PARTE 1
(Raquel)
No Grupo
Quando naquela sexta-feira cheguei pela primeira vez ao clube, arrastada pela Sílvia, fiquei um pouco apreensiva. Aquela velha sala não era um espaço propriamente confortável, e a frequência que encontrei era predominantemente masculina e numa faixa etária superior ao que imaginara.
- Esta é a Raquel, uma amiga minha – disse a Sílvia – e eu convenci-a a vir até cá para conhecer o clube e, se gostar, passar a vir mais vezes.
Deram-me as boas vindas com educação e alguma curiosidade. O mais desempoeirado foi o Carlos, que logo se aproximou e estendeu a mão com um sorriso simpático:
- Então seja muito bem-vinda. É sempre um prazer ver mais uma cara feminina e bonita neste antro machista a caminho da senilidade – ironizou, referindo-se à fácil constatação de que a meia-dúzia de homens que lá se encontrava andariam todos acima dos 50 anos.
Os restantes sorriram e deram-me também as boas-vindas. A Sílvia acrescentou:
- Aqui a Raquel de xadrez sabe pouco mais do que mexer as peças, mas eu convenci-a de que lhe faria bem vir até cá, e aprender mais um pouco. Mas precisa de quem a ensine – disse a Sílvia virando-se deliberadamente para o Carlos.
- E tu não ensinas a tua amiga?
- Ela a mim não me respeita – brincou.
- Bem, não serei um grande professor, mas quando aqui estiver terei muito gosto em ensinar o pouco que sei. Isto é, se achar que tem paciência para me aturar. Procurarei não ser um velho rabugento.
- Não tem nada de velho, e ficar-lhe-ei grata pelos seus ensinamentos – disse-lhe.
- Vê lá se te esforças e a tratas bem – disse Sílvia. – Se não ela não põe cá mais os pés e perde-se uma futura sócia.
- Deixa estar, vou fazer os possíveis por não espantar a caça.
Convidou-me a sentar e tomou lugar na cadeira em frente. Propôs que fizéssemos apenas um rápido jogo para se aperceber melhor do meu nível de conhecimentos. Facilmente constatou que era muito baixo e o jogo durou
menos de 5 minutos. Senti que todos mais ou menos disfarçadamente me observavam.
- Como vê o que eu sei e nada é quase a mesma coisa – disse-lhe.
Senti-me um pouco desconfortável com os segundos de silêncio pensativo com que o Carlos me brindou. Por fim perguntou:
- Gosta de jogar Sudoku? De charadas? De coisas que puxem pela cabeça?
Disse-lhe que sim. Que ocasionalmente jogava Sudoku, embora gostasse mais da variedade “killer”. E também Kakuro. E, sim, gostava de charadas, de tentar decifrar problemas.
- Então vai ser fácil – animou-me. – Em poucos meses vai suplantar este mestre de terceira categoria e, com muita pena minha, terei de a passar para outro sortudo bem mais habilitado.
Retirou todas as peças do tabuleiro e desafiou-me: - Quantos quadrados vê neste tabuleiro?
Fiquei surpreendida com a pergunta. Então não era óbvio? Toda a gente sabe que são 64 casas, oito por oito, alternadamente brancas e pretas.
- Tem razão quanto a serem 64 casas. Mas a pergunta não é essa. A pergunta é quantos quadrados há.
Fitava-me com um ar divertido. Desviei o olhar dele e olhei intrigada para o tabuleiro e pensei um pouco. Começou a fazer-se luz. Percebi que se referia ao facto de o conjunto do tabuleiro também ser um quadrado. Satisfeita respondi:
- Já percebi. Tem razão, são 65. - Como assim?
- Para além das 64 casas o perímetro exterior também é mais um quadrado.
Continuava com um olhar divertido: - E é tudo?
Todos tinham os olhos postos em mim. A Sílvia também observava divertida. Olhei de novo para o tabuleiro e
compreendi de novo. Novamente se fez luz. Dividindo o tabuleiro em quatro teríamos mais quatro quadrados, por isso corrigi:
- Afinal são 69 – e senti-me corar ao aperceber-me do número. A Sílvia deu uma gargalhada, no que foi acompanhada de outros risos mais comedidos.
- Pois, seria uma conclusão interessante – disse Carlos sorrindo com o meu embaraço. Resolveu socorrer-me: – E se lhe disser que são 204?
- 204? – perguntei incrédula.
- Exactamente. Veja lá se consegue descobrir 204 quadrados.
Concentrei-me de novo no tabuleiro, demoradamente. Finalmente percebi. Havia uma série de quadrados de 2x2, de 3x3, 4x4… Era isso. Contei. Havia obviamente os 64 quadrados de 1 casa; mas depois havia também 49 de quatro casas; 36 de 9 casas; 25 de 16 casas; 16 de 25 casas; 9 de 36 casas; 4 de 49 casas; e finalmente 1 (o exterior), de 64 casas. Tinha razão. Feitas as contas eram 204, claro.
- Óptimo. Passou com distinção. Comecemos agora com as peças.
O Carlos era de opinião que, após os conhecimentos mais básicos – o tabuleiro, a posição inicial das peças e os seus movimentos – era bom começar pelos mates elementares com as peças mais importantes (dama, torre) e depois
passar aos finais. Primeiro de peões e depois combinações de peças e peões. Só mais tarde começar a olhar para as aberturas. Por isso nesta primeira lição ensinou-me como dar mate com dama, com duas torres, com uma só torre. A importância de pôr o rei em jogo para ajudar. E a evitar as posições de afogamento do rei, que davam direito apenas a empate.
Interiorizei com facilidade todos aqueles conceitos. Bem explicados eram fáceis de entender e de memorizar. Já passava das sete quando por fim sentenciou:
- Creio que já chega por hoje. Espero não a ter massacrado demais.
- Sim, de facto já chega, já são horas. E não me massacrou. Muito obrigada pela lição. Gostei muito e, se não for abuso, gostaria de cá voltar e continuar a aprender.
- Com certeza. Venha, venha alegrar um pouco este ambiente.
Já só estávamos 3 na sala. Eu, a Sílvia e o Carlos. Saímos todos juntos. O Carlos fechou a porta com a chave. Já na rua despedimo-nos do Carlos, que subiu na direcção dos Poveiros, enquanto a Sílvia e eu descemos Passos Manuel.
- Gostei. Ensina bem. Gostei dos desafios que foi colocando. Acho que consegue despertar o interesse pelo jogo. É muito simpático e bem-humorado.
- Sim. E também é casado – avisou a Sílvia com um sorrisinho.
- Eu reparei na aliança. - Vais mesmo voltar?
- Acho que sim. Tens razão. Tenho que deixar de estar sempre enfiada em casa e começar a sair. Gostei do ambiente. É calmo, as pessoas parecem simpáticas e educadas. E é bom pôr a cabeça a funcionar em vez de pensar em desgraças.
- Ok, ainda bem. Já fiz a minha boa acção do dia.
Chegámos a D. João I e despedimo-nos. A Sílvia lembrou-me novamente sorrindo: