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O gesto provável: uma investigação acerca do gesto musical

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

Instituto de Artes – São Paulo

O GESTO PROVÁVEL: UMA INVESTIGAÇÃO

ACERCA DO GESTO MUSICAL

MARCOS TADEU BORGES DE FREITAS

ORIENTADORA: Profª Drª MARISA T. O. FONTERRADA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP – São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Música: área de concentração “Musicologia/Etnomusicologia”.

Data de aprovação: ___/ ___/ ___

SÃO PAULO __2005 __

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Freitas, Marcos Tadeu Borges de

O gesto provável: uma investigação acerca do gesto

musical / Marcos Tadeu Borges de Freitas. - SãoPaulo :

[s.n.], 2004.

159 f.

Bibliografia.

Orientador: Profa. Dra. Marisa T. de Oliveira Fonterrada

Dissertação ( mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de

Artes

Área de conhecimento: 8030300 – 5 - Música

Área de concentração: Musicologia/Etnomusicologia

1. Epistemologia da prática musical pianística. 2. Música – Instrução e Estudo

CDD – 780

780.7

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À Natália, ao Nicolau, à Clarissa, ao Camilo, ao Mikael e à mãe de todos, Thereza. Aos meus pais, “in memorian”.

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AGRADECIMENTOS

À Profª Drª Marisa Trench Fonterrada, pelo acolhimento, clareza e objetividade no momento crucial e pela enorme contribuição para a forma final do texto que aqui se apresenta. Pela amizade e confiança de sempre.

À Profª Drª Maria de Lourdes Sekeff, pelo acolhimento carinhoso, pela crença, estímulo e amizade.

Aos meus professores de piano, na figura do pianista Prof. Dr. Caio Pagano, com quem aprendi, de fato, a tocar piano, num contexto de crença, amizade, confiança e muita música. À pianista Profª Drª Belkiss Carneiro de Mendonça, pela generosidade e contribuição fundamental.

Ao pianista Homero Magalhães, “in memorian”, pela grandeza que redimensiona o significado das coisas.

Ao Prof. Willy Correa de Oliveira, que ampliou e potencializou minha percepção, compreensão e conhecimento musical.

Aos que foram meus alunos e me enriqueceram, compartilhando comigo a sua experiência. Ao Paulo Portella Filho, companheiro de todas as horas.

Ao Homero Prado Lacreta Jr, pelo suporte essencial. Ao Carlos Kater, pelo apoio amigo.

À Vera Cury, pelo companheirismo e amizade.

A todos os que direta ou indiretamente participaram e contribuíram para o meu caminho na música e na vida.

À Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UNESP, pelo auxílio concedido no período de 04/2003 a 03/2004.

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Conhecimento, trabalho e amor natural são as fontes da nossa vida. Deveriam também governá-la.

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SUMÁRIO

Introdução...13

I Ponto de Partida...14

II Contextualização...14

III Georges Gusdorf: Unidade e Inteligibilidade...16

IV A Pesquisa...17

V Organização da Dissertação...20

Capítulo 1 As Fontes do Gesto...22

1.1 Georges Gusdorf e a Interdisciplinaridade...23

1.1.1 A divisão do saber...23

1.1.2 O princípio da unidade funcional...25

1.1.3 A inteligibilidade ...26

1.2 Rolando Garcia e Piaget...27

1.2.1 Garcia: A Abordagem Sistêmica...27

1.2.2 Epistemologia Construtivista, Material Empírico e Construção Teórica...28

1.2.3 O Sistema Cognitivo...28

1.2.4 A Construção do Conhecimento...29

1.2.5 A Construção do Sujeito...30

1.3 Wilhelm Reich e o Movimento Expressivo ...31

1.3.1 Da Libido e da Energia Vital...32

1.3.2 Emoção é Movimento ...32

1.3.3 Auto-regulação ...33

1.3.4 Sistema Nervoso Autônomo e Função Vegetativa...33

1.3.5 Função do Orgasmo...34

1.3.6 A formação do Caráter...34

1.3.7 A Couraça Muscular do Caráter...35

1.4 António Damásio: Corpo Emoção e Razão nos Processos Cognitivos...35

1.4.1 Corpo: o Continente das Emoções...39

1.4.2 Emoções, Sentimentos e Cognição...41

1.4.3 O Gesto e a Interpretação...41

1.5 Willems e a Experiência Musical...43

(7)

1.5.2 Bases Psicológicas...44

1.6 Caminho do geral ao específico ...47

Capítulo 2 Corpo Convergente ...49

2.1 A localização do objeto ...50

2.2 Struyf-Denys e a Fisiologia do Movimento ...53

2.2.1 A Unidade Mecânica do Corpo...54

2.2.2. A Organização do Movimento...56

2.3 O Conhecimento Musical e o Gesto...57

2.3.1 Esquema de Ação e Gesto Musical...57

2.3.2 Outros Mecanismos do Conhecimento...59

2.3.3 O Surgimento do Novo...60

2.4. Gesto Musical e Movimento Expressivo...61

2.4.1 O Gesto Musical e a “Linguagem Expressiva do Vivo”...62

2.5 A Educação do Gesto Musical...63

2.5.1 Divisão do Gesto Musical...66

Capítulo 3 Dimensões do gesto musical ...69

3.1 O Método Tradicional de Ensino de Piano...72

3.1.1 Técnica: O Gesto Sem Música...74

3.1.2 A Desconexão Entre Técnica e Compreensão Musical...76

3.2 Os Esquemas de Ação e o Ensino/Aprendizagem do Piano...78

3.3 Em Busca do Gesto Musical...80

3.3.1 A Integração do Gesto Musical...81

3.3.2 A Expressividade do Gesto...81

3.3.3 A Organização do Gesto Musical...82

3.4 A Mecânica do Gesto Musical...82

3.4.1 O “Impulso do Braço”...86

3.4.2 A Integração do Braço e O Movimento Espiróide na Execução Musical...88

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3.5 O corpo do gesto musical ...90

Considerações Finais ...92

Referências Bibliográficas ...96

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RESUMO

Este trabalho se constitui de uma pesquisa acerca do ensino e da prática pianística, focando, especialmente, a corporalidade gestual implicada no fazer musical, que se investiga na sua complexidade em contraposição às formas do ensino tradicional do piano, ensino este que se constituiu a partir de parâmetros mecanicistas, em uma abordagem da execução musical dentro de uma concepção técnica, profissionalizante, desenvolvida, sobretudo, nos conservatórios, desde de sua criação, e tendo como objetivo a formação de instrumentistas virtuoses.

A compreensão do gesto musical, em sua multidimensionalidade, é buscada através de uma metodologia interdisciplinar, localizada e fundamentada na epistemologia, ciência a partir da qual se situa o objeto desta pesquisa entre as atividades cognitivas relativas ao conhecimento musical. Desta forma, o trabalho referencia o gesto musical primeiramente na unidade complexa do indivíduo e de sua expressão, da qual faz parte o conhecimento. A unidade do sujeito é investigada sob diferentes ângulos, quais sejam, na integridade e interação de suas funções cognitivas, de suas funções emocionais e psíquicas e de suas funções corporais, e, em especial, em relação à música, tomada como expressão complexa e integrada deste indivíduo multideterminado.

Situada a concepção unitária e sistêmica da complexidade do conhecimento e do seu sujeito, e localizando as questões que surgem na abordagem tecnicista, este estudo destaca a presença e a expressão das funções humanas no corpo do indivíduo, mostrando na própria corporeidade do sujeito a interação de todas as suas instâncias. Revela-se o corpo como protagonista natural, tanto nas funções psíquicas, quanto intelectuais, continente das emoções bem como parâmetro e fundamento das ações cognitivas, tendo, ainda, princípios fisiológicos para sua organização e movimentação, o que se contrapõe à abordagem do gesto musical a partir de suas funções mecânicas, como se dá no ensino tradicional. Destaca-se ainda a participação do gesto, em sua integralidade, no contexto da prática e do ensino pianístico, subordinados, estes, aos conceitos e objetivos da Educação Musical.

Esclarecida a complexidade das funções corporais, em interação orgânica, indissociável, com o todo do indivíduo, e dos seus processos cognitivos, apresenta-se uma análise crítica da abordagem tecnicista, e, reconhecendo o aspecto gestual da própria música, reflete-se então sobre a participação ampla do gesto na construção do conhecimento musical e na sua expressão, referenciado nas informações e argumentos pertinentes, e nas relações que surgem entre estes, levantados nas disciplinas investigadas.

Palavras-chave: epistemologia da prática musical; educação musical; gesto musical; música e gesto; técnica pianística.

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ABSTRACT

This essay consists of a reserch involving the teachings and practice of the piano, especialy the corporal gestures involved in the making of music, which is investigated in it´s complexity oposed to the forms of traditional teachings of the piano, teachings that consist of mechanical parameters, in a aproach of the musical execution within a tecnical conception, professionalizing, developed, overall, in conservatories, since its creation, and having in mind the formation of virtuous instrumentalists.

A comprehention of the musical gesture, in its multidimensionality, is achieved throug a interdisciplinary methodology, located and fundamented en epistemology, a science in which the object of this research, among cognitive activities related to musical knowledge. The essay makes reference to the musical gesture primarily in the complex unit of the individual and his expression, of which knowledge is part. The unit of the subject is investigated from many points of view, wichever they are, in the integrity and interaction of his cognitive functions, of his emotional and psycological functions, and of his body functions, and specialy related to music, taken as a complex expression and incorporated in this multi-determined individual.

Placed in a unitarian and systemic conception of the complexity of the knowledge and of its subject, and locating the matters that arise in the technicists aproach, this study highlights the presence and the expression of the human functions in the individual´s body, showing in its own body interaction in every instance. The body reveals itself as the main attraction naturaly, in psycological functions, and intelectual as well, container of emotions as well as a parameter and basis of cognitive actions, having yet physiological principles for its organization and movement, which oposes the aproach of the musical gesture from it´s mechanical functions, such as traditional teachings. The participation of the gesture stands out, in its integrity, in the context of the practice and of piano teachings, subordinates are these to the concepts ans objectives of Musical Education.

With the complexity of the corporal functions cleared, in organic interaction, unassociable, to the individual as a whole, and of the cognitive processes, a critical analisis of a technicist aproach is presented, and with recognition of the gestural aspect of music itself, it is than reflected on the ample participation of the gesture in the construction of musical knowledge and in its expression, making reference to pertinent information and arguments, and in the relationships among them, researched in the subject in analisis.

Keywords: epistemology of music practice; musical education; musical gesture; music and gesture; piano technique.

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I Ponto de Partida

Durante o curso de graduação em Música – Instrumento, trabalhando sob a orientação do pianista prof. Caio Pagano, foi possível encontrar um caminho para a mecânica corporal, necessária para a execução pianística, que assegura resultados positivos no desenvolvimento do gesto musical. O eixo deste trabalho foi a conscientização de um impulso do braço, desenvolvido pelo pianista Conrad HANSEN (1906-2002) Alemanha. Posteriormente a compreensão deste gesto fundamental,

foi ampliada com a noção do funcionamento do braço como um todo, considerado como unidade

funcional, conforme explicações apresentadas pela terapeuta belga Godelieve STRUYF-DENYS, em Les Chaînes Musculaires et Articulaires (1982).

Com a prática pedagógica, exercida, sobretudo, no Conservatório Dramático Musical “Dr. Carlos de Campos de Tatuí”, durante dez anos, as questões e reflexões a respeito do ensino do piano entraram em diálogo com as formulações do médico e psicanalista Wilhelm REICH (1897-1957), que, no desenvolvimento de sua própria concepção, esclarece a unidade psicossomática.

O contato deste pesquisador com a teoria reichiana deu-se, inicialmente, em um curso ministrado por terapeutas, coordenado por Fábio LANDA, na clínica situada à rua Caiubí 455,

Perdizes, São Paulo, cuja base era o estudo de textos de Freud e Reich. A partir daí, o interesse pelo assunto se estendeu para as terapias de abordagem corporal, tais como o método de Moshe

FELDENKRAIS, a Eutonia de Gerda ALEXANDER, a Reestruturação Postural Global de Philippe

Emmanuel SOUCHARD, que forneceram amplo referencial para reflexão e investigação em torno do

desenvolvimento das habilidades motoras implicadas na aprendizagem pianística. As formulações encontradas nestes trabalhos apontaram para novos recursos, como a propriocepção e a consciência corporal, bem como para os riscos e prováveis conseqüências do uso indevido das funções mecânicas do corpo. Ainda nesta mesma direção realizaram-se estudos introdutórios nas áreas de anatomia e fisiologia.

Assim, a partir destes parâmetros, foram-se levantando questões a respeito da prática pianística e deseu ensino. No trabalho em Tatuí, indo da reflexão à prática, este pesquisador pode participar da formação de vários alunos, alguns pianistas profissionais, atuantes, atualmente, propondo a prática a partir do princípio acima citado, e que, posteriormente, se pode reconhecer dentro de princípios de organização e unidade funcional.

Em viagens por várias cidades do interior do Estado de São Paulo, para realizar workshops dentro do “Projeto Oficinas”, promovidos pela Secretaria de Estado da Cultura, entre 1982/1984, este pesquisador teve contato com muitos jovens que, a despeito da idade e dos muitos anos de estudo do piano, revelavam grandes deficiências no desenvolvimento da habilidade específica, mostrando-se bastante distanciados de uma compreensão efetiva do fazer musical. Essas e outras experiências práticas e pedagógicas levaram à escolha de uma investigação sistemática sobre a temática do Gesto Musical, pois cada vez mais, se tinha consciência que essa era uma questão a ser profundamente tratada, para elucidar os grandes impasses que, com freqüência, acompanham o ensino e a aprendizagem do piano.

II Contextualização

O estabelecimento de um espaço interdisciplinar para uma compreensão mais abrangente da prática musical pianística e de suas implicações, objeto desta pesquisa, criou a necessidade de encontrarum referencial que contextualizasse esta intersecção, conferindo-lhe pertinência, sentido, fundamento e direcionalidade.

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Na investigação prática e experimental da execução pianística e do seu ensino, os elementos que surgem apontam para a complexidade desta prática, mostrando que a interação das diferentes instâncias do sujeito na ação requer um olhar amplo e abrangente, para a sua compreensão, olhar este já percebido, sugerido e perscrutado por muitos músicos e educadores. Na pesquisa teórica, que procurou levantar mais informações a respeito das funções implicadas nesta gestualidade musical, surgiram interações e ressonâncias entre as informações das diferentes disciplinas, que podem referenciar uma reflexão consistente para a complexidade da prática musical instrumental, no que se refere à complexidade do gesto musical. Figurar a unidade e a multidimensionalidade desse gesto em uma perspectiva interdisciplinar, pareceu, portanto, a forma mais adequada de propor a reflexão.

Destaca-se, então, no presente trabalho a adoção da interdisciplinaridade como método de investigação. Diversos autores vêm levantando e fundamentando a importância do diálogo entre diferentes áreas do saber, abordagem que, nos últimos anos, começa a ter acolhimento também nos meios acadêmicos e a se mostrar como recurso de fato, em pesquisas desenvolvidas para fins institucionais, industriais, ligados ao desenvolvimento tecnológico. JAPIASSU (1976) lembra, também, as pesquisas de previsão, que requerem a reunião de especialistas de diferentes áreas, como no “planejamento do território, da educação e da demografia”, por exemplo. O mesmo autor esclarece que a transferência dos pesquisadores para a indústria, para a produção, favorece e assegura a cooperação interdisciplinar: “Existem nos domínios industriais, atualmente, regras estritas para coordenar os métodos e os resultados de diferentes ciências” (p.109) em função do “produto tecnológico”, em que “a colaboração interdisciplinar revela-se extremamente útil” (p.111)

É, porém, em relação às ciências humanas que a interdisciplinaridade se coloca como uma necessidade, fundada na complexidade do homem em interação com o meio, que, na sua unidade múltipla, é a fonte das ações, comportamentos, expressões, elaborações e construções, igualmente complexos, constituintes do mundo humano. É a complexidade una da experiência humana, que propõe, para sua compreensão, um olhar abrangente, no sentido de buscar-se a totalidade, mesmo que em perspectiva, unificadora e sintética. Neste trabalho, esta visão unificadora é buscada nas relações possíveis entre os parâmetros e fundamentos das teorias investigadas.

O gesto implícito na prática musical se mostra como um todo complexo em si mesmo, corporificando as diversas instâncias do indivíduo, as mesmas que estão expressas na música, como assinala Edgar WILLEMS. Em suas obras Las bases psicológicas de la educación musical (1961) e L´Oreille Musicale (1985), o autor identifica, na música, a expressão integrada das funções sensoriais, afetivas e intelectuais do homem, por ele consideradas indissociáveis, propondo a busca desta integração para o desenvolvimento da musicalidade do sujeito, e localizando o conhecimento, sobretudo, na “experiência musical”. O gesto musical, portanto, decorre da utilização do canal gestual, expressivo, do indivíduo, inserido no contexto da música e desenvolvido em função dela, caracterizando-se como mais um mecanismo do conhecimento humano, e um constituinte da experiência musical.

Assim, reitera-se a necessidade de estudar a questão da prática pianística dentro de um enfoque interdisciplinar. Defende-se a necessidade de reorganizar o conhecimento que se tem do instrumento e de suas técnicas, contextualizando-o na complexidade do sujeito e da música, e na sua interação com informações provindas de outras disciplinas, em busca da unidade do saber, tal como é explicitada, em termos bem mais abrangentes, nos ensaios de GUSDORF, em Les sciences de

l´homme sont des sciences humaines (1967).

Como afirma esse pesquisador, nenhuma disciplina pode sozinha dar conta do todo, considerando-se, também, que a totalidade não é a soma das visões parciais desse mesmo todo. É preciso buscar a unidade, tendo-a como pressuposto, pois, “se ela não se encontra proposta no início da pesquisa, não se poderá encontrá-la no final” (GUSDORF, p.36). É este também o entendimento

do autor deste trabalho, que busca, na interdisciplinaridade, uma metodologia pertinente para a investigação na área específica da prática musical instrumental, visando uma compreensão mais pertinente, que possa, ao menos em perspectiva, abranger o todo de uma atividade tão essencial ao

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homem quanto a música que se mostra, transcendendo os ritos e funções culturais de um civilização específica, estar enraizada entre as primeiras formas de expressão e de comunicação do homem. É a partir desta perspectiva que se acredita possível uma reformulação dos processos envolvidos no ensino e na prática pianística.

III Georges Gusdorf: Unidade e Inteligibilidade

A interdisciplinaridade é proposta, por GUSDORF (1967), em uma perspectiva humanista,

situando o homem como centro de todo o saber e, como outros estudiosos, destacando-a como um novo paradigma para o desenvolvimento do conhecimento, diante da exigência atual de reunificação do saber, implicada na reconstrução da “unidade do homem”. Ele defende a necessidade de “reorganização” do domínio epistemológico, em busca da convergência e da unidade, em função do propósito humano, princípio e fim de todo o conhecimento. Nesse sentido, o autor propõe a implementação de uma “pesquisa fundamental”, interdisciplinar, que busque a convergência de todos os saberes.

Nesta perspectiva o homem aparece como o ‘foyer’ de todas as significações epistemológicas de todas as ciências humanas. Só a tomada de consciência da convergência das epistemologias pode fundar uma epistemologia da convergência: a unidade das metodologias não pode ser realizada fora de uma metodologia da unidade, ela mesma fundada sobre uma pesquisa da unidade do ser humano. (1967, p.56)

Nesta concepção que norteia a unidade das disciplinas, o humano assume a posição de centro da perspectiva - posição que, na verdade, já é sua, como produtor e beneficiário do conhecimento. O autor propõe, portanto, uma reconstrução do conhecimento, assentada na ação interdisciplinar, salvaguardando assim a inteligibilidade do mundo humano.

A concepção de GUSDORF (1967) reaparece em outro conceito-chave: “toda ciência... é

consciência do homem” (p.8). Este é o eixo de seu pensamento: situar o conhecimento na área de significação da consciência humana, idéia que reforça pela citação de MONTAIGNE,segundo o qual,

“ciência sem consciência é apenas ruína da alma” 1 (in GUSDORF, 1967, p.70). Com essa postura, o

autor assume uma posição critica diante das ciências contemporâneas, com sua multiplicação em especializações e o correspondente “esmigalhamento” do espaço epistemológico, apontando uma “inflação mórbida” no espaço do conhecimento (p.69), à qual Hilton JAPIASSU confere a expressão

“patologia do saber”, destacada já no título do livro Interdisciplinaridade e Patologia do Saber (1976).

O olhar proposto, organizador e convergente, busca conhecer e re-conhecer o homem, na sua integridade, em cada forma de conhecimento, considerada uma unidade a ser encontrada em cada disciplina e, no seu conjunto, na interação interdisciplinar.

GUSDORF propõe, portanto, nortear, sob o prisma antropológico, a reorganização do espaço

epistemológico, a ser elaborada em uma “pesquisa fundamental”, em uma metodologia interdisciplinar, buscando, em uma visão unitária do conhecimento, a re-união da imagem do homem e o surgimento dos invariantes da hominidade. A idéia pode se complementar na sua afirmação: “O mundo humano é um mundo cuja configuração está ligada à configuração humana, e é isso que todo especialista das ciências do homem deveria saber” (1967, p.24).

A convergência dos saberes deverá, assim, servir à consciência e à compreensão do próprio ser humano e de seu mundo, um em função do outro, pois, que o homem também se desenvolve na relação. A perspectiva antropológica é marcada como prisma para uma nova configuração da experiência humana, uma volta aos ideais renascentistas, de forma que a cultura possa favorecer a visão unitária que faculte a inteligibilidade e a compreensão do homem e de sua realidade.

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Esta concepção de GUSDORF foi exposta no “Projeto de Pesquisa Interdisciplinar nas

Ciências Humanas” apresentado à Unesco (1967, p.35), projeto este que se complementa na crítica à situação atual de compartimentação do conhecimento, que resultou de um processo de divisão mecanicista, comoparâmetro para o pensamento e a compreensão, desde o início do século XVIII.

O saber fragmentado, objeto da crítica do autor, evidencia-se com muita clareza na área da Música, em especial na concepção de ensino usualmente praticada por professores de instrumento, cuja origem está nos conservatórios, de acordo com WILLEMS (1961). A divisão se instala

primeiramente na separação estanque entre as disciplinas, em especial entre instrumento e as chamadas “matérias teóricas”. A forma que o ensino da música tomou caracteriza-se como um conjunto de disciplinas que caminham independentemente, deixando pouco espaço para a integração. Esta característica não é encontrada apenas no Brasil. WILLEMS, belga, residente na Suíça, aponta para esses mesmos problemas no ensino da música vigente nos conservatórios europeus, à sua época. “O aluno do conservatório estuda, em geral, solfejo e harmonia, paralelamente ao instrumento. A audição, assim como o conhecimento rítmico, se desenvolvem, deste modo, fora da prática instrumental.” São os cursos chamados “teóricos” e considerados por muitos como acessórios (WILLEMS. 1961, p.152). Por outro lado a concepção da aprendizagem do

instrumento dentro de uma abordagem de cunho tecnicista, pratica uma segunda divisão, que é a do próprio gesto musical. Na medida em que essa abordagem não assenta seu foco na música, o objeto do conhecimento, ao privilegiar a “técnica de execução” da música, entre outros elementos constituintes e essenciais, toma o gesto musical apenas por um de seus aspectos, o mecânico. Vê-se, então, que esta prática de ensino surge já fragmentada em si mesma, separando-se da educação musical e fundando-se, na maior parte das vezes, em associações secundárias, como a relação entre os elementos visual e tátil, por exemplo (1961, p. 125).

A concepção racionalista do ensino tradicional, localizado nos conservatórios por WILLEMS

(1961, p.149), também afasta um elemento fundamental, a dimensão afetiva, qualitativa da música: a harmonia era feita de regras,assim como o contraponto, seus exercícios feitos no papel (WILLEMS.

1985, p.44); o ensino não se funda no desenvolvimento auditivo (WILLEMS . 1961, p. 149), que,

porém, é fundamental; mesmo as disciplinas dedicadas à percepção são tomadas em seu aspecto quantitativo (1961, p.152). Ao mesmo tempo em que reafirma as distorções deste ensino de abordagem tecnicista, WILLEMS reconhece o esforço de muitos educadores, para renovar a pedagogia da música, tendo em vista a educação musical. O educador cita, entre outros educadores,

ORFF e DALCROZE, referindo-se, também, a diversos professores de piano nos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, representantes de novas abordagens metodológicas (1954, p. 154), que superavam a dicotomia apontada, enfatizando os aspectos musicais sobre os técnicos.

A desconexão entre as partes, característica da abordagem tecnicista, promove a divisão do gesto, destacando o aspecto mecânico de seus componentes afetivos e cognitivos, ao propor a prática de exercícios repetitivos, dissociados de significado musical. Além disso, na maioria das vezes, a “técnica”, sem os pontos de contato necessários com outras disciplinas, que dizem respeito também ao gesto e ao gesto musical, pode apresentar muitas dificuldades, mesmo do ponto de vista puramente mecânico, dos movimentos corporais, resultando em processos dolorosos e em distúrbios corporais, que podem se tornar graves. Segundo estudos diversos, os músicos apresentam um índice preocupante de problemas corporais. (Revista Cambio.com, 11/09/2004)

Pode-se assim sintetizar o prisma de abordagem desta investigação, no estudo da integração das atividades mecânicas corporais envolvidas na prática musical, no contexto mais amplo do gesto musical, que é expressivo e epistêmico.

IV A Pesquisa

Sendo a abordagem tradicional da prática e do ensino pianístico de cunho predominantemente mecanicista, o que leva à priorização da técnica de execução e à ênfase nas atividades mecânicas do aparelho sensório-motor, O gesto provável, uma investigação acerca do

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gesto musical, tema desta dissertação, tem como objetivo proceder a uma reflexão acerca do espaço e da função das atividades corporais, psicomotoras, no que se referem ao conjunto da prática musical pianística, considerada, aqui, no contexto de atividades cognitivas complexas, e na interação das instâncias física, afetiva e intelectual do indivíduo, e em um processo específico de expressão da música que se materializa através do gesto em sua realização, e comunga com ele características do próprio movimento, tais como o ritmo, a plasticidade, a temporalidade, a sua dinâmica mesma e a expressividade, ou seja, a sua potencialidade expressiva.

A complexidade das relações que se estabelecem neste processo, apontando para a localização desta reflexão na intersecção entre diferentes áreas do conhecimento, e que justifica a adoção de uma metodologia interdisciplinar neste estudo, mostra a necessidade de se retirar a prática e o ensino musical instrumental da esfera das abordagens redutoras e colocá-los na da significação, em suas múltiplas dimensões. É desta forma que se pode buscar uma melhor compreensão do gesto musical, de modo que ele alcance adequação e eficiência.

Também se considerou necessário fundamentar a posição experimental assumida, localizando o desenvolvimento da habilidade motora específica, de forma que esta pudesse ser abordada como espaço de pesquisa e investigação, e não como um conjunto de regras, normas e fatos consumados. A habilidade motora necessária ao ato de tocar piano não se encontra nos livros de exercício, mas desenvolve-se a partir do fazer, na condição de experiência individual.

Desta forma, reconhecida a atividade instrumental como um meio para o conhecimento musical, procurou-se encontrar parâmetros para uma prática que tivesse como pressuposto e favorecesse a experiência musical, assim como o desenvolvimento do sujeito dessa prática, na sua organicidade e integração funcional.

Para cumprir essa tarefa o mais amplamente possível, dentro dos limites deste trabalho, foram revistas e aprofundadas as informações em disciplinas já visitadas e investigadas outras, em outras áreas, referentes às áreas da educação musical, epistemologia, psicologia, fisiologia, e neurofisiologia.

Uma tarefa que, a princípio, pode sugerir dimensões ousadas ou pretensiosas, toma suas devidas proporções ao se esclarecerem a forma e os procedimentos adotados para o seu cumprimento. Não cabendo e nem sendo possível uma investigação ampla em cada uma das disciplinas, e sendo objetivos deste trabalho, sobretudo, levantar, interdisciplinarmente, elementos fundamentais para a reflexão, assim como justificar a pertinência desta metodologia de trabalho para a compreensão das atividades musicais, buscaram-se as relações que pudessem surgir do cruzamento de informações das diferentes áreas, e adotaram-se os seguintes critérios:

– como a pesquisa tem um referencial empírico conhecido - a prática e o ensino da música no piano – a respeito do qual o pesquisador tem experiência substancial, e visava, sobretudo, a reflexão a respeito dessas atividades, mostrou-se pertinente o desenvolvimento de uma investigação teórica, de caráter prioritariamente bibliográfico, que pudesse ajudar a elucidar as questões levantadas;

– dada a amplitude e profundidade de cada uma das áreas em que se incursionou, escolheu-se, de preferência, um único autor significativo de cada uma delas;

– como esses autores publicaram mais de uma obra, adotou-se como critério a escolha de uma ou duas, entre as mais significativas, de cada um deles;

–entendeu-se por “obras significativas” as que não abordavam aspectos específicos de suas respectivas áreas, mas que apontavam princípios, fundamentos e bases capazes de esclarecer pontos específicos e favorecer a apreensão do todo;

– No que se refere à metodologia interdisciplinar, pela “novidade” que ainda representa como forma de investigação, sobretudo nos meios acadêmicos, tornou necessária a sua própria fundamentação, que se serviu amplamente da própria epistemologia.

Foram, portanto, recolhidas informações nas áreas já citadas, em textos escolhidos dos seguintes autores:

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Do filósofo Georges GUSDORF (1967), um dos pioneiros na discussão da

interdisciplinaridade, tomou-se um conjunto de ensaios em que o autor aborda as questões epistemológicas relativas ao pensamento mecanicista, à fragmentação do saber, e aos problemas surgidos desta concepção, que em ultima instância levam à quebra da imagem unitária do homem e da inteligibilidade do seu mundo, na medida em que a compreensão do todo é suprimida, pois considera que somente ela pode dar o verdadeiro sentido das partes, sendo estas o foco das investigações no regime de especialização que se desenvolveu, sobretudo, a partir do século XIX. O autor propõe, em uma concepção humanista, o desenvolvimento da abordagem interdisciplinar como forma de reorganização do espaço epistemológico e de resgate da compreensão, tendo o homem como princípio e fim de todas as formas de conhecimento. Como leitura complementar, para elucidação da mesma questão, tomou-se Hilton JAPIASSU (1976).

De Rolando GARCIA (2002), físico que se interessou pela epistemologia genética depois de

conhecer Jean PIAGET, de quem foi um dos últimos co-autores, tomou-se um trabalho recente, em que o autor apresenta de forma abrangente, a sua teoria epistemológica. GARCIA retoma as

concepções e conceitos da epistemologia genética de Jean PIAGET e os projeta em direção ao conceito de “sistemas complexos”, reelaborando uma “epistemologia” construtivista, dando forma à questão da interdisciplinaridade requerida pelo assunto desde PIAGET, que investigou a construção do conhecimento, seus processos e mecanismos, e apontou a interação das instâncias física, afetiva e intelectual do sujeito, na ação cognitiva. Como leitura complementar necessária, tomou-se, também, alguns textos, destacados da extensa obra de PIAGET. GARCIA trata do conhecimento nos

seus processos e mecanismos essenciais e gerais, extrapolando a especificidade do conhecimento científico para todas as formas de conhecimento, considerando, ao mesmo tempo, a multiplicidade e a unidade dos processos do conhecimento. É principalmente esse conceito que se pretende aplicar, como ferramenta de compreensão de como se dá o conhecimento musical. Garcia, portanto, permitiu a localização da nossa pesquisa na esfera da epistemologia e a legitimação da interdisciplinaridade.

Do educador musical Edgar WILLEMS, tomou-se duas obras, tendo esse autor sido

escolhido, especialmente, pelas características de sua abordagem, que investiga, na música, a repercussão das funções humanas. Concebendo a complexidade do conhecimento musical, levanta questões a respeito da unidade do saber, da experiência global e sintética que constitui a música, e da unidade do sujeito desta atividade. O autor busca fundamentos na Psicologia, para compreender as atividades cognitivas do sujeito em relação à música, localiza o conhecimento na realização prática, considerando-o decorrente da experiência, e aponta o caminho da aprendizagem do nível sensório-motor ao intelectual, passando pelo nível afetivo. De fato, WILLEMS destaca e sublinha a

instância afetiva como estimuladora do pensamento humano em geral e em especial na arte, em que assume relevo especial, se comparada a outras atividades humanas. O educador, também, aborda criticamente o ensino tradicional do instrumento, apontando os problemas que vê nele, e destaca, inclusive, a compartimentação do todo, pela organização do ensino em disciplinas estanques. Por isso, propõe a subordinação do ensino instrumental à Educação Musical que, segundo ele, deve presidi-lo, norteá-lo e dar-lhe o seu verdadeiro sentido, enfatizando a necessidade de atividades criativas, nas práticas destinadas à aquisição da linguagem.

Do médico e psicoterapeuta Wilhelm REICH, foram tomadas duas obras, que expõem os

fundamentos e dão uma visão geral de suas investigações e de sua concepção. A pertinência da teoria reichiana para este trabalho reside no fato de que sua abordagem compreende significativamente a presença do corpo nos processos de estruturação psíquica do indivíduo, dado o fluxo da energia vital, que é psicofísica, indicando a identidade existente entre as funções psíquicas e corporais. Outro aspecto relevante de suas formulações, no que diz respeito a esta dissertação, é a compreensão que ele tem acerca do movimento, considerado expressão primordial dos seres vivos, linguagem expressiva do vivo, tecendo, a partir daí, uma relação direta com a linguagem musical, considerada como possibilidade de contato com as instâncias mais profundas ou primordiais das emoções.

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Da terapeuta corporal, fisioterapeuta e osteopata, Godelieve STRUYF-DENYS, tomou-se uma

obra, em que a autora explicita os fundamentos de sua abordagem corporal, que referenciam sua teoria, apontando para a unidade mecânica do corpo e de sua organização fisiológica. A autora, também, enfatiza a origem psíquica dos movimentos e das ações do indivíduo, indicando a presença dessa instância na própria organização corporal do indivíduo. De suas formulações, tomou-se, para este trabalho, em especial, os princípios de organização dos movimentos, que fundamentam e esclarecem a forma dos movimentos presentes na execução pianística.

Do neurologista António DAMÁSIO, recorreu-se a uma obra, em que expõe as bases do

funcionamento neurofisiológico do ser humano, mostrando a interação indissociável entre as funções corporais, afetivas e intelectuais. O autor também analisa a presença das funções emocionais e afetivas nos processos cognitivos, A importância fundamental das formulações de

DAMÁSIO para este trabalho está no fato de que elas servem de base às formulações dos outros

autores presentes neste trabalho, pois, em todos eles, é essencial a questão da unidade do sujeito, reconhecida tanto no seu processo de desenvolvimento, quanto no de suas atividades cognitivas.

O ponto de convergência entre as diversas teorias levantadas é a unidade do homem e/ou de seus processos de apreensão e expressão. O reconhecimento desse ponto comum é essencial para este estudo, que parte do mesmo pressuposto, ao tratar de questões relativas á aprendizagem, visando, sobretudo, o desenvolvimento do indivíduo, que precisa, portanto, ser tratado na sua integridade.

V Organização da Dissertação

Este trabalho se constitui de Introdução, três capítulos e Considerações Finais.

O Capítulo 1 aborda a questão da unidade complexa do sujeito, em sua relação com o processo e os resultados do conhecimento e da pratica musical. Apresentando informações acerca das teorias dos autores pesquisados, retoma a fundamentação da interdisciplinaridade, em busca da unidade do conhecimento e dos processos cognitivos, e perscruta a abordagem sistêmica para sua compreensão, a qual se constitui na base da fundamentação epistemológica e metodológica deste trabalho. Apresenta-se, também, a unidade do indivíduo, vista sob o ponto de vista das diferentes disciplinas investigadas, de forma que ela resulta solidamente fundamentada e concretizada, constituindo o referencial para os capítulos seguintes.

O Capítulo 2 trata da corporalidade do gesto, na sua complexidade, para o qual convergem, além das motoras, as funções emocionais e intelectuais. Localiza-se, na corporalidade deste gesto multideterminado, a sua organização mecânica e suas funções cognitivas e expressivas. Contextualizam-se as questões referentes ao ensino da música instrumental, esclarecendo o processo de divisão do gesto, próprio das metodologias usuais ao ensino tradicional do piano. Aborda-se, em contraposição, a unidade mecânica do corpo e dos movimentos, a função epistêmica das ações corporais e sua presença na construção do conhecimento musical, reconhecendo a sua interação com as funções emocionais, seu universo expressivo de sentidos, que se constitui em espaço de construção do próprio sujeito. Abordam-se, ainda, os parâmetros da educação musical e os processos deste conhecimento, como auxiliares na reflexão a respeito da localização deste gesto musical complexo entre as atividades cognitivas relacionadas à musica.

O Capítulo 3 destaca a complexidade e as dimensões do gesto musical, com ênfase nas funções cognitivas também complexas, e a integração funcional gestomúsica, necessária ao desenvolvimento do conhecimento musical na prática instrumental. Procede-se, também, a uma análise crítica do método de ensino tradicional do piano, tendo, como parâmetro, as informações levantadas nas diferentes teorias pesquisadas, chegando-se à desconexão, verificada em pesquisa, entre a compreensão e a performance musicais. Propõem-se, enfim, referências alternativas para a aprendizagem musical, ao considerar-se a gestualidade implícita no fazer musical em todas as suas dimensões, assim como o reforço do caráter criador e inventivo próprio desse conhecimento específico. Além disso, pretendeu-se chegar a um princípio organizador do gesto musical, a partir

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da compreensão de que a organização corporal repercute nas outras instâncias do indivíduo, e que sua melhor adequação aos princípios fisiológicos serve ao melhor funcionamento do todo.

Nas Considerações Finais, retoma-se as questões trabalhadas na pesquisa, com a pretensão de auxiliar o professor de música/piano e buscar soluções para o ensino, a partir do reconhecimento da integridade dos processos cognitivos, afetivos e corporais e da interação entre eles, de tal modo que o gesto é capaz de revelá-los, e à música, constituindo-se numa unidade, como gesto convergente.

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Ao iniciar-se a exposição deste trabalho que estuda os processos do conhecimento como subsídio ao ensino, aprendizagem e prática da música ao piano, lança-se mão de alguns pressupostos, que orientaram a análise, tendo, como referência, a situação atual da formação do músico/pianista e a proposta de um olhar alternativopara esta questão.Um delesé a convicção de que essa questão só pode ser respondida, sefor trabalhada numa perspectiva interdisciplinar,tal a variedade de conhecimentos e especialidades necessários ao entendimento do tecido que compõe os modos de apropriação do mundo pelo homem e sua capacidade de conviver e interagir com ele, consigo próprio e com as outras pessoas, para, a partir daí, construir conhecimento. O segundo pressupostoé a convicção de que o processo de conhecimento constitui-se como sistema complexo, sendo impossível separar as diferentes instâncias que o compõem. Desses argumentos é possível inferir, a importância de se considerar, no estudo dos processos da aprendizagem e da prática musical, os diferentes aspectos que deles fazem parte, quais sejam o físico, o emocional e o intelectual. A justificativa da abordagem interdisciplinar, já exposta na Introdução deste trabalho, prossegue, pois, agora, para que se aprofundem os conceitos já expostos.

Considera-se importante, também, mostrar que esse tipo de investigação não pode ocorrer separadamente do domínio da epistemologia, ciência que estuda o conhecimento. O capítulo, portanto, organiza-se com a exposição das idéias de diferentes autores que reconhecem o ser humano, o conhecimento e, especificamente, a música, objeto principal desta investigação, como sistemas complexos, em que seus diferentes componentes trabalham constantemente em interação, não sendo possível atuar sobre um deles, semalcançaros outros, pois que são indissociáveis, partes de um todo.

Antes, porém, de abordar esse conjunto de sistemas e subsistemas, é importante, mostrar as origens da situação de impasse que se vive atualmente, que se reflete na perda de integridade do conhecimento, ocasionada pela divisão do saber.

1.1 GUSDORF E INTERDISCIPLINARIDADE 1.1.1 A Divisão do Saber

[...] a partir do início do século XVIII a cultura ocidental se engaja resolutamente no caminho da revolução mecanicista, segundo normas definidas pela primeira vez pelo gênio de Galileu. (GUSDORF. 1967, p.82)

Com a ciência moderna instala-se a compartimentação do saber em domínios exclusivos, efetuando-se, com isso, uma divisão do espaço epistemológico. Essa idéia de separar para melhor compreender, que levou à separação das áreas do conhecimento, também identificada nas escolas de música e conservatórios, vem se tornando cada vez mais presente, na era moderna, desde que as ciências se desmembraram da Filosofia, que, em princípio, respondia pelo sentido da unidade do conhecimento e do homem, como ensina GUSDORF ,no prefácio ao livro de Hilton JAPIASSU (1976,

p.p. 18 ss). A subdivisão cada vez maior das áreas do saber, sob a premissa de que para se conhecer mais sobre algo é necessária a divisão do objeto, e por conseqüência a especialização, acabou por levar à perda daquele sentido unitário, anteriormente buscado e o desenvolvimento desse processo reforçou cada vez mais intensamente a fragmentação do saber.

Segundo JAPIASSU (1976, p.49), ao fazer uma revisão histórica dos processos de instalação e desenvolvimento científico,constata-se queé, sobretudo, a partir do filósofo Auguste COMTE que

a ciência “explode em disciplinas particulares”, localizando-se no século XIX o fim das esperanças, porventura alimentadas, de recuperação daunidade do conhecimento. Desde então, a subdivisão do espaço epistemológico e suas respectivas especializações, se potencializaram. Os recortes sempre mais restritos, bem como os enfoques, procedimentos e métodos cada vez mais específicos, criaram “ilhas” de conhecimento isoladas de outros saberes, sem perspectiva de contexto e diálogo, perdendo referências e significação. Além disso, o desenvolvimento das ciências provocou uma

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expansão tal do universo do saber, que acabou por ultrapassar muito o horizonte das “evidências familiares”, dificultando o entendimento e a inteligibilidade.

A redução e a especificidade geradas conduzem à perda dos objetivos essenciais do conhecimento, que são objetivos humanos. A multiplicação das especialidades gera uma grande quantidade de conhecimentos distintos que, fora de uma perspectiva de vínculo e solidariedade, inviabiliza, de algum modo, a apreensão e a compreensão integrada do conhecimento, do mundo e do homem, comprometendo a inteligibilidade. O desenvolvimento das ciências foi bem-sucedido quanto aos resultados que apresentou, promovendo o progresso tecnológico. A revolução científica preparou a revolução industrial, diz GUSDORF (1967, p. 85). Este sucesso, no entanto, reforçou e

subsidiou a predominância do pensamento científico materialista e mecanicista, analítico, redutor, sobre o pensamento em geral, tornando cada vez mais distante a recuperação da unidade do saber. É esta concepção mecanicista, entranhada na cultura ocidental nos últimos séculos, que entra,agora, em colapso, com índices claros demonstrados nas guerras, na violência, na miséria, nas doenças epidêmicas, e pode-se afirmar queestá em fase de declínio e de transformação, com o surgimento de novos conhecimentos que dão subsídios a novas concepções, e abrindo caminho para outras formas de compreensão, como expõe Fritjof CAPRA (1997).

O movimento de busca da inteligibilidade e da unificação do conhecimento se insere em outros movimentos, idéias e grupos surgidos na sociedade, em prol desse tipo de transformações, em que, certamente, se situam tanto CAPRA quanto GUSDORF. A colocação do homem no centro da

perspectiva do saber destaca a necessidade do olhar interdisciplinar para atender à complexidade de sua ação cognitiva e de sua produção, assim como a complexidade do mundo humano, das relações do homem com o meio exterior e com o outro homem. Colocam-se novos parâmetros para a compreensão do conhecimento, seus processos e objetivos, e para investigações que tratem de seus fundamentos e de sua organização. Acredita-se, pois, agora, que a reorganização do domínio epistemológico permitirá a re-significação do conhecimento e o resgate da inteligibilidade.

Na área da educação, e, especificamente, nos estabelecimentos de ensino de música, a fragmentação atrás mencionada é detectada, nas concepções de ensino, nas grades curriculares e, mesmo, na própria organização da aula, pelo professor. É esta fragmentação no ensino que se pretende superar na presente proposta, com a adoção de princípios norteadores que evidenciem a necessidade de compreensão do homem como um todo, assim como de sua experiência musical. Para que essa pretensão possa ser alcançada, é preciso apoiar-se, como recurso, no pensamento de

GUSDORF (1967).

Ao tratar da situação do conhecimento atual, embora GUSDORF esclareça que todas as áreas

do conhecimento, todas as ciências, independentemente de seus objetos, são ciências do homem, sua análise crítica se volta, principalmente às chamadas “ciências humanas”, que se constituem a partir do século XIX, quando o homem é tomado como objeto do estudo científico. Ele sublinha que estes estudos do homem surgem no cenário de sucesso das ciências exatas, procedendo-se a uma transposição dos seus pressupostos e métodos para a abordagem do homem. Aplicou-se às ciências humanas, portanto, as mesmas “normas de inteligibilidade” conquistadas nas áreas científicas, propondo-se a divisão do objeto em partes, em que cada disciplina se incumbiria de uma delas, sem voltar ou fazer referência ao sentido da totalidade. Esse foi o caminho tomado pelas ciências humanas e pode ser encontrado na psicologia, na sociologia, na história, na economia, enfim, em muitas outras disciplinas e, inclusive, na música.

O olhar fragmentado não permite a compreensão do todo e nem a sua dedução ou inferência, porque este não se dá pela soma das partes. Esta noção se encontra formulada em

GUSDORF, e éinerente à formulação de sistemas complexos, conforme esclarece GARCIA (2002) e

que se encontra também em CAPRA (1997) Uma das conseqüências imediatas e, certamente, mais comprometedoras da subdivisão do campo do saber foi o a perda da inteligibilidade, uma necessidade e uma característica essencial humana, com o desmembramento das coisas, do mundo e de si mesmo, levando, em conseqüência, à perda da unidade do homem, da sua imagem.

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1.1.2 O Princípio da Unidade Funcional

GUSDORF sublinha o aspecto fundamental de ser o homem o gerador de todas as ciências;

sendo assim, somente ele pode dar sentido à multiplicidade de dados biológicos, físicos, econômicos, históricos, artísticos, culturais e transcendentais. O autor aponta para a conveniência de se “afirmar em princípio a unidade funcional do ser humano, única capaz de servir de contra-peso ao esmigalhamento das tecnologias particulares. Toda ciência do homem deve partir do homem e a ele retornar” (1967, p.75).

Entende-se, pois, ancorando-se nas análises de GUSDORF, que, à medida que o saber se

afasta de sua função no processo de desenvolvimento humano, configura uma quebra na unidade do saber como um todo, correspondente à unidade do homem, gerando o esmigalhamento do espaço epistemológico, como coloca aquele autor (p.71). A ciência, desvinculada dos pressupostos humanos e atribuindo-se um significado próprio, um sentido em si mesma, resulta em uma disfunção. GUSDORF denomina a este fenômeno “inflação mórbida” (1967, p.69), referindo-se à

subdivisão do espaço epistemológico em inúmeras especialidades e JAPIASSU (1976) usa expressões como sintoma e patologia, ao refletir a respeito do mesmo processo.

Do ponto de vista sócio-cultural, o resultado do pensamento racionalista pode ser visto no levantamento feito por CAPRA (1997, p.19), dos problemas advindos da concepção mecanicista da

civilização tecnológica, que, segundo aquele autor, já está em seu estágio final, citando questões importantes, como as dimensões e poderes da indústria armamentista, a produção de armas nucleares, os riscos da tecnologia nuclear mesmo para fins pacíficos, as patologias sociais como desemprego, violência, drogas, suicídios e homicídios “epidêmicos”, as doenças também epidêmicas, os problemas da tecnologia industrial, poluição e deterioração do meio ambiente, que também vão redundar em agressões à saúde, como evidências de sua afirmação.

Em relação à desorganização do todo e suas conseqüências, surgem relações interessantes com outras disciplinas investigadas nesta pesquisa, que merecem ser destacadas.

Embora as concepções orgânicas e sistêmicas, assim como os princípios unificadores, ainda não sejam amplamente difundidos e defendidos, perdurando, em muitos redutos, a predominância do pensamento fragmentado e a supervalorização das especialidades sobre propostas unificadoras, abrangentes e ecológicas, despontam, no meio científico, autores de diferentes áreas que refletem acerca da necessidade de se adotar abordagens sistêmicas para investigar as interações entre as partes, na busca de recuperação do todo, de reconstituição da unidade funcional.

Este conceito de unidade funcional édestacado aqui, portanto, por que situa com clareza a questão dacompreensão de um todo que integra suas partes, seus componentes, em sua função, que pode ser apontado quanto a unidade complexa do homem, como o faz GUSDORF,e mostra relações

com uma concepção sistêmica do conhecimento, enfatizada, neste trabalho, com o pensamento de

GARCIA (2002). A compreensão sistêmica surge em áreas diversas, mostrando a pertinência da

abordagem interdisciplinar.

Outra questão trazidapor GUSDORF (1961), também com relação à divisão do trabalho e à quebra da unidade, é a do processo alienante provocado pela mecanização do trabalho na produção industrial, que o autor sugere a possibilidade de ocorrer, também, de forma e com significados semelhantes, no trabalho intelectual, podendo ser pressentida na subdivisão do espaço epistemológico.

GUSDORF aponta para a alienação resultante da divisão do trabalho e para os prejuízos

causados ao trabalhador com a perda do sentido global da sua atividade, sem que ele tenha entendimento do processo, perdendo, também, o envolvimento afetivo com o mesmo. O autor detecta um processo semelhante nas atividades intelectuais e na construção do conhecimento, com relação à divisão e à especialização. Apontando para o componente alienante que daí pode resultar,

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saber, parecem completamente alienados”.2 A descontextualização das atividades científicas

especializadas surge, por exemplo, na alta porcentagem de engenheiros desenvolvendo projetos para a industria armamentista, enquanto “trinta e cinco por cento da humanidade carece de água potável” (CAPRA. 1997, p.20).

Portanto, para restabelecer o equilíbrio e a unidade funcional do ponto de vista macro-estrutural, do conhecimento e da cultura em que se insere, é necessário um avanço nos estudos humanos que conjugue a ciência no todo do conhecimento humano, na sua unidade, dentro de uma perspectiva de síntese, de integração interdisciplinar, tendo a unidade do homem como princípio e meta, como propõe GUSDORF (1967).

1.1.3 A Inteligibilidade

É preciso efetivamente recompor o todo para conhecer as partes. (MORIN, 2001, p.37)

A unificação do saber possibilita um olhar abrangente, totalizador, organizador, detecta elementos e relações, faculta o estabelecimento da significação e a realização da inteligibilidade.

Pode-se reconhecer na Antigüidade clássica e em toda a Idade Média a unidade do conhecimento, regida por princípios catalisadores, como a “ordem divina” expressa no cosmos, ou o cristianismo. No Renascimento, o sentido do humano presente nas artes e literaturas grega e romana, é retomado, junto a outros ideais clássicos. O homem, com a dignidade de criatura à imagem e semelhança de Deus, é colocado como “centro de reflexão”, “um núcleo axiológico”, como se lê no Prefácio de GUSDORF ao livro Interdisciplinaridade e Patologia do Saber, de JAPIASSU (1976, p.18).

Na era moderna, o racionalismo deu à ciência a pretensão de constituir um objetivo em si mesma, esquecendo-se de sua função e natureza humanas. As ciências humanas se desenvolveram a partir dos parâmetros das ciências exatas, com os métodos das ciências “inumanas”. Contra isso,

GUSDORF (1967) argumenta que existe uma inteligibilidade própria do humano, que não pode ser

compreendido a partir do conhecimento da realidade, mas, ao contrário, é a realidade mesma que deve ser compreendida a partir e em função do homem, “porque a ciência é feita pelo homem e para o homem, e não o homem para a ciência” (p.68).

Considerando o domínio do humano como constituído de “fatos-valores” que encarnam e materializam intenções e projetos de indivíduos concretos, ele afirma que “a ciência positivista é uma falsa ciência porque, sob o pretexto de reter apenas os fatos, torna-se cega às significações” (p.69).

A necessidade de buscar a unidade do saber coincide com a de encontrar um princípio que viabilize uma inteligência alternativa para a leitura da realidade. A urgência da inteligibilidade está na essência do humano, na sua capacidade de interação, necessariamente inteligente, com a realidade, como fonte do conhecimento, no seu processo de permanente adaptação. É a partir da complexidade do homem e de suas relações com a realidade múltipla que se explicita a necessidade da interdisciplinaridade: “Porque a realidade humana se encontra caracterizada pelo entrecruzamento de muitos determinismos, em que cada um repercute sobre todos os outros” (1967, p.86).

O contraste entre a perda de unidade e de sentido do conhecimento e a necessidade humana de inteligência, compõe, assim, o quadro, cujo “sintoma”, como assinala JAPIASSU (1976, p.30), sinaliza a necessidade que gera o surgimento da interdisciplinaridade, a busca da convergência e da unidade.

2 “De là cette impression donnée trop fréquemment par des savants qui font autorité: en dépit de leur savoir, ou plutôt à cause de leur savoir, ils paraissent complètement aliénés (1967, p.90/91).

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1.2 ROLANDO GARCIA E PIAGET 1.2.1Garcia: A Abordagem Sistêmica

Em razão do objeto deste trabalho envolver as funções e processos cognitivos e tratar de questões relativas ao ensino e aprendizagem, encontra-se na epistemologia o espaço apropriado para a reflexão interdisciplinar a respeito do conhecimento musical. Inicia-se essa reflexão a partir do pensamento do físico e epistemólogo Rolando GARCIA (2002), que retoma as formulações de

PIAGET para elaborar a sua teoria do conhecimento como sistema complexo, importante referência

neste trabalho, lembrando que PIAGET aponta para a “natureza essencialmente interdisciplinar da

epistemologia” (1980, p.9).

A proposta de Rolando GARCIA (2002) traz um outro olhar à interdisciplinaridade, tomada

agora como necessidade intrínseca à investigação epistemológica, dada a natureza complexa do conhecimento e das atividades cognitivas. Este autor oferece fundamentos para a localização do objeto desta pesquisa e de sua abordagem. GARCIA interessou-se pela epistemologia ao conhecer

PIAGET, e propõe sua teoria epistemológica, “construtivista” (p.40), retomando conceitos e

fundamentos da epistemologia genética. GARCIA, porém, físico que é, aborda o conhecimento a partir da teoria dos “sistemas complexos” que lhe serve de referência, ressaltando a significação epistemológica das descobertas psicogenéticas de PIAGET, bem como de sua conceituação e

métodos. É assim que se fundamenta a compreensão do espaço epistemológico na proposta de

GARCIA.

Esta concepção embasa a coerência e a pertinência da interdisciplinaridade, abrangendo, ao mesmo tempo, a multiplicidade e a visão do todo, e utiliza, em sua abordagem, a formulação de sistemas complexos, proveniente da física, que afirma aplicar em diferentes trabalhos seus.

Como o conceito de sistemas complexos tem dimensões e implicações que geraram teorias, o pesquisador procura “oferecer ao menos uma aproximação, mesmo que resumida, que fundamente a consideração do conhecimento como sistema complexo” (GARCIA. 2002, p.54).

O sistema complexo identificado por GARCIA,em relação ao conhecimento,organiza-se por “níveis desacoplados, semi-autônomos, mas interdependentes...” (p. 64): o biológico, o mental e o sócio-cultural. Estes são diferentes, quanto às formas organizativas, apresentam dinâmica própria e situam-se em diferentes domínios de fenômenos, mas, no sistema, suas participações são conjugadas numa mesma função, em forte interação. A forma e a função do sistema complexo não podem ser explicadas pela soma de enfoques independentes, ou pelos resultados particulares de abordagens específicas de cada componente ou subsistema. O todo tem características e funcionamento próprios.

(é) uma totalidade com propriedades que não são simplesmente um agregado das propriedades de seus elementos. (GARCIA.2002 p. 53/54)

(é) uma representação de um recorte da realidade... que se possa analisar (...) como uma totalidade organizada, no sentido de ter um funcionamento característico. (2002, p.55)

Os elementos constituintes de um sistema são, portanto, subsistemas, ou seja, sistemas em sua própria escala, contendo neles mesmos seus próprios componentes que podem, por sua vez, abrigar outros subsistemas. GARCIA compara esta relação com a teoria dos conjuntos, em que,

igualmente, o subconjunto pode constituir um conjunto em si mesmo, com seus próprios subconjuntos. “O sistema geral (do conhecimento) pode-se considerar constituído por três subsistemas: o subsistema biológico, o subsistema psicológico ou mental e o subsistema social” (2002, p.69). A construção do conhecimento se dá, então, na interação funcional entre atividades bio-fisiológicas e psicológicas, ou mentais, do sujeito em um meio sócio-cultural também determinante. GARCIA esclarece que PIAGET centrou sua investigação no subsistema psicológico ou

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1.2.2 Epistemologia Construtivista, Material Empírico e Construção Teórica

O conceito de epistemologia, empregado a partir do final do século XIX ganha, com

PIAGET, um sentido mais amplo do que anteriormente, ao considerar a continuidade funcional das

atividades cognitivas desde suas raízes biológicas, sem possibilidade de se demarcar um ponto inicial, e situando a generalidade dos mecanismos construtivos, que atuam em todos os níveis do desenvolvimento cognitivo. A construção dos diversos conhecimentos, portanto, corresponderia ao processo das mesmas funções cognitivas, seja qual for o objeto, desenvolvendo mecanismos de construção gerais para todas as fases e formas que o conhecimento possa assumir. Esta função cognitiva de raízes biológicas está relacionada à sobrevivência e aos processos de auto-regulação do organismo e vai das ações mais elementares até o mais alto nível do conhecimento científico: “não há para o construtivismo duas teorias do conhecimento (pré-científico e científico), e sim uma única que deve abranger todas as etapas do desenvolvimento individual e social, incluindo o conhecimento científico” (GARCIA. 2002, p.75). l

Ante a impossibilidade de uma definição suficiente do que seja conhecimento, o autor mostra, porém, que este pode ser caracterizado pelas atividades que lhe são próprias, as atividades cognitivas. No caso da epistemologia, o material empírico constitui o que GARCIA denomina de complexo cognitivo. O complexo cognitivo é um recorte, entre as atividades humanas, que inclui “comportamentos, situações e atividades (como aquelas institucionalizadas), socialmente consideradas como tendo caráter cognitivo” (GARCIA.2002, p.33). As atividades do sujeito dão-se em todos os domínios da realidade, enquanto o processo cognitivo se dá na interação dessas atividades. O autor esclarece o conceito de recorte, recorrendo a uma formulação do sociólogo francês LUCIEN GOLDMANN, que diz: “O problema do método em ciências humanas consiste em fazer recortes dos dados empíricos em totalidades relativas suficientemente autônomas para servir de marco de um trabalho científico” (GOLDMANN apud GARCIA.2002,p.34).

O sistema cognitivo é, pois, uma construção teórica, que descreve e esclarece o complexo

cognitivo, e abrange as atividades que se dão nos domínios, ou subsistemas, biológico, mental e social. Cada subsistema, estruturalmente diferenciado e com dinâmica própria, está funcionalmente conjugado aos outros no sistema maior, sendo, desta forma, todos eles interdependentes, inter-relacionados e indissociáveis,de tal modoque qualquer mudança em um deles reflete-se nos outros.

GARCIA (2002) localiza, como condições de contorno dos sistemas, o efeito, no próprio sistema, de

suas interações com outros sistemas, e usa metaforicamente, para estas interações, a idéia de “fluxos” de entrada e de saída, através dos quais os sistemas se inter-relacionam.

As atividades que compõem o complexo cognitivo, dando-se nos três níveis já citados, biológico, mental e social, não são “estritamente separáveis” entre um domínio e outro. É assim que a concepção do conhecimento como sistema complexo, de GARCIA, fundamenta a abordagem

interdisciplinar, apoiada, tanto na teoria dos sistemas complexos, quanto na epistemologia genética, que detecta, no sujeito cognoscente, a complexidade da atividade cognitiva, envolvendo as instâncias sensório-motora, afetiva e intelectual.

1.2.3 O Sistema Cognitivo

Dentro desta perspectiva, o conhecimento não pode ser compreendido apenasa partir de um aspecto de suas atividades, representado em um dos subsistemas. Como lembra PIAGET: “a interdisciplinaridade deixa hoje de ser um simples produto de ocasião, para tornar-se a própria condição do progresso das pesquisas nas ciências humanas”. (PIAGET apud JAPIASSU. 1976, p.55)

Os componentes do sistema não são estáticos. Os domínios biológico e mental estão em processo de transformação e desenvolvimento, assim como o social, determinado pela cultura viva, pela história presente. Dessa maneira o conhecimento fica caracterizado como um processo, um sistema em transformação. Como explica CAPRA (1997, p.260), “... outro aspecto importante dos

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