o estreitamento das relações com a África são fatores que inserem-se numa visão sul-atlântica redimensionada para o Brasil no século XXI.

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idéia de uma “potência pacífica” se torna insuficiente para defender os interesses do país. Ao mesmo tempo, o cenário regional e global não apresenta obstáculos à consecução desse propósito.

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2 O ATLÂNTICO SUL: UMA BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA

O “Atlântico Sul” , como área geográfica marítima, está delimitado ao norte pela linha do equador, ligando as terras do Amapá, na América do Sul até a Mauritânia, na África, contornando o arquipélago de Cabo Verde, e ao sul, pela Antártica. A delimitação defendida por Flores inclui Trinidad e Tobago, onde tem início o Caribe estratégico.2

É o cenário da construção e expansão do que se chama hoje de “Ocidente”, tendo como ponto inicial o predomínio português sobre o comércio no Atlântico Sul até o advento da “Pax Britannica” no século XIX.

As análises geopolíticas formuladas por Castro explicitam a “orientalidade” da América do Sul e do Brasil, especialmente, em relação à América do Norte, mais ocidental. Envolvendo-se no meridiano de 35 graus de longitude, o território brasileiro coloca-se a apenas 10 graus de Cabo Verde, o arquipélago mais ocidental da África, e somente a 18 graus de Dakar, na zona de estrangulamento do Atlântico.

Figura 1 – Mapa da América do Sul e do Atlântico Sul

2 FLORES, M.C. Reflexões Estratégicas – Repensando a Defesa Nacional. São Paulo: É

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Embora o Brasil não seja bioceânico, Castro salienta que o país é dotado de duas faces litorâneas – uma voltada para o hemisfério continental, o hemisfério norte, onde se concentra a maior parte dos territórios, e a outra, linha costeira bem maior, dependente do hemisfério oceânico, o hemisfério sul, onde as águas cobrem a maior parte da superfície. E ao comparar as costas das Américas no Atlântico e no Pacífico, Castro lembra que as maiores articulações, tanto na América do Norte quanto na América do Sul, se encontram no lado do Atlântico, onde a natureza mais baixa da costa favorece a instalação de melhores portos. “Nessas condições, o Pacífico, de navegação extensiva, contrasta com o Atlântico, de navegação intensiva, orientando ainda mais para o leste o conjunto americano”.3

Para Cortesão:

O traço geográfico fundamental que imprimiu caráter à História do Brasil é a sua posição no hemisfério e no Atlântico Meridional. O Brasil participa forçosamente, de certos caracteres de posição comuns à América do Sul, mas desde logo se distancia dos demais países do continente pelas suas relações atlânticas com a Europa e a África.4

Na virada do milênio, perguntado pelo The New York Times sobre qual teria sido a maior invenção do homem nos últimos mil anos, Humberto Eco é categórico ao afirmar ser o arado com tração animal, ao provocar a primeira grande onda de desemprego em massa. A nova tecnologia, ao permitir que a ferramenta fizesse o trabalho de dezenas de homens, provocou êxodo rural e o renascimento das cidades ou burgos. A crescente necessidade por especiarias adequadas à preservação de alimentos destinados a alimentar gente que não tinha mais o campo como quintal de casa. Surge daí a própria dicotomia cidade/campo.

Além do comércio local, o comércio marítimo é altamente dinamizado pelas necessidades das especiarias do Oriente, especialmente da Índia.

As dificuldades à época em utilizar-se da rota mediterrânica, fizeram de Portugal protagonista privilegiado na navegação transcontinental. A posição geográfica de Portugal estimulou sua vocação ultramar e o desenvolvimento de tecnologia da navegação. “A conquista do mar alto deu à Europa a sua primazia

3 CASTRO, T. Nossa América – Geopolítica Comparada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército

Editora, 1994, p. 45.

4 CORTESÃO, J. História do Brasil nos Velhos Mapas. Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério das

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universal, e isto durante séculos. A técnica, desta vez – a navegação do mar alto – criou uma assimetria à escala mundial, um privilégio”, segundo Braudel5. O “mar

português”, na definição de Miceli, “... reconhecido em seus limites extremos, transformou-se em caminho para circulação de homens, coisas e idéias, fazendo dele um território de disputas e inaugurando um novo e duradouro desenho das relações entre as várias regiões do planeta”.6

No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels afirmam que:

Com a descoberta da América e a circunavegação da África abriram-se para a burguesia, em ascensão, novas possibilidades. A Índia e a China, com vastos mercados, a América em processo de colonização, o ativo comércio das colônias, a evolução fantástica dos mecanismos de troca e o aumento das mercadorias, em geral, são os fatores que determinaram o desenvolvimento jamais antes verificado, do comércio, da navegação, da indústria, acarretando conseqüentemente a aceleração do processo revolucionário no bojo da já combalida sociedade feudal.7

A exploração de terras e mares desconhecidos dos europeus põe nos mapas a África até seu extremo meridional, quando o português Bartolomeu Dias contorna o Cabo das Tormentas, em 1488, rebatizado posteriormente como Cabo da Boa Esperança. Estava aberta nova rota para o Oriente e estabelecia-se uma nova geopolítica nas relações internacionais da época, com o fim do monopólio da rota mediterrânica. No costa ocidental do Atlântico Sul chega Cabral em 1500 e séculos mais tarde, em 1819, uma expedição russa descobre terras no círculo polar antártico, embora registros em mapas dão indícios que europeus teriam lá chegado já no século XVI.

Com as descobertas, os mapas, aliás, tornam-se documentos que “legitimavam” a conquista em época em que se começava a pensar no direito sobre os mares.

5 BRAUDEL, F. Civilização Material e Capitalismo. Ed. Cosmos, 1970.

6 MICELI, P. A Febre de Navegar. Revista História Viva – Grandes Temas, nr. 14, p. 15.

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Figura 2 – Mapa de Henderine Drogenhams, sem local de produção, datado de aproximadamente 1600.

O holandês Hugo Grotius (1583-1645) percebe a importância dessa questão para seu país, que participa ativamente do comércio transatlântico, principalmente de açúcar, e estabelece colonização no nordeste brasileiro, quando Portugal cai sob o domínio espanhol por cerca de 60 anos. Suas obras Law of Prize and Booty (1604-1605), Freedom of the Seas (1609) e Law of War and Peace (1625), tornam-se marco para o desenvolvimento do Direito Internacional.

Ainda assim, por séculos, praticamente até a construção do Canal de Suez, em 1869, o Atlântico Sul se converterá num dos principais palcos de disputa entre nações, companhias de navegação e piratas.

“No fracasso de um consenso absoluto sobre o Novo Mundo a força foi a Realpolitik mais freqüente”, explica Karnal, com os freqüentes ataques de ingleses, holandeses e franceses à rica costa brasileira, de onde saia boa parte dos produtos que impulsionavam o mercantilismo europeu.8

Identificamos em Alencastro que a ocupação da costa brasileira com a produção açucareira, principalmente no nordeste, visava também subordinar os territórios coloniais de ambas as margens do Atlântico Sul ao domínio português, utilizando-se da mão-de-obra escrava nas plantações da cana.

Para Prado Jr.:

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Se o índio, por natureza nômade, se dera mais ou menos bem com o trabalho esporádico e livre da extração do pau-brasil, já não acontecia o mesmo com a disciplina, o método e os rigores de uma atividade organizada e sedentária como a agricultura.9

Escravos adquiridos nas costas da África já eram utilizados na agricultura por portugueses nas ilhas da Madeira e Cabo Verde, tornando-se a principal força de trabalho nas grandes propriedades açucareiras do nordeste brasileiro.

Além da finalidade econômica, o comércio de escravos da África servia também como medida para subordinar os territórios coloniais de ambas as margens do Atlântico Sul à política da Coroa portuguesa, principalmente aqueles oriundos de Angola. Portugal não contava com população suficiente para promover o povoamento da extensa costa brasileira. Segundo Alencastro, nestas circunstâncias, o comércio negreiro, ao permitir a reprodução da produção colonial, seria um instrumento decisivo para a elaboração do edifício colonial português no Atlântico Sul, baseado na plantation e no trabalho escravo.10

Depois de 60 anos sob a dominação da Espanha, de 1580 a 1640, Portugal perde o comércio asiático, o que vem a reforçar sua presença no Brasil e em possessões africanas como fornecedoras de escravos.

Navios negreiros partiam da Bahia e Pernambuco abarrotados de cachaça e tabaco rumo à costa central e meridional da África, de onde comerciantes portugueses primeiramente, e brasileiros também mais tarde, regressavam com suas naus carregados de escravos.11

A ocupação da costa atlântica, desde os primórdios da colonização, torna-se fator estratégico, tanto no detorna-senvolvimento das atividades econômicas quanto na primazia sobre o território.

Na argumentação de Castro, o posicionamento da costa brasileira no Atlântico, atraindo os invasores, bem mais que os territórios espanhóis no Pacífico, viria a ser coroado por uma linde de geoestratégicos fortes, constituindo autêntico cinturão defensivo. Ainda segundo Castro:

9 PRADO JR., C. História Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

10 ALENCASTRO, L. F. Tratado dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000.

11 CURTO, J. C. Vinho verso Cachaça – A Luta Luso-Brasileira pelo Comércio do Álcool e de

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Cinturão defensivo de fortalezas que se destinava a manter integrada ao Estado do Brasil toda essa vasta área cobiçada pelos ingleses, franceses e holandeses. Cinturão defensivo que procurava obstar o avanço estrangeiro na frente litorânea e também na zona interiorizada que os espanhóis viriam a reclamar, mas que o uti possidetis do Tratado de Madrid (1750) viria consagrar.12

Para além da costa atlântica, as características geográficas não favoreciam a penetração do território, seja no nordeste com o semi-árido ou as elevadas escarpas do planalto brasileiro em sua parte mais meridional, o que favorecerá a formação de núcleos litorâneos, acentuando o papel do Atlântico Sul na formação econômica, política e social do Brasil.

Como visto anteriormente, o suprimento da maior parte de mão-de-obra para trabalhar nas atividades econômicas do Brasil-colônia, agricultura e mineração principalmente, chegará pelo Atlântico, da costa africana.

Os interesses entre as lideranças locais, tanto no Brasil como nas colônias portuguesas na África, que se enriqueceram em torno do comércio de escravos era tal que se esforçaram para juntar-se numa única unidade política de dimensões sul-atlântica:

As colônias portuguesas da África, à época da Independência, estavam mais ligadas ao Brasil que a Portugal. O comércio bilateral era intenso, como também os vínculos culturais, sociais e humanos. Com a Independência, parte significativa das elites locais, sobretudo em Luanda e Bengala, pretendia romper os vínculos com Portugal e unir-se ao Brasil. A sublevação agitou a colônia, opondo as lideranças angolanas aos governadores e ao bispo, fiéis a Portugal. O seqüestro dos bens dos brasileiros foi decidido pela autoridade local em 1823, em represália à medida similar decretada no Brasil contra os portugueses. Não há indícios de ação positiva por parte de José Bonifácio e dom Pedro para acatar essas aspirações, embora seus decretos lá chegassem e fosse nomeado um cônsul brasileiro, em 1826, que foi rejeitado por Lisboa. Frustrou-se o movimento de união, pela firme oposição de Portugal e Inglaterra, cujos representantes impuseram ao governo brasileiro, no tratado de paz de 1825, o distanciamento político da África portuguesa. Desde então houve grande esforço no sentido de readequar a colônia ao tipo de exploração diferente e adequado ao interesse da metrópole.13

12 CASTRO, T. Nossa América – Geopolítica Comparada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército

Editora, 1994, p. 144.

13 CERVO, A. L. e BUENO, C. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de

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É relevante também notar o fato histórico de ter sido o Obá (rei) de Daomé (atual Benin), o primeiro soberano a reconhecer a independência do Brasil, em 1824, sobretudo devido ao grande fluxo comercial (escravos que vinham para o Brasil, aguardente, tecidos e armamentos que iam para Daomé) entre os dois lados do Atlântico.

Além do distanciamento político da África portuguesa, que perdurará até a segunda metade do século XX, a Independência irá também repercutir no espaço do Atlântico Sul na organização da Marinha brasileira, principalmente devido ao plano português de guerra de reconquista. Segundo Cervo, ao analisar a força naval brasileira, diz que: “... comparáveis, possivelmente superiores, às forças dos Estados Unidos, o que representava uma tentação para aventuras no Sul, onde se agravava o conflito com Buenos Aires em torno da Cisplatina”.14

As pressões da Inglaterra pelo fim do tráfico de escravos no Atlântico Sul, desde a chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, culminarão com conflitos e ruptura, em 1845. A dependência de mão-de-obra escrava fará o Brasil transgredir os acordos firmados pelo fim do tráfico, que oficialmente só se dará em 1850, tornando a imigração livre uma das metas prioritárias do governo.15

A mediação junto a Portugal no processo de independência do Brasil resultou à Inglaterra vantagens tarifárias, com a assinatura do Tratado de Amizade, Navegação e Comércio. Segundo Cervo, a cláusula de nação mais favorecida, firmado em 1828, enquadrava as relações bilaterais no sistema internacional do capitalismo industrial, sem nenhuma originalidade.16

Em 1823, época da restauração na Europa, desenhava-se nos Estados Unidos, com a Doutrina Monroe, a supremacia dos Estados Unidos no continente. De fato, a Doutrina Monroe só se transformara em ação de Washington no final do século XIX. Na Conferência Internacional dos Estados Americanos, 1890, em Washington, a delegação americana proclama a “A América para os americanos”.

Moura sintetiza com clareza como os Estados Unidos traduziram essa idéia:

14 Idem.

15 CERVO, A. L. e BUENO, C. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 2002, p.80.

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Que “a América para os americanos” constituía uma articulação destinada a assegurar a hegemonia política dos EUA no continente já ficaria claro na década de 1890. Em 1895, Washington impôs sua arbitragem numa disputa entre Venezuela e a Grã-Bretanha e em 1898 iniciou sua expansão além-mar, a partir de uma guerra contra a Espanha. No primeiro caso, o governo americano viu numa disputa de limites entre Venezuela e Guiana Inglesa a oportunidade de impor-se a uma potência européia sob a alegação (real ou fictícia) de que essa potência estava intervindo no continente e poderia transformar uma nação americana em colônia. Foi no contexto dessa imposição, que o Secretário de Estado Olney disse a famosa frase “Hoje em dia, os EUA são praticamente soberanos nesse continente”.17

Com o financiamento à construção do Canal do Panamá e com o estabelecimento de bases navais em Cuba, após afastar a Espanha do controle sobre a ilha, no início do século XX, a parte ocidental do Atlântico Norte se converte em área de influência exclusiva dos Estados Unidos, que só será abalada sessenta anos mais tarde, no episódio da Crise dos Mísseis, envolvendo também Cuba.

Por outro lado, o Atlântico Sul permanecerá em segundo plano nos interesses dos Estados Unidos, exceto em alguns momentos, como por ocasião da Segunda Guerra Mundial, com a implantação de bases militares no nordeste do Brasil, cuja menor distância da costa africana permitia a manutenção de aeronaves de vôos transcontinentais.

No pós-guerra, enquanto o Atlântico Norte ganhava o seu tratado, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), por engenharia dos Estados Unidos, o Atlântico Sul voltava à calmaria, distante do conflito Leste/Oeste.

Ainda que de forma menos explícita, não estará totalmente fora do “radar” de Washington.

O TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca), resultado da Conferência Interamericana, realizado no Rio de Janeiro, em 1947, veio a reforçar a hegemonia norte-americana no hemisfério. O TIAR, para os chefes militares dos Estados Unidos, segundo Moura, em relatório do Secretário de Defesa em 1949, era um instrumento para garantir “a segurança do hemisfério ocidental e nosso acesso

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aos recursos do hemisfério, que sejam essenciais a qualquer projeção transoceânica de um maior poder ofensivo dos EUA”.18

O TIAR deveria, portanto, ajudar os objetivos estratégicos dos EUA na América Latina, a saber: matérias-primas, manter aberta a possibilidade de utilização de bases latino-americanas por forças americanas, proteger linhas de comunicação e finalmente assegurar o apoio latino-americano às posições internacionais dos EUA. Pode-se perceber que o TIAR não era propriamente um tratado de defesa hemisférica, mas um canal de articulação da hegemonia político-militar dos EUA sobre o conjunto do continente.19

Moura ainda ressalta que a influência dos Estados Unidos na América Latina atinge as forças armadas da região, exercendo “um monopólio virtual do fornecimento de armas, treinamento e influência sobre os militares latino-americanos”. E complementa ao dizer que:

Além de armas e do treinamento vieram também as noções de segurança nacional e segurança coletiva cujo significado, voltado para as ameaças “internas”, distanciava-se enormemente das velhas concepções de defesa nacional e defesa coletiva, que tinham alimentado até então as forças armadas. As “escolas de guerra”, montadas a partir do modelo do ‘War College’ de Washington, disseminavam as novas doutrinas militares geradas do norte.20

Essa influência será percebida na questão africana, como veremos mais adiante.

A OEA (Organização dos Estados Americanos), criada em Bogotá, em 1948, no contexto do pós-Segunda Guerra, constituía, segundo Moura, “apenas um pedaço de um sistema de poder mais vasto, de escala virtualmente planetária, o grande sistema norte-americano”.21

Se a costa ocidental do Atlântico Sul, área de influência direta dos Estados Unidos não virá a constituir-se como palco de conflito de proporções significativas no contexto da Guerra Fria, o mesmo não ocorrerá no outro lado do Oceano, na costa africana. A influência de Washington se deu principalmente

18 MOURA, G. Estados Unidos e América Latina: As relações políticas no século XX; xerifes e cowboys; um povo eleito e o continente selvagem. São Paulo: Ed. Contexto, 1991, p. 44.

19 MOURA, G. Estados Unidos e América Latina: As relações políticas no século XX; xerifes e cowboys; um povo eleito e o continente selvagem. São Paulo: Ed. Contexto, 1991, p. 44.

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através da África do Sul, que procurava atuar na região austral de modo a afastar a presença soviética em países circunvizinhos, como na Namíbia e em Angola. Em troca, os Estados Unidos evitavam que qualquer proposta de censura fosse aplicada contra a África do Sul na ONU por seu regime de segregação racial, o apartheid.

Desde os anos 50, pode-se verificar evolução das percepções e atitudes do Brasil em relação à África, ainda que com avanços e recuos.

O Tratado que institui formalmente a Comunidade Luso-Brasileira, de 1955, acabou por reforçar a subordinação do Brasil à política colonial portuguesa. Ademais, o “liberalismo associado”, de aproximação com os centros financeiros ocidentais, característica do governo Kubitschek, reforçou mais ainda posições conservadoras em relação à ordem colonial.

Na dimensão econômica, a criação do Mercado Comum Europeu, em 1957, assegurou aos países africanos, inclusive aqueles sob regime colonial, acesso privilegiado na Europa e colaborou para o surgimento de conflito de interesses entre o Brasil e a África, especialmente em relação ao comércio de produtos agrícolas.

A PEI (Política Externa Independente), dos governos de Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-64) marcou período de desenvolvimento de uma política externa que se pautava pela eqüidistância entre as superpotências, mas sinalizava principalmente a Washington o rompimento com alinhamentos e a frustração por maior cooperação, como propunha a OPA (Operação Pan-Americana) de Kubitschek.

Nesse contexto, e dadas às características étnicas e culturais que ligavam o Brasil à África, o governo de Jânio Quadros defendia papel de destaque do país naquela região, que em processo de descolonização, necessitava de uma “ponte” com o Ocidente.

Em 1961 é criada a Divisão da África, um novo departamento do Itamaraty, que além de seu valor simbólico, veio a cuidar das relações com os novos países africanos.

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Saraiva enfatiza que a Comissão Militar Conjunta Brasil-Estados Unidos temia a vulnerabilidade da política externa de Quadros, que poderia ser influenciada por visões a favor dos regimes comunistas.22

Em relação a Angola, Bueno salienta que o então chefe da delegação brasileira na ONU observou que a posição do país era determinada pela autodeterminação, pelo anticolonialismo, mas também pelos seus laços históricos, culturais e de amizade que o ligavam a Portugal. O Brasil desejava uma solução pacífica, rápida, que compatibilizasse os interesses de portugueses e angolanos, e que preservasse os ‘elementos culturais e humanos que são característicos da presença portuguesa na África’. Apesar da ênfase que a PEI emprestava ao anticolonialismo, a tradicional amizade com Portugal inibia a Chancelaria brasileira na tomada de uma posição mais contundente na questão angolana.23

Mário Gibson Barboza, então Ministro-Conselheiro do Brasil na ONU durante o governo de Jânio Quadros, lembra que, no que dizia respeito à África, a posição geral de Jânio, aconselhado por Arinos, era a de procurar com o continente negro uma aproximação real e anticolonialista, contrariamente ao que haviam praticado governos anteriores. Mas ainda aí vacilava, quando menos era de se esperar. “Assim, definiu-se entre Jânio e Arinos que passaríamos a votar contra Portugal nas Assembléias-Gerais das Nações Unidas, onde sucessivamente se adotavam resoluções anticolonialistas, que apertavam, cada vez mais, o cerco a Portugal”.24

No entanto, o Embaixador de Portugal no Brasil, Manuel Rocheta, que tinha grande penetração na sociedade brasileira, comandou um lobby intenso nos meios políticos, com o intuito de mudar a posição do Itamaraty nas Nações Unidas. Barboza descreve que “foi assim, com perplexidade, que Afonso Arinos recebeu a visita do Embaixador português, que regressava de Brasília, onde fora recebido pelo Presidente, e o informou de que este mudara de decisão e resolvera votar a favor de Portugal”.25

22 SARAIVA, J. F. S. Do silêncio à afirmação: relações do Brasil com a África. In: CERVO A. L. (org.) O Desafio Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 266.

23 CERVO, A. L. e BUENO, C. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 2002, p. 342.

24 BARBOZA, M. G. Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2007, p.

342.

25 BARBOZA, M. G. Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2007, p.

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Ainda assim, o Brasil avançou na implementação da política africana. No governo Goulart as relações com o continente foram ampliadas com o estabelecimento de três embaixadas brasileiras, em Lagos, Dacar e Acra. Esta última, sendo ocupada inclusive pelo primeiro embaixador negro da história do Brasil. Em 1962, Gana e Senegal estabelecem suas embaixadas em Brasília.

No governo militar de Castelo Branco, a grande preocupação relacionava-se ao Atlântico Sul e à costa ocidental da África.

Segundo Gonçalves e Shiguenoli:

O maior receio de nossos estrategistas era uma possível instalação de regimes hostis ao mundo ocidental naquela parte do continente africano, ameaçando a segurança brasileira na sua imensa fronteira leste. Para mostrar a exeqüibilidade dessa hipótese, recorriam à experiência histórica da Segunda Guerra Mundial, quando as forças aliadas utilizaram-se do litoral nordestino como cabeça-de-ponte para alcançar o norte da África, palco de decisivos combates no confronto com as forças do Eixo.26

O forte teor ideológico dos militares predominou no posicionamento do Brasil na questão africana e conforme salientado por Saraiva, inibiram as iniciativas do período anterior. E então Gonçalves e Miyamoto afirmam que:

Objetivando guarnecer esse flanco defensivo, reverteu-se a orientação política desenvolvida pelo governo anterior de afastar o país do regime português de Salazar, devido à sua obstinação em manter o império colonial a salvo do processo de descolonização. Movido pelo interesse geopolítico de assegurar o arquipélago de Cabo Verde e Angola adstritos ao bloco ocidental, o governo Castelo Branco buscou a reaproximação com o governo português. Após as visitas mútuas do chanceler português Franco Nogueira e do chanceler brasileiro Juracy Magalhães, foi restabelecido o status quo ante, o que proporcionou ao Brasil, em troca de seu apoio ao sistema colonial de Portugal, a assinatura de um tratado de comércio pelo qual se lhe abriam os portos coloniais27.

26 GONÇALVES, W. e MIYAMOTO, S. Os Militares na Política Externa Brasileira: 1964-84. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol. 6, n. 12, 1993, p. 211-246.

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3 OS ANOS 70 E O REDIMENSIONAMENTO DO ATLÂNTICO SUL PARA O BRASIL

No inicio dos anos 70, a política externa brasileira ganhou novas orientações, em sintonia com cenários doméstico e internacional desafiadores. As relações do Brasil com Portugal e o continente africano passam por sensível transformação. E com o Estados Unidos inicia-se a chamada “rivalidade emergente”.

Passados os primeiros anos do regime autoritário, apoiado pelos Estados Unidos, frustravam-se no Brasil as expectativas por um papel mais cooperativo, em termos econômicos, principalmente, por parte de Washington. Por outro lado, aumentavam os protestos contra o regime nos meios intelectuais, artísticos e sindicais, apesar da repressão exercida pelos militares.

A “rivalidade emergente” se manifestou em temas diversos, como no protecionismo comercial, com restrições às importações de manufaturados brasileiros (café solúvel, têxteis, calçados, bolsas), a incompatibilidade das políticas nucleares, que se evidenciou nas resistências de Washington ao acordo nuclear teuto-brasileiro, embates em fóruns multilaterais sobre questões de poluição, defesa do meio ambiente, renovação dos acordos internacionais do café e do açúcar e no decreto brasileiro em fixar a extensão do mar territorial em 200 milhas.

Em segundo lugar, e concernente ao citado acima, era necessário garantir o desenvolvimento econômico que se verificava no início dos anos 70, o chamado “milagre econômico”. Com a rápida expansão industrial, o país necessitava garantir mercados, tanto para exportação como para fornecimento de matérias-primas, especialmente o petróleo. Para Saraiva, com a vulnerabilidade energética acelerada com a crise do petróleo, tinha que levar em conta esse componente no xadrez da crise colonial em Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde.28

Antes da Segunda Guerra Mundial, os interesses brasileiros se orientavam quase que exclusivamente no sentido Atlântico norte-sul.

Desde 1972, no entanto, toma grande impulso a Rota Africana, partindo da trijunção de Corredores de Exportação Santos-Rio de Janeiro-Vitória, que atinge a zona ocidental do continente. A Rota do Cabo, da qual o Brasil já participava

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ativamente no comércio triangular com Portugal durante o período colonial, também adquire maior importância face da aproximação do Brasil com a Ásia e Oriente Médio.29

O I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), vigente no período 1972-1974 do governo Médici, lançou o slogan “Brasil-Grande Potência”, com a proposta de promover o desenvolvimento do país, de forma acelerada e controlada, no mesmo nível das grandes potências econômicas do mundo. A diplomacia do nacionalismo-autoritário que se estabelece, tinha como objetivo primordial a neutralização de todos os fatores externos que pudessem contribuir para limitar o Poder Nacional, segundo análise de Moniz Bandeira.30

A região do Atlântico Sul surge de modo mais intenso na política externa brasileira a partir daí, e a questão de desenvolvimento passa a estar mais nitidamente vinculada ao conceito de segurança.

Nesse aspecto, a África passou a ser percebida de modo diferenciado, tanto no campo estratégico-militar como no diplomático.

Em primeiro lugar, uma administração descentralizada conferiu maior autonomia ao Itamaraty no interior do Estado autoritário, o que permitiu ao Ministro das Relações Exteriores, Mário Gibson Barboza defender sua “Diplomacia da Prosperidade”, bastante semelhante às diretrizes da PEI. A nova linha de política externa exigia enfrentar o problema do colonialismo português. Barboza, em exposição de motivos ao Presidente Médici, disse:

País Atlântico, o Brasil tenderá, num futuro que se aproxima com rapidez, a ter crescentes interesses e responsabilidades no outro lado do oceano que banha nossas costas. Conviria por isso que, desde já, procurássemos aumentar, dentro de nossas possibilidades e recursos, a presença brasileira naquela parte da África que chamaremos atlântica. Os países que a formam não são apenas nossos co-ribeirinhos. Deles proveio a esmagadora maioria do contingente negro de nossa formação. Da área situada entre o rio Volta e o rio dos Óleos vieram instituições e costumes que se impuseram como algumas das matrizes de nosso comportamento social. Com essa região mantivemos durante o Império, intenso e permanente contato, de que ainda sobram reminiscências, nos simples bairros brasileiros de Acra, de Lagos e de toda a costa do Daomé e do Togo, bem como nas famílias que conservam nomes de origem portuguesa e reclamam com orgulho a condição de

29 CASTRO, T. Nossa América – Geopolítica Comparada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército

Editora, 1994, p. 45-6.

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descendentes de brasileiros. Com esses países é que sustentamos a maior parte de nosso diálogo nas iniciativas internacionais para a estabilização dos preços dos produtos primários. São eles os nossos principais competidores nos mercados de produtos tropicais e, ao mesmo tempo, nossos principais parceiros para o seu ordenamento racional. Influem decisivamente alguns desses países – como a Costa do Marfim, a Nigéria e Gana – nas decisões políticas do grupo africano, sobretudo nos organismos internacionais, onde hoje a África forma o mais numeroso grupo de Estados.31

Em sua explanação a Médici, o Chanceler ainda salientou que a África Atlântica deveria ser escolhida para um novo esforço criador da diplomacia brasileira:

Dentro da área, penso deveríamos concentrar esforços naqueles países que se apresentam como de maior importância para o Brasil, quer por razões econômicas, como a Costa do Marfim, Gana, Nigéria, Camarões e Zaire, quer por seu relevo político, como o Senegal, a Costa do Marfim, Gana e Nigéria, quer por sua influente presença cultural em toda a África, como o Senegal, quer pela relevância dos laços que mantiveram com o Brasil no passado e que ali continuam vivos, como o Togo, o Daomé e a Nigéria.32

E concluiu assim sua exposição:

Dessa forma, se Vossa Excelência houver por bem assim autorizar-me, aceitarei o convite que me fizeram a Costa do Marfim e o Senegal para visitar aqueles países, no próximo ano de 1972, e estenderei a viagem a Gana, ao Togo, ao Daomé, à Nigéria, aos Camarões e ao Zaire, com os objetivos de:

-(1) revigorar a presença brasileira na área;

-(2) examinar os interesses comuns no Atlântico Sul e as possibilidades de uma política coerente de mar territorial;

-(3) ampliar os mecanismos de consulta e colaboração sobre produtos primários;

-(4) estimular a criação de correntes efetivas de comércio;

-(5) estabelecer novos modelos de cooperação cultural e de assistência técnica.33

O Presidente Médici aprovou, sem qualquer modificação, essa nova linha de política externa, deixando Barboza com as mãos livres para a ação diplomática decorrente. Nesse aspecto, a opção pela África, em detrimento da ligação com

31 BARBOZA, M. G. Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2007, p.

346-7.

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Portugal, fez com que o Brasil avançasse nas ações diplomáticas em relação a esse continente, e em especial a Angola, alguns anos mais tarde, já durante o governo Geisel, como veremos adiante.

O rápido e acelerado crescimento econômico do Brasil no início da década tornavam o suprimento energético crucial para sustentar o “milagre”, vindo a influenciar no delineamento de uma nova política externa para a África. Saraiva salienta que a vulnerabilidade energética do país era uma preocupação para os formuladores da política externa no Brasil. Nigéria e Angola seriam fornecedoras de petróleo e, em certo sentido, representariam para o Brasil um espaço de diversificação da sua própria vulnerabilidade. Mas não apenas. O aumento do comércio exterior do país no período, em que 90% dele era transportado pelo mar, e em especial a importação de petróleo, transportado principalmente pela Rota do Cabo, circundando a África do Sul, representaram nova dimensão geopolítica para o Atlântico Sul. A guerra árabe-israelense e conseqüente fechamento do canal de Suez reforçaram a importância estratégica dessa vertente para a chancelaria brasileira.

Para Ferreira, “esse conflito localizado, numa área em que o Brasil só tem como interesse vital o petróleo que compramos dos países árabes, veio revelar o grau de despreparo estratégico do Brasil no mar”.34

Até então, a Guerra Fria orientava a política externa e de defesa para o interior, onde as fronteiras terrestres encontravam-se vulneráveis a guerrilha e ao inimigo ideológico.

A questão ideológica, entretanto, em decorrência dos interesses econômicos e estratégico-militares, logo deu lugar ao pragmatismo. Tomava corpo nas esferas de tomada de decisão em política externa e defesa, o Itamaraty e o Conselho de Segurança Nacional (CSN), principalmente, que o Atlântico Sul era vital para a segurança do Estado brasileiro, e que a África ocuparia papel relevante nesse aspecto. Na avaliação de Miyamoto, “para um país que nutria a aspiração de em breve tempo ingressar no rol das grandes potências, o controle da fronteira leste parecia estrategicamente fundamental; tratava-se, pois, de fazer do Atlântico Sul um verdadeiro maré nostrum.”35

34 FERREIRA, O. S. A Crise da Política Externa. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001, p.73.

35 GONÇALVES, W. S. e MIYAMOTO, S. Os militares na Política Externa Brasileira: 1964-1984.

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Tornava-se necessário conciliar a visão ideológica matizada pela Guerra Fria, fortemente presente no regime militar com os objetivos que se pretendia alcançar. Por um lado, afastar o perigo representado pelo comunismo, que alcançava o continente africano. Por outro, fortalecer a presença brasileira no Atlântico Sul, em vistas dos interesses econômicos e estratégicos que representava.

O primeiro governo angolano teve como base o MPLA (Movimento Para a Libertação de Angola), apoiado pela União Soviética. Os Estados Unidos, por seu turno, apoiavam a FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional pela Independência de Angola). Esses partidos, organizados no esteio dos movimentos pela autodeterminação dos povos, intensificaram suas disputas com a Revolução dos Cravos, em Portugal, em 1974, que pôs fim ao regime ditatorial naquele país.

A questão angolana tornava-se delicada para o Brasil por dois aspectos. Em primeiro lugar, resistências por parte de militares, que não aceitavam o reconhecimento de um governo de esquerda. Em segundo lugar, significava a quebra de um tratado não-escrito com Portugal, que perdurou desde a independência do Brasil.

Acabou prevalecendo a opção pela África, quando em 1975, o Brasil se torna o primeiro país a estabelecer relações diplomáticas com Luanda, sob governança do MPLA, contrariando inclusive a posição norte-americana na questão.

Como vemos, o reconhecimento brasileiro da independência de Angola constituiu-se um importante fato no novo perfil das relações entre Brasil e Estados Unidos, mas não o único.

Algum tempo antes, em 1972, a expulsão a tiros de canhão de barcos norte-americanos dessas águas e a apreensão de barcos pesqueiros de diversas nacionalidades marcaram a afirmação da soberania brasileira na faixa reivindicada. Isto levou o Congresso norte-americano a apresentar projetos de retaliação ao Brasil caso não fosse revogado o decreto das 200 milhas assinado pelo presidente Médici.36

Amparado pelo “milagre econômico”, de alto endividamento externo, o governo brasileiro realizou investimentos em estradas, hidrelétricas e telecomunicações. Intensificou-se a procura por petróleo na plataforma continental e,

36 CERVO, A. L. e BUENO, C. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora Universidade de

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em 1974, a Petrobrás descobriu pela primeira vez grande jazida na bacia de Campos, no campo de Garoupa.

Indícios de petróleo nessa região já haviam sido verificados no final dos anos 60, em torno de 150 milhas da costa. Como as 12 milhas de mar territorial então vigente não garantiam a soberania sobre recursos minerais como os descobertos pela Petrobrás, ganhava força a idéia de ampliar esse limite para 200 milhas.

O Decreto-lei nº 1.098 de 25 de março de 1970, que instituiu as 200 milhas, originou-se de proposta do Chanceler Mário Gibson Barbosa e foi elaborado por grupo de trabalho orientado pelos Ministérios das Relações Exteriores e da Marinha, e aprovado por unanimidade pelo Conselho de Segurança Nacional.

O Conselho de Segurança Nacional, criado através da Constituição de 1937, com a função de estudar todas as questões relativas à segurança nacional, tornou-se, pelo Decreto-Lei nº 900, de 1969, “o órgão de mais alto nível de assessoramento direto do Presidente da República, na formulação e na execução da política de segurança nacional”.37 Passou a ocupar papel central nos assuntos de fronteiras, terrestres e marítimas.

A repercussão positiva da instituição das 200 milhas, por parte dos meios políticos, inclusive do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), partido de oposição legalmente instituído pelo regime, da mídia e da sociedade em geral, denota o sentimento ufanista que vigorava então. “Esse mar é meu”, título de samba de João Nogueira, incorporava-se a outras manifestações do gênero, como “Com brasileiro não há quem possa”, do famoso jingle da Copa de 70, e do “Ninguém segura este país”, verbetes propagandistas do governo militar.38

Para Cerri:

O símbolo de massa de mar passa a participar mais intensamente da propaganda política do regime, e, mesmo não sendo representado no mapa usual do território nacional, confere um sentido novo ao desenho das costas litorâneas, envolvendo-as com um sentido de união, de força, de pertencimento, de integração, transferidos do significado do mar enquanto um símbolo da massa que é a nação. “O Brasil começa no mar”, afirma o anúncio da Petrobrás, atribuindo esse sentido de uma fronteira dinâmica e integrada ao sentimento de um espaço que “nos” pertence, que faz parte do que somos enquanto coletividade; conquistar e manter esse espaço é dignificar

37 PALÁCIO DO PLANALTO. Brasília: Decreto-Lei nº 900, de 29/09/1969.

38 CARVALHO, G. L. C. O Mar Territorial Brasileiro de 200 Milhas: Estratégia e Soberania. 1970-1982.

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o conjunto, e especialmente a classe dirigente, tradutora e executora firme e competente dos anseios do grupo, tanto no aspecto moral, quanto econômico, e também no identitário, unindo o mar simbólico da massa nacional ao mar físico que lhe pertence.39

Na ocasião, o Itamaraty recebeu diversas notas de contestação da medida, a maioria vinda de países industrializados de grande atividade pesqueira, como Bélgica, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Japão, Noruega, Reino Unido, República Federal da Alemanha, Suécia e União Soviética.40

A medida enquadrava-se na proposta do nacional-autoritarismo de neutralizar todos os fatores externos que pudessem contribuir para limitar o Poder Nacional.

Argumenta Moniz Bandeira que:

Aquela ocasião, diplomaticamente bem calculada, visou a produzir efeitos internos, como demonstração de nacionalismo, sobretudo para as Forças Armadas, e externos, atingindo os Estados Unidos em um ponto não tanto sensível, que pudesse provocar fortes retaliações, mas suficientemente sensível, quando suas pressões sobre o café solúvel e os têxteis de algodão, bem como a redução das quotas de importação de açúcar e das vendas de armamentos afetavam os interesses do Brasil. Tanto Gibson Barbosa, que fora Embaixador do Brasil em Washington, quanto Araújo Castro, nomeado para o substituir, sabiam que a invocação da “amizade tradicional”, “solidariedade continental” etc., como argumentos, não sensibilizavam os norte-americanos, com os quais se tornava necessário falar com firmeza e energia, para discutir problemas concretos.41

Na costa atlântica da América do Sul, Argentina em 1966 e Uruguai em 1969, adotaram igualmente a medida das 200 milhas. Assim, o Brasil uniformizava a largura de seu mar territorial com o de seus vizinhos austrais.

Segundo Saraiva, a decisão brasileira constituiu-se também em reafirmação de sua política para a África. Se para setores militares estrategistas predominava o tema da hegemonia militar do Brasil no Atlântico Sul, a questão das 200 milhas ajudava a projetar a imagem de um poder tropical industrial e convencer os estados negros africanos que as relações históricas do Brasil com Portugal não

39 CERRI, L. F. Ensino de História e Nação na Propaganda do “Milagre Econômico”. Tese de

doutorado defendida na Unicamp. Campinas: 2000.

40 Idem, p. 113.

41 BANDEIRA, M. Relações Brasil-EUA no Contexto da Globalização. São Paulo: Editora Senac,

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deveriam inibir o desenvolvimento de relações intensas com a África negra independente. Além disso, a solidariedade africana era um importante trunfo junto aos organismos multilaterais.42

Certa inflexão da política externa do regime autoritário, em um sentido mais favorável a Angola, Moçambique e Guiné-Bissau ocorreu ao fim do Governo Médici, pois até então as manifestações brasileiras sobre a auto-determinação da África se davam em meio a contradições, principalmente na ONU, em apoio a Portugal.

Como visto anteriormente, além do petróleo, a pesca também foi um dos interesses que o Brasil buscou defender na nova delimitação do mar territorial.

Carvalho aponta para caráter inovador do conceito de Zona Econômica Exclusiva (ZEE) que se consolida no período de 1971 e 1972, e que veio a ser o elemento central de todo o processo de negociações sobre o direito do mar que viria a se desenvolver posteriormente. Em 1973, a III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, cuja realização deveu-se em grande parte ao decreto brasileiro, veio a solucionar o impasse sobre o limite de 200 milhas. Mas somente em 1982, em Montego Bay, na Jamaica, a III Conferência alcança seu objetivo, uma Convenção. Desde 1973, no entanto, um novo regime internacional sobre o Mar já regulava interesses dos Estados adjacentes a ele.

Bueno argumenta que:

Ao Brasil interessava também os direitos soberanos sobre a plataforma continental. Não obstante a zona econômica exclusiva protegesse praticamente toda a plataforma brasileira, o País apoiou a solução que acabou prevalecendo: a que estendia a soberania dos países ao talude e ao sopé das plataformas, em razão da possibilidade da ocorrência de jazidas petrolíferas.43

Mas antes disso, a indefinição sobre a faixa de mar territorial e a soberania sobre essas águas suscitou diversos conflitos, como a “Guerra do Salmão”, em 1956, envolvendo a apreensão de barcos pesqueiros peruanos pelos Estados Unidos. Em 1958, a “Guerra do Bacalhau”, entre Inglaterra e Islândia e a

42 SARAIVA, J. F. S. Do Silêncio à Afirmação: Relações do Brasil com a África. In: CERVO, A. L.

(org.) O Desafio Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 309.

43 BUENO, C. A política multilateral do Brasil. In: CERVO, A. L. (org.) O Desafio Internacional.

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“Guerra do Arenque”, em que barcos noruegueses adentraram águas da Guatemala, foram fatos ocorridos pala ausência de tratado internacional sobre a questão.44

Durante o governo Goulart, entre 1961 e 1963, Brasil e França protagonizam a “Guerra da Lagosta”, em águas do litoral de Pernambuco. Flagrados por pescadores nordestinos, pesqueiros franceses foram convidados a se retirar da área pela Marinha, desencadeando um conflito pouco conhecido na história das relações internacionais do Brasil. Um contingente naval francês chegou a se deslocar para a área do conflito, o que foi respondido pelo Brasil com a mobilização da aeronáutica e do exército, além da própria marinha. A imprensa francesa acalorou a discussão e questões curiosas foram levantadas. Se a lagosta fosse capturada nadando, isto é, sem estar repousando no assoalho submarino, considerado território brasileiro, então estaria o crustáceo em águas internacionais. Após debates diplomáticos entre os dois países, a questão foi encerrada a favor do Brasil. O episódio evidenciou imprecisões não apenas a respeito da fauna marinha, mas também em relação aos direitos de soberania sobre o mar territorial.45

Em 1971, evento semelhante se dá contra embarcações dos Estados Unidos que pescavam a 75 milhas da costa brasileira. O Brasil foi acusado de atacar oito barcos pesqueiros norte-americanos dentro do limite das 200 milhas. A Marinha brasileira negou o ocorrido, argumentando que uma eventual apreensão de barcos pesqueiros não demandaria o uso da força, mesmo porque os pesqueiros não disporiam de capacidade de reação.46

Carvalho salienta outros fatores econômicos de importância para o país, resguardados através da soberania na faixa de 200 milhas, como o controle de pesquisas nas águas e nos fundos da área de 200 milhas e da preservação do meio ambiente marinho; contenção de atividades que pudessem causar a poluição das águas e danos aos recursos marinhos; e obstar iniciativas de estabelecimento e utilização de estruturas nocivas aos interesses do Estado brasileiro, tanto em termos econômicos como de segurança nacional.47

44 CARVALHO, G. L. C. O Mar Territorial Brasileiro de 200 milhas: Estratégia e Soberania. 1970-1982.

Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de Brasília em março de 1999.

45 BRAGA, C. C. A Guerra da Lagosta. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha (SDM),

2004.

46 CARVALHO, G. L. C. O Mar Territorial Brasileiro de 200 milhas: Estratégia e Soberania. 1970-1982.

Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de Brasília em março de 1999.

(39)

O governo Médici projetou um papel de relevo para o Brasil, uma “potência emergente” no concerto das nações. Desenvolvimento e Segurança Nacional mesclaram-se de forma mais intensa sob a influência do pensamento militar, sempre mais propenso a tecer análises baseadas em considerações sobre guerra e defesa. O contexto da Guerra Fria contribuiu significativamente para tonificar a doutrina de segurança do Brasil e do modo como o Atlântico Sul vinculava-se a esse pensamento.

Além de resguardar para si o uso dos recursos econômicos do oceano, na sua faixa de 200 milhas, o Brasil visava também impedir a presença de navios e submarinos praticando espionagem, pesquisas marinhas para fins militares ou qualquer outra atividade que fosse um atentado à soberania nacional. Na época, temia-se que colaboração externa às guerrilhas que atuavam contra o regime, com o envio de armamentos, pudesse ser realizada mais facilmente sem a jurisdição do Estado em faixa ampliada do mar territorial.

Medida que proibisse o uso de artefatos militares no fundo dos oceanos, incluindo testes nucleares, foi defendida pelo Brasil e materializada em Tratado.

Nos anos 70, as crises do petróleo e as restrições de ordem econômica que vieram a reboque colocaram por terra o mito do “milagre”, e a realidade mostrou-se amarga com o alto endividamento externo que sustentou o projeto “Brasil-grande potência”.

As dificuldades enfrentadas pelo Brasil na década de 70 foram acompanhadas por deterioração das relações com os Estados Unidos. De ambos os lados verificava-se manifestações de animosidades. E Geisel, apesar de convidado em 1975, nunca se dispôs a visitar os Estados Unidos. Por outro lado, o país diversificava suas iniciativas diplomáticas, em especial com Europa e Japão. Aproximou-se da China e em relação à África, posicionou-se claramente a favor da descolonização, como visto anteriormente.

(40)

América Latina, um novo ensaio de penetração nos mercados africanos e uma espécie de ‘nacionalização’ da internacionalização brasileira.48

Segundo Fonseca Jr., a linha autonomista de Geisel estaria, basicamente, determinada por imposições de lógica diplomática:

Se a política externa independente nasce de um projeto político, de uma concepção intelectual, o pragmatismo será tentativa de superar uma história que começa em 1964 e que resulta, de um lado, em algum isolamento diplomático (especialmente no campo multilateral) e, de outro, em uma teia de contradições reais com a potência hegemônica (em áreas variadas, com direito do mar, energia nuclear, comércio etc.). Isso não impede que a política externa venha a ter efeitos ou impulsos domésticos, (p.ex. a necessidade ampliar o espaço econômico do país, com o incremento de exportações: afinidade com o esquema de abertura de Geisel), mas não é a dinâmica interna a base privilegiada para explicá-la. Em suma, em vista de novas circunstâncias da presença internacional do país, mudam os próprios parâmetros brasileiros de interpretar o mundo.49

Saraiva analisa que as crises do petróleo, a Revolução dos Cravos em Portugal, as próprias modificações no sistema internacional e a eficácia do método do pragmatismo ecumênico e responsável de Geisel permitiram a opção brasileira pelas independências em Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné Bissau.50

A partir de 1975, segundo Saraiva, a inflexão da política exterior brasileira para a África ficou mais evidente com a primeira visita de um presidente brasileiro, João Figueiredo, à África negra. “A política africana adquirira consistência própria e penetração em vários setores da sociedade política dos dois lados do Atlântico Sul”, pondera.51

Desde os anos 70, a diplomacia brasileira vinha se articulando com habilidade junto aos governos da Nigéria e de Angola para conter a África do Sul no seu propósito de construir uma área de segurança regional no Atlântico Sul semelhante à Otan.52

48 BRIGAGÃO, C. e RODRIGUES, G. M. A. Política Externa Brasileira – Da Independência aos desafios do século XXI. São Paulo: Ed. Moderna, 2006, p. 66.

49 FONSECA JR. G. A Legitimidade e Outras Questões Internacionais – Poder e ética entre as nações. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 302-303.

50 SARAIVA, J. F. S. Do Silêncio à Afirmação: Relações do Brasil com a África. In: CERVO, A. L.

(org.) O Desafio Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 314.

51 Idem, p. 314.

52 SARAIVA, J. F. S. Do Silêncio à Afirmação: Relações do Brasil com a África. In: CERVO, A. L.

Imagem

Figura 1 – Mapa da América do Sul e do Atlântico Sul
Figura 2 – Mapa de Henderine Drogenhams, sem local de produção, datado  de aproximadamente 1600
Figura 3 - Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul – ZPCAS.
Figura 4 – Reivindicações sobre os territórios antárticos
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