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O relato de discurso na ficção narrativa: contributos para a análise da construção polifónica de "Os Maias" de Eça de Queirós

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Academic year: 2021

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ISABEL MARGARIDA RIBEIRO DE OLIVEIRA DUARTE

O R E L A T O DE D I S C U R S O

NA F I C Ç Ã O N A R R A T I V A

CONTRIBUTOS PARA A ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO POLIFÓNICA DE OS MAIAS DE EÇA DE QUEIRÓS

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ISABEL MARGARIDA RIBEIRO DE OLIVEIRA DUARTE

O R E L A T O DE D I S C U R S O

NA F I C Ç Ã O N A R R A T I V A

CONTRIBUTOS PARA A ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO POLIFÓNICA DE OS MAIAS DE EÇA DE QUEIRÓS

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Para os meus pais Para o Augusto, a Rita, a Teresa e o Pedro

Tese de Doutoramento apresentada por Isabel Margarida Ribeiro de Oliveira Duarte à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, na especialidade de Linguística e realizada sob a orientação dos Professores Doutores Oscar Luso de Freitas Lopes e Fernanda Irene Araújo Barros Fonseca

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AGRADECIMENTOS

Na elaboração desta dissertação pude beneficiar do apoio do PRODEP (concurso n°4/94), assim como da dispensa de serviço docente, por três anos lectivos, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Agradeço às instituições e órgãos responsáveis.

A minha gratidão mais sincera vai para os meus orientadores. Para o Professor Doutor Óscar Lopes, pelos desafios e o impulso iniciais da pesquisa e a leitura atenta do trabalho. Para a Professora Doutora Fernanda Irene Fonseca pelas sugestões, pela exigência, pelo apoio que ultrapassou, em muito, o âmbito científico.

Gostaria ainda de agradecer aos Professores Doutores Mário Vilela, Joaquim Fonseca, António Capataz Franco e, muito especialmente, ao Professor Doutor Luís Alberto Alves e às Dras. Graciete Vilela, Júlia Cordas, Manuela Cabral, Teresa Tavares e Sónia Rodrigues.

Outros amigos me ajudaram: a Luísa Alvares Pereira, a Ana Azevedo, a Olga Barreiros.

Devo também uma palavra de agradecimento aos funcionários da Faculdade, sobretudo à Da Elvira, ao Sr. Carlos e à Deolinda.

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«[...] la reproduction du texte par le sujet (retour au texte, relecture, exécution nouvelle, citation) est un événement nouveau, non reproductible dans la vie du texte, est un maillon nouveau dans la chaine historique de l'échange verbal.»

Mikail Bakhtine, Esthétique de la Création Verbale

«[...] a projecção de mundos possíveis (a ramificação deíctica) especifica-se, na ficção literária, como uma orientação para uma síntese ou fusão de mundos. Fusão de mundos inerentes à fusão de vozes, à proliferação ambígua da origo enunciativa numa exploração criativa de possibilidades em aberto no sistema enunciativo das línguas.»

Fernanda Irene Fonseca, Gramática e Pragmática Estudos de Linguística Geral e de Linguística Aplicada ao Ensino do Português

«Nos romances queirosianos, tudo tem de ser percebido como uma espécie de discurso indirecto livre generalizado. O leitor nunca tem a certeza de estar colocado no ponto de vista perceptivo e axiológico de Eça de Queirós, pois cada situação, cada ambiente de mera descrição aparente parece pretender conduzir ao ponto de vista de uma personagem.»

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Introdução

«[...] dans la vie courante, on se réfère surtout à ce que disent les autres: on rapporte, on évoque, on pèse, on discute leurs paroles, leurs opinions, affirmations, informations, on s'en indigne, on tombe d'accord, on les conteste, on s'y réfère, etc.»

Bakhtine, Esthétique et théorie du roman

1. Delimitação do tenta

O estudo que tentarei levar a cabo sobre relato do discurso na ficção narrativa teve como centro catalizador a questão do discurso indirecto livre (DIL) que constitui talvez a mais complexa e, por isso, a mais estimulante das que se perfilam no âmbito da problemática geral da reprodução do discurso no discurso. Iniciei a minha pesquisa, com efeito, centrando-me, exclusivamente, no DIL. Posteriormente, pareceu-me fundamental enquadrar o DIL entre os outros fenómenos de relato de discurso, o que me levou a alargar o objecto de estudo a outros modos de relatar palavras. Mas, em contrapartida, a multiplicidade de ligações entre o DIL e a ficção conduziu-me a uma certa restrição ou, pelo menos, a uma focalização predominante do discurso relatado na narrativa de ficção.

Deste modo, o objecto de estudo eleito inicialmente foi-se alargando mas também definindo, adquirindo contornos num determinado sentido, foi sendo encaminhado numa de entre as muitas direcções possíveis, sob a influência de várias circunstâncias que balizaram o evoluir da investigação. Com efeito, a situação, o contexto em que o trabalho científico decorre marca, enforma mesmo o objecto e a natureza da investigação. O

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tempo/lugar, com as suas coordenadas teóricas e institucionais próprias também determina e condiciona (não, fatalmente, no mau sentido) a investigação que nele se faz.

A pesquisa de que aqui se dá conta tem, subjacente a ela, um percurso que a condicionou e que remonta ao momento em que, no âmbito da elaboração da dissertação de Mestrado1, analisei um corpus de ficção

narrativa, procurando nele certas partículas argumentativas e modais que expressam subjectividade e permitem realizar uma «agulhagem discursiva», a partir da posição do «eu» falante. As partículas referidas foram encontradas, como era previsível, em passagens de DD, bastante marcado, aliás, por traços oralizantes, quer a nível sintáctico, quer lexical. E o meu interesse pelo DIL começou, justamente, ao notar a existência das mesmas partículas, sobretudo características da oralidade, também em passagens de DIL2. O traço que primeiro me atraiu no DIL foi o «efeito de

real» (a expressão é de Barthes [1968]) resultante deste tipo de discurso, quando se trata de «relatar»3 palavras de personagens num romance. Foi da

sensação de estar a ouvir falar as personagens que nasceu o meu desejo de aprofundar a questão do relato de discurso, sobretudo na ficção narrativa.

Alguns estudos que depôs li sobre o DIL deixaram-me perceber a complexidade do fenómeno e o desafio que seria tentar procurar compreendê-lo um pouco melhor. Um desafio que o DIL representa quer para Linguística quer para a Teoria Literária, já que põe em jogo temas tão

^Trata-se de Alguns Operadores de Agulhagem Comunicativa (1989, Faculdade de Letras do Porto). Quer o corpus quer o objecto de pesquisa foram-me sugeridos pelo Professor Óscar Lopes, que também orientou o trabalho.

2 O facto de ter trabalhado, nessa dissertação, um romance de Eça (O Crime do Padre Amaro) e outro de Cardoso Pires (Balada da Praia dos Cães) explica o ter eu deparado com passagens quer de DD quer de DIL de carácter vincadamente oralizante.

3 Justificam-se as aspas porque, como lembram McHale (cf. 1978: 256) e Genette (cf. 1983: 34), na ficção narrativa não estamos, propriamente, perante um verdadeiro relato de palavras.

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fundamentais como a enunciação, a mimese, o ponto de vista, a intertextualidade e a competência literária. A preocupação de seleccionar alguns ângulos de abordagem para estudar o relato de discurso aumentou na razão directa das leituras feitas sobre o problema. Abranger de modo exaustivo um tema desta envergadura revela-se impossível, daí que seja necessário operar escolhas. Das várias possibilidades de desenvolvimento entrevistas, algumas foram abandonadas por se terem revelado demasiado ambiciosas no âmbito e no tempo de pesquisa previstos4.

Também influenciou, em certa medida, a evolução da pesquisa, o facto de fazer parte integrante do meu circunstancialismo histórico estar, desde há largos anos, ligada à formação de professores de Português. A experiência que fui acumulando nessa actividade, com a decorrente reflexão didáctica, tornou-se inseparável das preocupações teóricas de partida. Investigação e prática constituem, na verdade, um sistema de vasos comunicantes. Vão-se fecundando mutuamente e avançam a par: a pesquisa e as leituras influenciam a descoberta de soluções pedagógicas e a busca destas obriga a procurar novas explicações teóricas.

Ora o relato de discurso tem ainda a sua única entrada, nas aulas de Português, dentro da mais estrita gramática de frase, nos exercícios de passagem de DD a Dl, com a consequente subordinação e decorrentes ajustamentos de pessoas e tempos verbais, e, mais raramente, na recuperação do DD que «está na base»5 de um dado Dl. O DIL é entendido,

4 É dentro do realismo dos prazos que temos de enquadrar a pesquisa: o Regulamento de Doutoramento da Universidade do Porto concede, depois de um ano de inscrição provisória (em que o candidato mantém o seu serviço docente), mais três anos para fazer a dissertação em que, normalmente, o candidato está dispensado de serviço. A título excepcional, haverá um biénio de prolongamento de prazo, mas em que o investigador retoma o serviço docente.

5 Veremos, ao longo deste trabalho, que estes dois tipos de discursos são independentes e não é verdade que o indirecto decorra da transformação de um discurso directo «originário».

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geralmente, como uma "mistura literária" de DD e Dl cuja explanação nunca merece, nos manuais, mais do que um curto parágrafo.

Tal visão do problema do discurso relatado é obviamente redutora e falseadora do ponto de vista do funcionamento da língua e nem sequer tem eficácia didáctica: as frases de DD que os alunos têm de passar para Dl são previamente «purificadas» de qualquer elemento perturbador, tornadas tranquilamente assépticas, desligadas do contexto de enunciação. Por isso os alunos revelam, geralmente, mais dificuldades em resolver os exercícios propostos do que em utilizar espontaneamente DD e Dl, dentro de um contexto de enunciação que, obviamente, conhecem. Ou seja, a transposição didáctica de questões ligadas ao relato de discurso é pobre e ineficaz, por uma razão simples: a visão teórica que a enforma é redutora e inadequada. A tomada de consciência deste estado de coisas, a insatisfação intelectual que ela gerou foi um dos pontos de partida para a busca de outras descrições.

Uma Linguística confinada aos limites áa. frase é insuficiente como quadro teórico explicativo dos fenómenos de relato de discurso. Por isso me vou situar numa perspectiva teórica de análise alargada ao texto e ao contexto. Proponho-me, pois, encarar o relato de discurso no seu funcionamento textual e intertextual ou discursivo.

O relato de discurso foi também tratado, durante muito tempo, no âmbito da estilística literária, na fase em que a Linguística não se ocupava do texto que era deixado como terreno próprio das explorações literárias, particularmente as estilísticas. Demarco-me claramente dessa atitude de "recusa" da Linguística de estudar textos literários e, mais restritamente, de

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ultrapassar o estudo da frase6. O estudo da língua tem de se abrir à

consideração de todos os parâmetros textuais e contextuais da produção discursiva e o facto de se debruçar sobre os mesmos fenómenos que a estilística estudou não significa perder a sua especificidade.

A certeza de que o problema da citação é mais vasto do que a reprodução de discursos em DD, Dl e mesmo DIL, fez com que alargasse a reflexão a outros fenómenos de plurivocidade com os quais se relaciona (embora concedendo ao DIL, na constelação de fenómenos elencados, um lugar privilegiado)7. O relato de discurso não é separável de outros

fenómenos a que aludirei.

A linguagem deixa ouvir, numa voz, várias vozes8. Designações

como heteroglossia, interdiscursividade, dialogismo, intertextualidade, heterogeneidade, polifonia e outras afins recobrem fenómenos que se aproximam uns dos outros, ou, inclusivamente, se sobrepõem. Esses fenómenos decorrem da natureza dialogai do homem, do facto de «a organização interna da língua ter uma matriz dialógica ou dialogai» (Fonseca, J., 1992: 263). A realidade constrói-se numa dimensão intersubjectiva para a qual concorre, inevitavelmente, citar palavras de outros. A língua é dialógica porque «incorpora a enunciação», «representa a cristalização de vozes várias que se congregam virtualmente nos signos9 e

nas outras entidades e recursos linguísticos e que estão prontas a ressoar nos discursos.» (ibidem: 253 e 269).

6 Poética e Semiótica são disciplinas que nasceram justamente da "recusa" da Linguística em se ocupar dos textos literários.

7 Daí que o capítulo 3. da I Parte, que especialmente lhe dedico, seja particularmente extenso.

8 Como exemplarmente escreve Reyes, «En casi todo discurso hay un vaivén continuo entre lo que se dice del mundo directamente y lo que se dice del mundo a través de la reprodución de otros enunciados.» ( Reyes, 1994: 40).

9 As palavras são sempre palavras já usadas por outros e o discurso é internamente dialógico.

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A esta inscrição do outro na língua, Authier-Revuz chamou «heterogeneidade constitutiva» (1984). A autora distingue esta forma de polifonia, que implica a presença do outro na construção de qualquer discurso, da «heterogeneidade mostrada» que remete para a quebra de aparente unicidade do discurso, para a referenciação mais ou menos marcada do outro no fio do discurso, aquele conjunto de fenómenos a que chamamos, habitualmente, citação. A «heterogeneidade constitutiva», justamente porque é constitutiva e interna é difícil de localizar. Tem a ver

com a incorporação, pela língua, das suas condições de uso que implicam, entre outros traços, a participação activa do interlocutor na construção dos discursos: «Aucun énoncé en général ne peut être attribué au seul locuteur: il est le produit de Vinteraction des interlocuteurs, et, plus largement, le produit de toute cette situation sociale complexe, dans laquelle il a surgi.» (Bakhtine (1927) 1981: 50). O destinatário também participa na construção do discurso. O discurso (o espontâneo, oral e quotidiano sobretudo e também) constrói-se com uma rede de vozes diferentes, emprega permanentemente citações, quer directa quer indirectamente: também o faz por mera alusão, uso de léxico alheio, de entoações de outros, de ecos (irónicos ou não), de negações, de morfemas argumentativos.

A relação locutor/alocutário é o primeiro dos três eixos da conjugação de vozes no discurso, segundo J. Fonseca (1992).0 segundo diz respeito ao relato de discurso (o problema restrito que me ocupa) o «discurso no discurso», a inclusão de enunciações alheias no discurso de um dado locutor (a «heterogeneidade mostrada» de Authier). O terceiro eixo seria o da «polifonia inscrita» na própria língua, pelo uso, por exemplo, de signos já anteriormente utilizados, de dícticos, de delocutivos, entre outros fenómenos.

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Não fazendo parte da citação explícita, vários mecanismos discursivos estão, portanto, recobertos pela noção abrangente de polifonia, como, por exemplo, a ironia, a negação, a conflitualidade implícita em certos morfemas argumentativos (sobretudo os adversativos e os concessivos), as palavras de personagens infiltradas na narração ou as perguntas eco.

O DIL pode ser considerado uma espécie de centro irradiador na constelação de problemáticas que a polifonia abrange. Se o fenómeno a que Bakhtine chama heteroglossia é, como refere Reyes, «la multiplicidad de lenguajes y de puntos de vista presentes en cada enunciado» (Reyes, 1990: 132), nada melhor do que o DIL para o espelhar. Se o DIL é, por natureza, polifónico, heteroglótico, dialógico, um olhar sobre ele exige uma passagem pela plurivocidade de qualquer discurso, no sentido constitutivo que a heterogeneidade discursiva encerra. Como J. Fonseca afirma, «a estrutura da língua consagra, [...], a preocupação dos virtuais locutores com o Outro, a sua orientação para/sobre o Outro, desenhando nós e laços10 que

os interligam e que suportam o consenso e o dissenso, a convergência e a divergência, a harmonia e a conflitualidade, a concórdia e a discórdia.» (Fonseca, J. 1992: 266).

A polifonia e o dialogismo discursivos «atingem a plenitude da sua revelação no discurso literário - e isto por razões conhecidas, tais como a força da memória do discurso literário, a circunstância de o discurso literário representar a projecção máxima da multifuncionalidade da

10 Note-se que Joaquim Fonseca alude ao título de um romance de Alçada Baptista - Os Nós e os Laços - que recupera, intertextualmente, numa interligação perfeita entre forma e conteúdo: fala sobre plurivocidade convocando outras vozes.

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linguagem e, sobretudo, de nele se operarem elaborações e reelaborações estilizadas da heteroglossia social» (ibidem: 276)11.

A polifonia está presente em todos os géneros literários, com um maior grau nos géneros narrativos, especialmente no romance, e um menor grau na poesia, sobretudo lírica (cf. Beltrán Almería, 1992: 30). O romance é, justamente, o género em que o escritor mais se apropria, explicita ou implicitamente, de vozes e entoações alheias (cf. Beltrán Almería, 1992: 50)12. Retoma-se aqui a lição de Bakhtine: é sobretudo nos

textos literários, mais propriamente nos romances, que reconhecemos várias vozes falando em simultâneo.

Oscar Lopes chamou mais do que uma vez a atenção para a riqueza em «polifonia vocal» de alguns romances, capazes de nos darem, melhor até do que o próprio real, as linguagens típicas de certos grupos, lugares, épocas13. Em O Primo Basílio, de Eça de Queirós ou em Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, analisados por Oscar Lopes (1990),

poderão colher-se, em abundância, exemplos das linguagens deliberadamente intensificadas de que fala Reyes14. O romance Os Maias é,

11 A minha concordância total com esta afirmação justificaria, por si só, a escolha de um corpus literário para este trabalho: «la posibilidad de que el sujeto de la enunciación se manifieste en un lenguaje ajeno» (Reyes, 1984: 123) é um fenómeno perceptível, sobretudo, na narração literária. Se é esse o fenómeno eleito como objecto central da minha pesquisa, irei procurá-lo, logicamente, em narrações literárias.

12 Ducrot (cf. 1981: 91) refere opinião semelhante de Bakhtine, segundo o qual o romance reforça a heterologia da linguagem, contrariamente à poesia. Porque o traço constitutivo do romance seria a representação da linguagem com a qual a heterologia «está solidária».

13(3 romance «intensifica deliberadamente los diferentes «lenguajes» (dialectos sociales e históricos, jergas, registros...), de una sociedad y de una época, o de varias sociedades y épocas.» (Reyes, 1984: 125).

14 O discurso do romance reflecte, ao procurar reproduzir diferentes linguagens sociais, a heteroglossia social. O simples facto de haver um discurso do narrador (que não é, desde logo, homogéneo) e discursos das diferentes personagens permitiria considerar o romance como género polifónico por excelência. Polifónico também porque, como texto literário, o romance só se torna completamente legível se relacionado com outros textos literários ou não, numa intertextualidade que será tanto mais activa quanto maior for a enciclopédia literária do leitor.

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também quando olhado por este prisma, uma verdadeira obra-prima. Ao tecer a matéria romanesca do cruzamento de múltiplos falares, o autor estiliza-os, reforçando-lhes as características distintivas, de acordo com convenções literárias próprias da época, criando, artificialmente, discursos que imitam os falares sociais. Foi por ter reconhecido esse facto que usei Os

Maias como ponto de referência incontornável do corpus

predominantemente literário utilizado.

2. Constituição do corpus e metodologia de análise

Como referi, foi no decorrer de uma pesquisa anterior, em que analisei O Crime do Padre Amaro de Eça de Queirós e Balada da Praia dos

Cães de Cardoso Pires, que o meu interesse pela problemática mais geral do

relato de discurso na ficção narrativa começou a surgir. Na altura, colocava-se o problema de saber se seria legítimo estudar, como acabou por acontecer, fenómenos típicos da oralidade e de um registo familiar em textos literários, quase como se eles fossem documentos directos de uso não vigiado da língua15. Na verdade, como se verá mais adiante, os diálogos de

ficção estão longe de ser o reflexo, a cópia, a imagem fiel das conversas mais ou menos informais que se desenrolam, quotidianamente, nas nossas trocas orais16.

Ao escolher um corpus literário estou a assumir que se trata de um tipo de discurso com a sua especificidade. Os diálogos recriados nas

1 5 Uma «ilusão de óptica» muito corrente na pedagogia da Língua Materna (e em que caiu

também Ducrot (1978) ao estudar os diferentes valores do «mais» em francês), é considerar os diálogos escritos como se fossem textos orais reais. Tal ilusão foi duramente criticada por Cadiot (1979) que mostrou como, em diálogos informais gravados, os valores de «mais» eram diferentes dos elencados por Ducrot.

1 6 Lecointre e Le Galliot corroboram esta opinião, quando escrevem: «En dénonçant la

traditionnelle illusion du texte-reflet, on invite d'abord à considérer que le dialogue du récit (monologue ou conversation) ne doit pas s'analyser comme la pure représentation du dialogue oral. Il convient de rappeler en effet que le dialogue du récit n'est qu'accessoirement le simulacre du dialogue oral.» (Lecointre e Le Galliot, 1973: 72).

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narrativas literárias não são, evidentemente, analisáveis como trocas verbais reais. O estudo de diálogos de um corpus de ficção não deve fazer esquecer que as suas regras são as do texto escrito, embora os discursos de personagens da narrativa pretendam imitar actos de fala orais. Nos diálogos de ficção, há, por um lado, uma idealização simplificadora e, nesse sentido, redutora, que os afasta da complexidade das trocas reais. Mas há também, por outro lado, efeitos de estilização amplificadora, quer dizer, a inclusão eficaz de certos traços permite «oralizar» as cenas dialogadas. Não há réplicas sobrepostas, entrecortadas, demasiado incompletas como nos diálogos reais. Mesmo o diálogo realista e bem conseguido é uma abstracção, um simulacro de troca real, obedece às regras do texto escrito17.

Apesar destas constatações, a reprodução de discurso subordina-se às mesmas convenções, tanto na ficção como fora dela. Por outro lado, a vantagem de utilizar um corpus literário é que o contexto de cada exemplo dado é facilmente recuperável.

Há, aliás, uma diferença importante entre o grau de legitimidade de usar um corpus literário para estudar fenómenos próprios do oral, e a que assiste a um estudo sobre relato de discurso. Entre o relato de discurso (especialmente o DIL) e a Literatura há uma relação muito forte18. Basta,

17 Lecointre e Le Galliot resumem as cautelas que é preciso ter para não confundir troca real oral e diálogo literário: «Les faits d'énonciation se posent en termes différents selon qu'ils se manifestent dans le discours oral ou dans le texte écrit - et a plus forte raison dans la catégorie particulière du texte reçu pour littéraire. La situation de discours propre a l'écriture permet à la pratique scripturale de se soustraire partiellement aux contraintes de la communication, en même temps qu'elle lui attribue certains traits spécifiques. Les jeux et les masques sont autorisés par la clôture du texte et sa vertu de permanence. La constitution «lobale de la signification d'un texte est en effet un concept pertinent et opératoire dans la mesure où le texte réalisé est achronicité pure. Cette même notion cesse d'être pertinente au plan du verbal où une dynamique irréversible implique une successivité chronologique et la saisie analytique des structures de signification.» (Lecointre e Le Galliot, 1973: 64).

1 8 Adio uma referência à polémica entre os estudiosos que crêem que o DIL existe na linguagem «normal», na interacção verbal efectiva e os que afirmam que ele é um fenómeno exclusivamente literário.

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na perspectiva que agora interessa (justificar a escolha do corpus), reter uma ideia expressa por Mortara Garavelli e McHale (cf. 1978: 284)19: não é

por ser exclusivo de textos literários que o DIL tem um carácter literário20.

Muitos autores consideram o fenómeno compatível com a linguagem não literária. O DIL é literário porque a sua natureza enunciativa convoca a ficcionalidade, hoje reconhecida como um traço específico do literário.

Julgo ter justificado a escolha do corpus que sobretudo usei. Digo «sobretudo» porque também recorri pontualmente a exemplos por mim construídos (construídos, mas com a preocupação de não cair no erro de utilizar enunciados "pré-fabricados", desinseridos de um contexto, distantes da complexidade dos dados autênticos)21. Também foram utilizadas,

algumas vezes, curtas passagens de textos de imprensa em que havia relato de discurso 22.

Depois de ter decidido optar por um corpus literário, percorri, com algum método se bem que não exaustivamente, os principais marcos da narrativa portuguesa recente. Essas leituras levaram, aos poucos, à tomada de duas decisões. Por um lado, abandonei qualquer tentação de estudar relato de discurso e de procurar DIL antes de Garrett. Por outro lado, não aprofundei a análise das narrativas mais próximas de nós, em que a

1 9 É interessante que a autora italiana comece o seu estudo citando a frase de Montaigne

«Nous ne faisons que nous entregloser» (cf. Mortara Garavelli, 1985: 13). Eu retomo Mortara Garavelli, que cita McHale e Montaigne, num jogo infindável de textos sobre textos, de palavras sobre palavras.

2 0 Sem aprofundar mais, para já, a ligação DIL - Literatura, devo, no entanto, adiantar a

minha convicção de que o fenómeno é predominantemente literário e, como tal, se justifica, ipso facto, a escolha de um corpus literário para o estudar.

2 1 Espero ter podido fugir ao artificialismo de exemplos como os célebres «Édipo disse

que Iocasta era bela.», «O rei de França é calvo.» ou «Le chat est sur le paillasson.».

2 2 O relato de discurso nos textos de imprensa mereceria um estudo; mas não fazia parte

dos objectivos nem do escopo deste trabalho, pelo que só esporadicamente será referido e apenas como fornecedor de exemplos. Tenho a intenção de voltar ao assunto (de que me ocupei, embora numa perspectiva eminentemente didáctica, em Duarte, 1996) porque a imprensa está presente no nosso quotidiano, mas também porque, como preocupação subjacente, gostaria que ela também fizesse parte indissociável do quotidiano dos jovens portugueses.

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fronteira entre a voz do narrador e as das diferentes personagens aparece esbatida e não se sabe, frequentemente, quem é o reponsável por determinada enunciação. Acabei por fixar-me naquela época em que se centraram quase todos os estudos sobre relato de discurso e DIL noutras Literaturas: finais do século XIX e início do XX23, e, mais restritamente,

em Eça e em Os Maias. As leituras em extensão24 fizeram sobressair o lugar

ímpar que Eça ocupa não só na Literatura portuguesa mas, também, na Literatura universal25, constatação que reforçou a decisão de utilizar como

base a sua obra.

Na narrativa queirosiana (sobretudo em O Primo Basílio, O Crime

do Padre Amaro e Os Maias) são extremamente frequentes as passagens de

DIL e o entrançado das várias formas de relatar discurso com que se tecem essas narrativas obriga a alargar a atenção ao DD, ao Dl e a outros modos menos marcados de reprodução do discurso no discurso. Essa combinação de modos de relato é muito sugestiva e consegue transmitir com eficácia a ideia de variedade, criando, juntamente com outras estratégias adoptadas, um efeito de verosimilhança, no que toca às enunciações das personagens do romance.

Os Maias foi ocupando, portanto, no decorrer da investigação, um

lugar cada vez mais central, constituindo-se como a principal peça do

23 D e notar que Reyes utiliza narrativas das Literaturas hispano-amencanas contemporâneas, Cerquiglini refere exemplos da literatura medieval e Fludernik e Mortara Garavelli também recuam muito para lá da fronteira habitualmente traçada: La Fontaine, Jane Austen. Se os exemplos de Reyes são eloquentes, os dos restantes autores referidos não parecem muito convincentes.

2 4 Senti necessidade de acompanhar a leitura das várias obras teóricas consultadas com a leitura ou releitura, das obras literárias por elas citadas. Assim li (ou reli) alguns grandes romances estrangeiros. Não foi uma leitura com preocupações analíticas, mas apenas com o objectivo de comprovar se os fenómenos analisados eram os mesmos. A lista de romances de Literaturas estrangeiras que li (ou reli), com esta intenção, vem a seguir a bibliografia consultada.

2 5 Guerra da Cal refere justamente o pioneirismo de Eça em relação aos escritores peninsulares e mesmo da América latina.

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corpus. Quase toda a atenção se centrou neste romance de Eça, à medida que

nele ia encontrando formas cada vez mais entrecruzadas e subtis de relato de palavras, verbos introdutores originais e uma adequação perfeita entre os segmentos narrativos que antecedem ou comentam essas palavras, as próprias palavras «ditas» ou pensadas e a definição da personagem que as diz.

Se foi o estudo de Os Maias que desfez muitas das certezas que eu tinha sobre relato de discurso, se a sua leitura me levou a pôr em causa muito do que tinha lido sobre o assunto, se me fui apercebendo, à medida que a pesquisa avançava, do lugar ímpar que Eça tem no que diz respeito ao tratamento do modo de transmitir as falas das suas personagens, tinha que dar, ao relato de discurso em Os Maias, o destaque merecido.

Foi-se tornando clara, à medida que a investigação avançava, a adequação recíproca entre o corpus e a teoria. Quer dizer: o corpus serviu-me para exemplificar hipóteses mas, simultaneaserviu-mente, também suscitou questões teóricas, também despoletou certas indagações teóricas. Embora tenha utilizado o corpus no primeiro sentido referido, i. é, como lugar onde recolhi exemplos para confirmar ou infirmar hipóteses, a segunda vertente foi predominante no caso concreto desta dissertação. A análise do corpus suscitou e exemplificou questões teóricas, levou à necessidade de aprofundar o estudo dessas questões e, sobretudo, forneceu-me argumentos para apresentar novos modos de encarar a questão. A formulação de hipóteses, que envolve informação e invenção teóricas, interligou-se de forma inseparável com a pesquisa empírica, com a recolha e análise de ocorrências do corpus. Mais: foi a pesquisa empírica que direccionou o trabalho de imaginação teórica e potenciou a revisão crítica das teorias disponíveis.

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A escolha de um corpus literário como viveiro onde ir buscar as ocorrências a estudar deve-se também, entre outras razões maiores que já referi, ao facto de ser fácil recuperar o contexto envolvente de um exemplo dado, uma vez que as obras referidas neste trabalho são do conhecimento geral e as ocorrências localizáveis sem dificuldade. Os problemas de interpretação que decorrem da falta do contexto levaram-me a reduzir ao mínimo, como afirmei, o uso de exemplos construídos por mim26. Os

exemplos de relato de discurso forjados por mim bem como os que retirei do discurso jornalístico serviram apenas para completar, de forma às vezes até contrapontística, a descrição que faço do discurso relatado na ficção.

Ao eleger a ficção narrativa como cenário preferencial da pesquisa sobre discurso relatado não estou só. Bally, Genette, Banfield, Fludernik, Leech e Short, Vetters e Reyes (alguns deles assumidamente27) usam a

ficção narrativa como corpus. Não pode em rigor falar-se de discurso relatado na ficção narrativa, a não ser que se aceite o quadro próprio da ilusão narrativa, como faço. Na verdade, o narrador não relata, com maior ou menor fidelidade, palavras anteriormente ditas. As palavras «relatadas» têm um estatuto igual ao do discurso citador. Só se pode, neste caso, falar em fidelidade e reprodução de discurso enquanto convenções literárias. O discurso narrativo citador e os enunciados relatados têm o mesmo estatuto de realidade, ou melhor, de ficcionalidade.

Cada ocorrência exige que a analisemos de múltiplos ângulos: quer quanto à forma (se é feita em DD, Dl ou DIL, para referir apenas as mais

2 5 Os exemplos forjados pelo investigador, além de serem amputados de qualquer contexto, são sempre mais artificiais do que ocorrências reais (e as ocorrências recolhidas na ficção também são reais). Ora a relação entre as ocorrências de relato de discurso e o contexto é fundamental para o seu estudo.

27 Quer o subtítulo do livro de Reyes 1984 («La Citación en el Relato Literário») quer o título de Fludernik 1993 (The Fictions of Language and the Language of Fiction) remetem explicitamente para esta opção pelo literário como espaço privilegiado de pesquisa em torno do relato de discurso.

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conhecidas), quer quanto à eventual função28, quer quanto à atitude do

relator, quer quanto à situação de enunciação em que se encaixa. Se estivermos perante relato de palavras em textos de ficção narrativa (o que acontecerá a maior parte das vezes), outros motivos de análise vêm juntar-se aos anteriores: o grau de oralização dessas palavras, ou juntar-seja, «le lien entre la parole des personnages et le réfèrent "non-fictif» (Durrer, 1994: 36), o tom e a verosimilhança das palavras, o encadeamento das diferentes réplicas (como se entrosam umas nas outras e quais são os actos de fala predominantes, como acaba a troca), as divergências entre conversa real e diálogo de ficção29, a importância dos diálogos na progressão diegética, as

relações de interlocução mantidas pelas diferentes personagens, a interligação entre os diálogos de ficção e os textos narrativos em que se encaixam, entre outros. Em relação aos enunciados relatados, importa perceber a quem devemos atribuir a responsabilidade de cada enunciado, de que modo o relator faz referência à situação de enunciação inicial, em que medida tenta restitui-la de forma aproximada ou, pelo contrário, reinterpretá-la, condensando-a ou resumindo-a30.

Não quero terminar esta referência ao tratamento do corpus e à metodologia utilizada sem esclarecer que só em casos pontuais recorri, no âmbito deste trabalho, à estatística das ocorrências encontradas. As

2 8 A diferença entre usos de DD, Dl e DIL pode ser relacionada, de acordo com Fludernik, com o facto de se estar a representar linguagem ou a representar pensamentos (cf. Fludernik, 1993: 5). Para a transmissão destes é mais adequado o DIL, pelo menos segundo a opinião de Banfield ((1982) 1995). Embora, se tomarmos como exemplo Eça, o DIL relate sobretudo palavras, é verdade que o Dl se utiliza menos para a representação de pensamentos e os verbos que o introduzem se adaptam bem ao relato de actos de fala (como se verá na II Parte).

2 9 A consideração das potencialidades pedagógicas do confronto entre uma conversa real e um diálogo de ficção, já abordadas em Duarte, I. M. (1994), será desenvolvida na III Parte.

3 0 Segundo Beltrán Almería, para estudar um enunciado citado, dever-se-ia «determinar el tipo de discurso o los fenómenos de heterogeneidad, ver como funciona, la naturaleza de sus marcas y orígenes, la naturaleza de sus modalizaciones, de sus aspectos temporales y de sus referencias.» (Beltrán Almería, 1992: 17).

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contagens não são um fim em si, mas um suporte. Não me parecem, excepto em situações específicas31, de muita utilidade num trabalho da natureza

deste. Aliás, nem tal seria possível, à luz dos critérios básicos das abordagens quantitativas: de facto, dificilmente se encontrariam unidades de registo mais específicas do que os próprios textos e seria arbitrário estabelecer uma equivalência estatística entre unidades que não são nem literária nem linguisticamente equivalentes. Posso servir-me, como argumento a favor desta opção, de uma passagem de Monika Fludernik em que ela justifica uma atitude semelhante: «Statistics typically take individual occurrences of certain phenomena out of context. Since the present study attempts to document the crucial importance of context for the purpose of the even preliminary establishment of basic categories, a statistical approach would from the outset have vitiated one of the major aims of the project.» (Fludernik, 1993: 9).

3. Objectivos e estrutura do trabalho

Em estreita ligação com o que fica exposto, vou enunciar, em síntese, os objectivos da presente dissertação:

1 - Passar em revista, criticamente, o que se tem escrito sobre as diferentes formas de relato de discurso (sobretudo na ficção narrativa), i. é, sobre os diversos modos de um discurso citar outro;

2 - alargar a noção de citação, de modo a ultrapassar a descrição tradicional de DD, Dl e DIL, descrevendo, com particular atenção, o fenómeno DIL, sublinhando que (i) não é uniforme e não é somente um modo de relato de discurso e (ii) é explorado de modo privilegiado no discurso literário;

31 Só no capítulo 3. da II Parte, quando me ocupei dos verba dicendi em Os Maias, fui obviamente obrigada a contabilizar ocorrências.

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3 - contribuir para um melhor conhecimento do romance Os Maias, a partir do estudo aprofundado das formas de relato de discurso, sobretudo na ficção narrativa;

4 - estudar os verbos que introduzem relato de discurso no romance

Os Maias;

5 - retirar, do estudo feito, consequências pedagógicas susceptíveis de alguma aplicabilidade, em dois aspectos fundamentais: quanto ao tratamento didáctico do relato de discurso e quanto à importância de uma abordagem pedagógica do relato de discurso em Os Maias, para um entendimento mais profundo do romance.

Resta-me apresentar o plano da dissertação que dividi em três partes: Na I Parte - em que me ocuparei das diferentes formas de relatar discurso - , introduzo, num primeiro capítulo, o problema do relato de discurso; no segundo, passo em revista as duas formas canónicas de relato, o DD e o Dl. Apresento cada uma dessas formas de relatar discurso revendo, criticamente, o que sobre elas vem sendo escrito, acrescentando as reflexões que eu própria fui fazendo com base nos textos; no terceiro capítulo, estudo o DIL e, no quarto, analiso outros modos menos marcados de relatar discurso.

Na II Parte, no capítulo 1., centro a minha reflexão na relação entre relato de discurso e ficção literária (com especial atenção ao caso do DIL); no segundo capítulo, estudo a especificidade de Os Maias no âmbito do relato de discurso; no terceiro, debruço-me sobre os verbos introdutores de relato de discurso no romance de Eça.

Na III Parte, de carácter mais aplicado, depois de um primeiro capítulo em que refiro a inseparabilidade entre Linguística, Literatura e Didáctica no âmbito do problema em estudo, dedicar-me-ei a mais duas questões: no capítulo 2., exemplificarei, com a abordagem do relato de

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discurso pela gramática escolar, o meu modo de entender e praticar o relacionamento entre teoria e didáctica; no terceiro capítulo, ocupar-me-ei de modos de exploração didáctica de Os Maias, mormente no que concerne à questão do relato de discurso.

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CAPÍTULO 1.

Perspectivas de análise do relato do discurso

«Desde el punto de vista de su valor referencial, toda cita es una representación de palabras: es la imagen de un discurso o de un aspecto de un discurso [...].»

Graciela Reyes, Los Procediminetos de cita: estilo directo y estilo indirecto

É uma constante de qualquer discurso citar palavras de outros ou de si próprio, de modo directo, indirecto, ou através de formas mais subtis e menos visíveis, como alusões, ecos irónicos, negação, reprodução de léxico alheio, pressuposições, etc. É difícil falar das coisas, das pessoas, dos acontecimentos reais ou fictícios sem ter em conta o que sobre eles ou neles foi dito. O próprio acto de dizer é um acontecimento que se pode narrar. Por isso a actividade discursiva é predominantemente citacional. Quer se trate do discurso literário quer de uma conversa real, espontânea, reproduzimos permanentemente palavras ditas1. Citar significa, segundo

Graciela Reyes, «[...] construir una representación de palabras ajenas transponiéndolas de un sitio a otro (de un discurso a otro).» (Reyes, 1993:

if.

1 Bakhtine afirma que «[...] dans le parler courant de tout homme vivant en société la moitié au moins des paroles qu'il prononce sont celles d'autrui (reconnues comme telles) transmises à tous les degrés possibles d'exactitude et d'impartialité (ou, plutôt, de partialité).» (Bakhtine (1975) 1978: 158).

2 Nem sempre se trata, na citação, de relatar palavras alheias. É frequente referirmos palavras que nós próprios usámos, usaremos ou poderíamos ter usado.

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A expressão «construir una representación de palabras» tem bastante importância para a tese que vou procurar defender. A citação é uma espécie de imagem (sempre incompleta e pouco fiel) de outro discurso, realmente proferido ou imaginado, antecipado, construído. Se é verdade que a citação pressupõe duas situações de enunciação, já não é tão certo que o segundo enunciado retome palavras ditas no primeiro, como sugere a visão tradicional sobre o relato de discursos. Mesmo nos casos, talvez mais frequentes, em que a enunciação citadora retoma palavras proferidas anteriormente, é raro que o relator, ao reproduzi-las, o faça de forma literal. O que é normal é que o relator reproduza o enunciado ouvido em função da significação que lhe conferiu tendo em conta não apenas as palavras ditas mas também a interpretação que delas faz à luz das circunstâncias da enunciação. A compreensão de um enunciado é um mecanismo de grande complexidade, implicando uma reformulação interior e pessoal, uma reestruturação do enunciado4. Para citar um

enunciado é preciso reformulá-lo interiormente. Por isso subscrevo o termo «representação» que Reyes usou a propósito da citação , ainda que reconheça que terá sempre de haver, entre texto citador e texto citado, pontos de contacto, aproximações e semelhanças .

Importa também considerar que a citação é um modo de coexistência da heterogeneidade explícita, marcada, facilmente delimitável e

3 Pode não ser «ouvido» mas lido ou apenas imaginado, no caso de estarmos perante a antecipação de relato.

4 Cf. Gauvenet(1976: 11).

5 Num estudo publicado um ano depois, Reyes reafirma a sua posição, definindo a citação como uma «[...] representación linguística de un objeto también linguístico.» (Reyes, 1994: 9).

6 Como A. P. Loureiro afirma: «A relação entre discurso citado-representação e discurso citado-original tem a ver com a relação entre discurso citado e discurso citador. É uma relação triangular, em que o discurso citador tem como objecto de comunicação o discurso citado-original e como produto de análise o discurso citado-representação e em que entre discurso citado-original e discurso citado-representação há logicamente uma relação com um qualquer grau de mimesis.» (Loureiro, 1997: Anexo 1, p.II).

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identificável com a heterogeneidade constitutiva de qualquer discurso. O relato de discurso é uma forma de dizer que o outro não está, no discurso, em todo o lado, mas apenas em certas zonas delimitadas, circunscritas: «Pris dans "l'indépétrable" étrangeté de sa propre parole, le locuteur, lorsqu'il marque explicitement, par des formes de la distance, des points d'hétérogénéité dans son discours, y délimite, y circonscrit Vautre, et ce faisant, affirme que Vautre n'est pas partout.» (Authier-Revuz,1982: 144). O outro está delimitado, de múltiplas formas, no discurso que relata as suas palavras.

Este capítulo procurará passar em revista algumas questões básicas sobre relato de discurso, tendo em conta as opiniões de vários autores sobre o assunto.

Na história da reflexão sobre o relato de discurso devem distinguir-se três momentos fundamentais:

- o primeiro diz respeito aos ensinamentos da gramática tradicional e às suas conhecidas limitações;

- o segundo inclui estudos como os de Bally, Lips, Jespersen ou Bakhtine, nas primeiras décadas deste século, que vêm trazer novo fôlego ao problema;

- o terceiro, finalmente, inclui estudos mais recentes que, na esteira da abertura de caminhos feita pelos referidos autores, enquadra definitivamente esta questão no âmbito da teoria da enunciação, explorando, de modo extremamente fecundo, as virtualidades de uma análise feita a essa luz.

Ao seguir estes momentos, não farei uma separação muito estanque entre o que costuma chamar-se «revisão do estado da questão» e a reflexão crítica própria. Tal separação parece-me muito artificial: são as leituras que desencadeiam reflexões críticas e a decorrente necessidade de verificar,

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nos textos analisados, a sua pertinência, maior ou menor. Esta síntese geral do que de mais importante tem sido escrito sobre o relato de discurso, será feita, portanto, numa perspectiva crítica, isto é, as concepções teóricas sintetizadas são filtradas, de certo modo, pela reflexão que eu própria fui fazendo sobre o assunto e que foi desencadeada quer pelas leituras quer, sobretudo, pela análise do corpus.

1.1. A tradição gramatical: uma visão redutora

Embora a gramática tradicional se tenha ocupado desde há muito da questão do relato de discurso, a perspectiva em que o faz é estritamente sintáctica. Basicamente, o que a tradição gramatical e o que o «senso comum» escolar dela derivado afirmam acerca do relato de palavras pode resumir-se ao seguinte: há dois modos diferentes, mas relacionados, de reproduzir palavras de outros; um desses modos, que é o mais simples e respeita fielmente o original, transcreve as palavras ditas: trata-se do DD; o outro, derivado e complexo, obtém-se pela aplicação, ao DD, de alterações morfossintácticas resultantes, em parte, da subordinação.

Os exercícios que decorrem desta descrição do fenómeno da reprodução de discursos reduzem-se a transformações de DD para Dl, seguindo umas quantas regras morfossintácticas que as gramáticas expõem, normalmente, do seguinte modo7: o presente passa para imperfeito, o pretérito perfeito para mais-que-perfeito e o futuro para condicional; a

primeira e segunda pessoas para terceira (ou, noutras versões, a segunda pessoa passa para primeira); o demonstrativo «este» passa a «aquele», o «hoje» a «naquele dia», etc8.

7 No capítulo 2. da III Parte, transcrevo, de uma gramática escolar, um quadro em que estão resumidas estas regras.

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Algumas gramáticas acrescentam uma referência, geralmente breve e imprecisa, ao DIL que, quando referido, é considerado uma forma de Dl aligeirada pela inexistência de subordinação, sendo o seu estudo remetido para a estilística por ser tido como uma forma literária.

Esta visão gramatical tradicional permanece em obras relativamente recentes, como por exemplo os dicionários de Linguística organizados quer por Ducrot e Todorov (1972), quer por J. Dubois (1973).

No dicionário organizado por Ducrot e Todorov, lê-se: «Décrire le fait même de renonciation donne lieu au discours rapporté; suivant que certaines transformations grammaticales ont été effectuées ou non, on parle

de style indirect ou de style direct.» (Ducrot e Todorov, 1972: 386). O DI

resultaria, portanto, de transformações gramaticais, subentendendo-se que o DD corresponderia à própria enunciação inicial sem qualquer modificação.

No dicionário de J. Dubois, na entrada «Discours direct, indirect», já surge com relevo a referência ao DIL. Mas atente-se, no extracto transcrito a seguir, nas expressões «les substitutions» e «on supprime» que são eloquentes quanto à visão segundo a qual DD e Dl são os discursos a partir dos quais se obtém o DIL, forma derivada, substituindo os dícticos do DD por anafóricos na transformação do DD em Dl e suprimindo, depois, o subordinate típico de Dl, para conseguir o DIL: «Le français a aussi ce qu'on appelle le discours indirect libre. Les substitutions de pronoms et de referents je/ici/maintenant étant éfectuées, on supprime (on n'exprime pas) le subordonnant introduisant le discours indirect proprement dit. Des exemples de ce qui est un tour de la langue courante sont très fréquents chez LA FONTAINE, qui mêle volontiers dans un souci stylistique discours direct, discours indirect et discours indirect libre:

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Était au premier occupant. «C'était un beau sujet de guerre

Qu'un logis où lui-même il n'entrait qu'en rampant. Et quand ce serait un royaume

Je voudrais bien savoir, dit-elle, quelle loi En a pour toujours fait l'octroi

A Jean, fils ou neveu de Pierre ou de Guillaume, Plutôt qu'à Paul, plutôt qu'à moi.»"

Les deux premiers vers sont au discours indirect. Le troisième et le quatrième sont au discours indirect libre: il suffit de mettre que devant

c'était et on retrouve le discours indirect auquel tout le reste (temps,

pronoms) est conforme.» (Dubois, J., 1973: 159).

Esta concepção tradicional é redutora9 por dois motivos principais:

por um lado, o DD não é o discurso originário e fiel do qual, por transformação, derivaria o Dl; por outro, ao fazer tábua rasa do contexto de enunciação das frases a modificar, as regras prescritas tornam-se, muitas vezes, falsas. Acresce, ainda, que há muitas outras formas de relatar palavras. Como veremos, só no âmbito da teoria da enunciação se podem formular correctamente regras que regulem a eventual transposição de DD para Dl. Como as visões mais recentes fazem uma crítica bem fundamentada à gramática tradicional, deixarei a explanação destas e de outras inadequações para o ponto 1.3. em que me ocuparei, justamente, do modo como autores mais próximos de nós encaram o relato de discurso.

1.2. Um novo fôlego: a transição

Os textos que Ch. Bally publicou a partir de 1912 são uma referência obrigatória, quando se pretende analisar o problema do relato de discurso e

9 E, por ser redutora, no âmbito teórico, revela-se pouco produtiva na didáctica, como tentarei mostrar na III Parte.

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fazer, ainda que de modo sumário, a história desta questão, particularmente no que toca ao estudo do DIL como forma de relato a merecer tanta atenção como o DD e o DL Bally estudou o fenómeno com um novo olhar e muito do que escreveu contém em gérmen o que outros investigadores virão a dizer várias décadas mais tarde.

Bally nota que também o francês possui, à semelhança do alemão, «un style indirect libre non conjonctionnel» (Bally, 1912: 550) que as gramáticas teriam ignorado completamente porque, baseando-se, normalmente, na descrição da língua clássica, não teriam deparado com tal forma senão como excepção. Ora, na opinião do autor, teria sido, justamente, na língua literária «de ces cents dernières années» (ibidem) que

o DIL se teria desenvolvido. Tal estilo dá, segundo Bally, a ilusão do DD, mas transpondo palavras e pensamentos através do uso dos tempos verbais próprios do Dl.

O afastamento do DIL em relação ao Dl e na direcção do DD é, para o autor, progressivo: a primeira ou as primeiras proposições relatadas seriam introduzidas por conjunções, como acontece no Dl mas, a estas, seguir-se-iam outras, nelas encadeadas, que já não possuiriam conjunção. Bally dá, aliás, muitos exemplos deste processo que, quanto a ele, é uma explicação possível da génese do DIL.

No âmbito da génese do DIL, é importante sublinhar uma breve referência feita por Bally a uma eventual origem «oral» do fenómeno, ou pelo menos, ao facto de a oralidade dispensar, mais do que a escrita, a subordinação. Ora essa ausência de subordinação é uma característica do DIL. E, como afirma Bally, «la syntaxe littéraire contemporaine se rapproche toujours davantage de la syntaxe parlée.» (ibidem: 603). Radicaria nesta tendência da «sintaxe literária» para se apropriar de traços próprios da «sintaxe falada» o aparecimento do DIL. Mais: o DIL seria

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mesmo um bom argumento para provar como, ainda quando tenta imitar a fala, a linguagem escrita se distingue dela. Por isso, tal como Hamburger e Genette (entre outros) defenderão mais tarde, o DIL é uma espécie de indício estilístico da linguagem literária.

Por outro lado, Bally observa e ilustra com exemplos que o verbo introdutor (o qual, segundo ele, na maior parte dos casos, não existe ou, frequentemente, se situa numa oração intercalada) não se integra, por vezes, no âmbito dos verbos «de pensée ou d'expression» que a sintaxe clássica exigiria como introdutores de relato .

É também de sublinhar, como uma intuição interessante, o facto de Bally chamar a atenção, de forma incisiva, para o deslizar das passagens de relato em DIL para DD ou em sentido contrário. Mais ainda. O autor refere a repartição do DD e do DIL nos diálogos como, na II Parte, a minha análise de Os Maias exemplificará: as palavras de uma personagem são relatadas em DD e as da outra em DIL. Isto é possível porque o DIL é relativamente «fiel» na reprodução de palavras e pensamentos: conserva «aisément les signes extérieurs de l'expression parlée (exclamations, particules, vocatifs, appellations, jurons, etc.)» (ibidem: 605, nota 1).

Bally intui também, com perspicácia, que «dans les cas extrêmes, ceux où l'indépendance du verbe indirect est complète, on ne peut même parler de style indirect; il s'agit plus généralement d'un aspect subjectif de la pensée.» (ibidem: 601). Esta passagem, referindo casos em que parece já nem haver relato de discurso, remete para aquela forma que, no capítulo 3., excluirei da designação DIL e permite vislumbrar que também Bally se debateu, ainda que embrionariamente, com a velha polémica de saber se o DIL é relato de palavras ou faz parte da narrativa pura (ou seja, do que

10 Na II Parte, capítulo 3., voltarei a considerar, de modo mais desenvolvido, esta opinião de Bally no que respeita aos verbos que «introduzem» relato em DIL.

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Banfield veio a chamar, várias décadas mais tarde, «unspeakable sentences»)11.

Muito do que depois de Bally se disse sobre DIL foi para contestá-lo, concordar com ele ou desenvolver ideias suas apenas sugeridas, pistas contidas, em gérmen, no texto pioneiro a que me reporto. Daí a sua importância ímpar para o assunto em estudo12.

Tem também um carácter decisivo para a renovação do estudo do relato de discurso (que insere no contexto mais vasto da polifonia), Bakhtine e a sua noção, hoje célebre, de dialogismo. Bakhtine acentua que o discurso se constrói com outros discursos, que o enunciado não existe sozinho, isolado, amputado da sua situação própria, mas, pelo contrário, se relaciona com os outros enunciados: «L'interaction verbale est la réalité fondamentale du langage. [...] toute communication verbale, toute interaction verbale se déroule sous la forme d'un échange d'énoncés, c'est-à-dire sous la forme d'un dialogue.» (Bakhtine (1930), 1981: 292).

Bakhtine pôs directamente em causa, de modo fecundo, as «velhas» teorias sobre relato de discurso, afirmando que a polifonia é constitutiva de qualquer enunciação13. Torna-se evidente e irrecusável, a partir da teoria

1 ! Unspeakable Sentences é o título da obra mais conhecida de Banfield ( 1982).

12 Também Jespersen (1924), aproximadamente pela mesma época, se ocupou da citação

em DD, Dl e DIL. Entre outros méritos, teve o de mostrar que a maior parte das regras de transposição de DD para Dl não estavam correctas e de propor outras, mais difíceis de formular, mas que, tendo já em conta a situação de enunciação em que os discursos são produzidos e a influência decisiva dessa situação no relato que se faz de um discurso, antecipam uma linguística da enunciação.

1 3 Como reconhece Cerquiglini: «La parole humaine est pour lui [Bakhtine] tissée du

discours d'autrui. Rapporter les mots de l'autre est le thème majeur de la conversation, qui emploie pour cela un ensemble de procédés que l'on ne saurait limiter aux «poncifs» des styles directs et indirects.» (Cerquiglini, 1984: 1).

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bakhtiniana, que DD, Dl e DIL são apenas uma parte, codificada por regras gramaticais, de um conjunto de fenómenos polifónicos .

Bakhtine foi um dos estudiosos que mais contribuiu para o interesse que o relato de discurso, nomeadamente o DIL tem suscitado. Escreve, em 1929, em relação ao DIL, que não é apenas o conteúdo semântico mas é também «la structure de renonciation rapportée» (Bakhtine (1929) 1977: 162) que se conserva relativamente estável neste tipo de discurso. O autor pensa que, pelo menos no caso do francês, o DIL está muito próximo do Dl, pelo facto de adoptar o mesmo sistema deste quanto à pessoa gramatical e ao tempo verbal. Mas sublinha que o DIL é o caso «mieux fixé syntaxiquement (en tout cas en français) de convergence interférentielle de deux discours orientés différemment du point de vue de l'intonation» (ibidem: 189). Afirma15 que o DIL retém o «tom» e a ordem das palavras do DD e os

tempos verbais e a pessoa do Dl (cf. ibidem: 195).

A enunciação pertenceria, nos termos de Bakhtine, ao «herói» e ao autor em simultâneo: ao autor do ponto de vista gramatical e ao «herói» quanto ao sentido. Seria uma mistura de discurso narrativo e relatado: o facto de o narrador utilizar o imperfeito e pronomes próprios do Dl revelaria que conserva uma posição autónoma e preponderante, apesar de usar traços do discurso da personagem. Sempre segundo Bakhtine, o DIL transmite uma «orientação activa» do discurso alheio, criando uma zona de interacção entre palavras relatadas e enunciação relatora (cf. ibidem: 213), sendo o tipo mais nítido de fusão de dois actos de fala, com orientação distinta, e revelando uma interferência muito marcada entre as entoações do

14 A obra de Bakhtine só teve as repercussões devidas, neste âmbito, muito tarde, uma vez que o livro de 1929 só foi traduzido para inglês em 1973 e para francês em 1977.

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«herói» e o discurso narrativo. Estava aberto caminho para outras abordagens.

Os estudos literários cedo se aperceberam da importância de algumas vertentes do relato de discurso (nomeadamente do DIL), no âmbito da ficção narrativa. A síntese constituída pela análise de Genette em Figures

III16 está ainda próxima do modelo explicativo da gramática tradicional. A

descrição de Genette, feita no âmbito da narratologia, pode ser aplicada tal e qual ao discurso não literário, às conversas «reais»17, bastando que se

substitua a designação narrador por um termo como relator, ou locutor citador e que, em vez de personagem, se fale em locutor citado, enunciador das palavras relatadas ou outra expressão equivalente.

O autor aproxima o DD da mimese platónica e o Dl da narrativa pura. Referindo-se à narrativa de palavras, nesse estudo já clássico, o autor considera três estados do discurso de personagens, ainda aceites por muitos estudiosos do relato do discurso.

Genette hierarquiza os três modos de (re)produção de discurso de acordo com a sua maior ou menor capacidade de mimese: o discurso narrativizado criaria menos ilusão de real do que o Dl, este menos do que o DIL e seria o DD a conseguir uma maior proximidade ao real.

O discurso narrativizado («discours narrativisé») ou contado seria o mais redutor, já que não reproduz nenhum texto original. O narrador conta que foram ditas palavras, mas não refere o respectivo conteúdo ou, no caso

16 Cf. 1972: 183-203.

17 Sempre que utilizo «real» por oposição a fictício, faço-o com alguma incomodidade teórica. É que os discursos fictícios também são reais. Basta serem ditos para existirem. Aquilo a que me refiro passa a existir devido, exactamente, ao acto de referência. Quando escrevo «real», quero dizer sério. Mas este adjectivo parece-me ainda mais infeliz. Sugere, por contraposição, que o que é fictício não é a sério, é a fingir. Ora a ficção tem, a meu ver, um estatuto de seriedade pelo menos igual ao dos enunciados não fictícios, (cf. a crítica que F. I. Fonseca faz a Searle em (1990) 1994).

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de o fazer, resume, abrevia, menciona apenas o assunto de que se falou. Há uma distância considerável entre a instância que conta e os acontecimentos narrados (que, por acaso, são palavras). Não existe reprodução de discurso mas a sua existência é apenas mencionada.

O discurso transposto («discours transposé») é uma designação em que Genette inclui Dl e DIL. O Dl representaria uma condensação, uma reinterpretação em nada fiel às palavras realmente ditas. O narrador, ao transpor as palavras para a oração subordinada, reformula e resume, no seu estilo próprio, o que o locutor cujo enunciado se relata teria dito (cf. Genette, 1972: 192). Entre a realidade das palavras supostamente pronunciadas pelas personagens e a «transcrição» que o narrador delas faz, vai a distância criada pela linguagem, pelo ponto de vista, pela sintaxe do próprio narrador.

1 Q

Quanto ao DIL, permitiria, por não ter verbo de comunicação nem subordinação, alguma emancipação do discurso «inicial» em relação ao do narrador: a personagem fala pela voz do narrador (cf. Genette, 1972: 194).

No DD, a que Genette chamou «discours rapporté», mais mimético, o narrador finge ceder literalmente a palavra à personagem.

É verdade que o autor de Figures III alerta para o facto de as diferentes formas de relatar discurso que distingue, em teoria, se não separarem de forma tão nítida, nos textos (cf. Genette, 1972: 194). As barreiras não são tão indestrutíveis quanto parecem19. Basta atentar num

breve exemplo do início do capítulo IV de Os Maias, para dar razão às cautelas de Genette e mostrar que temos de deixar falar os textos, com a sua

18 Como procurei já mostrar (Duarte, I. ML, 1995 a), não é verdade que o DIL exclua totalmente o verbo de comunicação. Veremos, na II Parte, muitos exemplos em que verbos dicendi antecedem DIL.

19 Este reparo acertado terá sido esquecido pelos autores que retomam e adoptam a sua teoria.

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geometria variável, contra a rigidez algo falseadora de algumas descrições gramaticais:

«Carlos ia formar-se em Medicina. E, como dizia o Dr. Trigueiros, houvera sempre naquele menino realmente uma

"vocação para Esculápio"». (cap.IV)

É difícil decidir, à luz da teoria de Genette, se as primeiras frases do capítulo IV de Os Maias estão em DD, em Dl, em DIL ou em discurso narrativizado. Provavelmente, não encaixam em nenhuma destas designações.

Por outro lado, a ideia de que haveria um paralelo entre forma e função, sendo os relatos mais directos os que teriam um efeito mais mimético - outro ensinamento de Genette -, é também discutível. Creio que nem sempre é o DD o mais mimético em relação às palavras que se querem relatar. Como veremos na II Parte, de modo mais desenvolvido, no caso específico do discurso de personagens, em Os Maias, o «efeito de real» é, por vezes, mais eficazmente conseguido pelo DIL e até, também, por formas de Dl das quais não estão ausentes palavras soltas, expressões e modos de falar das personagens. Até o discurso narrativo consegue, em certos casos, ser mimético, no sentido em que parece copiar a fala corrente, incluindo registos oralizantes e menos vigiados20.

2 0 O exemplo que transcrevo, nem sequer é um caso de relato de discurso, mas de narração «pura». Trata-se de Cinco Réis de Gente, de Aquilino Ribeiro, em que muitas passagens de narrativa conseguem efeitos miméticos quer pela inclusão de vocabulário próprio de registos menos vigiados, quer pelas construções sintácticas características da oralidade, entre outros processos. Contando o desgosto da Tia Custódia, desfigurada pela varíola, no momento mais auspicioso da sua juventude, o protagonista, que é também narrador, «diz»:

«Tangiam para o coro, faltava; lições, nunca mais abriu um livro; obras de mãos era a fingir que pegava na agulha; [...] ». Vários elementos miméticos desta curta passagem lembram a linguagem oral. A circunstância de tempo é sugerida, muitas vezes, no discurso quotidiano, por construções como «tangiam para o coro, faltava», equivalente a «quando tangiam para o coro,

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1. 3. Pontos de vista mais recentes

O alargamento desta problemática ao âmbito da enunciação e a sua consideração como uma questão que não pode ser estudada como mera transposição sintáctica analisada ao nível da frase foi um progresso teórico com resultados muito positivos. Como acentua Mortara Garavelli, «Studiare un fatto linguistico in quanto fatto comunicativo comporta, fra 1'altro, che si prenda in esame la situazione di discorso, ritenendo pertinenti alia descrizione linguistica catégorie pragmatiche quali parlante,

ascoltatore o interlocutor e, luogo, tempo, modo delVinterazione.»

(Mortara Garavelli, 1985: 36). Mas esta perspectiva enunciativo-pragmática também fez ressaltar uma grande complexidade que dificulta a sistematização. O progresso na forma como os pontos de vista mais recentes encaram a questão do relato de discurso prende-se, talvez, entre outros factores, com a integração teórica não só na problemática da teoria da enunciação como na linguística de texto/discurso. Isto porque o relato de discurso é um fenómeno que põe em causa não apenas aspectos morfossintácticos e que não se pode equacionar só a nível da unidade frase.

Na esteira de estudos precursores como os de Bally e Bakhtine, autores mais recentes radicalizam a crítica às concepções da gramática tradicional sobre relato de discurso. Como denominador comum à quase

faltava». Nas duas orações seguintes, as topicalizações («lições, nunca mais abriu um livro» «obras de mãos era a fingir que pegava na agulha») põem em -evidência os assuntos sobre que se vai falar. A aparente não concordância de número entre «obras de mãos» e «era» caracteriza os registos orais familiares. A imbricação de vários registos sugere a existência de diferentes enunciadores cujas enunciações se entrecruzam. Tive também ocasião de chamar a atenção para as características miméticas que surgem, inesperadamente (se se pensar no que costuma dizer-se sobre Dl), na seguinte passagem do conto «A Estrela», de Vergílio Ferreira, em que o pai do protagonista «[...] lá ia perguntando também quem teria sido o sacana que empalmara a estrela». (Cf. Duarte, I. M.,°1995 b: 210.)

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totalidade dos autores que mais amplamente se têm debruçado sobre o estudo de relato de discurso, há certos pontos assentes relativamente à necessidade de combater e destruir determinados preconceitos tradicional e escolarmente enraizados. Dentre esses estudos mais recentes, vou centrar-me nos de Jacqueline Authier-Revuz (1977, 1978, 1982, 1984, 1992) Gradeia Reyes (1984, 1993, 1994), Mortara Garavelli (1985), Beltran Almería (1992), Monika Fludernik (1993) e Cari Vetters (1994), situados no âmbito de uma linguística da enunciação. Tentarei fazer uma apresentação que, não sendo exaustiva, possa focar os principais contributos para a minha visão sobre o tema em estudo.

Os autores referidos encaram o problema do relato de discurso tendo em conta os vários elementos que configuram a enunciação (quer a do discurso a relatar quer a do discurso relator) e a descrição das marcas do acto de enunciação no próprio enunciado, no produto dessa enunciação.

Situam-se, pois, numa fase posterior ao estruturalismo linguístico que não tinha dado, pelo seu lado, grandes contributos à análise do problema em questão21. Diferentemente do estruturalismo, as abordagens

enunciativas reintroduzem o sujeito falante na teoria linguística e exprimem-se em termos de actividades, de processos, de operações. O sujeito falante deixa, nas suas produções verbais, a marca da sua actividade. A teoria da enunciação está atenta a essas marcas, orientando-se para uma problemática da interlocução.

21 Segundo Beltrán Almería, para os estruturalistas (que não avançaram praticamente nada nesta matéria) «la cuestión es saber cuantas posibilidades sintácticas caben en la

lengua para expresar discurso ajeno. La posición clásica concibe três vias: discurso

directo, discurso indirecto y discurso indirecto libre.» (Beltrán Almería, 1992: 14). Como alternativa a este modelo, a solução seria, para alguns linguistas, a multiplicação das opções sintácticas. Verei, mais à frente, hipóteses de tentar ultrapassar o impasse estruturalista de que o próprio Genette (cujo pensamento, apesar de tudo, teremos de incluir no reduccionismo da visão tradicional), se tinha já, em parte, dado conta.

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No âmbito deste enfoque teórico, o primeiro dos preceitos da gramática tradicional a ser posto em causa é o de se considerar que o DD reproduziria fielmente o discurso que cita. Na verdade, o DD não reproduz

fielmente o discurso citado. Mesmo quando o DD transcreve, ipsis verbis,

as palavras realmente ditas (o que é raro, aliás), bastaria a inclusão do discurso a relatar num outro contexto enunciativo diferente daquele em que surgiu originalmente, para já não se poder falar de reprodução fiel. Graciela Reyes escreve, a tal respeito: «Toda cita directa, incluso la más literal, es un simulacro, una imagen hecha a semejanza de otra cosa, nunca completamente igual a su modelo. Solo por desplazarse de contexto, el texto citado se altera irremediablemente.» (Reyes, 1993: 24)22.

Quer o discurso citado em DD tenha sido realmente produzido, ou seja só imaginário ou antecipado, é, quase sempre, um discurso reconstruído que imita, com maior ou menor fidelidade, aquele que se pretende citar. Fludernik assenta o seu paradigma explicativo na ideia de que as instâncias de representação de discursos são inventadas «according to strategies of typicality and formulaicity» (Fludernik, 1993: 2). Embora reconheça a existência de reproduções textuais de enunciados, considera que essas não são «the most mimetic, unmarked form of speech report»,

"~ E o facto posto aqui em relevo por Reyes que explica por que razão pode ser considerado «deturpação» do discurso citado o processo, muito frequentemente usado no discurso jornalístico, que consiste em retirar um enunciado do seu contexto alterando-lhe o significado inicial. A coluna do jornal Público «Diz-se...» é um exemplo do que se afirma. Apontarei, dessa secção, um caso concreto, em que a extracção de uma passagem de um texto lhe modificou grosseiramente o sentido. De uma crónica de Clara Ferreira Alves da revista do semanário Expresso (de 16.09.95) foi retirado um excerto em que a cronista relatava palavras de desabafo que lhe teriam sido ditas pela sua «manicure». Descontextualizadas, no «Diz-se...», com o nome da autora imediatamente a seguir à citação, tais palavras são, fatalmente, atribuíveis à própria Clara Ferreira Alves, mesmo pelo leitor mais competente. Pelo facto de o «desabafo» ser desajustado na boca da jornalista, a intenção satírica de quem retirou a citação do Expresso é notória, mas

Referências

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