• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3 Dimensões do gesto musical

3.3 Em Busca do Gesto Musical

O que se propõe aqui é um outro olhar sobre as questões da aprendizagem e da prática musical pianística, que tire o foco do virtuosismo e tenha como objetivo o desenvolvimento do sujeito desta prática, e como parâmetro a música, suas funções, seu sentido, sua necessidade e seu desenvolvimento histórico-social.

O primeiro esclarecimento que precisa ser feito é com relação ao próprio virtuosismo. Não se trata aqui de negá-lo como necessidade e função. A música dos séculos XVIII e XIX constitui um acervo de valor inquestionável, sua preservação é uma necessidade inconteste, e, para a sua execução plena, adequada e pertinente o alto desenvolvimento das habilidades motoras continua sendo imprescindível. Também na música contemporânea a necessidade continua colocada e existem muitas peças escritas no século XX que implicam uma grande dificuldade de execução.

O que é necessário distinguir, primeiramente, é o profissional, dos outros indivíduos que têm, igualmente o direito de desenvolver a sua musicalidade e o seu potencial sensível, motor, afetivo e intelectual, que se encontram conjugados na música e nas outras linguagens expressivas, para o seu mais completo e harmônico desenvolvimento humano.

O interesse e as investigações acerca das atividades cognitivas envolvidas na música, por áreas centrais do conhecimento científico, como as neurociências, por exemplo, assim como a presença da música com formas diversas e em funções diferentes, em todas as culturas, em todos os tempos, como exemplifica a existência de instrumentos confeccionados há, “pelo menos trinta e dois mil anos”, como a flauta de osso mostrada em edição recente, de número 31, da revista

Scientific American/Brasil (Dez. 2004, p. 83), apontam para uma função musical necessária, inerente ao homem desde os seus primórdios, nascida com a fala, com os movimentos, necessidade cognitiva vital, de contato consigo mesmo, com o outro, com a realidade exterior e até com o imaterial, o invisível e o transcendente.

A intrigante relação homem/música também é tema de reflexão, quando, desde a Antiguidade Clássica, se investiga a influência da música sobre os homens e seu caráter, e defende sua importância na educação. Em Esparta, por exemplo, o Estado legislava sobre a música e a sua presença na educação era obrigatória, sendo por ele supervisionada, como relata FONTERRADA.

“Nenhum espartano, de qualquer idade, sexo ou classe social era excluído desse exercício”(2001, p.10). Como esclarece a autora, a concepção de que a música “colaborava na formação do caráter e da cidadania”, dava-lhe especial importância, e impedia-se o uso de determinados modos, considerados inadequados para estes fins. Esta reflexão sobre os modos, ou as harmonias, como está colocado, encontra-se também no Livro IV de A República, de PLATÃO, num momento em que

o diálogo recai sobre os cuidados com a educação das crianças e jovens, encontram-se referências significativas ao corpo e, especialmente, à música, que se destacam aqui:

Cumpre que os encarregados da cidade se empenhem no sentido de que a educação não se altere sem o conhecimento deles, que velem por ela em todas as circunstâncias e, com todo o cuidado possível, acautelando-se para que nada de novo, no tocante à ginástica e à música, seja introduzido contra as regras estabelecidas [...], pois é de temer que a adoção de um novo gênero musical ponha tudo em perigo. Nunca, com efeito, se assesta um golpe contra as formas da música sem abalar as maiores leis da cidade, como afirma Damon, e eu o creio de bom grado (PLATÃO, 1965, p.p.

Em nota de rodapé, na mesma página, o editor, apontando outras referências, esclarece que a conexão entre música e política era “universalmente admitida na Grécia”. (p. 203).

Toma-se aqui, portanto, como necessária, a compreensão da música nesta dimensão que transcende as formas culturais, inclusive as nossas – as salas de concerto, os grandes músicos e as grandes obras – e que pode exercer um papel significativo na formação e desenvolvimento dos indivíduos, para que se possa refletir sobre os processos e o sentido mais abrangente da sua prática e, assim, investigar os parâmetros para um ensino instrumental pertinente ao desenvolvimento do conhecimento musical. Ao invés de propor o ensino voltado para a profissionalização, portanto, para poucos, ele pode, calcado em outros fundamentos e com outros objetivos, ser considerado como um processo geral, para todos, como, aliás, pretende-se na Educação Musical. É o instrumentista profissional, como em outras atividades, que deve surgir e se destacar a partir de uma aprendizagem fundamental e básica, disponibilizada para todos. Ao músico que se destaca por suas qualidades específicas e que, portanto se dedica especialmente ao trabalho musical é que, na medida em que a necessidade se colocar, deverão ser dadas condições particulares para o seu desenvolvimento. O que não se fundamenta é o contrário, ou seja, disponibilizar-se um método destinado à profissionalização, para um curso fundamental, o que gera os problemas já apontados anteriormente.

3.3.1 A Integração do Gesto Musical

Na divisão do gesto musical em dois aspectos, como vem sendo apontado, com a predominância do aspecto mecânico sobre o expressivo é, literalmente, incorporada pelo indivíduo durante a própria prática. Através de atividades repetitivas e condicionantes, o aluno incorpora atitudes, posturas e gestos no decorrer do aprendizado. Superar a divisão do gesto, ultrapassar a fase de predominância dos aspectos mecânicos sobre os outros, implica refazer o todo, somar os aspectos expressivos, cognitivos e mecânicos, tornando-os um único gesto musical. É um caminho difícil, pois a maioria dos jovens, pela forma mesma da sua aprendizagem, não tem, sequer, noção de sua potencialidade motora, em sua amplitude, e nem, recursos para compreender o desenvolvimento de suas habilidades na prática pianística, além dos que constam da concepção predominante e no princípio da repetição. O aprimoramento, além de determinados limites, que permite, de fato, um domínio da execução e uma possível profissionalização, em um mercado de trabalho bastante restrito e competitivo, como o da música erudita tradicional, sobretudo no Brasil, para o qual grande parte dos alunos tem sua prática dirigida, restringe-se aos especialmente dotados, aos que tiveram condições especiais de aprendizagem, aos que tiveram sorte de encontrar um caminho eficiente, ou aos que se caracterizam como muito persistentes, de qualquer maneira, a poucos. Ao se focalizar a corporalidade do gesto musical, busca-se, exatamente, a superação dessas condições, na integração essencial do gesto na música – enquanto atividade cognitiva e expressiva – e na integridade da própria função gestual. Busca-se, pois, nesta pesquisa, uma apreensão mais abrangente do que a que abordagem que se está criticando, ao investigar as implicações do gesto nas principais instâncias de sua complexidade.

3.3.2 A Expressividade do Gesto Musical

Como o centro deste trabalho é, fundamentalmente, a corporalidade do gesto musical, a primeira questão que se coloca, portanto, é que a prática musical instrumental ao envolver direta e amplamente as funções corporais do sujeito, envolve, na verdade, o seu potencial expressivo, o seu canal gestual, incluindo suas emoções e afetos.

Portanto, o ensino da música, ao solicitar atividades corporais, por este canal, está em interação direta com a instância emocional e afetiva. O que se torna relevante para a reflexão a respeito das formas em que esta interação pode se dar no processo educacional, ou seja, o caminho da dissociação - identificado com a abordagem tecnicista, ou o da integração, como muitos têm

buscado. É neste sentido que é importante levantar as informações significativas e buscar as relações entre elas, para fundamentar estas alternativas.

Relacionadas a estas possibilidades, surgem os aspectosrelativos à expressão do sujeito. O desenvolvimento do trabalho de prática pianística dar-se-á em um corpo com organização psíquica estabelecida, individual, que tem suas defesas, posturas, atitudes que, no nível corporal, estão em contato com o desenvolvimento da habilidade motora, a qual, por sua vez, requer a disponibilidade corporal. As organizações posturais inatas e adquiridas interagem, de alguma maneira, com as atividades corporais envolvidas na ação musical.

O aspecto afetivo e expressivo está inter-relacionado e envolvido nesse processo, de tal forma que buscar a maior disponibilidade corporal do indivíduo pode significar maiores recursos expressivos, estando o corpo e a gestualidade em interação com a instância emocional e psíquica.

Nessas condições e considerando o aspecto espontâneo que integra a expressão das emoções, implicando a participação do sistema nervoso autônomo, segundo REICH (1965) e

DAMÁSIO (1996), torna-se necessário questionar se é possível construir-se racional e

mecanicamente o gesto expressivo musical, com a ruptura de sua unidade funcional, com a separação do movimento do seu correspondentes emocional e intelectual. Quanto a este aspecto, a pesquisa de FRANÇA (2000) não deixa dúvidas quanto à maior integridade expressiva do gesto musical, quando este expressa a própria composição do aluno, portanto quando este gesto expressa diretamente a integração de pensamento e sentimento do executante. A autora refere-se à “realização musical da técnica, com o propósito imediato de expressar uma idéia ou um efeito desejado” (p.57).

3.3.3A Organização do Gesto Musical

Entende-se que, mesmo informados a respeito de anatomia e fisiologia, para o instrumentista é necessário que estas questões sejam elaboradas na prática.

O que será colocado a seguir é a compreensão que o pesquisador temde um princípio de organização das atividades motoras dos braços, antebraços, mãos e dedos, na execução musical pianística. Vamos destacar esta forma de organização dos movimentos, em função dos seus resultados qualitativos e quantitativos, que foi possível investigar experimentalmente no desenvolvimento do trabalho, e como processo de aprendizagem nas atividades pedagógicas.

Outro aspecto importante que se quer salientar é o fato de que existe um princípio

organizador do gesto, o que quer dizer que este gesto tem uma forma de ser, uma lógica. Portanto, conhecendo este princípio, a execução deixa de ter mistérios e passa a ter caminhos. Isto é significativo, porque outra questão que paira sobre a prática pianística é a mística gerada em torno das dificuldades da execução. Estas dificuldades existem, são reais, mas são superáveis, como em qualquer outra atividade. Esta aura é alimentada pela prática tradicional de ensino, já apontada, que, de maneira geral, não oferece fundamentos sólidos do ponto de vista das atividades corporais, fundando-sena repetição facilmente mecanizada o que faz com que os resultados se tornem mais casuais, dependendo da disponibilidade natural de cada um, sendo atribuído, sempre, ao dom e ao talentoinatos, e não a fatores outros.

O que se quer dizer é que os não-excepcionais também podem tocar bem, até virtuosisticamente, e fazer boa música, se aprenderem a lidar com a complexidade sistêmica de seu ser expressa no gesto musical e puderem descobrir a natureza dos seus movimentos. E o principal é que, para se fazer e desfrutar de boa música, não é necessário ser virtuose, apenas desenvolver a musicalidade.

Documentos relacionados