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Os Esquemas de Ação e o Ensino/Aprendizagem do Piano

Capítulo 3 Dimensões do gesto musical

3.2 Os Esquemas de Ação e o Ensino/Aprendizagem do Piano

Nos capítulos anteriores, muito se discutiu a respeito dos processos cognitivos, à luz das teorias de GARCIA,PIAGET eDAMÁSIO. Entre os conceitos estudados, destacou-se a formação de

esquemas, durante o processo de aprendizagem.

No que se refere à iniciação musical instrumental, pode-se relacionar a construção do gesto musical com a desses “esquemas de ação” da epistemologia construtivista (GARCIA. 2002, p.77),

considerando-os, especificamente, como “esquemas de ação musical’, e, portanto, peças fundamentais para a construção do conhecimento musical.

Quando uma criança “tira” uma melodia no piano pela primeira vez, ela está descobrindo um esquema de ação. Mesmo que seja apenas com o indicador, ao assim proceder, ela está descobrindo uma forma de realizar e articular uma seqüência de notas de uma configuração sonora, por meio de seus movimentos, em uma configuração espacial, concretizando, assim, a idéia de melodia, que ela repetirá para atingir o mesmo objetivo, assimilará e converterá em “esquema”. Para fazer outra melodia, ela utilizará o mesmo esquema, adaptando-o, tal como se pode entender na epistemologia construtivista. Quando passa a tocar com todos os dedos, desenvolve, então, outro esquema de ação musical, mais rico e complexo do que o anterior, mas a ele relacionado, que traça novas correspondências com o objetivo sonoro. O ordenamento espacial da melodia corresponderá, não mais a uma seqüência pontual de movimentos, mas a um desenho gestual, envolvendo a mão e o pulso, em um caminho que passa de um dedo para o outro, por exemplo. Este esquema será, também, adaptado a novas melodias, a outras intensidades, outros andamentos, e assim por diante.

O mesmo se dá, por exemplo, quando se tocam notas simultâneas, ou acordes. Estabelece- se novamente um esquema de ação musical, que não é apenas uma ação motora. Ela corresponde a um elemento da música, a uma idéia sonora. Este esquema se desenvolverá muito, desde duas notas

tocadas com as duas mãos, a acordes perfeitos, invertidos, com sexta, com sétima, com nona, em diversas posições e distribuições no espaço sonoro, com variações de dinâmica, de ataque, fazendo sobressair determinadas notas, com sobreposição tonal, atonais, “clusters”, enfim, em todas as variações possíveis.

Os arpejos, por sua fez, unem, de certa forma, acorde e melodia, tanto no que se refere à realização musical, quanto à gestual. Ocorre, também, a fusão dos dois esquemas: as posições dos acordes com o movimento seqüencial da melodia.

Crescer e diminuir também constituem esquemas de ação, não tão simples quanto parecem. As crianças, por exemplo, costumam, no início, confundir crescendo com acelerando e decrescendo com ralentando. Isto por que estes esquemas têm em comum o fato de lidarem com a passagem gradativa de um estado a outro, um relativo à dinâmica e outro ao andamento. Custará esforço e experiência para que a criança os diferencie, na própria ação.

Pode-se supor que a significação do desenvolvimento destes esquemas, para a aprendizagem musical, é a mesma que tem para o conhecimento em geral, de acordo com a teoria construtivista. E é a partir dos esquemas e da sua abstração em relação aos conteúdos específicos, que surgirão os conceitos musicais, que se formam a partir da experiência; assim, ao experimentar várias melodias, forma-se uma idéia; dessa idéia emergirá o conceito de melodia. WILLEMS (1985) aponta este processo de abstração na concepção de simultaneidade dos sons nos acordes, que conta com a análise, a distinção dos sons simultâneos, e a síntese harmônica na construção do conjunto.

Uma vez criados e assimilados os esquemas, pode-se falar da capacidade de abstração. Sublinhando o papel da abstração, sobretudo da “abstração reflexiva”, PIAGET (2001) assenta a construção do novo e da criatividade. GARCIA (2002), que trabalhou com PIAGET por ocasião de

suas ultimas obras, destaca, também, além deste, o processo da generalização que lhe é complementar.

Apesar da complexidade e da abrangência de tais questões, o que se ressalta é que os processos apontados na construção do conhecimento, desde as constatações mais simples, precisam ser facultados, favorecidos ou propiciados, para que se instale, de fato, a relação de conhecimento musical. A ação cognitiva do sujeito só pode ocorrer se ele for colocado diretamente em relação com o material sonoro e com o fato musical. A questão da novidade, do surgimento do novo, esclarece o conhecimento como um processo aberto, em transformação. Se este processo não se instala, se os mecanismos de construção não atuam, não se pode, então, afirmar que esteja de fato instaurada uma relação de conhecimento, que somente é atingida, quando o aluno, desenvolvendo a percepção do material sonoro, a sua capacidade de captação e apreensão deste material, possa então, com este material, passar a relacionar, comparar, encontrar correspondências e transformações, classificar, organizar, constatar, inferir, abstrair, generalizar.

Em oposição à construção do novo, outro aspecto deve ser destacado: o princípio de repetição. A repetição, necessária no processo de aprendizagem, construindo e assegurando as conquistas, não é um valor em si, mas um mecanismo de apreensão, desde os primeiros esquemas de ação da epistemologia construtivista. Porém ela acontece enquanto ato completo, com seu conteúdo e objetivo. A criança, quando estica o braço, busca aproximar a mão do objeto, contraindo os dedos para segurá-lo; depois, ela contrai o braço, para trazê-lo perto de si; quando assim procede, ela tem, de fato, a intenção de pegar o objeto, não está, apenas, “treinando” o seu esquema de ação, embora a descoberta de um novo esquema possa, inicialmente, manter a atenção centrada na própria ação. Isso quer dizer que, no estudo musical, a repetição deve ser considerada, sempre, uma nova execução de determinada obra, ou de trecho dela, com capacidade de mostrar todo o interesse e qualidades musicais implicados, mesmo quando se estuda lentamente, fora do andamento próprio.

A repetição mecânica reafirma erros, não colabora para uma melhor construção da interpretação e da performance, pode ajudar apenas do ponto de vista técnico e, assim mesmo, nem sempre. A repetição, nos exercícios de técnica, por si só, já possibilita outro tipo de desintegração do gesto musical, que é o de desvincular, tanto a inteligência quanto as emoções, da atividade motora, que se torna, então, autônoma, mecanizada. De forma geral, isso se reflete nos problemas

enfrentados pelos músicos, pois, forçando movimentos ou usando o corpo de forma inadequada, a prática instrumental leva, muitas vezes, a processos dolorosos e distúrbios corporais. O índice deste tipo de desarranjo entre músicos é significativo, conforme já foi colocado.

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