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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

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Academic year: 2019

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

O Corpo Limiar e a Passagem de Impulsos como

elementos de Precisão Cênica: processos criativos entre a

Dança e o Teatro de Jerzy Grotowski

Carolina de Pinho Barroso Magalhães

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O Corpo Limiar e a Passagem de Impulsos como

elementos de precisão cênica: processos criativos entre a Dança e

o Teatro de Jerzy Grotowski

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas. Sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Carlos Gomes.

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Essa dissertação aborda a relação entre o corpo limiar e a passagem de impulsos como elementos relevantes para a construção de precisão cênica baseada na coexistência entre técnica e expressividade. O conceito de impulso parte das pesquisas de Jerzy Grotowski e o conceito de limiar é trazido das pesquisas de Walter Benjamin e Victor Turner, em diálogo com reflexões das artes do corpo. Ambos são analisados dentro da prática, a partir de um diálogo entre processos criativos da dança (dança contemporânea, dança teatro e Butoh) e do teatro, na perspectiva de Jerzy Grotowski. Não acreditamos aqui na elaboração de um método, mas buscamos trazer questionamentos e possibilidades que contribuam para processos criativos nas artes do corpo.

Palavras-chave: impulso, corpo limiar, dança, teatro, Jerzy Grotowki, Butoh, processos criativos, preparação corporal, precisão cênica, técnica e expressividade.

ABSTRACT

This dissertation addresses the relationship between the threshold body and the passage of impulses as relevant elements for the construction of scenic precision based on the coexistence between technique and expressiveness. The concept of impulse came from Jerzy Grotowski's research and the concept of threshold is brought from the research of Walter Benjamin and Victor Turner in dialogue with reflections of the body's arts. Both are analyzed within practice, from a dialogue between creative processes of dance (contemporary dance, dance theater and Butoh) and theater, from the perspective of Jerzy Grotowski. We do not believe in the elaboration of a method, but we seek to bring in questions and possibilities that contribute to creative processes in the arts of the body.

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Longos agradecimentos à pessoas essenciais para a realização desta pesquisa:

Ao Prof. Dr. Ricardo Gomes pela confiança, paciência e cuidado ao longo dessa pesquisa, pelos diálogos generosos, e pontuações essenciais, que sempre me ampliavam o olhar, e por ter sido a boa mistura entre flexibilidade e firmeza, caos e ordem, durante essa jornada.

A Antônio Apolinário, parceiro de criação e pesquisa, por compartilhar a beleza e maturidade de seu trabalho, companheiro de moradia na chegada, abrindo caminhos e sendo fonte diária de inspiração, por sentir junto a dor e a delícia de todo esse processo.

À Prof. Dr. Neide Aparecida, por trazer a poesia de volta à minha escrita através de suas aulas, e por ter sido a guardiã de portal do limiar, clareando minha entrada nessa pesquisa.

À Prof. Dr. Nina Caetano, pelo acolhimento em minha chegada ao DEART/UFOP, por ser uma inspiração para o diálogo vivo entre a criação e a pesquisa, pela oportunidade de aprender e criar com essa artista que há muito tempo admiro e por me trazer coragem e empoderamento para esses caminhos.

À Prof. Dr. Luciana Dias, por me tornar mais próxima das pesquisas de Friederich Nietzsche e Antonin Artaud, grandes inspirações para esse trabalho, por suas aulas intensas e instigantes, e pelas importantes considerações realizadas na banca de qualificação.

À Prof. Mestra e bailarina Adriana Banana e ao Prof. Dr. Ernesto Valença, pelos desafios e apoios, por me mostrarem o avesso, e assim amadurecerem minha pesquisa.

À Adriana Maciel, Dira Montty, Marrione Warley e Tábatta Iori, por me receberem no Laboratório Intercultural de Atuação de braços abertos e confiarem em minhas práticas e proposições com tanta entrega.

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A todos os colegas do mestrado, e professores do DEART pelas afetações, parcerias e aprendizados.

À Prof. Dr. Carla Andrea por ter sido inspiração, através de suas pesquisas e práticas, por compartilhar seus aprendizados, pela receptividade e generosidade durante o estágio de docência, e pelas relevantes considerações durante as bancas de qualificação e defesa.

Ao Prof. Dr. Arnaldo Alvarenga por também me receber para o estágio de docência e me proporcionar grandes reflexões e amadurecimentos através da serenidade e sabedoria de suas aulas/danças, por me ensinar a unir forças às diferenças e assim romper fronteiras.

À Luiz Carlos Garrocho, Tatiana Motta Lima, Cassiano Quilici, Renato Ferracini, Fernando Mencarelli, Paola Rettore, Sergio Pena, Dudude Herrmann, Kenia Dias, e à Cia Alaya e meus colegas da residência, por trazerem luz à minhas inquietações.

À Yoshito Ohno, por me abrir as portas do Butoh, e à Eden Peretta, por nos colocar em contato com ele e Dorothy Lenner através do evento realizado na UFOP.

À Dorothy Lenner por me iniciar na arte do Butoh com suavidade, acolhimento, intensidade e profundidade, por me trazer elementos essenciais para essa pesquisa, por todo seu afeto, constante mesmo na distância, e pela grande sabedoria compartilhada.

À Cia Teatro Akropolis e Zikiria Teatro Físico por despertarem minha paixão pelo trabalho de Jerzy Grotowski, através da intensidade e força do trabalho que desenvolvem.

À Adilson Siqueira e André Magela por me ajudarem na continuidade da pesquisa e prática sobre o trabalho de Grotowski, por me abrirem portas essenciais, e pelo grande apoio e ajuda na construção do projeto dessa dissertação.

À Alex Lindolfo por ouvir e compreender minhas inquietações e, a partir delas, me apresentar aos estudos de Walter Benjamin sobre o Limiar, que foi um ponto relevante a essa pesquisa.

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À minha mãe Jussara e minha irmã, Anna Clara, por me acolherem nesses momentos finais e compreenderem meus recolhimentos e trabalhos noturnos, em meio à sua rotina, com paciência, carinho, e colaboração.

À Anderson Aleixo, parceiro de criação nesses momentos finais, onde estão desaguando todas essas questões, pela paciência com meus ciclos de afastamento para o mergulho na dissertação, e por entender que o processo ainda assim está acontecendo.

À Ivan Sodré pela direção atenta e provocadora em meu período de Grupo EntreCorpos, a partir de onde se iniciaram muitas das inquietações que movem essa pesquisa, e por seu apoio e amizade. Aos colegas do Grupo EntreCorpos: Samuel Carvalho, Joyce Caravelli, Marta Luiza e Fernando Costa, por terem feito parte do nascimento dessa pesquisa.

À Tomás Prado por nossa longas conversas sobre essa pesquisa nas quais me trazia interlocução com entendimentos da filosofia zen budista, de teorias da fisica quântica e psicologia transpessoal, me ajudando acreditar nessa proposição que trago aqui.

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Introdução 8

Capítulo 1 - O surgimento das noções de impulso e trabalho sobre si

nas pesquisas práticas de Jerzy Grotowski 22

Capítulo 2 - Trabalho sobre si e impulsos em processos criativos da dança 33

Capítulo 3 - A precisão cênica para além dos códigos 43

3.1 Reflexões a partir das concepções de linha orgânica e linha artificial 43 3.2 Considerações iniciais sobre estrutura e espontaneidade 59

Capítulo 4 - Trabalhando com os impulsos 72

4.1 Impulso e Corpo-Memória/Corpo-vida 75

4.1.1 Diálogos práticos 80

4.2 Impulso e verdade/necessidade 86

4.3 Desbloquear o fluxo de impulsos 91 4.4 Os impulsos e o treinamento / processos criativos 96 4.4.1 Impulsos e fluxo consciente/inconsciente: questionamentos acerca

do diálogo entre o trabalho com os impulsos e práticas de consciência corporal 105 4.4.2 Impulso, contato e organicidade 109

4.4.3 Impulsos e partituras 120

4.4.4 Precauções / “Armadilhas” a serem observadas 129

Capítulo 5 - O corpo limiar e a passagem de impulsos 132

5.1 Ritos de passagem – o surgimento do corpo limiar 148 5.1.2 Perguntas e obstáculos à experiência do corpo limiar 151

Considerações finais 161

Referências bibliográficas 165

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O ator transforma a própria ação da transformação. Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se. O ator cresce no seu ato. Faz crescer o ato. O ator actifica-se.

Herberto Helder

Essa pesquisa surge da necessidade de refletir sobre caminhos possíveis para a construção de uma precisão cênica que se dê para além dos códigos, a partir de um trabalho do(a) criador(a) sobre si mesmo(a). Com esse intuito, trabalharemos aqui a partir de dois elementos que consideramos essenciais em processos criativos das artes do corpo que visem a criação de estruturas por uma via orgânica: o impulso e o corpo limiar. O conceito de impulso é trazido das pesquisas e práticas de Jerzy Grotowski. O conceito de limiar partiu de estudos de Walter Benjamin e Victor Turner, analisados em diálogo com pesquisas e entendimentos das artes corporais.

Procuramos refletir sobre a relação entre esses dois elementos e suas possíveis experiências práticas no diálogo entre processos criativos da dança e do teatro, sem acreditar, porém, na possibilidade de estabelecer uma metodologia fixa. Para isso, portanto, trago relatos de práticas vivenciadas com criadores da dança e do teatro na relação com as discussões propostas e, ao final, um memorial de práticas realizadas com o Laboratório Intercultural de Atuação, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), dirigido pelo Prof. Dr. Ricardo Gomes, orientador dessa pesquisa. Através das relações entre teorias e práticas, procuramos experienciar as ideias de corpo limiar e impulso como possíveis motores de processos criativos na construção de precisão cênica.

Antes de introduzir os conceitos aqui referidos pretendemos considerar que não há uma relação direcional ou causal entre ambos, ou seja, procuramos entendê-los em contato, realizando afetações mútuas, alternadas e/ou concomitantes, no(a) criador(a) que os vivencia.

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[...]impulso é um dos conceitos mais importantes para o ator grotowskiano. Ele muitas vezes afirmou que a maneira de perceber se o ator está trabalhando organicamente ou não é determinar se está trabalhando no nível dos impulsos. (SLOWIAK, CUESTA, 2013, p.102-103)

Parece complicada a possibilidade de oferecer uma definição precisa acerca do impulso ou de qualquer aspecto relacionado às práticas, compreensíveis de fato apenas por meio do corpo em experiência.

[...] não é possível verbalmente indicar o modo de captar impulsos, é um trabalho prático e longo. Algumas pessoas captam rapidamente e depois perdem, outras captam após muito tempo e o mantém. Não é possível indicar um percurso em direção aos impulsos, é como se alguém lhe perguntasse como se escreve um bom poema, ou uma boa música. O que eu poderia dizer eu já disse. O impulso vem antes da ação, uma micro-ação, quando a ação, ainda, não é visível, mas já começou no interno do corpo, está sob a pele. (GROTOWSKI, 1966, apud MORAES 2008, p.94)

Apesar dessa consideração, Grotowski e seus colaboradores teceram inúmeras escritas e reflexões acerca de sua pesquisa que têm trazido importantes colaborações para novos processos de criação. A Prof. Drª. Tatiana Motta Lima1, pesquisadora do trabalho desse diretor, nos alerta para a seguinte questão ao procurarmos estabelecer relações entre o trabalho de Grotowski e pesquisas e práticas atuais:

Atualmente o trabalho de Grotowski tem sido procurado não só pelo teatro, mas também por pessoas da performance e da dança interessadas em uma não representação. Grotowski desenvolveu uma pesquisa muito refinada, mas muito sem protocolos, e penso que ele pode ser um interlocutor forte a partir de suas perguntas e precauções, para nos fazer perceber: que tipo de ilusões e auto-ilusões nos colocamos? Onde não estamos representando? O que é representação? Na organicidade essa separação estrita se quebra.

Dessa maneira, essa pesquisa procura guiar-se mais por tais “perguntas e precações” do que por um desejo de estabelecer definições precisas. O trabalho com os impulsos será abordado, portanto, a partir de suas relações com elementos que o constituem e/ou colaboram para sua existência. Apesar da difícil definição, a presença dos impulsos se faz notar com clareza dentro da cena. “Grotowski afirma que sem o impulso a ação tende a permanecer no nível do gesto” (SLOWIAK, CUESTA, 2013, p.103). Esse diretor promove uma diferenciação entre o gesto, o movimento, e as ações físicas. Para ele, o gesto e o movimento

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partem das extremidades do corpo e são realizados sem uma real necessidade, ou um contato preciso que as estimule. A ação física seria um movimento gerado a partir dos impulsos, contatos e camadas mais profundas da criação, para além das “máscaras cotidianas”, relacionando em si aspectos físicos e psíquicos acessados pela via do corpo. Esses aspectos serão melhor analisados nos capítulos que se seguem. Grotowski irá pesquisar, ao longo de muitos anos, variadas maneiras de acessar o impulso no trabalho com os atores e de mantê-lo vivo durante a repetição das partituras.

Essa pesquisa se interessa pelo diálogo entre processos criativos da dança e do teatro, dessa maneira, não faremos aqui distinções entre os conceitos de gesto, movimento e ação física – cujas definições se diferenciam nas duas artes e mesmo entre seus diversos criadores. Trabalharemos na procura dos impulsos e do corpo limiar, por meio de criações que se interessam pelo corpo em movimento envolvido em um trabalho sobre si.

Precisamos ressaltar já de início que o conceito de trabalho sobre si difere-se de uma investigação sobre a própria essência ou identidade, e envolve-se na dissolução dessas premissas, em uma busca do desconhecido de si, do que se encontra até então inacessível, bem como de subjetividades que se transformam a partir dos contatos. Dessa maneira, os processos aqui investigados interessam-se por tornar esse corpo poroso, permeável aos contatos e descobertas, que vão além do que se pode conhecer racionalmente sobre si mesmo. Tais ideias serão desenvolvidas ao longo dessa dissertação, e a procura por um corpo limiar surge a partir delas, como veremos logo em seguida. Antes de apresentar o conceito de limiar, portanto, iremos introduzir as necessidades que trouxeram a ambos (impulso e limiar) para essas reflexões.

O interesse inicial na realização dessa pesquisa parte de um contato com a Cia Teatro Akropolis2, em Belo Horizonte, 2012, por meio da participação em um workshop ministrado pela Cia e da oportunidade de assistir aos espetáculos da Trilogia Nietzsche, na sede da Zikizira Teatro Físico. Eu vinha de uma formação em dança contemporânea e estava participando como intérprete criadora do grupo EntreCorpos, dirigido por Ivan Sodré. Nossas criações se direcionavam à investigação da potência de movimentos que partissem dos corpos em desvelamento de si.

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As coisas não são sólidas nem líquidas. Grupo EntreCorpos.3

Dessa forma, estava interessada em pesquisar processos criativos para além da dança que se relacionassem a um trabalho sobre si, como o objetivo de aprofundar e intensificar possibilidades de desenvolvimento da expressividade e precisão cênicas.

Ao assistir aos espetáculos da Trilogia Nietzsche, interessou-me bastante a forma como os atores reuniam precisão e qualidade técnica com intensidade de ação e potência de presença.

Cia Teatro Akropolis –Una Trilogia Su Friederich Nietzsche4

3Sesc Palladium, Belo Horizonte, 2012. Fotografia Felipe Messias. Primeira foto: Carolina de Pinho, segunda: Carolina de Pinho e Samuel Carvalho.

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O trecho abaixo foi escrito logo após a apresentação dos espetáculos, trazendo um pouco de minhas impressões e interesses iniciais a partir daquele contato.

Olhos que pegam Corpos que ondulam em prenúncio ao salto corpo-buraco-negro

sugando o ataque do público brechas, breus

contrastes que se somam apreços que se apertam Se inauguram

Se infinitizam Se alcançam

Durante o workshop, a Companhia Teatro Akropolis apresentou-nos sua interpretação do treinamento físico do ator, por meio do “estudo do impulso como origem de cada ação física, analisando a ação a partir do momento que precede sua iniciação”, como descrito na divulgação via email, enviada pela Zikizira Physical Theatre, responsável pela presença do Teatro Akropolis em Belo Horizonte.

O trabalho corporal da Cia inicialmente remeteu-me ao universo da dança contemporânea, devido à qualidade técnica das movimentações, à ampla exploração dos níveis (alto, médio e baixo) e às relações de contato entre os atores, que me traziam associações com jogos que realizávamos em processos criativos da dança. Havia, porém, algo ali que se distinguia e que muito me interessava. A partir das práticas realizadas no workshop

com a Cia foi possível ampliar essa reflexão.

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permanecia ao longo de todo ele a sugestão para que deixássemos o corpo agir a partir de suas reais necessidades, sem premeditar ou racionalizar as intenções, sem camuflar, ou exagerar, deixando-nos ser surpreendidos por nós mesmos e pelo outro a partir daqueles contatos.

Cia Teatro Akropolis 5

Com o tempo superávamos a necessidade de perguntas e respostas imediatas e exclusivamente através das articulações e as possibilidades de comunicação se ampliavam. Notávamos que as respostas corporais inicialmente tendiam para a agressividade ou passionalidade, e que após um período maior de experimentação, dissolviam-se as respostas já conhecidas anteriormente - talvez mais automatizadas ou racionalizadas - e começávamos a permitir a passagem de algo novo, inesperado, de forma que os diálogos ganhavam muitas outras possibilidades e potências antes inexploradas. Em alguns momentos o grupo inteiro se reunia e parecia mover-se como um só corpo. Apesar das movimentações intensas, havia organicidade e sincronicidade. Por vezes atores e diretor participavam durante um tempo, integrantes eram retirados e outros inseridos, e todas as proposições pareciam intensificar o processo, fazer-nos ir mais fundo no que poderíamos descobrir ali. Nos momentos em que estávamos de fora, observando o trabalho dos outros, era possível notar que, com a intensificação do processo, as imagens criadas pareciam começar a dizer algo de fato para quem assistia.

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Desde o início da oficina utilizamos o mínimo possível da comunicação verbal. A filosofia de Nietzsche permeava a compreensão dos exercícios e a busca era de um trabalho através dos impulsos, das reais necessidades do corpo, de romper com a via da racionalidade e permitir-se “descamar, atingir camadas mais profundas”, como nos propunha Clemente Tafuri. O modo como eram propostos os exercícios, a pouca comunicação verbal, bem como as músicas escolhidas e embasamentos filosóficos potencializavam e intensificavam as experimentações corporais.

Trabalhávamos a partir da desconstrução de artificialidades do gesto, o que nos expunha de uma maneira bastante sincera. Ao experienciar essas e outras práticas, me parecia que todos aqueles trabalhos seriam vias de acesso aos impulsos, como origem da ação precisa e necessária, que nos acessava e acessava ao outro, e dele, portanto, parecia surgir a intensidade dos processos criativos ali vivenciados e de suas reverberações cênicas. Dessa maneira, surgiu a necessidade de pesquisar o impulso. Já era claro que não haveria um método para isso, porém, surgiam as seguintes questões: O que seria necessário, dentro dos processos criativos, para acessar aos impulsos? Como se dão as construções das partituras por essa via, e de que forma trabalhar para mantê-las vivas? Que tipo de processo poderia prejudicar esse trabalho?

Para compreender melhor o processo criativo da Cia Teatro Akrópolis, comecei a pesquisar suas principais influências: Jerzy Grotowski, Antonin Artaud e Friederich Nietzsche. Nesse mesmo período tive acesso ao trabalho da Zikizira Physical Theatre através do filme As Cinzas de Deus, do documentário acerca de seu processo criativo e de um bate papo realizado na sede da Cia com bailarinos e diretores. O filme foi criado com bailarinos recém saídos de Cias tradicionais de dança contemporânea que estavam em busca de um trabalho mais autoral. Os diretores André Seménza e Fernanda Lippi desenvolveram o processo criativo e coreográfico através de princípios do trabalho de Grotowski. Esse trabalho me tocou também de maneira intensa e me interessei bastante pela relação ali estabelecida entre a dança e o teatro.

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parecia-me que ali “não era possível mentir”. Em dança me parecia que muitas vezes realizávamos algumas sequências de movimentos apenas interessados em agregar técnicas à nossa corporeidade e, algumas vezes, mesmo as criações pareciam se dar por caminhos já conhecidos de articulações entre movimentos. O fato de agregar propostas de Grotowski à dança parecia romper com essa via mecanizada de criação, que, em teoria, não interessaria à dança contemporânea, e assim me parecia que poderia ser uma das vias interessantes para potencializar as investigações do ator/bailarino/performer em um trabalho sobre si.

Com o objetivo de aprofundar as trocas e experiências entre a dança e o teatro, participei como colaboradora da preparação dos atores-dançarinos do grupo de teatro físico Movère6, dirigido por Adilson Siqueira e Juliana Monteiro, na Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), e como atriz do grupo de pesquisa “Grotowski, Deleuze e Educação”, coordenado por André Magela na mesma universidade. Participando desses trabalhos, parecia-me que alguns aspectos de processos de investigação presentes nas práticas da dança contemporânea também poderiam contribuir para aquelas propostas como: experimentações variadas acerca das sensorialidades além da visão, processos criativos para investigações dos movimentos, articulações e possibilidades a partir deles, uso dos níveis, o desenvolvimento da escuta e contato, e práticas de diálogos corporais. Quando, porém, eu retornava à dança contemporânea sentia falta da intensidade dos processos criativos que vivenciava no teatro, que pareciam desconstruir padrões de movimentação, através de uma via de ações físicas que se direcionavam à precisão e necessidade das movimentações dentro dos jogos propostos.

Ao dar aulas no Murundum, grupo de dança contemporânea da UFSJ, comecei uma busca pela elaboração de possibilidades de dialogar aspectos essenciais da dança com algumas bases do trabalho sobre si desenvolvido por Grotowski. Nesse caminho alguns desafios começaram a surgir como: desenvolver aspectos de consciência corporal, advindos das pesquisas em dança, de modo a evitar uma possível racionalização. Mesmo sendo essa busca direcionada à organicidade do movimento, visando o desbloqueio de áreas de tensão e a liberação do corpo para a passagem dos afetos e movimentos, poderia muitas vezes acarretar em um controle, devido a um desejo de alinhamento corporal que produza um efeito estético

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mais interessante, ou que seja mais “correto”, porém, que talvez perturbe a experimentação do criador, estabelecendo uma fissura entre corpo-mente, razão-emoção.

Tentava utilizá-la de modo a manter vivo o fluxo consciente-inconsciente, ampliar a escuta do corpo no espaço, a percepção de suas necessidades, e desbloquear áreas de tensão, no intuito de dar passagem aos impulsos e facilitar os processos de criação. Percebia também que as sequências de movimentos criadas pelo professor e ensinadas aos alunos - práticas comuns dentro de aulas de dança contemporânea - pareciam trazer, por um lado, a possibilidade de ampliar a linguagem corporal e favorecer assim os processos criativos, e por outro, o risco de que, ao executá-las apenas de maneira técnica, pudessem tornar-se instrumentos do que o filósofo Michel Foucault identifica como “docilização dos corpos”, de forma que, proporcionalmente às capacidades aumentadas, os corpos tivessem sua potência de vida diminuída.

[…] reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado […] faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso e faz dela uma relação de sujeição estrita. […] o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. (FOUCAULT, 1977, p. 118-119)

Ao estudar sobre Jerzy Grotowski comecei a perceber que vários dos pontos de questionamento que me surgiram na relação com esses processos, foram experimentados e repensados por esse diretor, produzindo novos modos de intervir com os atores. Os trabalhos a partir da auto-observação e de uma ampliação do repertório de linguagens corporais que citei acima, por exemplo, foram experienciados e posteriormente questionados por esse diretor.

Ao interesse pela pesquisa acerca dos impulsos, portanto, somou-se o desejo de compreender suas possibilidades também em processos criativos experimentados no campo da dança. O intuito era romper as fronteiras entre as linguagens e poder colocar seus processos em diálogo. Percebia, porém, que seria necessário muito cuidado ao trazer elementos de processos vivenciados na dança para o trabalho com os impulsos.

Refletindo sobre as precauções que poderiam ser tomadas tendo em vista esse desejo, fui apresentada pelo artista e pesquisador Alex Lindolfo ao seguinte trecho, parte da obra

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A soleira é o nó que separa dois mundos inimigos: o interior e o ar livre, o quente e o frio, a luz e a sombra. Passar por cima de uma soleira significa, portanto, atravessar uma zona perigosa onde batalhas invisíveis, mas reais, são travadas. Enquanto a porta estiver fechada, tudo está bem. Abri-la é algo sério: é soltar dois bandos um contra o outro, é arriscar de se deixar prender na briga (bagarre). Longe de ser algo que facilita a nossa vida, a porta é um instrumento terrível que não deve ser manipulado a não ser com muito cuidado e de acordo com os ritos e que deve ser cercada com todas as garantias mágicas. (GRIAULE, 1930, apud ANTELO, 2010, p.128)

Passei então a interessar-me pelo conceito de Limiar em Walter Benjamin, inicialmente no intuito de compreender como poderia trabalhar nessa zona de liminaridade entre as linguagens da dança e do teatro de Grotowski, de modo a não criar fronteiras entre elas, ampliar suas porosidades e, ao mesmo tempo, me manter atenta aos cuidados necessários para experienciar esse limiar. Nos estudos de Walter Benjamin o limiar refere-se a um espaço entre, de suspensão, potência e ambiguidade, que permite o transbordamento de fronteiras. Benjamim (2006) destaca que a modernidade tem se tornado pobre nessas experiências de liminaridade, acelerando-as, e encurtando-as ao máximo, o que favoreceria o fortalecimento dos limites fixos, das fronteiras rígidas, que impediriam o fluxo entre as dualidades. Os referidos estudos sobre esse autor entendem que, através do abandono de nossos ritos de passagem, por vezes temos evitado experienciar esse local de “perda da identidade”, como veremos nos estudos de Victor Turner, e por outras, temos nos prendido nessas zonas transitórias, evitando a passagem a estados de intensidades maiores e desconhecidas.

Partindo dessas percepções, comecei a me interessar pela experiência de liminaridade nos corpos, nas criações e na cena.

Na contemporaneidade vivemos sob a égide dos fast-foods, somos cobrados a sermos produtivos e a oferecermos respostas rápidas, o que nos cria ansiedades e nos dificulta a vivência dos períodos limiares, tanto na vida quanto nos processos de criação, bem como o acesso aos verdadeiros impulsos, encontrados para além dos automatismos e racionalizações. Experienciamos o cotidiano da superficialidade e do descarte, evitamos aprofundamentos, nesse momento que o sociólogo Zygmund Bauman (2001) denomina como Modernidade Líquida. Dentro desse contexto caberia à arte reivindicar seu papel de desconstrução destas fronteiras, e ampliação de possibilidades através do resgate das experiências liminares.

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domine." (anotações pessoais). Essas ideias pareciam vir ao encontro do conceito de limiar, bem como pareciam essenciais para o trabalho com os impulsos.

Dessa maneira, surgiam então novas perguntas: O que seria um corpo limiar? Quais caminhos, dentro dos processos criativos, poderiam favorecê-lo? Existe de fato uma relação entre ele e os impulsos? Como o corpo limiar poderia ser um potencializador de processos criativos para uma arte que procura resgatar essa experiência perdida?

Descrevendo paisagens da criação que me interessa experienciar

O interesse nessa pesquisa se dá através da procura por processos criativos que busquem acessar a necessidade, a urgência do gesto, da ação, e da pausa para além das “máscaras cotidianas” e de linguagens padronizadas ou automatizadas. Uma experiência de tentar fazer submergir a densidade, com a leveza da transitoriedade e da presença no aqui e agora. Dizer sim como passagem, habitar a impermanência, contraindo e expandindo no tempo orgânico, assim, acercar-se da potência de vida, e nas teatralidades possíveis, tornar-se em um(a), múltiplo(a), ganhando visibilidade7 por afetar e ser afetado. Lugares onde o que se deixa passar traz a potência de acessar-transmutando, a partir de uma estrutura viva, uma forma que deixa instaurar e passar estados, não os nega.

Interesso-me por essa forma que surge da sublimação do oculto, como algo cotidiano em sala de ensaio e no palco. Além de algo como uma essência fixa: “[...] Como dizia Hofmannsthal: “A profundidade está escondida. Onde? Na superfície.” (CALVINO, 2003, p. 90)

[...] Se o elemento observado for a própria exatidão, se o isolarmos e o deixarmos desenvolver, se o considerarmos como um hábito do pensamento e uma atitude de vida, e permitirmos que sua força exemplar aja sobre tudo o que entra em contato com ele, chegaremos então a um homem no qual se opera uma aliança paradoxal de precisão e indeterminação. Ele possuirá esse sangue frio deliberado, incorruptível, que é o próprio sentimento da exatidão; mas, afora tal qualidade, todo o resto será indeterminado. (CALVINO, 2003, p.79)

Essa é a forma que procuro nos processos de criação, forma emergida do caos, do abandono, do medo e da coragem, das dualidades, do risco e da potência de vida em sua

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transitoriedade. É dela que compreendo a necessidade e a existência política da teatralidade em minhas práticas. Potência de vida que acessa a potência do gesto, através do jogo, do trabalho sobre si como instância mutável, através da escuta e dos contatos, de um corpo-instinto pessoal-coletivo. Para acessá-las, é preciso dar passagem, estar em vida, encarar os abismos.

“Se falta enxofre à nossa vida, ou seja, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar nossos atos e nos perder em considerações sobre as formas sonhadas em nossos atos, em vez de sermos impulsionados por eles.” (ARTAUD. 2006, p.3)

Um corpo-instinto, que trabalha no que chamamos “zona de risco”, que não é um lugar da contenção e permanência, seja da dor ou do prazer, mas um lugar da não negação, de encontro do desconhecido de si. Uma possibilidade de ser preciso nos desejos que geram movimentos, do corpo em amor fati (amor ao destino), em um trabalho sobre si como instância mutável, através da escuta e dos contatos.

Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2012, p. 276)

A intensidade de tais criações, porém, não deixa de lado uma relação com a forma, a precisão e a técnica que nelas é produzida, não em distinção, mas em simultaneidade com a espontaneidade, o inconsciente e o instinto. Nietzsche (2007) defende uma arte que se dê mutuamente através do princípio dionisíaco, dos instintos, do caos e do ilimitado, e do princípio apolíneo, da estrutura, do limitado, do belo.

Ao mesmo tempo, porém, desse fundamento de toda existência, do substrato dionisíaco do mundo, não deve penetrar a consciência do indivíduo humano senão precisamente na exata medida com a qual é possível ao poder transfigurador apolíneo triunfar por seu turno, de maneira que esses dois instintos de arte sejam obrigados a despregar suas forças numa proporção rigorosamente recíproca, segundo a lei de uma equidade eterna. (NIETZSCHE, 2007, p. 171)

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Esse entendimento parece se aproximar das práticas artísticas do diretor Jerzy Grotowski, como podemos notar no trecho abaixo:

Não estar divididos: é não somente a semente da criatividade do ator, mas é também a semente da vida, da possível inteireza.

Tudo aquilo que vou dizer parecerá um paradoxo. Mas não é questão de paradoxos estilísticos; é, na verdade, tudo assim. Aqui nada acontece no plano lógico formal. (GROTOWSKI, 2007, p. 175)

Podemos perceber em seu trabalho uma procura de simultaneidade nas relações entre estrutura e espontaneidade ou técnica e expressividade. “Espontaneidade e disciplina ao mesmo tempo. Isso é decisivo” (GROTOWSKI, 2007, p. 174).

Para acessar esse estado, corpo-instinto, potência de vida, potência do gesto, parece-nos que se faz necessário aprender a vivenciar o limiar, que se cria a partir da escuta, do contato, da coragem à passagem de afetos, do espaço aberto a constantes desconstruções e recriações da subjetividade. Essa imagem que se desfaz e se refaz, feita de vácuo, de propensão. Espaço prenhe, à beira do abismo. A encruzilhada, o eco do tempo, a abertura dos poros, permeabilidade. Depois do excesso, antes do jorro. Encarar as esfinges, guardiãs dos portais, habitar o eu transitório, adentrar-se em contato, estar à beira, à margem, e encontrar passagens.

Para refletir sobre essas questões, essa pesquisa irá trilhar o seguinte caminho:

O primeiro capítulo aborda o surgimento das noções de impulso e trabalho sobre si nas pesquisas e práticas de Jerzy Grotowski, através de um breve relato acerca de sua longa travessia, no qual procurei me focar nos aspectos mencionados aqui.

Através dessas reflexões e do interesse em dialogar processos criativos da dança e do teatro, surgem as seguintes questões: teria a dança de fato interesse nessa pesquisa? É interessante, para o campo de conhecimento da dança, tanto no ensino quanto na criação, valer-se das pesquisas de Grotowski? Como?

Dessa maneira, o segundo capítulo aborda o interesse da dança no trabalho sobre si e nos impulsos. O objetivo aqui é procurar perceber interesses em comum. A partir dele começamos a perceber confluências e divergências entre as propostas de trabalho, porém, não nos focamos aqui nas minúcias dos desencontros, priorizamos nele as potências dos encontros.

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acreditamos que a possibilidade de compreender melhor essas duas vias de criação pode contribuir para uma maior clareza nas escolhas realizadas durante o processo. Essa pesquisa se interessa pela linha orgânica de criação, a partir da qual pretendemos nos aprofundar, refletindo sobre encontros e desencontros entre propostas interessadas nessa via e caminhos percorridos em seus processos criativos. Pretendemos, com isso, analisar possíveis armadilhas que podem distanciar o processo de seu real interesse. De toda maneira, como veremos, há artificialidade na organicidade, bem como há organicidade na artificialidade.

Iniciamos, então, uma discussão sobre as relações entre impulso e técnica, e entre estrutura e espontaneidade por meio das seguintes questões: como se daria a precisão cênica para além dos códigos e modelos pré-estabelecidos? Como Grotowski e criadores da dança trabalharam sobre essa possibilidade? Traremos aqui as compreensões do filósofo Friederich Nietzsche sobre a tragédia grega, devido a seu entendimento de que nela coexistiram os princípios apolíneo e dionisíaco8. Esses estudos contribuíram para a compreensão sobre a importância dos impulsos em trabalhos que visem uma precisão orgânica.

O capítulo 4 se refere ao trabalho com os impulsos, partindo do entendimento de Jerzy Grotowski sobre os mesmos e relacionando-o com experimentações práticas atuais. Essa busca se desenvolve a partir das relações entre o impulso e o corpo memória, o impulso e a verdade/necessidade, os caminhos percorridos por Grotowski no intuito de desbloquear o fluxo de impulsos, treinamentos, processos criativos e construção de partituras corporais por meio dos impulsos, e as precauções/ “armadilhas” que poderiam afastá-las de tal proposta.

Partindo de descobertas realizadas no capítulo anterior, iniciamos,no capítulo 5, os estudos sobre o corpo limiar contextualizando o surgimento da necessidade de pesquisá-lo nessa dissertação a partir de suas possíveis relações com o impulso. O conceito de limiar é trazido por meio dos trabalhos do filósofo e sociólogo Walter Benjamin, e pelo antropólogo Victor Turner, às quais iremos relacionar com o entendimento do Ma dentro da dança teatrojaponesa Butoh, e com práticas e reflexões da dança e do teatro.

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O SURGIMENTO DAS NOÇÕES DE IMPULSO E TRABALHO SOBRE SI NAS PESQUISAS PRÁTICAS DE JERZY GROTOWSKI

A gramática dessa nova linguagem ainda está por ser encontrada. O gesto é sua matéria e sua cabeça; e se quiserem, seu alfa e seu ômega. Ele parte da NECESSIDADE da palavra mais do que da palavra já formada. [...] Mergulha na necessidade.

Antonin Artaud

Falar sobre o trabalho de Jerzy Grotowski envolve um cuidado especial com as diversas fases de sua pesquisa, que se referem às transformações pelas quais suas práticas e compreensões foram passando ao longo do tempo e das experiências. Essas alterações carregam sutilezas e complexidades, e dessa forma, apoio-me na ampla pesquisa realizada por Tatiana Motta Lima acerca do percurso de Grotowski entre 1959 a 1974. As “palavras praticadas”9, elementos que Tatiana Mota Lima (2012, p.XXV) destacou ao analisar a

pesquisa desse diretor “como conceitos, ao mesmo tempo mergulhados na – e emergidos da – prática de ensaios e exercícios” foram guiando minhas experimentações e clareando os percursos de Grotowski na busca pelo desconhecido, sobre o qual esse diretor acredita se fazer a expressão.

“[...] creio que a expressão palavras praticadas reivindica para a sua terminologia um estatuto experiencial: as palavras nascem da experiência, como se a escrita fosse mais um lugar de passagem que de permanência final”. (LIMA, 2012, p. XXVII, grifo nosso)

Em seu texto Da Companhia Teatral à Arte Como Veículo, Grotowski (2007, p.230-231) divide seu trabalho em quatro fases: o teatro dos espetáculos (arte como apresentação), o parateatro (teatro de participação), o teatro das Fontes e a arte como veículo.

A primeira fase da pesquisa de Jerzy Grotowski, denominada o “teatro dos espetáculos”, é tomada como foco principal dessa pesquisa, por ter se dado nela o início do interesse do diretor pela subjetividade dos atuantes, e pelo trabalho com os impulsos.

O conceito de subjetividade nesse trabalho é trazido a partir dos estudos de Suely Rolnik, com influências diretas do pensamento de Gilles Deleuze, Félix Guattari e Bauruch

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Spinoza. Em sua obra Cartografias Sentimentais, a autora evoca o conceito de subjetividade através de uma consciência da mesma como algo mutável, construída no sujeito através da passagem de afetos. A palavra “afetar”, nesse contexto, designa o efeito da ação de um corpo sobre outro, ou de espaço sobre um corpo, em seus encontros. A autora analisa como, através da passagem ou não do afeto e do desejo, ocorrem construções de subjetividades, que por sua vez, interferem no contexto em que estão inseridas, e sofrem interferências do mesmo. Rolnik (2006, p. 47) analisa que:

“O que importa é que esteja sendo possível fazer passar os afetos. E, para isso, cada um só pode usar, é óbvio, aquilo que estiver ao seu alcance, misturando tudo a que tiver direito. Fazer passar os afetos: é isso que parece gerar brilho”.

O pensamento dessa autora parece vir ao encontro da ideia de trabalho sobre si em Grotowski, que o associa ao desbloqueio do corpo para a livre passagem do fluxo de impulsos, e às possibilidadades de se afetar pelos contatos.

A fase dos espetáculos não possui uma unificação em sua maneira de compreender e vivenciar conceitos e processos. Lima (2012c.) compreende 4 “marcos” desse período, e as transições e conflitos são analisados profundamente em sua obra. Não pretendo aqui adentrar a todos os detalhes dessa transição, mas compreender o caminho que levou o diretor à necessidade do trabalho com os impulsos e como esse foi se transformando ao longo do tempo.

Nos primeiros anos do trabalho de Jerzy Grotowski com o Teatro das 13 Fileiras, as criações partiam do interesse em uma reaproximação entre teatro e ritual, inspiradas pelos primórdios da ação teatral. Em seu texto Farsa-Misterium, datado de 1960, Grotowski traz o seguinte questionamento como motor de suas práticas: “Que tipo de arte poderia – de modo

laico – satisfazer certos excessos da imaginação e da inquietude desfrutados nos ritos

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Interessa-me, na arte do ator, um certo âmbito digno de atenção, pouco pesquisado; a associação do gesto ou da entonação com um signo definido – um modelo de gesto ou de encantamento [...] tenho em mente uma arte do ator que – por meio da alusão, da associação, do aceno com o gesto ou com a entonação – se refira aos modelos formados na imaginação coletiva. (GROTOWSKI, 2007, p. 73)

O foco do trabalho nesse momento era a construção de uma “artificialidade”, que proporcionasse, através de uma experiência ritualística, tocar aspectos mais profundos da humanidade. A compreensão dessa concepção de artificialidade pode ser favorecida pelo trecho abaixo de Lima (2012c., p. 67):

Como vimos, Grotowski não se interessava por um teatro puramente estético que dialogasse apenas com seus próprios modos de fazer e com suas ferramentas. Seu interesse pela convenção e pela artificialidade – na coparticipação do espectador, no sistema de signos - explicava-se principalmente por meio daquele vis-à-vis com o ritual. A artificialidade visava a favorecer “a criação de uma singular aura psíquica e coletiva, da concentração, da sugestão coletiva; organiza(r) a imaginação e disciplina(r) a inquietude”.

Nesse momento de sua pesquisa, o foco do diretor em seus processos criativos se dirigia ao espectador. Segundo Lima (2012c., p.72-73), não havia ainda um interesse no trabalho do ator. “A ênfase estava colocada na própria cena – o ator como mais um elemento – e a serviço da recepção do espectador.”

Em suas palestras no Collège de France, Grotowski irá abordar a existência de dois pólos existentes na criação cênica: a linha artificial e a linha orgânica.

A linha artificial se referia a técnicas de atuação que têm como objetivo criar no espectador uma identificação com o personagem, não estimulada diretamente no ator. Grotowski traz como exemplos dessa via de atuação a Ópera de Pequim e os espetáculos de Brecht:

[...] porque Brecht no nosso contexto cultural representa a mesma tendência que a

Ópera de Pequim,[...] onde não existe identificação do ator com o seu papel, [...] o efeito de distanciamento, onde existe uma estrutura muito elaborada, que deve ser realizada pelos atores de maneira precisa e extremamente competente, mas,eles mesmos apresentam alguma coisa sem se engajar, por dentro, o processo interior. Isto é o que eu chamo a tendência artificial, no sentido positivo da palavra. „Artificial‟ está muito ligada à palavra arte, é alguma coisa de, exatamente, ligada à arte, é uma predominância da estrutura, da forma, da composição, da montagem. (GROTOWSKI, 1997, apud, SODRÉ, 2014, p.74)

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em sua busca pela “artificialidade”. Após algum tempo, Grotowski começa a questionar suas próprias práticas desse período, entendendo que, em tais processos “a montagem conduzia à conscientização, ao invés de ser produto de uma conscientização” (GROTOWSKI, 1965,

apud, LIMA, 2012, p. 68).

Gradualmente abandonamos a manipulação dos espectadores, todas essas operações: como provocar as reações dos espectadores? Como explorá-los enquanto cobaia? Queríamos antes esquecer-nos do espectador, esquecer-nos da sua existência. Começamos a concentrar toda a nossa atenção e todas as formas da nossa atividade, sobretudo em torno da arte do ator. (GROTOWSKI, 2007, p.129)

Grotowski inicia então um, questionamento sobre o lugar da „artificialidade‟ em seu próprio trabalho, entendendo que colocá-la à frente da experiência de criação com os atores, os estaria levando à reprodução de estereótipos. O diretor passa a questionar também a procura de signos universais, passando a compreendê-los como elementos ineficazes para acessar a espectadores de culturas e subjetividades tão variadas.

Naquele período discutíamos muito a respeito da artificialidade, dizíamos que arte e artificialidade têm em latim a mesma etimologia, que tudo o que é orgânico e natural não é artístico, porque não é artificial. [...] Em seguida, porém, abandonamos essa concepção porque a procura dos signos trazia como consequência a procura dos estereótipos. [...] para evitar o perigo dos estereótipos, é preciso procurar tudo isso de modo diverso, liberando de algum modo os signos do processo orgânico do organismo humano. (GROTOWSKI, 2007, p.13)

Mais à frente, em suas aulas no Collège de France, Grotowski flexibiliza essa relação, rompendo possíveis fronteiras entre o que denomina como pólos orgânico e artificial:

Sim, se a gente começa a criar um dogma, quer dizer: este caminho é que é o certo. Por exemplo, a linha orgânica, e não a linha artificial, tudo se torna morto, rapidamente, a coisa resseca, além do mais porque não existe fórmula ideal. Quando eu digo: a linha orgânica, a linha artificial, são dois pólos, mas, em cada um destes pólos tem alguma coisa do outro. (idem, p. 76, grifos nossos)

O interesse de Grotowski pela “linhaorgânica”, porém, começa a se dar quando o foco de seu trabalho deixa de ser a busca pela construção de um efeito estético com o objetivo de acessar ao inconsciente do espectador, e passa a se direcionar ao trabalho do ator sobre si mesmo, do qual a estética irá se derivar.

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“método das ações físicas”, nos períodos finais de sua pesquisa, a partir do qual Grotowski inicia seu trabalho sobre o ator.

Numa primeira fase da elaboração de seu método, Stanislávski investe na ideia de que o ator deve se familiarizar com processos interiores e invisíveis que podem sustentar as manifestações exteriores da ação: memória, imaginação, vontade. [...] Na fase mais madura de suas pesquisas, Stanislávski reconhece que há algo no espaço interior do ator que se furtaria a uma manipulação técnica consciente do artista. [...] A técnica que daria acesso a essa fonte estaria ligada à desautomatização das ações e à investigação das conexões entre aspectos físicos e psíquicos. (QUILICI, 2015, p.77)

A “investigação das conexões entre aspectos físicos e psíquicos”, citada por Quilici (2015), se realizaria, portanto, através de um trabalho do ator sobre si mesmo, que culminaria na construção de uma partitura de ações físicas. Dessa forma, as experiências do ator se conectam às do personagem, possibilitando, segundo Cavaliere e Vassina (2001, p.317), a expressão de um “trecho de vida autêntica”.

Antes de começar a me concentrar sobre um papel específico, antes de pensar na criação do círculo de atenção no qual tenho que fazer entrar estas ou aquelas “circunstâncias dadas” do papel, tenho primeiro que libertar a mim mesmo das diferentes crostas e capas de minha vida privada que carrego até o momento em que comecei o trabalho criativo. (STANISLÁVSKI, 1994: p.89)

Grotowski aprofunda a pesquisa de Stanislávski acerca das ações físicas a partir da noção de impulso, desenvolvendo a via negativa, que busca eliminar bloqueios e resistências à passagem do fluxo de impulsos. Podemos compreender melhor a relação entre as pesquisas de tais diretores a partir do trecho abaixo, no qual Grotowski comenta sobre o desenvolvimento do “segundo pólo”, ou as “técnicas orgânicas”, através do trabalho anteriormente desenvolvido por Stanislávski:

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sua convicção, que se – no processo da atuação – nós reencontramos o que fizemos na vida ou o que poderíamos ter feito em circunstâncias precisas, a vida emotiva vai seguir por ela mesma, justamente porque não se está buscando manipulá-la.

Quando eu comecei meu trabalho como metodologista do jogo do ator, eu retomei a pesquisa de Stanislávski do ponto onde ele a deixou no momento de sua morte. [...] O que constatei de mais fundamental é o fato de que as pequenas ações são sempre precedidas por impulsos que vão do interior do corpo em direção ao exterior. 10

Há importantes diferenças entre as abordagens de Grotowski e Stanislávski acerca das ações físicas, que serão melhor analisadas no item 4.1, referente às relações entre o impulso e o corpo memória.

Tatiana Motta Lima traz diferenciações entre a maneira como se desenvolveu o trabalho sobre si, na pesquisa de Grotowski, antes e depois de 1965, e das práticas experienciadas entre o diretor e o ator Ryszard Cieslak durante a montagem do espetáculo O Príncipe Constante. Traçando esse percurso, a autora compreende que inicialmente Grotowski trabalhou a partir da autopenetração, um processo de introspecção conduzido a partir de sugestões verbais que levariam os(as) atores/atrizes a um estado de transe, com o objetivo de “anulação” do corpo para a passagem dos processos psíquicos. Nesse período Grotowski defendia a ideia de um “ator santo”, que realizasse um sacrifício do ego por meio de situações limites e excessos, rompendo, desse modo, os bloqueios e barreiras do corpo à passagem de impulsos.

Contidos no conceito de autopenetração aparecem imagens ao mesmo tempo de dor e de violência. O ator “agredia a si mesmo, formulava interrogações angustiantes, penetrava no que havia nele de mais tenebroso, violentava os centros nevrálgicos da sua psique, vivia uma sucessão de feridas íntimas”. Falava-se ainda em “violação do organismo vivo”, em “exposição levada a um excesso ultrajante” e em “sacrifício e exposição da parte íntima da nossa personalidade”. (LIMA, 2012c., p, 110)

A autora compreende que, até esse momento, havia uma diferenciação entre os processos psíquicos “internos” e o corpo, que era percebido como um obstáculo a ser superado para alcançar as intensidades, “de dentro para fora”. Aos poucos, Grotowski estabelece uma não diferenciação entre corpo e pisque, passa a denominar as ações físicas de “ações psicofísicas”, e seu trabalho deixa de se direcionar à negação do corpo para dar passagem a um conteúdo interno. Assim, o diretor passa a interessar-se pela escuta do corpo em contato, de suas sensorilidades, sentimentos, memórias; rompendo as fronteiras entre interno e externo. Durante a experiência com Cieslak a autorevelação se dá a partir de uma

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experiência de prazer, e as práticas descobertas anteriormente são repensadas no intuito de romper os binarismos entre corpo e mente, interno e externo, técnica e expressividade.

O corpo passou a ser visto através da lente da organicidade ou da consciência orgânica, ele não era mais inimigo, não era o único a bloquear um dito processo psíquico, não era apenas uma armadura, aquilo que deve ser anulado, mas ganhava em positividade (idem, p.165).

Ryszard Cieslak em O príncipe Constante11

As “palavras praticadas” anteriores são então substituídas pelas noções de contato, ato total e organicidade. Segundo Lima (2012c., p.184) a concepção de ato total evita a dualidade presente em seus textos anteriores.

Refiro-me ao ponto mais importante da arte do ator: que o ator deve atingir (não tenhamos medo do nome) um ato total, que faça qualquer coisa com todo o seu ser, e não apenas um gesto mecânico (e portanto rígido) de braço ou de perna, nem uma expressão facial ajudada por uma inflexão e um pensamento lógico. Nenhum pensamento pode orientar todo o organismo de um ator de forma viva. Deve estimulá-lo, e isso é tudo o que um pensamento pode realmente fazer. Sem compromissos seu organismo para de viver, seus impulsos crescem superficialmente. Entre uma reação total e uma reação dirigida por pensamento, há a mesma diferença que entre uma árvore e uma planta. Como resultado final, estamos falando da impossibilidade de separar o físico do espiritual. O ator não deve usar seu

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organismo para ilustrar um “movimento da alma”; deve realizar esse movimento com o seu organismo. (GROTOWSKI, 1992, p.98)

Dessa maneira, as ações psicofísicas desenvolvidas em trabalho sobre si interessam-se pelo “corpo-memória” do criador, para além de ações que representem uma memória racional, partem de um acesso às memórias pela via do corpo. Dizemos assim de uma confiança nos caminhos do próprio corpo, de seus impulsos, partindo de um “afrouxar” das crenças, automatismos e condicionamentos, e permitindo acesso ao “desconhecido” de si, através dos contatos.

Quando no teatro se diz: procurem recordar um momento importante da sua vida e o ator se esforça por reconstruir uma recordação, então o corpo-vida está como em letargia, morto, ainda que se mova e fale... É puramente conceitual. Volta-se às recordações, mas o corpo-vida permanece nas trevas. Se permitem que seu corpo procure o que é íntimo [...], nisso há sempre o encontro [...] e então aparece o que nós chamamos de impulso. (GROTOWSKI, 2007, p.205-206)

Dessa maneira, investe-se em um trabalho sobre si mesmo, que não diz da procura por uma essência imutável ou uma identidade fixa, mas de subjetividades em constante transformação pela passagem de afetos. A noção de contato tem grande relevância dentro dessa abordagem, e será mais amplamente desenvolvida no capítulo 4, referente às práticas e conceitos relacionados ao impulso. Na palestra Trabalho sobre si mesmo em Grotowski e no

Workcenter: novas formas de subjetividade, novos corpos, Lima (2013) afirma que o trabalho

sobre si é feito em contato, e difere-se de um “mergulho em si egoísta e narcísico”. A pesquisadora o identifica como um trabalho de resistência, no interior dos jogos de poder, no qual se faz necessário estar atento a subjetividades apegadas ao passado e a formas mecânicas de agir, sentir, pensar. Essa autora afirma que tal trabalho é uma “seta na direção do que é desconhecido e desejante em nós”, e que “conhecer através da transformação de si é converter-se em diferente de si”, portanto o trabalho se dá em uma “zona de risco”. Quilici (2012, pg. 16) afirma que: “O ator é um sujeito que deve agir sobre si mesmo, transformando sua relação com o corpo e a subjetividade (memória, emoções, sensações, imaginação, vontade, etc)”.

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Nesse período, então, Grotowski (2007, p.131) começa a falar em um trabalho com atores a partir de um “desvelamento de si mesmo”, um “ato de confissão”,“ato que desnuda, despe, desvela, revela, descobre”, e do intuito de “reencontrar os impulsos que fluem do profundo do seu corpo e com plena clareza guia-los em direção a um certo ponto, que é indispensável no espetáculo”.

Na fase seguinte, o “parateatro” o grupo diminuiu consideravelmente suas apresentações, focando-se no aprofundamento das pesquisas com atores do grupo e novos participantes. Mantiveram-se apenas apresentações do espetáculo Apocalypsis cum Figuris, que ia sendo afetado pelas novas descobertas. No período do “Teatro das Fontes” o diretor continuou desenvolvendo experimentações internas a partir de diferentes técnicas tradicionais e ritualísticas.

O período do parateatro de Grotowski foi dedicado à investigação do contato e do encontro, mas o tema das raízes tornou-se essencial no desenvolvimento do Teatro das Fontes. [...] Se considerarmos o ioga, o xamanismo dos nativos norte-americanos ou as técnicas de giro dervixe como técnicas das fontes, diríamos que Grotowski buscava a fonte das técnicas das fontes. (SLOWIAK, CUESTA, 2013, p.69-70)

Na fase seguinte, denominada “Arte como veículo” o grupo recebe novos participantes e inicia um aprofundamento no trabalho com os impulsos, o contato e a organicidade a partir de técnicas tradicionais ritualísticas.

Grotowski estava entrando na fase final da pesquisa que nomearia Arte como Veículo ou Artes Rituais. Essa fase tinha dois temas principais: a transmissão e a objetividade do ritual. A transmissão se revelou mais fortemente na relação de Grotowski com Thomas Richards. [...]

“Objetividade do Ritual” descreve a tentativa de Grotowski de criar uma estrutura performativa que funcionasse como ferramenta para o trabalho sobre si. Essa estrutura não se direcionava ao espectador, mas apenas às pessoas que faziam o trabalho. (SLOWIAK, CUESTA, 2013, p. 86-87)

A maneira como se dava a relação com o espectador, segundo Grotowski (2007, p. 232) era um dos aspectos que diferia esse período da primeira fase, o “teatro dos espetáculos (arte como apresentação)”:

[...]quero indicar algumas premissas que esclareçam qual é a diferença entre a arte como apresentação (o espetáculo) e a arte como veículo.

Entre outras, a diferença está na sede da montagem.

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O diretor explica que, na fase dos espetáculos, a relação com os espectadores era mediada pelo diretor através dos roteiros e textos das encenações. Essa compreensão de Grotowski é exemplificada através do espetáculo O Príncipe Constante. Ao trabalho sobre si era sobreposta uma dramaturgia textual, e seria essa última a estabelecer uma comunicação com o espectador. Essa estrutura de comunicação seria um trabalho realizado pelo diretor, segundo Grotowski:

Fazer a montagem na percepção do espectador não é tarefa do ator, mas do diretor. O ator deve antes procurar libertar-se da dependência com relação ao espectador, se não quiser perder a própria semente da criatividade. Fazer a montagem na percepção do espectador é dever do diretor e é um dos elementos mais importantes do seu ofício. Como diretor de O Príncipe Constante, trabalhei de modo premeditado para criar esse tipo de montagem e para que a maioria dos espectadores captasse a mesma montagem [...]

Ao contrário, quando falo da arte como veículo, me refiro a uma montagem cuja sede não está na percepção do espectador mas nos atuantes. Não se trata de os diversos atuantes entrarem em acordo sobre qual será a montagem em comum, não se trata de compartilhar uma definição qualquer do que farão. Não, nenhum acordo verbal, nenhuma definição; é através das próprias ações que é necessário descobrir como aproximar-se – passo a passo- daquilo que é o essencial.(GROTOWSKI, 2007, p.234)

Mesmo trazendo esse aspecto de um direcionamento ao espectador (a “sede no espectador”) presente no “teatro dos espetáculos”, percebemos que nele essa relação se dá de modo diferenciado dos períodos iniciais, que tinham como foco a “artificialidade”, no qual as ações dos atores não são criadas “para a cena”, ou para a dramaturgia textual. Nesse segundo momento os atores estão envolvidos em um trabalho sobre si, sobre o qual é sobreposta a narrativa do texto. Percebemos, porém, que no espetáculo Apocalypses cum figuris, Grotowski começa a modificar mais profundamente esse direcionamento, e a dramaturgia também começa a se estabelecer a partir das necessidades do próprio trabalho em contato com os textos. Esse espetáculo será melhor analisado no capítulo 4.

Em entrevista realizada com Graziele Sena, uma das atuais participantes do Open Program no Workcenter of Jerzy Grotowski e Thomas Richars12, a atriz afirma que atualmente, em seu núcleo, o grupo tem buscado por encontros e trocas, denominados como “eventos performativos”, nos quais os participantes são consideradas co-criadores. A atriz relata que as primeiras apresentações realizadas por esse grupo se deram em festas, através de cantos e ações físicas inseridas nos eventos com naturalidade. O núcleo do qual participa

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realiza encontros com diversas comunidades tradicionais, com os quais estabelecem trocas e contatos. Graziele afirma que, porém, há sempre uma parte do grupo em sala de ensaio, trabalhando suas partituras para os eventos performativos. Esse trabalho é realizado principalmente a partir de canções tradicionais, que a atriz compreende como “maneiras de transmitir conhecimentos” que se perpassam há muitos anos através da oralidade, do ritmo e do canto. Graziele entende as canções como um “trampolim” para descobertas de cada participante.

Apesar dessa precisa demarcação, não parece haver fronteiras rígidas entre as fases da pesquisa de Grotowski, mas transbordamentos, experimentações trazendo novas descobertas, elementos que são abandonados e outros que permanecem e vão se potencializando ao longo do tempo. Dessa maneira, mesmo tomando como foco para essa pesquisa o período dos espetáculos, partindo do início do interesse pelo trabalho sobre si, em alguns momentos essa pesquisa será tomada por compreensões de momentos posteriores à fase dos espetáculos, que foram desenvolvidos a partir do que foi descoberto naquele período. Procuro, porém, manter uma coerência entre “o que foi”13 e o que deixou de ser importante na pesquisa desse diretor.

O interesse aqui, entretanto, não se dá especificamente sobre a trajetória desse diretor e suas descobertas e transformações, mas sobre suas compreensões acerca dos impulsos como elementos chave para o trabalho sobre si e para a construção da precisão cênica por uma via orgânica. Pretendemos analisá-los a partir de reverberações em trabalhos atuais embasados nela e do diálogo com processos criativos em dança. O trecho abaixo, retirado de uma entrevista realizada por Richard Schecner a Jerzy Grotowski, traduz um pouco do interesse dessa pesquisa e, de alguma forma, oferece um aval para a realização de tais diálogos, práticas e questionamentos em um contexto já tão distanciado do qual partiu esse diretor:

As condições de trabalho são realmente diferentes. Então, quando eu conto para vocês certas experiências, evito dizer que acho que se deve fazer isso ou aquilo. Porque isso não será operativo, mesmo se algum de vocês quiser segui-las. Conto a vocês uma experiência que pode, talvez, levar alguns de vocês a uma reflexão: “Bom, e em outras circunstâncias, em outro tempo, em outro...quais serão as conclusões para mim?” (GROTOWSKI apud LIMA, 2012c., p. XXI).14

13 Referência a um texto de Jerzy Grotowski, de 1970, onde o diretor reflete sobre seu trabalho e suas descobertas.

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TRABALHO SOBRE SI E IMPULSOS EM PROCESSOS CRIATIVOS DA DANÇA

E não seria justamente o corpo do dançarino uma espécie de corpo dilatado num espaço ao mesmo tempo interior e exterior?

Christine Greiner

Concomitantemente ao aprofundamento da intimidade do teatro com a corporeidade de atores criadores envolvidos em um trabalho sobre si (abordado aqui através do trabalho de Grotowski, porém desenvolvido também, de outras maneiras, por inúmeros criadores desse período); a dança vivencia um processo semelhante: a partir de desconstruções de técnicas clássicas e padrões corporais e criativos fixados, a dança passa a direcionar um interesse crescente às subjetividades do bailarino criador. Enquanto o teatro se distancia da centralidade do texto como guia das criações e partituras corporais, a dança questiona os padrões formais e estéticos da preparação de um bailarino reprodutor de técnicas, coreografias e modelos pré-estabelecidos, e passa a interessar-se por sua potencialidade expressiva.

Se antes o corpo movia-se verticalizado, alinhado e harmônico, em busca de um movimento ideal, estruturado por uma organização espacial geométrica estabelecida a priori como um jogo de regras fixas, na dança moderna o espaço passa a ser concebido a partir do corpo do bailarino, cujos movimentos ditam as direções e as fronteiras. [....] As primeiras gerações da dança moderna enfatizavam especialmente o papel expressivo do movimento. (PRIMO, 2006, p.105-106)

Ao narrar as transformações da história da dança, Parra (2009) afirma que no século XVII inaugura-se na Europa um sistema artístico codificado, tecnicamente elaborado através da dança clássica, surgida no reinado de Luis XIV na França. Há uma padronização dos corpos, preferencialmente magros e esguios, e as possibilidades criativas se inserem em um sistema de códigos delimitado. Para Robatto (1994, p. 48, apud Parra 2009) foi neste período que se iniciou uma separação das artes cênicas originalmente integradas: Teatro, Dança e Música e a consequente especialização de cada uma.

Referências

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