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PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA: PERCURSOS BIOGRÁFICOS E TRAJETÓRIAS ESCOLARES DE JOVENS DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

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RENAN SALDANHA GODOI

PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA:

PERCURSOS BIOGRÁFICOS E TRAJETÓRIAS ESCOLARES DE JOVENS DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

Niterói 2017

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PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA:

PERCURSOS BIOGRÁFICOS E TRAJETÓRIAS ESCOLARES DE JOVENS DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa: Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação.

Orientador:

Prof.º Dr.º Elionaldo Fernandes Julião

Niterói 2017

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

G588 Godoi, Renan Saldanha.

Para além dos muros da escola: percursos biográficos e trajetórias escolares de jovens do sistema socioeducativo / Renan Saldanha Godoi. – 2017.

146 f. ; il.

Orientador: Elionaldo Fernandes Julião.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2017.

Bibliografia: f. 135-143.

1. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Brasil). 2. Liberdade assistida. I. Julião, Elionaldo Fernandes. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

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PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA:

PERCURSOS BIOGRÁFICOS E TRAJETÓRIAS ESCOLARES DE JOVENS DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

Aprovada em 21 de fevereiro de 2017.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Prof.º Dr.º Elionaldo Fernandes Julião (UFF)

Presidente (orientador)

_____________________________________________ Prof.º Dr.º Paulo César Rodrigues Carrano (UFF)

_____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Janaina de Fátima Silva Abdalla (FGS)

_____________________________________________ Prof.º Dr.º Dario de Sousa e Silva (UERJ)

_____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Margareth Martins de Araújo (UFF)

(Suplente)

Niterói 2017

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À Nieide Alves Saldanha, minha mãe, e à Lúcia Alves Saldanha, minha avó, por possibilitarem que eu chegasse até aqui, com amor e admiração.

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Primeiramente à Deus, não por mera formalidade, mas por sentir-me acompanhado e guiado em cada segundo da minha história.

Aos meus familiares, em especial à minha mãe, avó, pai, irmão e irmãs, por me incentivarem a perserguir meus objetivos, entenderem minhas ausências e minhas escolhas.

Ao meu orientador, Prof.º Dr.º Elionaldo Fernandes Julião, por ter depositado sua confiança em meu trabalho, sendo paciente e imensamente presente em cada passo dessa pesquisa, cuja realização não seria possível sem seu olhar atencioso e inteligência admirável.

Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, por ter me recebido e acolhido para a realização dessa pesquisa, em especial aos professores que me concederam o privilégio de fazerem parte da minha formação: Prof.ª Dr.ª Léa Paixão, Prof.º Dr.º Osmar Fávero, Prof.º Dr.º Paulo Carrano, Prof.º Dr.º Jorge Najjar, além do meu orientador, Prof. Dr.º Elionaldo Fernandes Julião. Agradecimento extensivo ao coordenador do programa, Prof.º Dr.º Marcos Marques e à vice-coordenadora, Prof.ª Dr.ª Hustana Vargas, bem como aos servidores técnico-administrativos e aos funcionários de apoio.

Ao Prof.º Dr.º Dario de Sousa Silva e Filho, pela oportunidade que tive em participar da disciplina eletiva que ministrou no Programa Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ e cuja riqueza dos debates proporcionou uma imensa reflexão para o meu trabalho. Agradecimento especial à minha querida UERJ, onde dei meus primeiros passos acadêmicos na Faculdade de Educação, e mesmo diante da negligência e abandono absurdos que vem recebendo, segue resistindo forte, como sempre foi e será.

À Prof.ª Dr.ª Janaina de Fátima S. Abdalla, por toda atenção dispensada ao meu trabalho durante o exame de dissertação, com contribuições valorosas para sua continuidade. Agradeço também pelo aceite em compor a banca e por ter iniciado os passos dessa pesquisa na Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire (EGSE / Novo DEGASE), instituição que dirige e onde germinaram as primeiras reflexões que deram origem a este estudo.

Aos companheiros do Observatório Jovem do Rio de Janeiro (UFF), grupo de pesquisa do qual tive a oportunidade de participar, debatendo etapas deste trabalho com inúmeros colegas pesquisadores da área da juventude. Agradecimento à Prof.ª Dr.ª Ana Karina Brenner, ao Prof. Dr.º Elionaldo Fernandes Julião, e, especialmente, ao Prof. Dr.º Paulo Carrano, por inspirar muitas linhas deste texto e por aceitar o convite para compor a banca avaliadora.

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imensurável, ao lado de tantos outros pesquisadores que tiveram importância fundamental para a realização desta pesquisa. Agradecimento especial ao Prof.º Dr.º Osmar Fávero pela sabedoria imensa que transborda em suas palavras.

Aos amigos do Grupo de Trabalho e Estudos sobre Educação para Jovens e Adultos em Situação de Restrição e Privação de Liberdade e aos demais companheiros do grupo de orientação coletiva, que colaboraram com apontamentos valiosos e presenciaram os dilemas com os quais este trabalho se defrontou, renovando minhas esperanças e expectativas: Vivian de Oliveira, Hellen Beiral, André Xavier, Glaucia Ferrari, Íris Menezes, Soraya Sampaio e Marcelo Souza.

Aos amigos e amigas que a linha de pesquisa Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação me presenteou durante a trajetória do mestrado, cuja amizade pretendo preservar por toda a vida: Monique Ayupe, Isabel Leite, Amanda Gonçalves, Mariana Domingos, Marcelo Sá, Fernanda Chaves, Mariane Costa e Vivian de Oliveira.

Aos colegas da 6ª Coordenadoria de Desenvolvimento Social, especialmente aos muitos amigos que ganhei durante o período em que trabalhei no CREAS Wanda Engel Aduan, com os quais encaminhei meus primeiros passos no atendimento socioeducativo e na proteção social especial. Gratidão extensiva a todos os usuários que atendi durante este período: jovens do sistema socioeducativo, crianças e adolescentes em situação de risco, pessoas em situação de rua, dentre outros sujeitos com os quais aprendi mais sobre a vida do que anos de estudos poderiam me ensinar.

Aos meus amigos de trabalho no Colégio Pedro II e na E. M. Barão do Rio Branco, por todo incentivo, compreensão e entendimento que recebi aos longos dos dois últimos anos dedicados a esta pesquisa.

Aos amigos de sempre e da vida: Juliane Fernandes, Bianca Costa, Michel Soares, Tainá Almeida, Pâmella Sant’Anna, aqueles que basta estar perto. Agradecimento, ainda, a tantos outros amigos que colaboraram, direta ou indiretamente, com este trabalho, dentre os quais não poderia deixar de citar: Mara Fernandes, Ana Luiza Lopes, Renaud Brasileiro, Felipe Crespo, Aline Domingos, Andressa Nunes, Evelyn Bacelar e Mauro Maia.

E, por fim, agradecimento especial aos três jovens que aceitaram dividir parte de suas histórias de vida comigo, pela disponibilidade, coragem, carinho e atenção que demonstraram por esta pesquisa.

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O presente trabalho, de natureza eminentemente qualitativa, objetiva compreender e problematizar experiências de escolarização de jovens do sistema socioeducativo, especialmente aqueles que cumpriram medida em meio aberto de Liberdade Assistida, sendo acompanhados pelo Centro de Referência de Assistência Social (CREAS). Para tanto, tornou-se necessário problematizar aspectos histórico-conceituais pretornou-sentes na legislação de atendimento a crianças e adolescentes no Brasil, bem como o ordenamento legal vigente, sob a perspectiva da proteção integral consagrada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Da mesma forma, analisou-se o atual quadro da juventude brasileira, apresentando sua condição de vulnerabilidade e exposição à violência emergente deste contexto. Debruçado sobre a perspectiva teórico-metodológica da sociologia à escala individual, foi realizado estudo biográfico sobre as trajetórias de três jovens, por meio dos quais foi possível identificar os dilemas e contradições que persistem na política socioeducativa brasileira, a experiência de violência vivenciada pelos jovens e o descompasso entre a escola e suas vivências familiares e comunitárias, que se manifesta em desinteresse, indisciplina e na ausência de perspectiva do espaço escolar enquanto partícipe do Sistema de Garantia de Direitos.

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The present study, which is of an eminently qualitative nature, aims to understand and problematize experiences of schooling of young people from the socio-educational system, especially those that have complied with the probation measure. They are accompanied by the Reference Center for Social Work (CREAS). It became necessary to problematize the historical and conceptual aspects present in the legislation for the care of children and adolescents in Brazil, as well as the current legal order system, under the perspective of the integral protection enshrined in the Brazilian Constitution and the the Statute of the Child and Adolescent (ECA). Likewise, we analyzed the current situation of Brazilian youth, presenting their condition of vulnerability and exposure to emerging violence in this context. A biographical study on the trajectories of three young people was carried out, focusing on the theoretical-methodological perspective of sociology at the individual level, through which it was possible to identify the dilemmas and contradictions that persist in Brazilian socio-educational policy, the experience of violence experienced by young people and the mismatch between the school and its family and community experiences, which manifests itself in disinterest, indiscipline and lack of perspective of the school as a participant in the system of guarantee of rights.

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Figura 1 O SINASE e a Política Intersetorial ... 41 Gráfico 1 Evolução quantitativa da relação entre adolescentes em cumprimento de

medida socioeducativa em meio fechado e meio aberto ... 44 Gráfico 2 Participação % das causas de mortalidade- População jovem e não

jovem (2011) ... 51 Gráfico 3 Ordenamento das UF segundo taxas de homicídios juvenis (por 100mil)

em 2011 ... 52 Gráfico 4 Taxas de homicídios por arma de fogo (por 100mil) por idade simples no

Brasil ... 54 Gráfico 5 Taxa de homicídio entre jovens por raça/cor (Brasil e regiões, 2012) ... 55 Gráfico 6 Taxa de encarceramento de jovens e não jovens no Brasil por 100 mil

habitantes (2007-2012) ... 58 Gráfico 7 Frequência escolar no Brasil por faixa etária (1995 / 2005 / 2014) ... 71 Gráfico 8 Percentual da população de 15 a 17 anos que frequentava a escola, por

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Tabela 1 Doutrina da Situação Irregular x Doutrina da Proteção Integral ... 33 Tabela 2 Local de execução das medidas em Meio Aberto ... 45 Tabela 3 Índice de Vulnerabilidade Juvenil 2014 e seus componentes ... 56 Tabela 4 Média da idade em que o adolescente interrompeu os estudos por região. 73

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CF Constituição Federal

CNAS Conselho Nacional de Assistência Social

CONANDA Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social DEGASE Departamento Geral de Ações Socioeducativas

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente FEBEM Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LA Liberdade Assistida

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LOAS Lei Orgânica de Assistência Social

MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MEC Ministério da Educação

ONG Organização não governamental OS Organização Social

PNAS Política Nacional de Assistência Social PNBEM Política Nacional do Bem-Estar do Menor PSC Prestação de Serviços à Comunidade PSE Proteção Social Especial

SAM Serviço de Assistência a Menores SGD Sistema de Garantia de Direitos

SINASE Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SMDS Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social SUAS Sistema Único de Assistência Social

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INTRODUÇÃO ... 12

Caminhos e percalços da pesquisa ... 16

CAPÍTULO 1 A MEDIDA DE LIBERDADE ASSISTIDA NA POLÍTICA SOCIOEDUCATIVA BRASILEIRA: QUESTÕES E PERSPECTIVAS ... 26

1.1 A invisibilidade infanto-juvenil e o choque de paradigmas ... 26

1.2 Da vigilância à proteção: percursos e rupturas histórico-conceituais da medida socioeducativa de Liberdade Assistida ... 34

1.3 O SINASE e o Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo ... 41

1.4 O atendimento socioeducativo em meio aberto na cidade do Rio de Janeiro ... 45

CAPÍTULO 2 ADOLESCENTES E JOVENS POBRES NO BRASIL: VIOLÊNCIA, VULNERABILIDADE E ESCOLARIZAÇÃO ... 48

2.1 Violência e vulnerabilidade juvenil: a vida nua do homo sacer brasileiro ... 48

2.2 Um olhar para a escola ... 66

CAPÍTULO 3 A VIDA COMO ELA É CONTADA: PERCURSOS BIOGRÁFICOS DE JOVENS DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO ... 77

3.1 O microscópio sociológico: um instrumento de observação da sociologia à escala individual ... 77

3.2 Da escrita biográfica: caminhos e precauções ... 80

3.3 Apresentando os personagens ... 82

3.3.1 O jovem da Vila Norma ... 82

3.3.2 O jovem da Cidade de Deus ... 88

3.3.3 O jovem do Para-Pedro ... 92

3.4 Considerações elementares e perspectivas analíticas: traçando alguns pontos interpretativos ... 98

3.4.1 Suportes e provas existenciais: ressignificando amparos para enfrentar dilemas ... 103

3.4.2 À espera da carta violeta: juventude, morte e sujeição criminal na cidade educativa ... 111

3.4.3 Da intenção à realidade: o atendimento socioeducativo em questão ... 116

3.4.5 Do muro da escola pra dentro: o outro lado da vida ... 121

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 130

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 135

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INTRODUÇÃO

A abordagem atual sobre a condição dos adolescentes e jovens que cometeram atos infracionais tem recebido diferentes enfoques e interpretações que assumem, invariavelmente, diversas posições ideológicas sobre a temática tratada. Observa-se que tais interpretações, no senso comum, se restringem muitas vezes em defender uma maior rigidez na legislação vigente acusando-a de ser compassiva demais. Por outro lado, diversas correntes de pensamento mais intolerante chegam a defender a tese de que “bandido bom é bandido morto”1, apontando para a violação dos Direitos Humanos e desconsiderando a redação dada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8.069/90) que estabelece a criança e o adolescente como pessoas em situação peculiar de desenvolvimento que devem ser incluídas na política de proteção integral com absoluta prioridade.

Apesar de ser considerado um grande avanço na legislação e nas políticas públicas voltadas para a infância no Brasil, o ECA ainda não foi capaz de romper definitivamente com a herança deixada pela Doutrina da Situação Irregular2, vigente no país através dos Códigos de Menores de 1927 e 1979. Fortemente estigmatizado por esse histórico, o panorama atual aponta para uma progressiva descrença na política socioeducativa praticada pelo Estado, que se consolida através do próprio ECA e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE – Lei 12.594/2012), instituído com o objetivo de regulamentar a execução das medidas socioeducativas destinadas a este público.

Segundo o Art. 112 do ECA, as medidas socioeducativas aplicáveis aos adolescentes autores de atos infracionais são: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional. A aplicação dessas medidas objetiva atender, igualmente, as dimensões jurídico-sancionatória e ético-pedagógica, constituindo-se como uma

1 Verifica-se cotidianamente na mídia a difusão deste princípio sensacionalista como forma de resolver a questão

da violência perpetrada por jovens. Um exemplo dessa máxima pode ser percebido na notícia veiculada em 06/02/2014 pelo portal G1, que trata de um jovem de 15 anos que foi preso nu a um poste. O jovem foi amarrado a altura do pescoço com uma tranca de bicicleta por um grupo de 30 pessoas que ameaçaram matá-lo. Os comentários publicados abaixo da notícia revelam a sensação de impunidade e, em grande maioria, reforçam o desejo de fazer justiça com as próprias mãos. Notícia disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/menor-preso-poste-no-rio-diz-que-agressores-ameacaram-mata-lo.html, acessada em 10/09/2014.

2 Antônio Carlos Gomes da Costa (2006d) ressalta que a Doutrina da Situação Irregular não se dirigia ao

conjunto da população infanto-juvenil, mas apenas aos menores em situação irregular: os carentes, os abandonados, os inadaptados e os infratores. Nessa doutrina, além das medidas previstas em lei, o juiz podia aplicar outras que lhe parecessem convenientes, sendo o “menor”, um objeto de intervenção jurídica e social do Estado.

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responsabilização do adolescente frente ao ato infracional praticado. Entretanto, conforme o consagrado pela legislação, em sua execução deverá prevalecer a função pedagógica, tornando-se um mecanismo para ressignificação da conduta do adolescente através de ações educativas que propiciem o seu desenvolvimento.

No limiar entre essas duas dimensões, aparentemente contraditórias, fui desafiado a atuar na política socioeducativa como pedagogo no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, acompanhando adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto, ou seja, a Liberdade Assistida e a Prestação de Serviços à Comunidade, medidas cuja execução é de responsabilidade municipal. Durante esta experiência, ocorrida entre os anos de 2012 e 2014, tive contato com realidades muito mais complexas do que aquelas divulgadas pelos jornais e que costumam causar grande clamor social contra a compreensão desses adolescentes enquanto sujeitos de direitos, que devem, sim, ser responsabilizados por seus atos, mas que também demandam a efetivação de sua proteção integral por parte do Estado.

Entre os muitos desafios que se colocavam como obstáculos durante os atendimentos, um deles chamava minha atenção de modo especial: o encaminhamento dos adolescentes para a rede escolar, que se configurava por uma imensa dificuldade, não somente por parte de algumas escolas que se mostravam reticentes em matriculá-los, mas principalmente por parte dos próprios adolescentes que pareciam encarar a escolarização como um fardo, ou mesmo como mais uma sanção decorrente do ato infracional cometido.

A partir destas reflexões, passei a alimentar um interesse especial em investigar o sentido que estes sujeitos atribuem à educação escolar como alternativa para superação da vivência infracional e de suas condições de existência. Estas reflexões permitiram a experiência de novas formas de abordagem durante os atendimentos, apresentando a escolarização como direito e oportunidade para reconstrução de um novo projeto de vida e não apenas como mais uma obrigação decorrente da medida, apesar de também o ser. Embora pequenos, alguns resultados podiam ser percebidos no progressivo aumento do interesse pela escola que, associada à profissionalização, apresentava novas perspectivas de vida, antes pouco imagináveis por esses jovens.

Contudo, esta experiência prática ainda era incapaz de compreender mais profundamente o significado que estes jovens atribuíam à escola e todos os desdobramentos por quais perpassam suas trajetórias escolares, sendo necessário situá-los enquanto produto de um contexto de exclusão proporcionado pelas desigualdades de oportunidades observadas na sociedade. Percebe-se que tais desigualdades se materializam na ineficiência do Estado e das

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famílias em garantir os direitos fundamentais, nas condições de vida e sobrevivência, nas condições de acesso aos bens de consumo e repercutem, diretamente, no acesso e permanência na rede escolar, bem como na aprendizagem.

No que diz respeito especialmente à questão da escolaridade, o estudo do Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 2012, p.13-18) registra dados alarmantes sobre a vida escolar de adolescentes em cumprimento da medida socioeducativa: 57% não frequentavam a escola antes de ingressar na unidade; 86% abandonaram a escola antes de concluir o ensino fundamental; 8% sequer eram alfabetizados. O documento aponta ainda que a idade média de interrupção dos estudos é de 14 anos, predominando a quinta e a sexta série como as últimas cursadas. Embora o estudo trate especificamente do público em cumprimento de medida de internação, os dados apresentados sugerem uma trajetória escolar marcada por uma série de percalços e descontinuidades que interessa a esse estudo investigar.

Considerando que a Constituição Federal assegura, em seu artigo 205, a educação como direito de todos e como dever do Estado e da família, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, observa-se na experiência acumulada no atendimento socioeducativo uma imensa lacuna que acaba por suprimir de boa parte destes adolescentes seu direito à educação escolar e, consequentemente, seu pleno desenvolvimento como sujeito.

O que ainda se vê é uma escola distante da realidade dos seus educandos e, mais particularmente, dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Este distanciamento se reflete na falta de adesão dos mesmos à dinâmica escolar da qual são estranhos e estigmatizados. Com isso, a educação pode deixar de ser percebida como um direito fundamental assegurado constitucionalmente, podendo ser relegada apenas a uma condição ou obrigação necessária ao cumprimento da medida aplicada, visando a sua posterior revogação pelo poder judiciário.

Daí surge o interesse por esta pesquisa, a partir da tentativa de investigar de que forma se constroem os impasses e os entraves que marcam, muitas vezes, a vida e a trajetória escolar desses jovens. Parte-se do princípio de que a melhor resposta para estes questionamentos deve ser dada pelos próprios jovens, a partir de suas próprias interpretações sobre suas histórias, cujas narrativas podem revelar suas angústias, medos, anseios, expectativas, alegrias, frustrações e tantos outros sentidos que, a priori, seria impossível determinar.

Tendo, portanto, como objetivo compreender experiências de escolarização de jovens do sistema socioeducativo, especialmente aqueles sentenciados à medida em meio aberto de Liberdade Assistida, essa pesquisa pretende, ainda, investigar os possíveis motivos de

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interesse ou desinteresse pela escola ao longo de suas trajetórias, assim como as expectativas, frustradas ou não, que estes jovens construíram sobre a instituição escolar em suas vidas.

E por tratar-se de vidas, fizemos a opção metodológica pela perspectiva biográfica referendada pelo sociólogo francês Daniel Bertaux (1993), através dos relatos de vida, de modo que seja possível considerar as interpretações que os sujeitos constroem sobre suas próprias histórias. Desta forma, os relatos de vida podem nos levar a uma compreensão do conjunto de fatos que puderam levar ao suposto desinteresse ou mesmo ao campo de interesses desses jovens pela escolarização, identificando o conjunto de episódios vivenciados pelos sujeitos que nos levem ao entendimento de como esses jovens experimentaram a escola.

Para efeito deste trabalho, entende-se “relato de vida” como um dos possíveis produtos da perspectiva biográfica, com implicações metodológicas definidas que devem levar ao aprofundamento das questões que perpassam os fragmentos da vida dos sujeitos, a partir de uma análise eminentemente qualitativa. Conceituado como uma importante referência desse tipo de abordagem metodológica, Bertaux (1993) considera os relatos de vida como fontes inigualáveis de investigação, por meio do acesso que promove à vida subjetiva do indivíduo.

Contudo, o levantamento bibliográfico realizado até aqui revela que a adoção desse método implica em determinados cuidados. O conhecido texto publicado em 1986 por Bourdieu (1996) - L’ilusion biographique – promove fortes críticas a esta perspectiva metodológica, considerada pelo autor como produto do senso comum que teria adentrado como contrabando no universo científico. Entre as principais críticas de Bourdieu, duas podem ser resumidamente destacadas: a vida como uma totalidade sincrônica, linear, com etapas sequencialmente definidas; e a busca por um “sentido da existência narrada” da qual investigador e investigado seriam cúmplices na tentativa de conferir uma lógica coerente aos acontecimentos relatados. Por outro lado, parafraseando Allain Robbe-Grillet, Bourdieu nos faz uma importante advertência: “o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório” (ROBBER-GRILLET, 1984, p.208 apud BOURDIEU, 1996, p. 185).

Desta forma, a crítica de Bourdieu (1996) pode ser utilizada como parâmetro para preservar este estudo do perigo do “romancismo”, evitando tratar os percursos individuais dos sujeitos a partir de uma relação causa-efeito, por meio de relatos essencializados e plenamente coerentes, desconectados, do que chamamos de “vida real”. A opção que se faz aqui deve nortear este trabalho para a construção rigorosa de narrativas capazes de abrigar as contradições, as descontinuidades, as rupturas, as pressões internas e externas e as demais

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camadas que compõem a vida. Esta opção leva-nos ao encontro da “sociologia à escala individual”, defendida por Lahire (2005, p. 25), a partir da indagação de como “o indivíduo vive a pluralidade do mundo social, bem como a sua própria pluralidade interna?”

Assim,

Estudar o social individualizado, ou seja, o social refratado num corpo individual que tem a particularidade de atravessar instituições, grupos, campos de forças e de lutas ou cenas diferentes, é estudar a realidade social na sua forma incorporada, interiorizada (LAHIRE, 2005, p. 14).

Evita-se, assim, toda e qualquer forma de generalização, reforçando a ideia de que cada vida apresenta uma singularidade a ser conhecida e explorada, capaz de apontar pistas e perspectivas para as questões que buscamos entender nesta pesquisa. Trata-se, portanto, de “olhar de perto sem perder de vista o longe” (CORDEIRO, 2008, p.22), partindo da premissa de que as trajetórias individuais também se constituem como fontes que ajudam a explicar a conjuntura social, cultural e histórica na qual o sujeito está inserido (WELLER, 2014).

Por fim e não menos importante, deve-se registrar que a escolha da abordagem biográfica como procedimento metodológico deste trabalho, não se remete apenas ao alcance dos objetivos formalmente explicitados neste projeto, mas também se configura como uma tentativa de compreensão dos relatos de vida desses jovens que nos tornem capazes de percebê-los para além do ato infracional, transpondo preconceitos, desmitificando estigmas.

Caminhos e percalços da pesquisa

Conforme já nos alertava Lahire (2004, p.19), “ao passar da ideia à pesquisa, o mesmo pesquisador percebe todos os limites e imperfeições desta, o que se deve sobretudo ao fato de que a ideia nem sempre encontrou as condições ideais no momento da aplicação”. Dessa forma, nossa intenção inicial de realizar a pesquisa no próprio CREAS caiu por terra diante do tempo necessário para reunir toda a documentação exigida para avaliação da proposta e sua autorização junto à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro. Este fato exigiu um rápido redirecionamento por parte dos métodos da pesquisa e criou imensas dificuldades em encontrarmos adolescentes dispostos a falar longamente sobre suas experiências de vida.

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O primeiro redirecionamento necessário foi a ampliação da faixa etária dos personagens3, que antes compreendia apenas adolescentes em cumprimento de Liberdade Assistida no CREAS e passou também a abrigar jovens4 egressos da mesma medida, acima de 18 anos – idade que dispensaria autorização por parte do responsável, sendo um empecilho a menos a transpor.

Após muitas dificuldades, finalmente conseguimos o primeiro personagem: um jovem de 16 anos que acabara de se desligar do colégio onde trabalho. Após envolver-se com o tráfico, foi apreendido provisoriamente no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) por 15 dias e, depois, sentenciado a cumprir a medida de Liberdade Assistida em meio aberto. A sua entrevista ocorreu exatamente no momento em que vivenciava todo esse conjunto de experiências, um dia após decidir, definitivamente, cancelar sua matrícula na escola.

O segundo personagem se trata de um jovem de 21 anos, egresso da medida de Liberdade Assistida, indicado pelo profissional que realizou seu acompanhamento no CREAS e com quem construiu uma importante referência afetiva. O jovem foi primeiramente contatado pelo profissional e, após receber o convite e entender os objetivos da pesquisa, autorizou o meu contato para agendamento.

Encontrei imensas adversidades para conseguir o terceiro personagem. Lembrei de dois jovens que havia acompanhado na época do CREAS e que ainda mantinha alguns registros anotados na minha agenda de trabalho: relação de atendimentos, encaminhamentos, endereços para visitas domiciliares e alguns telefones de contato. Fui à casa de um dos jovens, mas encontrei apenas o seu pai que, reticente, anotou meu número e prometeu que seu filho me retornaria. Não recebi o retorno nem consegui contato com os telefones que ele informou no dia da visita. Os telefones do segundo jovem também não funcionavam, e também não fui respondido via mensagem pelo facebook. Por fim, encontrei, na mesma agenda, o telefone da madrinha deste jovem, com quem precisei conversar em uma longa ligação na época do acompanhamento. Em contato, a senhora me atendeu e, após conhecer os objetivos do

3 A escolha e adoção da categoria “personagem”, no âmbito deste estudo, objetiva conferir um grau de

heterogeneidade aos jovens entrevistados que comunicam, em suas narrativas, versões reconstruídas sobre si. O termo representa, portanto, uma forma de questionamento a modelos estáveis e monocoerentes de personalidade (LAHIRE, 2004).

4 Esta alternativa marcou um importante redirecionamento para a pesquisa, ao compreender uma faixa etária que

pode, tanto abrigar os limites cronológicos da adolescência dados pelo ECA (12-18 anos), quanto ultrapassá-los no que se refere aos egressos da medida (a partir de 18 anos). Por isso, optamos por adotar a categoria “jovem” que, segundo o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013) compreende os indivíduos entre 15 e 29 anos, faixa etária comum aos três personagens que compõe a pesquisa. Deve ser enfatizado, contudo, que os termos “adolescência” e “juventude” não devem ser tratados necessariamente como sinônimos, já que apresentam especificidades próprias enquanto etapas distintas da vida.

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trabalho, aceitou me passar o número atual do jovem, com quem passei a manter contato via whatsaap antes de marcar, efetivamente, a entrevista.

Após finalmente conseguir angariar os três personagens5, era necessário considerar a disponibilidade limitada dos jovens e repensar novas formas de abordagem para a pesquisa, já que a proposta anterior era marcada por diversas etapas, sendo facilitada pela necessidade dos jovens já estarem presentes no CREAS para o atendimento socioeducativo.

Considerando as especificidades já conhecidas em campo sobre jovens socioeducandos, sabe-se que a economia de palavras, seja por introspecção ou mesmo por opção, é uma marca característica desse grupo. Convém ressaltar a provável e desagradável sequência de “entrevistas” e “depoimentos” pelas quais precisaram passar antes de chegar ao atendimento socioeducativo em meio aberto, tendo, tradicionalmente, a orientação de falar o mínimo necessário.

Desta forma, “mensurar silêncios” talvez tenha sido o maior desafio metodológico desse trabalho, na tentativa de pensar uma abordagem capaz de ouvir aquilo que o jovem não diz e que jamais diria em um atendimento socioeducativo tradicional. Apesar de comprovadamente árdua, tal missão configurou-se como uma incessante e estimulante busca pelo melhor método, que fosse, ao mesmo tempo, pragmático e significativo e proporcionasse uma experiência prazerosa de descoberta e de inovação, tanto para o pesquisador, quanto para o informante.

O célebre e inquietante livro de Gayatry Spivak (2014), “Pode o subalterno falar?”, nos ajuda a realizar um profundo questionamento sobre o papel militante e investigativo que exercemos enquanto pesquisadores. A denúncia de Spivak é precisa e contundente: todo e qualquer meio de agenciamento, por mais bem intencionado que seja, constitui-se como mais uma forma de manter o subalterno silenciado e de conservar sua voz intermediada por aqueles que julgam ser seus representantes. Nestes termos, o sujeito subalterno seria então o integrante das classes mais baixas da sociedade, alijado dos mercados e da representação política, “aquele cuja voz não pode ser ouvida” (ALMEIDA, 2014, p.12-13) e, para efeitos desse trabalho, o jovem autor de ato infracional.

Entre muitas outras críticas e pistas que a obra de Spivak (2014) oferece, optei por me apegar a mais otimista delas: “não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar contra

5 Convém ressaltar que os jovens foram previamente orientados quanto à pesquisa, seus objetivos,

procedimentos, riscos e possíveis benefícios que o estudo poderia proporcionar ao campo de conhecimento, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). No caso específico do adolescente, sua responsável foi da mesma forma orientada e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), enquanto que seu filho assinou o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE). O modelo do TCLE e TALE utilizados encontram-se como anexo dessa dissertação.

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a subalternidade, criando espaços nos quais o subalterno possa se articular e, como consequência, possa também ser ouvido” (ALMEIDA, 2014, p.14).

Contudo, esta opção otimista não isenta nem exclui a necessidade de tratar a temática com rigor metodológico. Do contrário, reforça ainda mais a indispensabilidade de um balizamento metodológico que possa, igualmente, ser capaz de conferir rigor científico ao trabalho e ser livre do “metodologismo” característico da chamada “sociologia industrializada”, repetidamente denunciada por Kaufmann (2013).

Desta forma, invoca-se com afinco a figura do “artesão intelectual” exaltada por Wright Mills (1965) e tão bem aprofundada por Kaufmann (2013) que o define como “aquele que sabe dominar e personalizar os instrumentos que são o método e a teoria, num projeto concreto de pesquisa” (p.33). Com isso, ao mesmo tempo em que nos desestabiliza ao descontruir os procedimentos de pesquisa cristalizados e “industrializados”, Kaufmann (2013) nos estimula a pensar sobre o objeto e, a partir dele, reconquistar a capacidade criativa e autônoma do “artesão intelectual” que, cuidadosamente, elege e afia suas ferramentas.

Tal definição colaborou uma imensa ampliação das possibilidades metodológicas desse trabalho, na tentativa de pensar os melhores instrumentos e as abordagens mais apropriadas que dessem conta dos objetivos explicitados sem deixar de considerar a singularidade do sujeito pesquisado.

Depois de nos desestabilizar, Kaufmann (2013) nos oferece pistas e elementos fundamentais para construir esse tipo de abordagem, dentre as quais destaco duas que me pareceram mais relevantes para a realização desse trabalho: “romper a hierarquia” e “a empatia”, ambas estruturantes da “Entrevista Compreensiva”.

Na primeira, ressalta que “o tom que se deve buscar é muito mais próximo de uma conversa entre dois indivíduos iguais do que aquele do questionário administrado de cima para baixo” (p.79). No tocante à empatia, o autor assinala que o pesquisador precisa apresentar postura receptiva e acolhedora ao que é dito pelo informante (p.85).

O conceito de “pedagogia da presença” de Antônio Carlos Gomes da Costa (2006b) nos leva pela mesma direção e ressalta a importância de uma aproximação efetiva, construtiva, solidária e identificada com a problemática vivenciada pelo adolescente, tornando possível a transição “da solidão ao encontro” (COSTA, 2001).

São, portanto, sob estas bases desafiantes que este trabalho foi estruturado, na tentativa de captar parte da complexidade das trajetórias desses jovens, “de mergulhar nas histórias pessoais, de suscitar as confidências, de revirar o passado” (KAUFMANN, 2013, p. 37) e, por

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fim, de construir e interpretar narrativas que nos tornassem menos incapazes de lidar com os dilemas que a política socioeducativa nos impõe.

Considerando, portanto, este direcionamento teórico-conceitual, estruturamos a pesquisa de campo sob as bases da entrevista compreensiva de Kaufmann (2013), através de uma conversação despojada e mediada por cada uma das dinâmicas que seguem:

Mapa de circulação urbana

Por meio desse recurso, pretendeu-se compreender a trajetória do sujeito a partir da rede de sociabilidades que estabelece através da circulação no meio urbano. Assim, os jovens receberam um mapa do município do Rio de Janeiro com as divisões territoriais dos bairros e foram convidados a pintar aqueles que conhecem e frequentam, relatando as atividades que realizam ou realizaram nesses bairros, as memórias de fatos significativos e expressivos etc. A proposta possibilitou a compreensão dos espaços sociais a que os jovens têm ou não acesso, como escolas, complexos esportivos, praças, praias e demais equipamentos sociais ou ambientes de trabalho e lazer, permitindo a identificação de como estes jovens se apropriam da cidade e, a partir dessas relações, constroem suas individualidades (CARRANO, 2008).

Escola: imagens e memórias

Com esta dinâmica, construímos uma conversa mediada por imagens diversas de escolas, sendo apresentadas dez fotografias de espaços e momentos escolares sobre as quais os jovens foram convidados a relatar as impressões e memórias que cada imagem lhe remetia: I – uma sala de aula aparentemente abandonada, com diversas carteiras amontoadas e empilhadas; II) uma sala de aula organizada, com alunos distribuídos em fileiras bem definidas e uma professora sentada em sua mesa; III) uma prova com nota zero, manuscrita expressamente em caneta vermelha, com várias respostas riscadas em vermelho; IV) um quadro abarrotado de conteúdos e equações matemáticas, resoluções de questões, gráficos, etc.; V) a fachada de uma escola em que um grupo de alunos está pulando o muro, não sendo possível definir se estão entrando ou saindo da escola; VI) um aluno com os braços esticados sobre a grade do portão da escola aberto, com um cadeado pendurado; VII) uma sala de leitura ou biblioteca escolar, com vários livros organizados em grandes prateleiras e alguns alunos estudando; VIII) um refeitório escolar com vários alunos se alimentando,

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enquanto outros estão sendo servidos pelas cozinheiras; IX) uma quadra escolar com muitos alunos praticando esportes; X) um jovem estudante aparentemente entediado, com as mãos sobre a cabeça e vários livros dispostos a sua volta.

Acróstico

Pensado como mais um recurso lúdico mediador do processo investigativo, o acróstico consiste no tradicional jogo de ordenar sequencialmente as letras do nome próprio do sujeito e, a partir de cada letra, atribuir uma característica que considere marcante em sua personalidade. Por meio desse jogo, pretendeu-se explorar um diálogo sobre a identidade do sujeito e sobre sua trajetória de vida e escolar, a partir de cada característica sinalizada ao nome.

A partir destas atividades, buscou-se imprimir uma espécie de “bate-papo” informal que, mesmo despojado e relativamente descontraído, foi sendo guiado por uma grade de conteúdos6 (Apêndice A) previamente projetada como um direcionador de questões que deveriam nortear a interlocução com os jovens. Kaufmann (2013, p.74-75) define a grade como “um simples guia para fazer os informantes falarem em torno de um tema, sendo que seu ideal é o de estabelecer uma dinâmica de conversação mais rica do que a simples resposta às perguntas”. Assim, alguns temas deveriam necessariamente ser invocados, como família, vivências comunitárias, ato e envolvimento infracional, escola, dentre outros que passaram a ser explorados à medida que os jovens desenvolviam suas narrativas. Sobre este aspecto, Lahire (2004, p. 38) aponta para o fato de que tais temas não constituem-se como “universos autônomos”, já que as correlações “estão muito mais entrelaçadas do que se imagina, quando se começa a detalhar as práticas (...) é difícil falar de escola sem falar de família ou de amizade ou abordar a questão do trabalho sem evocar a escola, a família ou a sociabilidade”.

Portanto, a ideia era que a grade de conteúdos fosse sendo (re)construída em meio ao próprio processo de pesquisa, jogando luz em algumas questões que apareciam nas falas dos jovens, explorando outras que surgiam timidamente em seus discursos. Para explorar tais questões, os pressupostos da entrevista compreensiva de Kaufmann (2013) foram cuidadosamente adotados e permitiram a construção de uma relação de empatia mais ou

6 Nossa grade de conteúdos foi organizada a partir de seis eixos: identificação, família, escola, trabalho, vida

infracional e sociabilidade. Cada eixo é desdobrado em vários subtemas que apresentam exemplos de “chaves de diálogo”, que não são necessariamente perguntas, mas apenas formas inspiradoras para a condução de uma conversação mais informal. Desta forma, a grade não foi feita para ser utilizada no momento da entrevista, como um roteiro, sendo apenas uma estruturação prévia a ser estudada e pensada de forma a comportar nosso objeto de estudo.

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menos aproximada com os jovens, sobretudo com os dois com quem já havíamos tido contato profissional.

Aliás, esta é uma questão relevante a ser salientada, já que o conhecimento prévio de dois personagens da pesquisa marcou um importante passo para a construção de um vínculo de confiança entre entrevistador e entrevistado, ampliando notadamente nosso potencial de análise e de aprofundamento sobre as questões tratadas. Para Lahire (2004, p. 33), dois tipos de indivíduos devem ser excluídos desse tipo de pesquisa: “os muito próximos e os totalmente desconhecidos” – denotando que a convivência próxima ou íntima com os sujeitos pode ser um aspecto problemático à medida que o entrevistado pode se sentir reticente em abordar determinados aspectos que prefere manter em seu âmbito privado. Por outro lado, o desconhecimento total do sujeito implica no risco de que o entrevistado não tenha a devida confiança em revelar suas confidências ao entrevistador.

Diante das opções limitadas com que nos defrontamos, precisávamos assumir tal risco e entrevistar um dos jovens, mesmo sendo um desconhecido. Alguns recursos, no entanto, foram pensados para que essa relação pudesse fluir de forma melhor no dia da entrevista, com uma interação prévia via whatsaap e longo telefonema, além do contato junto ao socioeducador que realizou um importante trabalho de convencimento sobre os propósitos da pesquisa. Outro aspecto que facilitou essa interação foi a escolha do local da sua entrevista, realizada em uma rede de fast food próxima a sua casa, onde se demonstrou mais seguro e a vontade para falar de si7.

Este mesmo recurso foi utilizado com o jovem que conhecíamos do atendimento socioeducativo, sendo que sua entrevista foi precedida de uma carona entre seu trabalho e o restaurante, trajeto que se apresentou fundamental para reestabelecer o vínculo que havia sido rompido há quase três anos, desde o meu desligamento do CREAS e da extinção de sua medida. Quanto ao jovem com quem tínhamos contato na escola onde trabalho, sua entrevista foi realizada em um laboratório pouco utilizado do próprio colégio, onde pudemos conversar longamente sem risco de interrupções ou transtornos de qualquer outra natureza. O jovem não se demonstrou constrangido em discorrer sobre sua vida durante a entrevista, já que havia se desligado da escola, estando visivelmente tranquilo com a minha presença enquanto pesquisador e educador.

7 Utilizamos um importante recurso do Google para escolher o melhor horário para realizar a entrevista, a partir

dos gráficos de horários de pico disponibilizado pelo site, com base nas visitas ao local. O proveitoso recurso tornou-se um facilitador, já que conseguimos encontrar o ambiente em horário pouco frequentado, mais propício a diálogos sem interrupções e/ou constrangimentos.

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Dessa forma, esta pesquisa também fala de diferentes etapas da minha trajetória acadêmica e profissional, em que cada jovem representa um momento da minha história: como pedagogo do CREAS, como orientador educacional da escola ou, puramente, como estudante e pesquisador. Nesta trajetória, pude experimentar dois lados do Sistema de Garantia de Direitos (SGD)8 e entender os obstáculos que desafiam cotidianamente os educadores, sejam aqueles que lidam diretamente com a execução da medida, sejam aqueles que trabalham na outra ponta, especificamente na instituição escolar.

Deve ser destacado também que, durante este período, pude complementar minha graduação em pedagogia com outras experiências de formação que redirecionaram o meu olhar para a política socioeducativa. Dentre elas, destaco o Curso Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, ofertado pela Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire (NOVO DEGASE /RJ), no ano de 2013; e o curso Núcleo Básico em Socioeducação, em 2016, na modalidade à distância, que constituiu-se como uma importante iniciativa de formação complementar realizada pela Escola Nacional de Socioeducação (ENS) do SINASE, em parceria com a Universidade de Brasília (UNB).

Além destas, outras experiências possibilitaram a gestação e discussão deste trabalho em diferentes eventos acadêmicos, que configuraram-se como importantes suportes nos quais foi possível traçar proposições, corrigir desvios e equívocos analíticos, discutir questões de ordem metodológica com educadores e pesquisadores das mais diversas áreas acadêmicas e instituições. Destes espaços e vivências, a maior conclusão que podemos alcançar deve reconhecer os limites deste trabalho apenas como uma centelha ou como uma pequena gota no oceano que representa o campo socioeducativo, dada a sua profunda complexidade, que exige um sem número de formas de abordagem, em diferentes áreas e campos do conhecimento. Assim, portanto, definimos este estudo: apenas um pequeno passo.

A estruturação desse trabalho tentou considerar esta complexidade, através de um aprofundado levantamento bibliográfico que compreendeu a apropriação de documentos e pesquisas com diversas vertentes, especialmente nos campos da educação, direitos humanos, socioeducação, psicologia e ciências sociais. Dessa forma, buscamos estabelecer um diálogo sobre o objeto estudado, apoiado em perspectivas teóricas consolidadas e debates recentes que

8 A Resolução 113 do CONANDA, Art. 1°, define que “o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do

Adolescente constitui-se na articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para efetivação dos direitos da criança e do adolescente nos níveis Federal, Estadual, Distrital, Municipal e nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.”

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perpassam por estes campos, estruturando o texto final em três capítulos que objetivam organizar as principais questões e conceitos sobre os quais a temática se sustenta.

O primeiro capítulo tem como foco a política socioeducativa no Brasil, em seus aspectos históricos e teórico-conceituais, apresentando inicialmente a tensão entre os dois principais paradigmas que habitaram (e ainda habitam) o sistema socioeducativo brasileiro: o paradigma da situação irregular e o paradigma da proteção integral.

O desenvolvimento da discussão recai especialmente sobre a medida de Liberdade Assistida, bem como sobre suas versões originárias, ainda inspiradas na lógica menorista e fundadas no Código de Menores. Posteriormente, aborda-se a medida sob a luz do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), evidenciando sua execução pelos municípios através dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Nestas discussões, despontam-se como principais referências a obra de Antônio Carlos Gomes da Costa (2001, 2006a, 2006b, 2006c, 2006d e 2006e), os documentos oficiais, as próprias legislações, bem como a apresentação de pesquisas e publicações que abordam a temática.

Debruçando-se, primeiramente, sobre o binômio violência e vulnerabilidade, o segundo capítulo deste trabalho aborda o quadro contemporâneo da juventude pobre brasileira, através dos dados alarmantes de homicídios e encarceramento que se sobressaem nas estatísticas dos Mapas da Violência desenvolvidos nas pesquisas de Julio Jacobo Waiselfisz (2013, 2015 e 2016), e das demais publicações e documentos oficiais brasileiros. Identificando o jovem pobre, negro e morador de favelas e periferias como principal alvo dessas violências, são apresentados e discutidos os conceitos de homo sacer (AGAMBEN, 2014), sujeição criminal (MISSE, 1999 e 2008) e estigma (GOFFMAN, 1975) como elementos possíveis para a comum associação entre pobreza e criminalidade. Desta relação, algumas pesquisas também assumem importante destaque para o desencadeamento das ideias, como os trabalhos de Zaluar (1992, 1994, 1996 e 2003), Perlman (1982), dentre outros.

A segunda parte do capítulo convida para um olhar para a escola, em um movimento reverso que passe a considerar o conjunto complexo de violência e vulnerabilidade nos quais muitos alunos jovens, pobres, negros, moradores de favelas e criminalizados estão inseridos, deixando de percebê-los para além da alcunha de “indisciplinados” ou alunos com “dificuldades de aprendizagem”. A inversão do olhar ganha contornos significativos, ressalta que os educadores, sozinhos, não podem dar conta de tamanha questão.

O terceiro e último capítulo constitui-se como o cerne do trabalho, à medida em que as grandes questões antes discutidas ganham vida, corpo e rosto. Apresentamos os três jovens

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que compõem a pesquisa, em seus percursos biográficos, dilemas, suportes, angústias, alegrias e vivências. Jovens que envolveram-se em atos infracionais, mas que não são vistos e interpretados apenas por este fato e por essa via, mas pelas experiências que vivenciam na rua, na escola, na família, na comunidade.

Para conhecer os personagens, contudo, fez-se necessário primeiramente apresentar os princípios metodológicos que possibilitaram a reconstrução dessas narrativas, em seus limites e possibilidades de interpretação, constituindo-se também como uma discussão quanto à sociologia à escala individual e formas de construir a abordagem biográfica. Tal discussão inspirou-se profundamente nos trabalhos de Bernard Lahire (1997, 2004 e 2005), especialmente no que se refere aos “retratos sociológicos” e Danilo Martuccelli (2007), sobretudo com relação aos pressupostos da sociologia dos indivíduos e dos conceitos de provas e suportes existenciais.

Na análise e interpretação dos percursos biográficos dos jovens, apresentamos os principais pontos de tensão para, em seguida, desenvolver as questões que suscitavam maior conexão com os objetivos deste trabalho: violência, vulnerabilidade, vivência infracional, política socioeducativa e escolarização. Para tanto, invocamos tantos outros pesquisadores com que já havíamos nos defrontado ao longo do trabalho, em especial Zaluar (1992, 1994 e 1996), Lahire (1997 e 2004), Martuccelli (2007), Charlot (1996), Carrano (2008 e 2015), Abdalla (2013), Julião (2013, 2014 e 2016), dentre outros.

Esperamos, por fim, que a leitura deste trabalho possa suscitar bons momentos de reflexão quanto aos desafios para o acolhimento, inclusão e garantia dos direitos de jovens do sistema socioeducativo, seja na rua, seja na comunidade, seja na escola.

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CAPÍTULO 1

A MEDIDA DE LIBERDADE ASSISTIDA NA POLÍTICA SOCIOEDUCATIVA BRASILEIRA: QUESTÕES E PERSPECTIVAS

1.1 A invisibilidade infanto-juvenil e o choque de paradigmas

Na epígrafe de “Ensaio sobre a Cegueira”, o poeta e romancista português José Saramago nos cativa com uma sutil e fascinante provocação: “se podes olhar, vê” (SARAMAGO, 1995, p.9). Mais que um simples jogo de palavras, a expressão nos desafia a enxergar aquilo que está além da nossa capacidade física e superficial de visão. Mas, se já não bastasse podermos ser portadores deste talento incomum, Saramago nos leva mais adiante, lançando-nos em outro desafio igualmente cativante: “se podes ver, repara” (p.9). E neste sentido, o verbo “reparar” pode assumir diferentes significados, desde “notar” até mesmo “aprimorar”, “restabelecer”.

Ao brincar com as palavras, Saramago não faz apenas poesia, mas uma importante crítica à cegueira da sociedade contemporânea que desenvolve metaforicamente ao longo da sua obra literária, na qual um inexplicável surto contagioso de cegueira devasta toda a população, levando os indivíduos a condições de vida sub-humanas. Transpondo estas reflexões para o campo socioeducativo, deparamo-nos com outro limite ainda mais profundo e desafiador: e quando o sujeito é invisível? Esta questão nos leva, necessariamente, a um complexo paradoxo, pois “ver o invisível” implica, consequentemente, em tornar este indivíduo “visível”, dar visibilidade as suas condições de existência. Esta é uma das contribuições que pretendemos oferecer com este trabalho.

Axel Honneth (2001) nos ajuda a enfrentar esta embaraçosa incongruência ao discorrer sobre invisibilidade social a partir do romance “O homem invisível” de Ralph Ellison, no qual o narrador negro se constata invisível para seus interlocutores brancos. Assim sendo, Honneth nos chama atenção para o mecanismo de invisibilidade que não se refere a uma não-presença física, mas a uma não-existência em sentido social. Dessa forma, o estado de invisibilidade não se define, exclusivamente, por aquele que é incapaz de ver e perceber o “outro”, mas, concomitantemente, pelo sujeito que se reconhece imperceptível socialmente, que sabe que é literalmente visto, mas que socialmente não é notado. Embora metafórico, o conceito de invisibilidade cunhado pelo autor deve ser apreendido a partir de suas reais

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consequências para aqueles que não se sentem percebidos pelos olhos e pela atenção dos demais.

Guardadas as devidas proporções, podemos afirmar que o mal da invisibilidade de que trata Honneth (2001) atinge uma parcela expressiva da infância e da juventude brasileira. Os sintomas são denunciados pelo relatório “O Direito de ser Adolescente” (UNICEF, 2011) que trata das principais vulnerabilidades9 das quais crianças e adolescentes brasileiros são vítimas: pobreza e pobreza extrema, baixa escolaridade, exploração do trabalho, privação da convivência familiar e comunitária, homicídios, abuso e exploração sexual, uso abusivo de drogas, entre outros. O documento também destaca que há maior incidência dessas vulnerabilidades em grupos específicos, a partir de variações raciais, regionais, de gênero que, sobrepostas, potencializam ainda mais a condição de invisibilidade e precariedade as quais estão submetidos.

Não por acaso e na mesma direção, o Mapa da Violência 2015 (WAISELFISZ, 2015, p.17) registra a progressão histórica de homicídios de adolescentes de 16 e 17 anos, com o aumento percentual de 640% entre 1980 e 2013 que, em números absolutos, corresponde ao salto de 506 para 3.749 mortes, representando 46% da mortalidade nesta faixa etária10. O diagnóstico traçado aponta perspectivas ainda mais preocupantes e se afirma na tradição histórica do “controle dos miseráveis pela força”, disfarçada na lógica de contenção aos delinquentes (WACQUANT, 2011).

Não obstante, mesmo com todo esse enorme aparelho de recomendações, normas e resoluções (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Constituição Federal, ECA), diariamente somos surpreendidos com notícias de graves violações, de atos de extrema barbárie praticados, em muitos casos, pelas pessoas ou instituições que deveriam ter a missão profícua de zelar pela vida e pela integridade desses adolescentes: suas famílias ou as instituições que, na letra da lei, deveriam ser as responsáveis pelo resguardo e proteção. (WAISELFISZ, 2015, p.5)

Progressivamente, a análise do quadro situacional da infância e da juventude brasileira vem apresentando dados alarmantes e comprova um conjunto de omissões que atestam ainda mais a condição secundária que a matéria assume para a política pública. Contraditoriamente,

9 Frente à necessidade de uma distinção conceitual mais clara a respeito da chamada vulnerabilidade e do risco

social, Rosane Janczura (2012, p.301 e 304) publicou artigo apresentando variados estudos que se debruçam sobre o tema, concluindo que “os conceitos são distintos, mas intrinsicamente relacionados, pois, enquanto o risco se refere às condições fragilizadas da sociedade tecnológica contemporânea, vulnerabilidade identifica a condição dos indivíduos nessa sociedade” Portanto, a vulnerabilidade é definida “como exposição a riscos e baixa capacidade material, simbólica e comportamental de famílias e pessoas para enfrentar e superar os desafios com que se defrontam.”

10 Para uma análise mais detalhada sobre o Mapa da Violência, consulte o artigo “Juventude e Violência:

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a atenção do Estado só chega a este adolescente após sua conduta infracional, revertendo drasticamente seu status de invisível para a condição de personagem alvo de intensa vigilância e intervenção, na tentativa de “remediar com ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social” (WACQUANT, 2011, p.4)

Talvez não seja coincidência que o nome da medida socioeducativa mais recomendada seja a Liberdade Assistida. Para tanto, o verbo “assistir” etimologicamente pode significar simplesmente “ver”, “vigiar” ou “presenciar”, como também “prestar assistência”, “auxiliar” ou “acompanhar”. Denota, portanto, uma forma de tornar “visíveis” aqueles que outrora não eram vistos pela política pública e, ao mesmo tempo, oferecer o apoio e a orientação que antes eram negados e negligenciados aos adolescentes sentenciados ao cumprimento desta medida. Tal distinção, no entanto, vai variar de acordo com os dois paradigmas presentes nos marcos legais que constituíram historicamente a política socioeducativa brasileira: o paradigma da situação irregular e o paradigma da proteção integral.

Antônio Carlos Gomes da Costa (2006b) define paradigma como “uma maneira de ver, de entender e de agir em um determinado domínio da atividade humana” (2006b, p. 13) e, citando o americano Joel Baker, conclui que o termo nos ajuda a definir um campo de pensamento e ação, favorecendo o entendimento acerca dessas duas grandes concepções ideológicas que habitam o imaginário social, especialmente no que diz respeito à problemática da delinquência juvenil.

Vigente no país ao longo do século XX, o paradigma da situação irregular tinha como peculiaridade o fato de não se dirigir a todo o conjunto infanto-juvenil brasileiro, mas apenas àqueles considerados em “situação irregular”, conforme os quatro critérios estabelecidos: os carentes, os abandonados, os inadaptados e os infratores11. Incorporado no plano legal especialmente através dos Códigos de Menores de 1927 e de 1979, o paradigma da situação irregular reproduzia uma clara distinção entre os filhos das elites, tidos como “crianças”, e os filhos das classes populares, denominados como “menores”, tendo como premissas a “manutenção da ordem, a higiene social e a criminalização da pobreza” (ORTEGAL, 2011, p. 49).

Ao analisarmos os pressupostos do paradigma da situação irregular, o principal aspecto que nos chama atenção leva em conta o fato da legislação tratar igualmente as quatro categorias elencadas, independentemente de suas origens e especificidades. Assim sendo, os

11 Antônio Carlos Gomes da Costa (2006) define cada uma dessas categorias, a saber: carentes: menores em

perigo moral em razão da manifesta incapacidade dos pais para mantê-los; abandonados: menores privados de representação legal pela falta ou ausência dos pais ou responsáveis; inadaptados: menores com grave desajuste familiar ou comunitário; infratores: menores autores de infração penal.

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menores considerados carentes, abandonados ou inadaptados tinham o mesmo destino dos autores de infrações penais, sendo também encaminhados ao Tribunal de Menores, mesmo sem prática de ato delituoso.

Dessa forma, carentes, abandonados, inadaptados e infratores vieram a ser encaminhados à justiça de menores, que passou a atuar como um pêndulo, oscilando com regularidade entre a compaixão pela carência e o abandono e a repressão sistemática à inadaptação e ao delito. (COSTA, 2006b, p. 15)

Assim, o paradigma da situação irregular contribuiu fortemente para a estigmatização da infância pobre no Brasil, associando, consequentemente, a delinquência juvenil à questão da carência econômica, afetiva ou psicopedagógica. Com isso, mecanismos que tradicionalmente estavam a serviço do controle social do delito como a polícia, a justiça e os internatos passaram a se apropriar do conjunto dos “menores” tidos como em “situação irregular” que sequer haviam cometido infração penal. Essas crianças e adolescentes, portanto, não eram portadores de direitos, mas apenas objetos de intervenção jurídico-social do Estado, na pessoa do Juiz de Menores.

Como resultado do paradigma da situação irregular, pode-se perceber a distinção histórica de duas formas de infância brasileira: a infância “escola-família-comunidade”, para a qual são assegurados os direitos básicos como educação, saúde, esporte, lazer e cultura; e a infância “trabalho-rua-delito” (COSTA, 2006b, p.19), submetida a um rígido sistema de controle social através de uma legislação discriminatória, fundamentada na lógica correcional-repressiva-assistencialista.

Foi no interstício entre os dois Códigos que surgiu, em 1964, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), em substituição ao Serviço de Assistência a Menores – SAM (1941)12. No âmbito estadual, foram criadas as Fundações Estaduais do Bem Estar do Menor (FEBEM), caracterizadas como unidades de internação para menores que, através de ações repressoras e disciplinadoras, prometia livrá-los da delinquência. Cabia, portanto, à FUNABEM a articulação e o gerenciamento da Política Nacional de Bem-Estar do Menor e, às FEBENS, sua execução em nível Estadual.

12 Fundado por Getúlio Vargas no período do Estado Novo, por meio do Decreto-Lei nº 3.799 de 05 de

novembro de 1941, o SAM tinha com objetivo “sistematizar e orientar os serviços de assistência a menores desvalidos e delinquentes, internados em estabelecimentos oficiais e particulares.” Através do mesmo decreto, foram incorporados em sua estrutura a Escola Quinze de Novembro, o Patronato Agrícola Artur Bernardes, o Patronato Agrícola Venceslau Braz e a Escola João Luiz Alves que até hoje figura como uma das unidades de internação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas(DEGASE) no Estado do Rio de Janeiro. Segundo Abdalla (2013, p.46), “o SAM foi o grande difusor/propagador da lógica e da instauração do modelo de instituição total.”

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Com isso, a execução do ordenamento jurídico fundamentado no paradigma da situação irregular levava crianças e adolescentes ao degenerado circuito da institucionalização compulsória, independentemente de autoria de infração penal, bastando ser enquadrado em situação de risco pessoal ou social, conforme os critérios elencados no Código de Menores. A decisão do Juiz de Menores, portanto, não era orientada por critérios objetivos, mas fundamentada no “prudente arbítrio de um bom pai de família”, sendo mais comum o confinamento do “menor” na rede de instituições totais da FUNABEM e o rompimento de seus vínculos familiares e afetivos com o meio de origem (COSTA, 2006b, p.16).

De acordo com Erving Goffman (1974, p.11), uma instituição total é definida como “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. O autor classifica tais instituições em cinco grupos: I – dedicadas a zelar por pessoas consideradas incapazes e inofensivas (asilos e orfanatos); II – dedicadas a cuidar de pessoas incapazes de cuidar de si mesmas e que são consideradas uma ameaça não-intencional à comunidade (sanatórios); III – instituições organizadas para proteger a comunidade de sujeitos intencionalmente perigosos (cadeias, penitenciárias); IV – dedicadas à realização de determinadas formas de trabalho (quartéis, escolas internas); V – instituições que funcionam como refúgio do mundo ou como locais de instrução religiosa (conventos, mosteiros).

Abdalla (2013) destaca que as instituições criadas para o atendimento aos menores delinquentes e desvalidos expressavam enunciado e características semelhantes àquelas categorizadas por Goffman (1974), possuindo como marca peculiar um fim em si mesmas, configurando-se, real e simbolicamente, como uma barreira com o mundo exterior e com os demais elementos da vida social.

Aplicada, portanto, indiscriminadamente a menores carentes, abandonados, inadaptados e infratores13, a institucionalização compulsória não privava crianças e adolescentes somente da liberdade, mas negava aos internos condições elementares de dignidade, respeito, salubridade e o perfeito gozo de sua integridade física, psicológica e moral.

De acordo com o pesquisador e historiador Humberto Miranda (2014, p.18), a FUNABEM “passou mais de 20 anos procurando garantir a manutenção da Política Nacional

13 Segundo Costa (2006b, p.16), a única distinção que a internação aplicada aos infratores apresentava era o

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