• Nenhum resultado encontrado

TRABALHANDO COM OS IMPULSOS

4.1 Impulso e Corpo-Memória/Corpo-vida

4.1.1 Diálogos práticos

As experimentações práticas dessa pesquisa se realizaram por meio da preparação corporal de atores em um trabalho prático do Laboratório Intercultural de Atuação (daqui por diante denominado “Laboratório”), coordenado por meu orientador, Prof.Dr. Ricardo Gomes, na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). A proposta erautilizar o textoDorotéia, de Nelson Rodrigues, como elemento catalisador das pesquisas práticas em curso no Laboratório: 1) a pesquisa para esta dissertação; 2) a pesquisa de Antonio Apolinário da Silva para sua dissertação de mestrado intitulada A segunda pele em processo – provocações para o ator criador na sala de ensaio; 3) a pesquisa de iniciação científica Grotowski e Dalcroze – a música como instrumento para a presença do ator, realizada por Tábatta Iori Thiago. Participaram também do experimento Marrione Warley, Diralice Monteiro e Adriana Maciel, alunas(os)-atrizes(ores)-pesquisadoras(os) integrantes do Laboratório. Como tratamos aqui de um trabalho sobre si, ao relatar os processos criativos iremos preservar os nomes das atrizes e do ator, e nos referiremos à eles como: B., N., S., C. (não respectivamente). As pesquisas se realizaram durante o processo de montagem de um estudo cênico para o primeiro ato de

Dorotéia.

Como as pesquisas baseavam-se no processo criativo, daríamos a ele o tempo necessário, não nos preocupando com a necessidade de chegar a um resultado final. Tínhamos claro, porém, que os processos deveriam vir ao encontro da dramaturgia do texto proposto. Dentro dessa perspectiva, minha primeira afetação foi uma preocupação sobre o risco de que essa proposta pudesse conduzir os atores à representação, na busca pelo personagem, e bloquear os caminhos orgânicos da própria criação. Nos trabalhos anteriores dos quais havia participado, partíamos de uma dramaturgia não linear, na qual os textos, imagens, sons e memórias eram trazidos a partir das subjetividades e necessidades dos corpos, envolvidos em um trabalho sobre si, e através delas se tecia a dramaturgia; ou tais elementos eram trazidos como estímulos iniciais a partir dos quais, através de identificações descobertas ao longo do processo, selecionávamos os fragmentos que estariam presentes na obra. A resistência inicial à outra via de acesso a um trabalho sobre si, porém, parecia trazer resquícios de uma concepção binária, advinda do próprio dualismo entre razão e instintos que procurava romper. Manter um processo orgânico, para além das representações, em diálogo com os estímulos e necessidades do texto, portanto, tornou-se um desafio e uma possibilidade de reflexão.

Não se trata, no entanto, de um desencadeamento amorfo das emoções. Aqui, a drasticidade fisiológica une-se à artificialidade da forma, a literalidade do corpo à metáfora. A massa orgânica, tendendo a transbordar de qualquer forma, de vez em quando tropeça na convencionalidade e se coagula na composição poética. Essa luta entre a organicidade da matéria e a artificialidade da forma deveria dar à arte do ator, assim entendida, uma tensão estética interior. (FLASZEN, 2007, p.90)

A investigação acerca da maneira como Grotowski abordava a relação entre o texto e o trabalho com a subjetividade dos atores e seus impulsos pôde trazer contribuições para esses questionamentos.

No período dos espetáculos, a partir de seu interesse na via negativa, o texto e os personagens eram utilizados por Grotowski como “trampolins” para o trabalho do ator sobre si mesmo, e para investigação de seus impulsos, bem como para “proteger” a exposição do ator e estabelecer uma comunicação com o público.

Grotowski acreditava que, já que os seres humanos representam tantos papéis em suas vidas cotidianas, o teatro deveria ser um lugar em que o ator não interpretasse um papel, e sim almejasse um eu mais autêntico. Esse princípio foi revolucionário. Ao trabalhar com os atores do Teatro Laboratório, Grotowski muitas vezes os orientava a não representar “personagens”. Cada apresentação era um desafio para os atores se despirem de suas próprias máscaras, se desvelarem e demonstrarem a verdade. Eles foram capazes de fazer isso através da proteção fornecida pela mise-

en-scène. Eles estavam representando a si mesmos, mas através da mise-en-scène a plateia os compreendeu como personagens. (SLOWIAK, CUESTA, 2013, p.145- 164)

O que de fato nos interessa aqui, porém, é a possibilidade de manter vivo o trabalho sobre si e o acesso aos impulsos na relação com o texto:

“A sua real inovação, entretanto, foi a utilização do texto retrabalhado como pretexto para o trabalho corporal do ator. As palavras do dramaturgo serviam como uma pista de decolagem para o ator dar vida a imagens potentes e pessoais…”(idem, p. 34)

Dessa maneira, seu trabalho não buscava a representação, tampouco a identificação com o personagem por meio de memórias emotivas, mas a maneira como o corpo memória e os impulsos poderiam ser acessados por aquele processo.

Se – suponhamos – faz um comandante que morre em batalha, não se procura reproduzir em si a imagem de um verdadeiro comandante que realmente está em agonia no tumulto do combate, para depois viver e reproduzir subjetivamente no palco de modo crível, orgânico esse conhecimento de algum modo objetivo sobre comandantes agonizantes. Ao contrário, no próprio fato de que alguém se imagine como um comandante agonizante, poderá encontrar-se a própria verdade, o que é pessoal, íntimo, subjetivamente deformado. [...] Não recuará devendo violar a própria intimidade, os motivos pelos quais se envergonha. (FLASZEN, 2007, p.89)

No espetáculo O Príncipe Constante, baseado no texto do dramaturgo espanhol Calderón de La Barca, com adaptação do poeta polonês Juliusz Slowacki, o público presenciava a história do príncipe cristão Don Fernando que, aprisionado pelos inimigos mouros, recusa-se a ser um delator e vivencia torturas e humilhações até a sua morte. Cieslak, porém, ao interpretar as experiências de Don Fernando, tinha uma partitura construída a partir de impulsos relativos à sua primeira experiência amorosa e sexual, desenvolvida durante um intenso trabalho com Grotowski.

A investigação de Grotowski, junto a Cieslak, não buscava atingir a temática do texto de uma forma direta, ou seja, trabalhar sobre algum tipo de trauma ou uma memória de sofrimento e dor. Ao contrário, se direcionou para um momento extremamente forte, a primeira grande experiência amorosa do ator que possuía uma qualidade específica, ao mesmo tempo luminosa e sensual, ou seja, uma „prece carnal‟, como definiu Grotowski. (GONÇALVES, 2011, p.68)

O trecho abaixo traz uma compreensão de Grotowski sobre a relação entre o texto e as ações físicas na construção dramatúrgica:

É certo que o texto enquanto atuação lógica permanece em contradição com a realidade. Na vida, de fato, não falamos nunca de maneira lógica. Aparece sempre uma espécie de lógica paradoxal entre aquilo que dizemos e aquilo que fazemos. E, mesmo assim, se vivemos plenamente, as palavras nascem das reações do corpo. Das reações do corpo nasce a voz, da voz, a palavra. Se o corpo se torna um fluxo de impulsos vivos, não é um problema impor-lhe uma certa ordem de frases. Uma vez que é como se os impulsos engolissem aquelas frases, sem muda-las, as absorvessem. (GROTOWSKI, 2007, p.204)

Durante o último espetáculo encenado pelo Teatro Laboratório, Apocalypsis cum

figuris, porém, os textos foram sendo selecionados a partir dos trabalhos com os atores, e a dramaturgia se pautando nas descobertas do grupo. O trabalho se iniciou a partir do roteiro de

Samuel Zhorowski de Slowacki: “[...] um roteiro preciso, pensado como um bom trampolim e com a plena consciência de que se tratava só de um trampolim, que no decorrer do trabalho seria possível abandonar” (idem, p184).

Em seu texto Sobre a gênese de Apocalypsis (GROTOWSKI, 2007, p. 181-195) relata a maneira como as afetações do processo criativo foram gerando interferências sobre o roteiro do espetáculo:

Sentia, portanto continuamente aquela necessidade, digamos, criativa, que, todavia não mantinha relação alguma com o espetáculo que nascia, ou tinha uma ligação só superficial. (idem, p.185)

Foi assim que começamos a ler os Evangelhos. Pedi a cada um para ler aqueles fragmentos-chave que para eles fossem vivos no campo da sua vida, não no sentido

de recordações concretas [...]. E assim começamos a procurar. […] Como disse, porém, o essencial ocorria no trabalho individual. (idem, p. 188)

Trabalhamos sempre praticamente sem falar durante os ensaios, enquanto aqui, agora, de repente: um mês inteiro só de conversas; era como a procura de associações pessoais em que tudo acontece hoje, na Polônia, no âmbito da nossa vida. [...] Poderíamos dizer que naquela fase o trabalho era uma análise, não intelectual, mas por associações, se bem que consciente. (idem, p.189)

Considero que em nenhum dos nossos espetáculos a criação dos atores tenha sido tão evidente. Foram três anos de luta. Se, durante o trabalho, nascia um conflito entre o processo criativo de algum dos meus colegas de um lado, e a ordem do conjunto, a estrutura ou a ordem da montagem, do outro, eu dava sempre prioridade ao processo. (idem, p.195)

É possível perceber que o processo e suas necessidades foram transformando a proposta inicial. Pretendemos ressaltar aqui, através disso, a possibilidade de acessar o fluxo de impulsos e a memória involuntária através de inúmeras relações possíveis com textos e aspectos do consciente, da razão ou memória voluntária.

Ao iniciar o trabalho com no Laboratório, Ricardo nos propôs alguns estudos e encontros com a profa. Dra.Elen de Medeiros, professora e pesquisadora da obra de Nelson Rodrigues, onde foi possível analisar alguns aspectos da obra que poderiam ser experimentados corporalmente no sentido de tornar possível perceber as afetações dos corpos dos atores em relação àquelas questões. Dorotéia conta a história de uma família de mulheres que vive em privações: do desejo, do sexo, da luz, e que tem sua rotina alterada pela chegada de uma pessoa da família, Dorotéia, que gera conflitos na casa pelo fato de haver em seu corpo vitalidade, beleza e desejo, que eram negados pelas outras mulheres, e por ter sido prostituta. Essa presença desperta os impulsos reprimidos das parentes da casa e traz à tona contradições das mesmas, enquanto tentam oprimir Dorotéia, e torná-la uma delas. Elen de Medeiros nos ressaltou os seguintes aspectos da obra:

฀ Peça mítica. ฀ Clausura.

฀ Jogo de contrários.

฀ Narcisimo das tias, a moral; e jogo contra o narcisismo, o feio, a podridão. ฀ Interpretações da obra como farsa, comédia de costumes, tragédia.

฀ Estruturas abordadas e “jogadas pelo avesso”. ฀ Expressionismo, surrealismo – deformidades.

฀ Diluição das formas e das imagens, tudo vai se desintegrando. ฀ Humor, riso agoniado, estranho, humor negro.

฀ Todas, em algum momento. percebem em si o desejo, o impulso sexual: as primas quando morrem, D. Flávia quando das Dores entra em seu corpo, Doroteia – início e morte.

Ricardo Gomes nos ressaltava sua percepção da obra como tragédia, na qual o herói, que representa o princípio indivituationis é aos poucos devorado, dilacerado pelo coro, tornando-se uno a ele e ao todo que o envolve. Dessa forma, ampliavam-se as contradições. O princípio dionisíaco, do ilimitado, seria representado pelas tias, que formariam portanto o coro, como um único corpo, e seus corifeus. Eram elas, porém, a própria representação do controle dos instintos em seu ápice, que, porém, mostravam suas irrupções e as iras de seus recalques. Dorotéia, que por um lado traz o princípio dionisíaco, o desejo, o instinto, ao longo da peça se mostra como o eu em seus limites, sendo, aos poucos, devorada pelo coro, que tanto tenta torna-la uma delas, “feia”, “triste”, negando o sexo, quanto, nessa antropofagia, vai absorvendo elementos da mesma, o que passa a ir também distinguindo como princípio

indivituationis uma das tias, Dona Flávia do corpo do coro.

Partindo dos estudos da obra e de tais considerações percebi a necessidade de iniciar o trabalho com os atores a partir das seguintes questões:

฀ O acesso aos impulsos, sua descoberta, sua passagem, sua percepção; aliada à suas contenções, pelos outros e por si mesmo, resultando em impulsos que se mostram, porém muitas vezes não se realizam, como então reverberam no corpo? Que novas subjetividades se criam quando os impulsos são contidos? E quando acham passagem?

฀ Experimentar corporalmente as sensações de luz e sombra.

฀ Elementos do Butoh, “o corpo morto”, as dualidades morte e vida, luz e sombra dessa linguagem.

฀ Experimentações a partir dos exercícios de “cardume” com o objetivo de estabelecer o coro como um corpo único, sem que percam o trabalho dos impulsos e subjetividades. Afetar-se.

Observação: Os exercícios referentes a cada um desses aspectos serão desenvolvidos no memorial, em anexo nessa dissertação.

As(os) atrizes(ores) do Laboratório já realizavam anteriormente, com Ricardo Gomes, um trabalho inspirado nas pesquisas de Grotowski. Acompanhando alguns ensaios de um processo anterior, pude perceber que as propostas eram conduzidas de dentro por seus

propositores, sem pausas para explicação, através das próprias ações, em um processo que parecia se aproximar das Vigílias.experimentadas no período do Parateatro, nas quais os participantes, a partir do silêncio, iniciavam ações necessárias através de comunicações corporais. Em outros momentos surgiam cantos, muitas vezes iniciados por B., e através deles deixavam que acontecessem os impulsos e contatos, em um processo semelhante aos cantos ritualísticos utilizados na Arte como Veículo, e atualmente no Workcenter of Jerzy Grotowski e Thomas Richards, porém, de acordo com as necessidades e especificidades do próprio Laboratório e seus participantes. Ricardo dizia que interferia cada vez menos no processo, e observava seu próprio andamento.

Minhas intervenções se iniciaram de uma maneira mais distanciada.Realizava proposições, deixava que experimentassem, finalizassem, e iniciava um novo ciclo com outra propostas. Aos poucos fui percebendo a importância de ampliar o tempo de experimentação de cada prática e de tornar mais orgânicas as transições entre elas, de forma a não interromper o estado alterado que era construído. Ricardo sugeriu que tentássemos conduzir o processo também participando dele, e pude encontrar pontos positivos e negativos nessa maneira de propor, que serão analisados ao longo das descrições e analises dos trabalhos, no memorial em anexo. De todo modo, houve sempre uma preocupação e um cuidado sobre o que, e como propor no trabalho, para que os atores pudessem se apropriar das propostas, e de fato vivenciá-las, entrando em um contato mais profundo com elas. Percebia no grupo uma entrega, pouco apego aos códigos e formatações e uma boa abertura às experimentações.

O trabalho se iniciou a partir da observação dos ensaios. Posteriormente passei a sugerir estímulos no intuito de despertar os impulsos, reconhecer as necessidades próprias de cada subjetividade e percebê-las nos contatos com os outros atores. A partir de tais percepções, a relação dos atores com a obra foi sendo estimulada através de experimentações corporais realizadas a partir dos estados propostos pelo texto.

Antes, porém, de iniciar os relatos sobre a forma como esse trabalho foi sendo desenvolvido, consideramos importante retomar aqui algumas “perguntas”, “precauções” e relações, descobertas por Grotowski, para que de fato nos direcionássemos ao acesso aos impulsos e à organicidade do trabalho. A partir deles, iremos sugerir um novo elemento de reflexão e experimentação: o limiar. Através deles, então, traremos as experimentações práticas mais detalhadas nas quais procuramos também dialogar processos criativos da dança e do teatro, e analisar suas reverberações.

O impulso e o limiar foram aspectos fundamentais para a escolha das propostas realizadas, bem como para analisar as afetações que as mesmas iam gerando nos atores e no processo.

Minha principal intenção, portanto, era de manter vivo o trabalho sobre si, os impulsos dos(as) atores/atrizes no contato com a obra, a sinceridade com a qual entrariam em relação com a mesma, com o processo e com os(as) outros(as) participantes a partir de suas reais necessidades.

“[....] propomos aos atores que se transformem diante do espectador usando apenas seus impulsos interiores, seu corpo [...]” (GROTOWSKI, 1992, p. 94)