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Políticas públicas de ação afirmativa : possibilidades decoloniais no Ensino Superior

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

MIRIAN

LÚCIA

GONÇALVES

POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA:

possibilidades decoloniais no Ensino Superior

C

AMPINAS

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MIRIAN

LÚCIA

GONÇALVES

POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA:

possibilidades decoloniais no Ensino Superior

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Educação, na área de concentração de Educação.

Orientadora: DEBORA MAZZA

Este trabalho corresponde à versão final da tese defendida pela aluna Mirian Lúcia Gonçalves e orientada pela profa. Dra. Debora Mazza.

Campinas 2019

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Título em outro idioma: Public Policies of affirmative action : decolonial possibilities

in Higher Education

Palavras-chave em inglês:

Public policies of affirmative action Decolonial education

Higher education Black movement Racism

Área de concentração: Educação Titulação: Doutora em Educação Banca examinadora:

Débora Mazza

Ângela Fátima Soligo

Cláudia Marinho Wanderley Mara Fernanda Chiari Pires Wilson Gomes de Almeida

Data de defesa: 29-01-2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO FIRMATIVA:

possibilidades decoloniais no Ensino Superior

Autora: MIRIAN LÚCIA GONÇALVES

COMISSÃO JULGADORA: Debora Mazza – Presidente

Ângela Fátima Soligo – membro interno Cláudia Wanderley Marinho – membro interno Mara Fernandes Chiari Pires – membro externo Wilson Gomes de Almeida – membro externo

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, a quem agradeço pela possibilidade de dedicação exclusiva durante três anos desta pesquisa.

Agradeço aos trabalhadores e às trabalhadoras do Estado de São Paulo que, ainda que sem saber, financiam as universidades públicas do Estado e, de tal modo, possibilitaram que eu cursasse graduação, mestrado e doutorado, desfrutando de um privilégio que, infelizmente, ainda é para poucos neste país.

Agradeço à minha família, em especial ao meu pai (in memoriam) e à minha mãe, amiga e conselheira, que nutre uma confiança inabalável em mim e na vida e, assim, inspira-me a seguir sempre em frente, apesar das pedras do caminho.

Às minhas amigas, umas de longa data, outras que a vida me presenteou ao longo deste trabalho. Amigas com quem troquei medos, angústias e as alegrias desse processo que é escrever uma tese. Correndo o risco de ser injusta cito algumas a quem a presença está também nas linhas aqui escritas: Angélica; Marina; Tamires, Alessandra, Nádia e Jordana: amigas com quem divido a utopia de dias melhores em que a justiça social seja uma realidade e não mais algo pelo que se lutar.

Aos colegas da EMEF Padre Emílio Miotti que me acolheram, ensinaram e travam comigo diariamente a batalha por uma educação pública, laica, gratuita e de qualidade. Em especial ao Professor Daniel e à Gilmara, pela amizade e companheirismo.

Às funcionárias da secretaria da Pós-Graduação, sempre atentas e atenciosas em ajudar nos processos burocráticos e resolver problemas.

Às funcionárias e funcionários terceirizados, muitas vezes invisíveis, mas que realizam o trabalho que torna possível todos os demais trabalhos.

Aos integrantes dos coletivos pesquisados, em especial aos respondentes dos questionários e entrevistas, pela contribuição que possibilitou esta pesquisa.

Por fim, agradeço imensamente à Professora Débora Mazza que me acolheu no momento mais difícil dessa caminhada, acreditando em mim e neste trabalho, quando eu mesma já tinha desacreditado.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos movimentos sociais que lutaram e ainda lutam por direitos.

Aos Movimentos Negros que nos revelam a verdadeira história por trás de heróis que carregam sangue negro e indígena nas mãos.

Aos indígenas que resistem e que nos ensinam outras lógicas de existência e resistência.

Aos movimentos feministas que me mostraram que lugar de mulher é onde ela quiser.

Ao MST que ainda precisa lutar pelo direito à terra para produzir alimentos livres dos venenos do agronegócio.

Aos trabalhadores e às trabalhadoras deste país que lutam cotidianamente para viver e sobreviver, mas ainda assim acreditam em dias melhores.

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Perguntar-nos-ão se o colonialismo português não teve uma ação positiva na África. A justiça é sempre relativa. Para os africanos, que durante cinco séculos se opuseram à dominação colonial portuguesa, o colonialismo português é o inferno; é onde reina o mal, não há lugar para o bem".

Amílcar Cabral A arma da teoria (1976)

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RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo geral analisar as Políticas Públicas de Ação Afirmativas (PPAAs) e seu efeito em duas universidades públicas. O suporte teórico do trabalho, ancorado na teoria desenvolvida pelo Grupo Modernidade/Colonialidade, desvela como o processo de colonização produziu desde o século XVI uma hierarquia epistêmica global, reproduzida também por meio da Universidade, que impõe um pensamento hegemônico e corrobora na perpetuação dos marcadores do sistema-mundo fundamentados na tradição eurocêntrica que tem o racismo como elemento estrutural e estruturante frente aos povos e culturas colonizadas, o que, apesar da descolonização política-jurídica, permanece no que se denomina colonialidade. Nosso quadro teórico inclui ainda um levantamento sobre as PPAAs no mundo e no Brasil a fim de compreender seus objetivos e, como, e por quê essas políticas entraram na agenda de diversos países e, mais tardiamente, do Brasil. Para tanto, realizamos pesquisa em fontes documentais para levantamento de diversas legislações, bem como, autores e obras que já se debruçaram sobre o tema. Metodologicamente, a pesquisa se insere como um estudo de caso que busca responder os efeitos causados pelas PPAAs em duas universidades públicas brasileiras: UFSCar e Unicamp. Levantamos os dados quantitativos acerca do perfil socioeconômico dos estudantes ingressantes nestas universidades no período de 2013 a 2017. Identificamos os coletivos, cuja pautas sejam de caráter étnico-racial, formados nestas universidades após a implementação das políticas de ação afirmativa inclusivas. A pesquisa empírica se deu por meio de questionários e entrevistas a fim de conhecer melhor as características dos coletivos e seus integrantes Partimos da hipótese de que as PPAAs, principalmente as de inclusão, como é o caso da Lei 12.711/12, ao possibilitar o ingresso de grupos antes excluídos do espaço acadêmico, como do povo negro e indígena, enriquecem as dinâmicas formativas e de sociabilidades dentro da universidade ao colocar no cenário acadêmico novas formas de pensar, sentir e agir, novas temáticas, diferentes epistemologias e demandas para diferentes formações que podem promover o que alguns autores tem denominado de pensamento decolonial. Uma segunda hipótese era a de que as Leis 10.639/03 e 11.645/08 são políticas públicas de ação afirmativa que dão amparo à demanda de formações ampliadas que supere o que muitos chamam de colonialidade do saber presente na universidade. A pesquisa mostrou que os Coletivos trazem alterações significativas nas universidades, como foi o caso da conquista das cotas no vestibular da Unicamp, organização de novos eventos como, por exemplo, o Quem tem Cor Age (Unicamp) e o Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros (EECUN), o vestibular indígena da UFSCar realizado agora em quatro capitais, não mais somente na UFSCar (São Carlos/SP). Além disso, a pesquisa empírica mostrou que temas, autores e epistemologias antes ignorados começam a emergir no cenário acadêmico brasileiro com estreito diálogo com o pressuposto pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08, o que confirma as hipóteses levantadas.

Palavras-chave: Políticas Públicas de Ação Afirmativa; Pensamento Decolonial; Movimento Negro, Ensino Superior; Racismo;

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ABSTRACT

This research had as general objective to analyze Public policies of Affirmative Action (PPAAs) and your effect on two public universities. The theoretical support of labor, anchored in the theory developed by Modernity/Colonialidade Group, reveals how the process of colonization has produced since the 16th century an epistemic global hierarchy also reproduced through the University, imposing a hegemonic thinking and corroborates the perpetuation of markers of the world system based on Eurocentric tradition that has racism as structural and structuring element front of colonized peoples and cultures, which, despite the decolonization legal policy, remains in called colonialidade. Our theoretical framework also includes a survey on the PPAAs in the world and in Brazil in order to understand their goals and, how, and why these policies entered the agenda of several countries and, later, of Brazil. To this end, we conduct research on documentary sources.To this end, we conduct research on documentary sources for survey of various laws, as well as authors and works that already pored over the theme. Methodologically, the lookup is inserted as a case study that seeks to answer the effects caused by PPAAs in two Brazilian public universities: UFSCar and Unicamp. We raise the quantitative data about the socio-economic profile of students entering these universities during the period from 2013 to 2017. Identify the collective, whose agendas are of ethnic-racial character, formed in these universities after the implementation of affirmative action policies, inclusive. The empirical research took place by means of questionnaires and interviews in order to better know the characteristics of collective and its members we set out the hypothesis that the PPAAs, especially inclusion, as is the case of 12,711/Law 12, by enabling the group ticket before excluded from academic space, as the black and indigenous people, enrich the training dynamics and social arrangements within the University to put the academic setting new ways of thinking, feeling and acting, new themes, different epistemologies and demands for different formations that can promote what some authors have called decolonial thought. A second hypothesis was that the law 10,639/03 and 11,645/08 are affirmative action policies that give extended formations demand support that surpasses what many call the colonialidade know this at the University. Research has shown that bring significant changes in Collective universities, as was the case of the conquest of the vestibular dimension in the Unicamp, organizing new events as, for example, the Who has Color Acts (Unicammp) and the national meeting of students and Collectives Black College (EECUN), the indigenous of vestibular UFSCar held now in four capitals, not only at UFSCar (São Carlos/SP). In addition, the empirical research.

Keywords: Public policies of affirmative action; Decolonial Thought; Black Movement;

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Árvore do Conhecimento Humano de Diderot e D'Alembert ... 34

Figura 2 - A redenção de Cam – Modesto Brocos ... 67

Figura 3 – Diagrama de respostas ao questionário - UFSCar... 152

Figura 4 - Diagrame de respostas ao questionário - Unicamp ... 152

Figura 5 - Sistema de reserva de vagas de acordo com a Lei 12.711/12 ... 161

Figura 6 – 1ª foto postada no 'Café das Pretas' - Angela Davis discursando... 174

Figura 7 - Eventos realizados pelo "Café das Pretas" ... 175

Figura 8 - Divulgação do Evento ... 176

Figura 9 - Publicação para a 1ª Reunião da Frente Negra UFSCar ... 178

Figura 10 - Evento para Participação estudantil no ConsUni de aprovação da Política de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade ... 181

Figura 11 - Evento organizado pela Frente Negra - UFSCar ... 183

Figura 12 - Roda de Conversa realizada pela Frente Pró-Cotas em 2014 ... 211

Figura 13 - Divulgação de Evento para discussão sobre Cotas. ... 215

Figura 14 - Carta Aberta da Frente Pró-Cotas ... 217

Figura 15 - Divulgação de debates sobre “Cotas Étnico-raciais” na FE ... 218

Figura 16 - Publicação racista após a aprovação do princípio de Cotas na 151ª Sessão do Consu ... 225

Figura 17 - Divulgação do I Quem tem Cor age ... 227

Figura 18 - Cartazes de divulgação das 4 últimas edições do "QUEM TEM COR AGE" .... 229

Figura 19 - Ações durante a Calourada Negra de 2014 ... 231

Figura 20 - Cartaz de divulgação da Calourada Negra de 2018 ... 232

Figura 21 - Denúncia realizada pelo NCN sobre atos de racismo na Unicamp ... 233

Figura 22 - Cartaz de divulgação do Ato contra o racismo e o fascismo na Unicamp ... 235

Figura 23 - Cartaz de divulgação para o Ato de Mobilização para aprovação do Projeto que previa a inclusão de cotas na graduação da Unicamp (21/11/2017)... 239

Figura 24 - Nota do NCN contra a ameaça fascista ... 240

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Políticas Públicas de Ação Afirmativa brasileiras ... 116 Quadro 2 – Projetos de Lei que resultaram na Lei 12.711/12 ... 122 Quadro 3 – Coletivos atuantes nas IES e seus propósitos ... 150 Quadro 4 – Presença de Disciplina com a temática de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e indígena (13 respondentes) ... 167 Quadro 5 - Presença de disciplinas que abordem História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena (8 respondentes) ... 204 Quadro 6 – Edições do Evento "Quem tem Cor Age" ... 228

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADunicamp – Associação dos Docentes da Unicamp CCI – Centro de culturas Indígenas (UFSCar)

CE – Ceará

CEB – Câmara de Educação Básica

CNCD – Conselho Nacional de Combate à Discriminação CNE – Conselho Nacional de Educação

COMVEST – Comissão Permanente para os Vestibulares (Unicamp) Consu – Conselho Universitário (Unicamp)

ConsUni – Conselho Universitário (UFSCar) CR – Coeficiente de rendimento (Unicamp) DCN – Diretrizes Curriculares Nacional DEM – Democratas

EECUN – Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros EJA – Educação de Jovens e Adultos

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio EUA – Estados Unidos da América

FHC – Fernando Henrique Cardoso FNB – Frente Negra Brasileira FPC – Frente Pró-Cotas da Unicamp

FUFSCar – Fundação Universidade Federal de São Carlos Fuvest – Fundação Universitária para o Vestibular

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IES – Instituições de Ensino Superior

INCRA – Instituto de Colonização e Reforma Agrária

INEP – Instituto Nacional Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

LDB – lei de Diretrizes e Bases

LGBTTQ – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário

MEC – ministério da Educação MG – Minas Gerais

MNU – Movimento Negro Unificado MS – Mato Grosso do Sul

MT – Mato Grosso

NCN – Núcleo de Consciência Negra da Unicamp ONG – Organização Não Governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

PAAIS – Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social PDT – Partido Democrático Trabalhista

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PL – Projeto de Lei

PL/RJ – Partido Liberal / Rio de Janeiro

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PPAA – Políticas Públicas de Ação Afirmativa

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

Reuni – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais RR – Roraima

RS – Rio Grande do Sul

SAADE – Secretaria Geral de Ação Afirmativa, Diversidade e Equidade UFSCar SC – Santa Catarina

SEPPIR – Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial SiSU – Sistema de Seleção Unificada

TEN – Teatro Experimental do Negro

UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFBA – Universidade Federal da Bahia

UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina UFSCar – Universidade Federal de São Carlos UHC – União dos Homens de Cor

UnB – Universidade de Brasília

Unicamp – Universidade Estadual de Campinas USP – Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

PREFÁCIO ... ... 15

1. INTRODUÇÃO ... 26

2. DA COLONIZAÇÃO À COLONIALIDADE: O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNICA ... 47

2.1.UM PAÍS COLONIAL É UM PAÍS RACISTA ... 73

2.2. COLONIALIDADE DO PODER, DO SER E DO SABER –PÓS COLONIALISMO E DECOLONIALIDADE ... 90

3. POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA (PAAS) ... 102

3.1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL ... 108

3.1.1. O debate sobre as “cotas” – a Lei 12.711/12 ... 121

3.1.2. História e Cultura africana, afro-brasileira e indígena – as Leis 10.639/03 e 11.645/08 ... 138

4. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA E SEUS EFEITOS – OS CASOS DA UFSCAR E DA UNICAMP ... 146

4.1. UFSCAR ... 153

4.1.1. Café das Pretas e Frente Negra – UFSCar ... 173

4.2. UNICAMP ... 184

4.2.1. Frente Pró-Cotas da Unicamp ... 208

4.2.2. Núcleo de Consciência Negra da Unicamp ... 225

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 242

6. REFERÊNCIAS ... 249

7. APÊNDICES ... 267

7.1. QUESTIONÁRIO ... 267

7.2. ENTREVISTA –FRENTE NEGRA UFSCAR ... 271

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PREFÁCIO

Escrever uma tese foi algo realmente desafiador. Foi um caminho tortuoso que me colocou em dúvidas acerca do meu “potencial acadêmico”, como também com minha postura “militante” pelos encontros e desencontros que tive nestes quase cinco anos. Chegar até aqui leva-me também a recordar os caminhos anteriores que me trouxeram até este momento.

Escrever esta tese me colocou em contato crítico com o ensino escolar que tive, o qual me ensinou a obedecer antes e muito mais que questionar. Foi na escola que aprendi, por meio de uma equação quase matemática que, filha de pai preto e mãe branca eu era parda. Que os negros vieram da África para serem escravos. Eu aprendi também, sem muita dificuldade, que “vovô viu a uva”, mas demorou muito tempo para que eu pudesse entender quem plantava a uva, que havia exploração dos trabalhadores e que no final nem todos teriam direito a desfrutar do seu sabor.

Cursar pedagogia foi o acontecimento que amparou as minhas questões e inquietações em teorias e discussões que, embora nem sempre acompanhadas da prática docente, fizeram com que pudesse compreender os incômodos vivenciados como “colaboradora” em uma empresa privada. Eu não queria vestir a camisa da empresa e tampouco conseguia deixar o lado pessoal do lado da fora da empresa como nos era solicitado. Eu ainda não conhecia Marx, mas já ansiava por mudanças que eu nem sabia que já haviam sido teorizadas.

Assim, desde a graduação em pedagogia (2004-2007) passei a entender a educação como um processo que deve ter em seu cerne o senso crítico, a reflexão e que tenha como objetivo central a formação de cidadãos éticos e socialmente responsáveis. Da menina que entrou no curso porque “gostava de criança” foi no estágio na Faculdade de Ciências Médicas que encontrei um caminho até então imaginável: a educação médica. Era fascinante pensar a formação de profissionais que, muitas vezes, esquecem que a medicina deve, antes de tudo, cuidar de gente. Foi assim, passando pela temática da Educação Médica que me interessei pela Educação Superior como tema para pesquisa.

Ao concluir a graduação cursei, como ouvinte, a disciplina “Teoria de Currículo e Filosofia na Educação Superior”, momento que conheci a teoria da Educação Geral1

e

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encontrei os respaldos teóricos que respondiam aos meus anseios para tratar deste nível de ensino e prosseguir com os estudos no mestrado (FE/Unicamp, 2010-2012), quando pesquisei a avaliação que os egressos dos cursos de Pedagogia e de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) faziam sobre as contribuições da formação acadêmica e das vivências universitárias para uma atuação como profissional-cidadão2 (GONÇALVES, 2012).

Esse estudo permitiu concluir, embora com ressalvas como o limite do tamanho e representatividade da amostra, que a Unicamp é capaz de possibilitar uma formação abrangente, crítica e pautada em valores éticos que possibilitou o desenvolvimento de um olhar mais sensibilizado sobre a sociedade na qual estes profissionais – médicos e pedagogos – estão inseridos e uma ação profissional que valoriza o ser humano, sem descuidar da preocupação com a sua inserção no mundo do trabalho, ciência e tecnologia (GONÇALVES, 2012).

Entretanto, durante o Mestrado3 tornou-se muito forte no cenário nacional a discussão sobre as cotas nas instituições de ensino superior, principalmente quando foi sancionada a Lei 12.711/12 que tornou obrigatória a reserva de vagas nas instituições de educação do âmbito federal para estudantes da escola pública e também para negros, negras e indígenas. Neste cenário fui me aproximando cada vez mais das questões de políticas públicas de ação afirmativa e das questões históricas e contemporâneas acerca das relações étnico-raciais, tão necessárias para o entendimento de nossa sociedade e da necessidade de políticas públicas que visam a igualdade racial.

Assim, voltando minha atenção e reflexão para estas temáticas foram desveladas situações que anteriormente eu pouco percebia e que agora tornara-se um mal estar constante: a quase ausência de negros, negras e indígenas ocupando os bancos das universidades, mas presentes massivamente nos seus serviços terceirizados, realidade vivenciada durante os mais de dez anos em que estive/estou na Unicamp; a quase ausência de negras e negros em profissões de prestígio social como Medicina e Engenharia, por exemplo; a presença quantitativa inexpressiva de negras e negros em meu convívio profissional e social, apesar da

sociedade, prepará-los para exercer o papel de cidadãos numa sociedade civil e política mais justa e democrática.

Prepará-los para o mundo do trabalho e não apenas para o mercado de trabalho (ALMEIDA, 2007). 2

O termo profissional-cidadão se refere ao sujeito que se vê primeiramente como um cidadão ativo e significativo em seu tempo histórico e que age profissionalmente em sua área tendo, primordialmente como perspectiva a sua condição de cidadão inserido em uma sociedade e um mundo global e complexo (PEREIRA, 2007).

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origem família paterna negra; a criminalização dos jovens negros, sempre tido como suspeitos; a História oficial apresentada, na qual as pessoas negras e indígenas, extirpadas de sua história e consideradas sem cultura, são apresentadas como escravas e/ou selvagens, ignoradas na sua essência humana e, por fim, a ausência de possibilidades pedagógicas que extrapolassem a exclusividade da tradição eurocêntrica dos currículos.

A partir deste cenário, comecei também a me incomodar com as perspectivas da Educação Geral no Brasil que, apesar de objetivar o rompimento das barreiras disciplinares e buscar transcender as áreas específicas do conhecimento a partir de um diálogo interdisciplinar que retoma a tradição clássica ocidental, não tem buscado incorporar as histórias, filosofias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas limitando, desta forma, o horizonte de formação geral e reforçando o silenciamento sobre o conhecimento dos povos africanos e indígenas que, além dos europeus, são também basilares na constituição de países como o Brasil4.

Essas novas reflexões fizeram com que eu questionasse por que, apesar de ter cursado Pedagogia em uma das bem-conceituadas universidades brasileiras, não tive qualquer aproximação acadêmica com as Histórias e Culturas Africanas e Indígenas, apesar de à época5 já ser obrigatório, por força da Lei 10.639/03, o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira6. Isso me fez questionar se, após mais de dez anos da implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, estas temáticas teriam finalmente ganhado espaço no currículo formal dos cursos, principalmente de formação de professores, e se as universidades passaram a se organizar para oferecer uma educação antirracista. Essas foram as inquietações que começaram a dar forma a este trabalho.

De frente a essas questões que me perturbavam por não encontrar na academia a ressonância e interlocução que desejava para as mesmas, percorri um caminho de leituras e tentativas, muitas vezes frustradas, de um trabalho que dialogasse com as minhas ansiedades e o desejo de contribuir com uma formação que superasse o racismo e a ideologia7 da

4

Silva (2007) explica que isto acontece porque somos oriundos de uma educação que atribui aos brancos europeus a cultura que denominam clássica, desconhecendo as culturas dos povos não europeus que também têm permanecido no tempo e, portanto, são igualmente clássicas. Assim, diz a autora, ignoramos que o conhecimento produzido pelos egípcios, povo negro, são a nascente da filosofia e das ciências que se costuma atribuir aos gregos e a outros europeus.

5 Cursei licenciatura em Pedagogia na Faculdade de Educação da Unicamp durante o período de 2004 a 2007. 6

A questão indígena é incluída cinco anos depois, em 2008.

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democracia racial, como também contribuísse para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária a partir da construção de uma nova perspectiva de relações étnico-raciais.

Por fim, o fator determinante que me trouxe um novo caminho e fez emergir o problema desta pesquisa se deu quando, ao ser contemplada com uma Bolsa Santander para intercâmbio, estive durante 70 dias (outubro a dezembro de 2016) em Cabo Verde, país insular da denominada África Ocidental. A expectativa era a de que me depararia com Histórias e Culturas Africanas vivas que me subsidiassem a aproximação com a ancestralidade africana que foi relegada ao Brasil pelo racismo epistêmico8. Entretanto, a surpresa e frustração tão logo chegaram ao perceber que o peso da colonização portuguesa neste país é tal qual ou ainda mais forte que no Brasil, o que pode ser explicado em vista da sua recente independência, em 1975, que, embora conquistada à base de luta, não foi suficiente para romper com cinco séculos de dominação que acabara por impor também em terras africanas a hegemonia cultural, religiosa e epistemológica europeia9.

Assim, pude presenciar – com o limite do tempo e espaço em que estive no país10 – a religiosidade cabo-verdiana fortemente ligada ao cristianismo com uma maioria esmagadora da população autodeclarada católica. Presenciei também manifestações religiosas de igrejas evangélicas como a Batista, Adventista do 7º dia, Nazareno e Universal do Reino de Deus. Na universidade, era comum ver estudantes com terços adornando o pescoço, ou brincos com a imagem de Jesus Cristo. Não encontrei manifestações religiosas ligadas às matrizes africanas, como o Candomblé, por exemplo.

Pude ainda perceber que o ideal de branqueamento está presente, tal qual no Brasil, no qual o prestígio social liga-se também a quanto mais clara for a pele da pessoa. Isso se concretiza em Cabo Verde na rivalidade entre as ilhas, na qual a ilha que possui uma

democracia racial” uma vez que, ao nosso entender, ideologia corresponde melhor ao que de fato foi e ainda

persiste ser a ideia de uma harmonia racial no Brasil. Assim, compreendemos ideologia como um instrumento de dominação da classe dominante, convertida em ideias supostamente comuns a todos através da educação, da religião, costumes e dos meios de comunicação disponíveis (CHAUÍ, 2008).

8 O racismo epistêmico fez com que todo o conhecimento e cultura advindos dos povos originários americanos e africanos fossem ignorados e/ou tidos como inferiores. O termo é melhor discutido na página 09.

9

Mourão (2009) explica que a construção das nacionalidades cabo-verdianas privilegia a forma de colonização portuguesa e as elites cabo-verdianas são fundamentais à compreensão da construção da identidade nacional em Cabo Verde. A forma de ocupação e as estratégias usadas pelos portugueses e pelas elites cabo-verdianas – aliadas aos portugueses, no projeto colonial – distanciaram os cabo-verdianos de suas "raízes africanas" e os aproximaram mais da "cultura europeia", possibilitando questionar se são africanos, atlânticos, europeus ou uma mistura de todos esses atributos. Em suas definições sobre a "cabo-verdianidade", muitos elementos identitários são acionados e se relacionam, como "raça", língua, religião e nacionalidade.

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população mais branqueada manifesta um sentimento de superioridade em relação à população de ilhas com pessoas de pele mais escura.

Assim, a partida de Cabo Verde finalizou uma experiência que, paradoxalmente, alçou-me novamente no recomeço desta pesquisa ao pensar sobre possibilidades decoloniais e políticas públicas de ação afirmativa.

Em meio a essas reflexões, o Brasil sofreu em 2016 um novo golpe que acarretou no impeachment da presidenta eleita Dilma Roussef (PT), colocando no poder seu vice, Michel Temer (PMDB) o qual passa a implementar o programa da agenda da bancada do capital financeiro, do agronegócio, da segurança militar e da moralização religiosa. Exemplo disso é a Emenda Constitucional nº 95, de 2016 que institui um novo regime fiscal que congela os gastos do governo por 20 anos e, além disso, a diminuição de investimentos nas universidades federais em 28,5% que fez com que 90% delas recebessem em 2017 valor abaixo do recebido em 2013 ou 2014 (para as universidades mais novas), mesmo considerando a correção pela inflação11.

O golpe evidencia ainda o desagrado com os poucos e lentos processos de decolonização que vem se implantando com, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena e as cotas para pessoas negras e indígenas em instituições federais (e muitas estaduais). O golpe coloca em curso o projeto de recolonização da América Latina que tem como pontos estratégicos: o controle dos recursos naturais e a privatização das empresas estatais com os Estados Unidos como centro de origem da articulação golpista12.

Por fim, o último ano da pesquisa foi marcado pela volta à sala de aula. Depois de poder dedicar 3 anos somente à pesquisa sob o amparo financeiro da Capes, em março de 2018 assumi como professora no Ensino Fundamental da Rede Municipal de Campinas, o que acaba por retardar o desenvolvimento final e defesa da tese, mas traz vivências que me enriquecem e me sensibilizam de modo que, ainda que não explicitamente, estão também marcadas na escrita final deste trabalho.

No cenário nacional, nos momentos finais da escrita, sofremos mais um abalo na já tão frágil democracia brasileira. Foi eleito como presidente o candidato (PSL) que proferia

11 https://g1.globo.com/educacao/noticia/90-das-universidades-federais-tiveram-perda-real-no-orcamento-em-cinco-anos-verba-nacional-encolheu-28.ghtml 12 http://www.carosamigos.com.br/index.php/cotidiano/6782-golpe-no-brasil-e-parte-do-projeto-de-recolonizacao-da-a-latina-diz-premio-nobel-da-paz-perez-esquivel

(20)

publicamente declarações racistas, machistas, homofóbicas, além de manifestações de desejo de aniquilamento de seus adversários políticos. Jair Bolsonaro foi eleito com uma campanha pautada em fake News patrocinada por doação de empresas por meio de serviços, o que é proibido pela legislação eleitoral, configurando-se como caixa 213.

Desde a vitória sobre o candidato Fernando Haddad (PT), o presidente eleito já fez declarações com vistas à perseguição ideológica de professores, buscando instaurar na prática o nefasto projeto do programa “Escola sem partido14” que, de fato, é um projeto de

partido único que visa impor a censura e perseguição a professores e professoras que busquem desenvolver uma criticidade para além do status quo imposto. Um dos ataques mais corriqueiros do projeto é acerca as questões de gênero, denominada “ideologia de gênero”. O programa tenta proibir a educação sexual e a educação para a diversidade nas escolas, amparado num moralismo cristão heteronormativo que ignora as questões sociais que envolvem a diversidade humana, como também os abusos contabilizados que acontecem contra mulheres, crianças e LGBTQs em grande parte, dentro de casa. Além disso, práticas com questões de africanidades também têm sido cada vez mais hostilizadas e, muitas vezes, proibidas15, ignorando-se a obrigatoriedade da Lei 10.639/03.

Diante disso, esta tese marca também a não neutralidade diante do status quo, e o posicionamento político e ideológico de mulher, professora, inserida em uma geografia ainda marcada pelo machismo, misoginia, racismo, LGBTQfobia, policialesca e por um autoritarismo que se aproxima de um fascismo que alcança os muros da universidade em ameaças e pichações que são diminuídas a crime contra o patrimônio público16 e não como violências fascistas e racistas que são. A escrita que apresento a seguir marca, portanto, o lado da história em que me coloco: o lado de quem ousa lutar pela manutenção e ampliação dos direitos e por dias melhores.

Antes da Introdução, apresentamos, a seguir, os principais autores com quem estabelecemos diálogo durante o desenvolvimento deste trabalho. A apresentação constava nas páginas iniciais do trabalho, mas o modelo engessado com que a universidade insiste em produzir conhecimento proibiu que assim fosse, de forma que incluímos nesta seção a

13https://exame.abril.com.br/brasil/pt-quer-investigacao-da-campanha-de-bolsonaro-por-praticas-ilicitas/ 14

Movimento político criado em 2004 no Brasil e divulgado em todo o país pelo advogado Miguel Nagib. Ele e os defensores do movimento afirmam representar pais e estudantes contrários ao que chamam de "doutrinação ideológica" nas escolas.

15

https://jornalistaslivres.org/escola-do-sesi-proibe-livro-sobre-cultura-africana/

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apresentação de tais autores, muitos dos quais, por muitos anos, foram excluídos e/ou ocultados do mundo científico pelas suas marcas de raça e gênero. Entendemos que representatividade importa e desejamos reforçar que a ciência é uma construção coletiva que inclui pessoas de diversas raças e gêneros.

LISTA DE PRINCIPAIS AUTORAS E AUTORES

Hector ALIMONDA Pierre Félix BOURDIEU

Linda Martín ALCOFF Bell HOOKS

José Augusto Lindgren ALVES

Vera Maria Ferrão CANDAU

Luciana BALLESTRIN Aparecida Sueli

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Márcio BARBOSA José Jorge de CARVALHO

Dora Lúcia de Lima BERTÚLIO

Santiago CASTRO-GOMEZ

Aimé Fernand David CÉSAIRE

Jeffrey LESSER

Marilena de Souza CHAUÍ

José DIAS SOBRINHO

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Manuela Carneiro da CUNHA

Ruth FRANKENBERG

Jerry D’ÁVILA Paul GILROUY

Joaquim Benedito Barbosa GOMES

Nelson MALDONADO-TORRES

Nilma Lino GOMES Albert MEMMI

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Antônio Sérgio Alfredo GUIMARÃES

Kabengele MUNANGA

Stuart HALL Abdias do NASCIMENTO

Oracy NOGUEIRA Darcy RIBEIRO

Renato NOGUERA Edward Wadie SAID

Arabela Campos OLIVEN

Boaventura de Sousa SANTOS

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Marcelo Jorge de Paula PAIXÃO

Natália Neris da Silva SANTOS

Aníbal QUIJANO Lilia Moritz SCHWARCZ

Petronilha Beatriz Gonçalves e SILVA Carlos Moore WEDDERBURN Valter Roberto SILVÉRIO Francisco Sandro da Silveira VIEIRA Catherine WALSH

(26)

1. Introdução

Esta tese partiu do seguinte problema de pesquisa: quais os efeitos causados pelas políticas públicas de ação afirmativa nas universidades? Para tanto, adotamos como objetivo

geral analisar as Políticas de Ação Afirmativas e seus efeitos nas universidades públicas.

Ou seja, visa compreender os efeitos causados no espaço acadêmico, pelas Políticas Públicas de Ação Afirmativa das Leis 10.639/03, 11.645/08 e 12.711/12 que, lentamente, incluíram o povo negro e indígena no ensino superior e o ensino de história e culturas africanas, afro-brasileira e indígenas nos currículos17 em duas universidades públicas brasileiras: UFSCar e Unicamp.

A partir disso, elencamos como objetivos específicos:

i. analisar as políticas de ação afirmativa implementadas nas universidades investigadas;

ii. identificar e analisar o perfil dos estudantes de 2003 a 2017, período que recobre os vestibulares antes e depois da implementação das PPAAs;

iii. identificar se o período coberto pelas PPAA de inclusão nas universidades promoveu o aparecimento de novas temáticas;

iv. levantar os coletivos formados, nestas universidades após a implementação da política de ação afirmativa de inclusão (cota ou bonificação no vestibular);

v. conhecer e analisar as especificidades e práxis dos coletivos (quando se formou? Quem são os membros? São estudantes de quais cursos? São todos beneficiários das PPAA? Quais as principais atividades? Etc.);

vi. investigar se e como os coletivos estabelecem relação com as Leis 10.639/03 e 11.645/08;

vii. investigar se e como a práxis desses coletivos transcendem a exclusividade da tradição eurocêntrica;

Partimos da hipótese de que as políticas públicas de ação afirmativa,

17 Embora o texto da Lei apresente a obrigatoriedade deste ensino na Educação Básica, os documentos normativos que determinam, dentre outros pontos, a sua abrangência como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações étnico-raciais e para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2004b), por exemplo, determinam que as Instituições de Ensino Superior deverão incluir nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares nos diferentes cursos que ministram a Educação das relações étnico-raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes.

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principalmente as de inclusão, como é o caso da Lei 12.711/12, ao possibilitarem o ingresso de grupos antes excluídos do espaço acadêmico, como o povo negro e indígena, alteram e enriquecem as dinâmicas formativas dentro da universidade ao colocar no cenário acadêmico novas formas de pensar, sentir e agir, novas temáticas, diferentes epistemologias e demandas para diferentes formações que podem dar início a uma tradição decolonial nas universidades.

Temos ainda uma segunda hipótese que é a de que as Leis 10.639/03 e 11.645/08 são políticas públicas de ação afirmativa que dão amparo à demanda para formações ampliadas que superem a colonialidade do saber presente nas universidades.

O interesse pelas Políticas Públicas de Ação Afirmativa se deve ao fato de compreender e rechaçar o fato de que vivemos em um país racista e, portanto, são necessárias medidas que auxiliem a destruir esta ideologia tão nefasta. Desta forma, as PPAAs, ao reconhecerem o racismo estrutural e estruturante da sociedade, são possibilidades de esfacelar esta ideologia secular e iniciar a construção de uma democracia racial de fato, tendo em vista que nossa universidade “não tem sido democrática desde a primeira instituição brasileira que adotou esse nome – a Universidade de Manaus criada em 1909 e que vingou até 1929” (ROSEMBERG, 2010, p. 10). Daí o desejo de analisar o impacto que estas políticas estão causando nas universidades brasileiras.

Importante, portanto, retomar, ainda que brevemente, o histórico do Ensino Superior brasileiro que até o início do século XIX era realizado na Universidade de Coimbra que servia tanto à Metrópole quanto à Colônia (TEIXEIRA, 1989). Isto porque até o século XVIII o governo português proibia de modo explícito a criação de instituições de ensino superior, já que um dos fortes vínculos que sustentava a dependência das colônias era a necessidade de estudar em Portugal. A Universidade de Coimbra, portanto, tinha como um dos objetivos unificar o controle do império português desenvolvendo uma homogeneidade cultural avessa a questionamentos à fé católica e à superioridade da Metrópole em relação à Colônia (MAYORGA; COSTA; CARDOSO, 2010).

Assim, o Ensino Superior no Brasil teve início apenas no século XIX com a chegada da Família Real Portuguesa em 1808 e a transferência da sede do poder metropolitano para o Brasil sendo, portanto, necessário promover um ensino superior adequado ao modelo de Estado nacional liberal (MAYORGA; COSTA; CARDOSO, 2010). De tal modo, foram criadas Faculdades isoladas (medicina e academias militares e Escola de Belas Artes) por D. João VI, com grande influência do Modelo Francês, que visava uma formação profissionalizante em detrimento de uma formação cultural. Já em 1911 foram

(28)

instituídos os exames de admissão cujo objetivo era dificultar o acesso ampliado tendo em vista que os conhecimentos arguidos no exame se relacionavam ao capital social e cultural reservados aos membros da pequena elite (idem).

Somente no Século XX foram criadas as primeiras universidades brasileiras18, ou seja, instituições caracterizadas pelo tripé composto por Ensino, Pesquisa e Extensão mas seguindo a política de atender aos interesses da elite do país. Assim sendo, a universidade foi construída pautada naquilo que era importante para esse grupo: “a reprodução quase automática da percepção desse grupo acerca de um modelo de sociedade e de sujeito, que pouco correspondia à sociedade brasileira e ao interesse de grande parte da população”. (CRUZ, et. Al., 2010, p. 71).

Na década de 60, um movimento liderado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), apesar da repressão às manifestações após o golpe militar de 1964, tomou as ruas requerendo “mais verbas e mais vagas” nas universidades. O movimento culminou na primeira Reforma Universitária brasileira (1968), a qual foi fundamentada nos modelos estruturais estadunidense. Na prática, a Reforma acabou por concretizar a expansão do ensino superior, via autorizações do Conselho Federal de Educação, para a criação de escolas isoladas privadas, que acabaram por se tornar a regra da expansão do ensino superior.

Apesar da expansão, o ensino superior até o final do Século XX continuava a se configurar como privilégio de uma minoria que representava pouco mais de 20% da população de 18 a 24 anos. A situação era ainda mais excludente ao pensar a população negra, uma vez que, destes, apenas 4% eram negros, conforme é possível observar no gráfico a seguir.

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Gráfico 1 – Taxa bruta de escolaridade no Ensino Superior da população de 18 a 24 anos

Este breve histórico visa evidenciar que a universidade brasileira jamais se constituiu como uma instituição neutra e fora da dinâmica política e econômica da sociedade brasileira, pelo contrário, além de ser um privilégio característico da riqueza de uma determinada classe – branca, patriarcal e senhoril –, também se caracteriza como uma das formas de dominação hegemônica europeia na medida em que coloniza conhecimentos, práticas e sujeitos através dos laços de dependência criados e mantidos para este fim (MAYORGA, COSTA, CARDOSO, 2010).

Diante desce cenário, acreditamos que discutir cotas é repensar e avaliar a função social da universidade pública que deveria abarcar as diferenças, sem transformá-las em desigualdades, trazer para si o esforço de “desaprender o colonialismo” (HOOKS, 2017, p. 48), e formar lideranças que representassem a diversidade étnica e racial do país (CARVALHO, 2003). De tal modo, a “opção decolonial”19 (FANON, 1968; QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2008; WALSH, 2010; GROSFOGUEL, 2012; BALLESTRIN, 2013) foi o respaldo encontrado nas buscas teóricas e metodológicas para nos amparar nesta pesquisa. Esta perspectiva nos trouxe os respaldos necessários para compreender que o racismo

19 A “opção decolonial” é encontrada nos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Modernidade/Colonialidade formado por intelectuais latino-americanos, e também pelo português Boaventura de Sousa Santos, que encabeçam um movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica das ciências sociais na América Latina no século XXI (BALLESTRIN, 2013). O Grupo foi estruturado no final dos anos 90 e tem entre seus membros: os filósofos Enrique Dussel, Neson Maldonado-Torres, os sociólogos Aníbal Quijano, Immanuell Wallerstein e Edgard Lander, o semiologista Walter Mignolo e a semilogista Zulma Palermo, a linguista Catherine Walsh, os antropólogos Arthuro Escobar e Edgardo Lander e o jurista Boaventura de Sousa Santos. No Brasil autores como Vera Maria Candau e Luciana Ballestrin são adeptas das teorias do grupo.

1988 1998 2008 12,4% 16,8% 35,8% 3,6% 4,0% 16,4% Negros Brancos

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ultrapassa as questões sociais locais isoladamente, à medida que faz parte de uma estrutura ideológica maior e mais complexa implantada com a colonização nas Américas, Ásia e África que coloca em voga um projeto de mundo no qual a Europa afirma-se “como uma identidade superior ao construir constructos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero)” (CASTRO-GOMES; GROSFOGUEL, 2007, p. 291).

Desta forma, ao compreender, através de Quijano (2005), que a ideia moderna de “raça” humana surge como categoria após a invasão dos europeus às terras americanas para marcar as diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados a partir de supostas diferenças biológicas entre os grupos, torna-se evidente que o conceito esteve atrelado a uma visão hierárquica que “converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis e papéis na estrutura de poder da nova sociedade” (idem, p. 118). É dentro deste cenário que se desenvolvem as relações étnico-raciais no Brasil. Elas estão intimamente ligadas ao processo histórico de dominação a partir do momento em que nossas terras foram invadidas pelos portugueses.

Frantz Fanon (1969, p. 35) explica que o “racismo não é um todo, mas o elemento mais visível, mais quotidiano, para dizermos tudo, em certos momentos, mais grosseiro e de uma estrutura dada”, ou seja, “a realidade é que um país colonial é um país racista” [grifo

nosso] (idem, p. 44). De tal modo, supomos que a implementação de Políticas Públicas de

ação Afirmativa, seja de inclusão do povo negro e indígena no Ensino Superior pela Lei 12.711/12, seja pela obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena, como pressuposta pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08, são possibilidades decoloniais, uma vez que visam romper com o racismo estrutural e epistêmico.

A perspectiva decolonial compreende a colonialidade como a extensão da colonização que, apesar de política e juridicamente ter se findado, não encerrou com a forma de pensar, sentir e agir e com as práticas sociais imputadas violentamente pelos colonizadores e, portanto, da mesma forma como foi necessária a descolonização, ou seja, a eliminação da presença física e da exploração do colonizador, na contemporaneidade urge romper com a colonialidade do ser, do saber, do poder e da natureza20, num processo decolonial. Isto porque

20 O conceito de colonialidade da natureza é menos visto na literatura do grupo Modernidade/Colonialidade, mas presente. Alimonda (2011) explica que a colonialidade da natureza persiste desde a colonização no pensamento hegemônico das elites dominantes da região que compreendem a natureza como um espaço subalterno, que pode ser explorado, arrasada, reconfigurado de acordo com as necessidades do sistema de acumulação vigente. Desta forma, ao longo de cinco séculos, ecossistemas inteiros foram arrasados pela implementação da monocultura para exportação. Hoje, esta colonialidade está presente nas monoculturas de soja e agrocombustíveis com

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“nenhum povo, mesmo no período pós-colonial, consegue se livrar de seu colonizador, enquanto não se liberta também de seus referenciais teóricos, de suas premissas, de seus fundamentos e de seus paradigmas” (ROMÃO, 2012). Ou seja, destruir o racismo passa também por um projeto decolonial de sociedade.

Em outras palavras, a colonialidade inclui como autoridade política a distribuição hierárquica de certos lugares, de processos, metodologias e epistemologias na qual a questão de identidade torna-se elemento legítimo no desenvolvimento de uma filosofia da libertação (ALCOFF, 2016). Alcoff (2016, p. 136) explica que

O projeto de decolonização epistemológica (e a mudança da geografia da razão requer que prestemos atenção à identidade social não simplesmente para mostrar como o colonialismo tem, em alguns casos, criado identidades, mas também para mostrar como têm sido silenciadas e desautorizadas epistemicamente algumas formas de identidade enquanto outras têm sido fortalecidas. Assim, o projeto de decolonização epistemológica presume a importância epistêmica da identidade porque entende que experiências em diferentes localizações são distintas e que a localização importa para o conhecimento. [...] Acredito que a inclinação anti-identidade tão prevalente na teoria social hoje é outro obstáculo para o projeto de decolonização do conhecimento.

Estamos de acordo com a importância da identidade e, neste sentido, parece-nos importante salientar que, ao contrário da concepção moderna, entendemos “raça” como um conceito social que contempla a possibilidade de desenvolvimento de uma cidadania plena, à medida que se busca, neste momento histórico, a reparação para os danos causados pela visão biologista e hierárquica que o conceito carregou e ainda carrega no senso comum onde o racismo impera. Sabemos que não há na espécie humana nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos que corresponda à compreensão que se tem de raça, assim, “o que chamamos de “raça” tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social e, portanto, somente no mundo social pode ter realidade plena” (GUIMARÃES, 2002, p. 50). Neste sentido, o conceito de raça no mundo social só poderá ser dispensado quando já não existirem grupos sociais que se identifiquem a partir de marcadores direta ou indiretamente derivados da ideia de raça; quando as desigualdades, as discriminações e as hierarquias sociais não corresponderem a esses marcadores e, por fim, quando tais identidades forem dispensáveis para a afirmação social dos grupos oprimidos (idem.).

De tal modo, embora haja diversos autores que discutem a não racialização, ou seja, defendem a eliminação do termo, a questão da “raça”, compreendida como conceito

insumos químicos que arrasam ambientes inteiros – inclusive os seres humanos – nos grandes projetos

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social de identidade, é um movimento necessário porque, de acordo com Mignolo (2008), a identidade na política visa romper com as grades da moderna teoria política que é, mesmo que não se perceba, racista, patriarcal, sexista. De tal modo, diz o autor, a identidade em política é crucial para a opção decolonial porque sem a construção de teorias e ações políticas fundamentadas em identidades que foram criadas nos discursos imperiais, pode não ser possível desnaturalizar a construção racial e imperial da identidade no mundo moderno em uma economia capitalista.

Luciana Ballestrin, em entrevista para Gallas e Machado (2013, s/p.) explica que a decolonialidade busca o rompimento com as lógicas da colonialidade apostando em outras experiências políticas, vivências culturais, alternativas econômicas e de produção do conhecimento que rompam com a exclusividade eurocêntrica. A decolonialidade concebe a importância da interação entre teoria e prática, buscando dialogar com a gramática das lutas sociais, populares e subalternizadas dos povos que compuseram e compõem a construção da ideia de América Latina.

Sobre o termo “decolonial” Walsh (2013) explica que dentro da literatura relacionada à colonialidade do poder se encontram referências tanto aos termos “descolonial e descolonialidade”, como também “decolonial e decolonialidade”. Temos a mesma posição da autora de suprimir o “s”, para marcar uma distinção com o significado do “des” que pode ser entendido como um simples desarmar, desfazer ou inverter o colonial. O uso do termo sem o “s” objetiva colocar em evidência que não existe um estado nulo da colonialidade, mas sim posturas, posicionamentos e projetos de resistir, transgredir, intervir, insurgir, criar e incidir, ou seja, denota um caminho de luta contínuo no qual se pode visibilizar lugares de exterioridade e construções alternativas.

Assim, romper com a colonialidade do saber implica em romper com a exclusividade eurocêntrica que dominou as teorias, métodos e epistemologias de todo o mundo, uma vez que o eurocentrismo colocou-se como verdade universal.

Mesmo o projeto iluminista que considerou a vastidão dos reinos, reis, das culturas e que defendeu filosoficamente a igualdade entre os homens e sua singularidade na universalidade, não deixou de projetar a superioridade da cultura ocidental sobre as demais culturas.

O Candido, de Voltaire (2009) diz:

Que os bens da terra são comuns a todos os homens, que todos têm direitos iguais (p. 35)

(33)

Que país é este [...] desconhecido no resto da Terra e onde toda a natureza é um tipo tão diferente da nossa? (p. 66)

Devo observar que as pessoas de outros mundos costumam apresentar questões muito singulares (p. 68)

A verdade é que é preciso viajar (p. 69)

Todos os homens são livres (p. 71) (VOLTAIRE, 2009)

O projeto enciclopedista coordenado por Denis Diderot e Jean D´Alembert buscou catalogar todo o conhecimento humano a partir dos princípios da razão, entretanto, traduzia “conhecimento humano” como sinônimo de conhecimento produzido na e pela Europa central. Vide o quadro referencial a partir do qual os 35 volumes da Enciclopédia foram produzidos. Ele expressa a régua utilizada para catalogar o conhecimento humano e a compreensão de humanidade.

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Figura 1 – Árvore do Conhecimento Humano de Diderot e D'Alembert

Fonte: CAMPOS, F. de; MIRANDA, R. G.. A escrita da História. Ensino Médio: volume. único. São Paulo: Escala Educacional, 2005. p. 259.

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Para Hall (2009) o Iluminismo construiu uma posição epistemológica centrada no processo de colonização. Antes do Iluminismo a diferença era concebida em termos de ordens distintas do ser: “São eles homens de verdade???” perguntou Sepúlveda a Bartolomeu em 1550”. (HALL, 2009, p. 110). A dúvida levantada pela razão iluminista construiu um olhar universalista onde todas as formas de vida humana eram incluídas no escopo universal a partir de uma única ordem do ser, de tal forma que a diferença teve que ser constantemente reformulada na marcação e remarcação de posições dentro de um único sistema discursivo. A diferença foi fixada e consolidada (fetiche e patologia) dentro de um discurso unificado de civilização. Neste sentido, Hall entende que o termo pós-colonial demarca um paradigma temporal e epistemológico diferente.

Dentro deste cenário imposto, não se abarca na educação formal a diversidade que faz parte da construção de mundo. A África nos é apresentada como território de onde foram capturados “escravos”21

. Não são apresentados os diversos impérios e formas de organizações sociais desenvolvidas ao longo de milhares de anos da História Africana. O estudo do Egito, com suas inegáveis riquezas e sociedade altamente desenvolvida, é intencionalmente descontextualizado de seu pertencimento continental africano. Ignoramos os saberes indígenas, ou a estes é dado status de “crendices” e, pouco ou nada sabemos sobre a história das Américas e seus povos: os Incas, os Maias e as diferentes etnias indígenas que habitavam – e algumas ainda habitam – o território hoje denominado Brasil. Tudo isso se engloba dentro do que se denomina racismo epistêmico de acordo com autores como Grofoguel (2007), Maldonado-Torres (2008), Nogueira (2011).

O racismo epistêmico é, portanto, a força que opera privilegiando as políticas identitárias e a tradição de pensamento dos homens ocidentais (que quase nunca inclui as mulheres), considerada como a única legítima para a produção de conhecimentos e como a única com capacidade de acesso à “universidade” e à “verdade”. “O racismo epistêmico considera os conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais.” (GROSFOGUEL, 2007, p. 32).

Santos (1999), Carneiro (2005) e Grosfoguel (2016) explicam que o racismo epistêmico é também um “epistemicídio” porque ao desqualificar o conhecimento dos povos subjugados, produz a indigência por diferentes mecanismos de deslegitimação e

21

Usamos escravos entre aspas porque não concordamos com a terminologia, uma vez que não se nasce escravo, mas se torna escravo, portanto, para o trabalho utilizamos o termo homens ou mulheres escravizado(a)s.

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desqualificação das formas de conhecimento de indígenas e negros, ignorando que estes são também portadores e produtores de conhecimentos causando, portanto, a morte de epistemologias diferentes da ocidental, europeia, branca – e porque não dizer masculina, heterossexual, cristã e capitalista.

No Brasil, o racismo epistêmico (epistemicídio) fortaleceu a ideia difundida de que se vive neste país uma democracia racial. Em outras palavras, é forte a ideia de que somos todos miscigenados e, portanto, uma sociedade harmônica em que a raça em nada pesa para os constructos sociais. Esta imagem ganha força ainda hoje porque a história contada apenas sob a ótica dos europeus apresenta um Brasil cordial, uma vez que não houve por aqui uma política institucionalizada de apartheid racial22 após a abolição da escravidão, como aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo, apesar das várias leis que impediram negros de circularem em diversos espaços sociais. Soma-se a isso, a obra de Gilberto Freyre23, marco importante na construção da ideologia da democracia racial. Diz o autor que a “mediação africana no Brasil aproximou os extremos, que sem ela dificilmente se teriam entendido tão bem, da cultura europeia e da cultura ameríndia, estranhas antagônicas...” (FREYRE, 2006 p. 116) Para o autor (2006, p. 418)

A força, ou antes, a potencialidade da cultura brasileira parece-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados [...] Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completarmos em um todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro. [grifo nosso]

As políticas públicas de ação afirmativa (PPAAs), neste cenário, colocam em xeque a ideia da democracia racial e dos “antagonismos equilibrados”, uma vez que, ao levantar o debate as questões étnico-raciais, escancaram as diferenças econômicas, sociais, educacionais, de trabalho e saúde presentes entre negros e brancos e, escancaram ainda, o racismo presente na sociedade e estampado em pichações24 e ações de pessoas que se colocam

22

Nos EUA, após a abolição da escravidão em 1863, formou-se uma sociedade segregada e que passa a ter respaldo legal quando em 1896 a Suprema Corte considerou constitucional a existência de acomodações separadas para brancos e negros, erguendo uma barreira que negava às pessoas negras o livre acesso à moradia, restaurantes e à maioria dos serviços públicos (OLIVEN, 2007).

23

A ideia de que a sociedade brasileira foi concebida sob relações harmônicas aparecem pela primeira vez em textos do século XIX, no “Abolicionismo” de J. Nabuco, por exemplo. Entretanto, foi com Gilberto Freyre na sua obra “Casa-Grande & Senzala” de 1933 que o termo se eternizou (HAUFBAUNER, 2015).

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contrárias às PPAAs, muitas vezes sob a o discurso de que são as políticas que criam o racismo, tão forte a ideia de democracia racial, ignorando que o racismo é elemento estruturante do Brasil desde a violenta chegada dos portugueses a essas terras.

De forma sintética o termo “política pública de ação afirmativa” (PPAA) se refere a toda ação direcionada ao enfrentamento das desigualdades sociais, não apenas as de caráter racial, causadas por ações discriminatórias direcionadas a grupos específicos como: pessoas negras; indígenas; mulheres; homossexuais, transexuais; seguidores de determinadas religiões etc. (ROCHA,1996; MOEHLECK, 2002; MOROSINI, 2006; WEDDERBURN, 2007; SILVÉRIO, 2007; GOMES, 2007). Assim, as PPAAs não criam o racismo, mas trazem à tona a sua perversidade no ataque de quem antes usufruía de espaços exclusivos aos brancos e que agora se enraivecem em ter que compartilhá-los com pessoas negras e indígenas que passam também a ter direito de, finalmente, alçar novas posições sociais.

Neste cenário, embora a chamada Lei de cotas – Lei 12.711/12 – tenha sido a PPAA que mais se destacou na mídia e nos debates acalorados entre contrários e favoráveis à política, esta não foi a única, tampouco a primeira política pública de ação afirmativa instituída no Brasil. Desde o final dos anos 90 foram implementadas PPAAs voltadas ao povo negro, o que será melhor discutido no capítulo 3 (três). No entanto, destacamos aqui a primeira Lei sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 09 janeiro de 2003, a 10.639/03. Isto porque a lei é um marco significativo da história da luta do povo negro, pois, com ela, reconhece-se as desigualdades raciais que colocam em desvantagem a população negra até os dias atuais. Além disso, implica em análises e avaliações mais complexas nas interpretações e intervenção no mundo a partir dos diferentes tipos de conhecimento, ou seja, é um instrumento para romper com a colonialidade presente nos currículos, uma vez que a Lei altera o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 (LDB) (BRASIL, 1996) e inclui no currículo oficial de toda a Rede de Ensino (pública e privada) a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africanas e Afro-brasileira em todos os níveis de ensino25 e, altera ainda o artigo 79-B que preconiza que

denunciam pichação racista em faculdade de Direitos de SP (Revista Fórum, 2015); Banheiro feminino da USP

Leste com frases racistas (Último Segundo, 2015); Pichações racistas são encontradas em banheiro da Unesp em Bauru (G1, 2015); Pichações racistas e homofóbicas são encontradas na Unesp de Ourinhos (G1, 2015) UnB apura pichações de conteúdos racista e homofóbico em banheiros (G1, 2016); Universidade tem nova pichação racista: “Tirem os pretos da Unicamp” (Educação UOL, 2016); Alunos denunciam pichações homofóbicas e machistas na Universidade Mackenzie (G1, 2017);

25 De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira (BRASIL, 2004).

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o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” (BRASIL, 2003). Em 2008 o Artigo 26-A passa por uma nova alteração quando, por força da Lei 11.645, tem acrescentada a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Indígenas.

Essas leis dialogam com a urgência de alternativas epistemológicas ao mesmo tempo em que revelam a enorme dimensão dos obstáculos políticos e culturais que impedem a sua concretização (SANTOS; MENESES, 2010). Elas buscam diminuir o distanciamento e silenciamento impostos e trazer à tona a versão dos vencidos, violentados e oprimidos durante a colonização, buscando colocar, a partir de uma perspectiva intercultural, as Histórias e Culturas dos povos Indígenas e Africanos antes e depois do processo de colonização e, têm estimulado, ainda que de forma tímida, a retomada da ciência sob novas perspectivas, com novas possibilidades epistemológicas e filosóficas. Elas se colocam na perspectiva de uma interculturalidade que não visa apenas reconhecer, tolerar e incorporar o diferente dentro da estrutura estabelecida, pelo contrário, uma interculturalidade que busca implodir as estruturas coloniais do poder para refundar estruturas sociais, epistêmicas e de existências que coloquem em cena e em relação equitativa, práticas e modos culturais diversos de pensar, atuar e viver (WALSH, 2010).

Apesar da importância das Leis para enfrentar o racismo presentes na sociedade, principalmente o racismo epistêmico, elas ainda têm pouca visibilidade na mídia e baixa aplicabilidade em todos os níveis de ensino. Relatos e pesquisas como de Gomes e Jesus (2013) e Soligo et. Al. (2018), por exemplo, apontam que no nível básico o que se encontra são trabalhos isolados de alguns professores engajados com a temática que desenvolvem uma prática pedagógica em acordo com o pressuposto pelas Leis, no entanto, é difícil encontrar escolas que a assumam como um projeto pedagógico da instituição e não como ações isoladas sobre a temática em datas comemorativas como o “dia do Índio” ou o “Dia da Consciência Negra”, por exemplo. Soligo et. Al. (2018) atentam que há ainda um longo caminho a percorrer na direção da efetiva inserção das africanidades e de História da África no cotidiano e na cultura escolar, na busca do enfrentamento e ruptura com o racismo institucional no cotidiano escolar que se opera pela ausência, pelo silencio e pela superficialidade.

Em nível superior, uma busca rápida nos cursos de Pedagogia, por exemplo, de instituições renomadas como a Unicamp26 e USP27 (SP) mostra que não há disciplinas

Referências

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Mestre em Direito em 1997 pelo Centro de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (SC); Doutora em Ciências Sociais em 2006 pelo Centro de Pesquisa

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