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TRABALHANDO COM OS IMPULSOS

4.2 Impulso e verdade/necessidade

Em toda a verdade humana há sempre algo de angustioso, de aflito, nós somos, e não estou a referir-me simplesmente à fragilidade da vida, somos uma pequena e trêmula chama que a cada instante ameaça apagar-se, e temos medo, acima de tudo temos medo. (José Saramago)

O que podemos perceber, a partir das considerações anteriores, é uma profunda relação entre os impulsos e as reais necessidades do corpo, a sinceridade com a qual se entrega ao trabalho. “Não era possível mentir ali!”, era o que percebia em processos que me envolviam na pesquisa dos impulsos. Torna-se necessário ir além das máscaras que nos protegem, e dar passagem aos afetos, aos impulsos, através das novas relações que surgem durante as experimentações, onde o outro, com o qual se relaciona, está também se desnudando, o que nos leva também a novas possibilidades com nós mesmos. Nesse processo tendem a surgir outras subjetividades, algumas delas que procurávamos esconder de nós mesmos, já que tal espaço de criação permite ultrapassar as barreiras da moral social e dar passagem mesmo ao que elas oprimem.

Encarada dessa maneira, a representação se torna um ato de transgressão, não no sentido do pecado, e sim no sentido de ir além dos limites individuais. O que isso significa para o ator? Aqui, a linguagem de Grotowski se torna áspera. Fala de tabu, de violação, mas o que está realmente pedindo ao teatro é que este rejeite seus clichês e se recoloque no âmbito da provocação, no qual somos capazes de “atravessar nossas fronteiras, exceder nossas limitações, preencher nosso vazio – nos tornarmos plenos”.(SLOWIAK, CUESTA, p.96)

Para tanto, torna-se importante descobrir o que é de fato necessário não pelo pensamento racional, mas por uma mente-corpo, que, como vimos anteriormente, é capaz de ultrapassar os limites do já conhecido. Necessário não apenas ao personagem, à obra, ao

conceito ou discussão, com a qual se pretende trabalhar, mas às necessidades do corpo-mente- espírito frente a elas.

Isto é, evitem ilustrar as palavras e observações do autor. Se se deseja criar uma

verdadeira obra prima, deve-se sempre evitar as belas mentiras: as verdades de calendário, onde, sob cada data, se encontra um provérbio como: “Aquele que é bom para os outros será feliz”. Mas isto não é verdade. É uma mentira. O espectador talvez fique contente. O espectador gosta de verdades fáceis. Mas não estamos no teatro para agradar ou alcovitar o espectador. Estamos ali para dizer-lhe a verdade. [....] Portanto evitem as belas mentiras. Sempre tentem mostrar o lado desconhecido

das coisas ao espectador. Ele vai protestar, mas nunca esquecerá o que vocês fizeram. Depois de alguns anos, ele dirá: “Aquele falou a verdade. Trata-se de um grande ator.” (GROTOWSKI, 1992, p. 195)

Essa foi uma consideração importante dentro do trabalho com o Laboratório. Por diversos momentos era preciso lembrar aos atores que não deveriam procurar agir-reagir como faria o personagem, mas colocar-se a vivenciar aquela experiência proposta por mim e pelo grupo, tendo como estímulo o contexto da obra, e assim, deixar que brotassem seus próprios impulsos, suas reais necessidades. Houve um momento em que N. abandonou suas descobertas e começou a “ilustrar” o texto, através da interpretação e da literalidade. Tivemos um longo percurso até conseguir retomar a permissividade para que seu corpo reagisse e desenvolvesse sua partitura de impulsos sem estar preso aos comandos do texto. Também S., por alguns momentos procurava representar as reações que imaginava que teria a personagem Dorotéia. Foi necessário intensificar o processo para que S. pudesse perceber naqueles contatos suas próprias necessidades. Essa discussão será melhor exemplificada ao longo do memorial em anexo.

“O impulso do ator sem fingimento determinava imediatamente aquilo que era preciso eliminar [...]” (GROTOWSKI, 2007, p.191)

Adianto aqui que, nas práticas anteriores ao trabalho com Dorotéia, já era possível identificar algumas necessidades dos atores, através de seus corpos e impulsos. Eram caminhos de experimentação que retornavam e retornavam, não como códigos e automatismos, mas como se tivessem de fato algo a descobrir e a dizer. Dentro dos estudos da obra eles ressurgiram, e foram para a cena, encontraram passagem na relação com Dorotéia. Era possível, portanto, diferenciar representações e automatismos dos impulsos a partir de sua verdade e necessidade. “O teste de um impulso verdadeiro é se acredito nele ou não.” (GROTOWSKI, 1992, p. 193)

Ao realizar o workshop da Cia Teatro Akrópolis, após muitas horas de prática de um diálogo corporal no qual deveríamos reagir de modo preciso, a partir dos impulsos e reais

necessidades, nos permitindo a ir “descamando” as máscaras cotidianas, passei a perceber em mim reações inesperadas, que pareciam ir além dos limites do que eu me dispunha a mostrar ao outro que acabava de conhecer. Do mesmo modo ocorreu no Laboratório com uma das atrizes. B. é uma atriz muito sensível e talentosa, e uma pessoa muito tímida. Dentro desse mesmo trabalho, aplicado às necessidades do Laboratório, percebi que B. acessava lugares que não costumava dar passagem, diversas vezes tinha impulsos de reações mais expansivas e de algum modo agressivas, que seriam resolvidas corporalmente devido à organicidade que aquele diálogo corporal já havia atingido, porém as retinha. Meu papel era mostrar-lhe onde estava bloqueando e que ali era possível deixá-los surgir.

Sempre procurem a verdade real. Não o conceito popular da verdade. Usem suas próprias experiências reais, específicas, íntimas. Isto significa que muitas vezes vai dar a impressão de falta de tato. Tenham sempre como objetivo a autenticidade. [...] Em suma, façam sempre o que está intimamente ligado com suas próprias experiências. (GROTOWSKI, 1992, p.195,196)

Em sua oficina36, Graziele Sena nos dizia os momentos nos quais acreditava ou não nas ações que eram realizadas. Dizia que o treino do olhar para percebê-las poderia se dar na rua, ao ver alguém correr para pegar um ônibus, abaixar-se para pegar algo, ou seja, através das ações dentro de suas reais necessidades. Fernando Mencarelli relata que, em conversa com Thomas Richards, perguntou ao mesmo sobre como conseguia enxergar, perceber os “sintomas”, os momentos onde “algo acontece”, onde os impulsos de fato encontram passagem. Segundo Mencarelli, sua resposta foi que Grotowski treinava seu olhar. Durante anos acompanhava os processos e Grotowski ia lhe ensinando a ver esses sinais de vida e organicidade. Graziele atentava para que, durante o treinamento e o processo, procurássemos “algo que te deixe vivo, inquieto, acordado, e quando encontrar, deve trabalhar em torno disso”. Tanto na criação quanto na vida sabemos que por aí passam nossas reais necessidades, e os impulsos de ação, mesmo quando negados, nos trazem essa sensação.

Acessar aos impulsos por essa via torna a ação algo que se acredita, “algo acontece”, e de algum modo quem assiste passa a ser tocado por ela, onde nos lembramos da ruptura do

principium individuations, e do acesso ao Uno.

Às vezes uma “mistery play” podia funcionar quando, apesar do fato de não a

entendermos, havíamos acreditado no que o ator havia feito, e em consequência, seu trabalho nos havia feito sentir algo ou havíamos recebido algo dele. Alguém dizia:

“Não o entendi, porém, acreditei”, e então só podia dizer que a “mistery play” ia por um bom caminho. (RICHARDS, 2005, p.67)37

Em um curso sobre dança teatro, Carla Andreia nos propôs, em duplas, realizarmos contrações e expansões de todo o corpo, a partir do centro, com as mãos da dupla em nosso centro movendo-se em sentido contrário (expandindo enquanto contraíamos), como forma de que toda a movimentação se desse a partir do centro e de que todo o corpo estivesse presente nela. A dupla deveria nos informar quando alguma das partes do corpo se encolhia ou expandia sem estar de fato reagindo ao centro e presente, em organicidade com todo o corpo. Ao perceber tais ausências, notávamos nossas fugas do “aqui-agora”. A sensação era de que mover-se a partir do centro, por um lado facilitava a movimentação, por outro de algum modo o dificultava, pois tornava o movimento mais denso, nos fazia entrar verdadeiramente em contato com suas reverberações, de sensações e com as emoções que nos despertava. Fazia estar de fato integrado corpo e mente na ação, e não apenas a técnica de um rolamento de encolher e expandir. Do mesmo modo, ao caminharmos lentamente, ela e os bailarinos de seu grupo, Coletivo Litura, nos mostravam quando algumas partes de nosso corpo não estavam presentes na ação, e, assim, íam nos pontuando a maneira como fugíamos de estar verdadeiramente entregues ali, aqui e agora em ação.

Dessa maneira, não era possível adentrar a tais treinamentos sem estarmos de fato inteiramente presentes, expondo-nos, encarando tanto as sombras quanto a luz das descobertas, bem como suas possibilidades e limites, na busca de ultrapassar as barreiras desse último. “Para os atores o sentido desses encontros está no não se esconder, não fugir [...] Se qualquer um recusa a honestidade, seja só por um instante, tudo desmorona.” (GROTOWSKI, 2007, p.193-194)

Nos trabalhos propostos por Graziele Sena38 sempre havia um líder, na maioria das vezes ela própria, que ia conduzindo os exercícios (as trocas entre três exercícios criados por cada um, que fossem desafios pessoais), os cantos, o tempo-ritmo das ações, o uso dos níveis, a ocupação do espaço. Esse trabalho de “seguir o líder” a mim parecia ter o intuito de tornar o corpo poroso ao inesperado que vinha do outro, de deixar passar a ação, permitir ao corpo se surpreender e se deixar agir a partir dos estímulos do outro, como forma de abrir a passagem

37A veces, uma “mistery play” podia funcionar cuando, a pesar del hecho de que no la entendiéramos, habíamos creído lo que había hecho el actor, y en consecuencia su trabajo nos había hecho sentir algo o habíamos recebido algo de él. Alguien decía: “No lo he entendido, pero me lo he creído”, y entonces so podia decir que la “mistery play” iba por el buen caminho. (RICHARDS,2005, p.67, tradução da autora). Sobre a definição de mistery plays: “[…] piezas individuales de corta duración con uma estrutura repetible.” (idem, p. 62)

para os próprios impulsos. Graziele me disse que o intuito seria trabalhar “os níveis básicos de atenção e contato” para que algo pudesse acontecer entre nós. Mais à frente falaremos sobre a importância do contato dentro do trabalho com os impulsos, porém, ressaltamos aqui essa experiência como reflexão sobre a qualidade de presença necessária, a verdade e entrega exigida por esse trabalho. Todas as vezes nas quais, por um segundo nos distraíamos do todo, nos ausentávamos de estar ali, presentes, aqui e agora, Graziele era capaz de perceber e nos chamar de volta à entrega absoluta ali.

Quando levávamos algum tempo de ensaio, minha mente começava a queixar-se da fadiga física. Então, Jim me fazia parar e me dizia que por uns instantes havia estado ausente na realização da linha de ações. Havia centenas de coisas que me faziam perder a concentração, as queixas de minha mente eram apenas uma delas. Estava claro que uma pessoa que me observava com olho atento podia detectar todos os momentos nos quais não estava presente. (RICHARDS, 2005, p.106) 39

O trabalho com os impulsos, portanto, possui ampla relação com a entrega, necessidade e sinceridade de uma ação, e com processos que de fato abram espaço para o risco de uma criação que se permita ir além de aspectos já conhecidos, palpados e compreendidos.

[...]Espero que fique bem claro que é muito importante nunca fazer nada que não se harmonize com seu impulso vital, nada de que não possam prestar contas. [...] Tudo que realizamos deve ser sem pressa, mas com grande coragem; em outras palavras, não como um sonâmbulo, mas com tomada a consciência, dinamicamente, como um resultado de impulsos definitivos. Temos de aprender, gradualmente, a ser responsáveis por tudo que empreendemos. Temos de procurar. (GROTOWSKI, 1992, p.162-163, grifos do autor)

Podemos perceber que o movimento presente e derivado dos impulsos e necessidades, surge naturalmente preciso, e quando estudado e aprofundado, a partir das partituras, é capaz de gerar uma ação de sinceridade, profundidade e qualidade técnica.

“Um dos requisitos básicos de um movimento é que ele seja claro e objetivo – a beleza surge daí. Toda verdade é forte e bela.” (VIANNA, 2005, p.76)

A partir dessa entrega então, abre-se a possibilidade para que ocorra, como comenta Ricardo Gomes em um dos ensaios: “algo que de tão pessoal se torna impessoal”, por trazer elementos mais profundos a serem expressos e comunicados, algo que se acredite e que acesse o outro como a si.

39Cuando llevábamos algún tempo de ensayo, mi mente empezaba a quejarse de la fatiga física.Entonces, Jim me hacía detener e me decía que por unos instantes había estado ausente en la realización de la línea de acciones. Había cientos de cosas que me hacían perder la concentración; las quejas de mi mente eran tan sólo una de ellas. Estaba claro que una persona que me observara con ojo atento podia detectar todos los momentos en los que no estaba presente. (RICHARDS, 2005, p.106, tradução da autora)

Durante os ensaios, diante dos companheiros de trabalho e dos partners, e em seguida, diante dos espectadores-testemunhas, ele deve tender para a plena sinceridade – sinceridade consigo mesmo, como especifica Grotowski – não se esconder, mostrar o si mesmo íntimo em um singular ato de provocação, que deve evitar as armadilhas do masoquismo e do narcisismo. (FLASZEN, 2007, p. 30)