• Nenhum resultado encontrado

O microscópio sociológico: um instrumento de observação da sociologia à escala

Como dizia-nos Émile Durkheim, “só existe uma forma de se chegar ao universal: observar o particular, não superficialmente, mas minuciosamente e em detalhes.” (1975, p. 333 apud LAHIRE, 1997, p. 11). Diante desta constatação e do desejo de responder às questões suscitadas neste trabalho, optou-se pelo encaminhamento desta pesquisa pela via da perspectiva sociológica à escala individual (LAHIRE, 2005), buscando, a partir de uma abordagem biográfica, compreender modos de vida e experiências de escolarização de jovens oriundos de camadas populares, moradores de favelas que se envolveram, em algum momento de suas vidas, com atividades ilícitas e praticaram atos infracionais, sendo sentenciados ao cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade Assistida.

Antes de mais nada, é importante salientar como esta opção metodológica foi cuidadosamente projetada de modo a evitar uma limitação criticada e assinalada por Carrano (2008, p. 62) que, muito comum em pesquisas temáticas no campo da juventude, “têm, em grande medida, investido em aspectos parcelares da vida dos jovens e perdido de vista os contextos concretos de existência dos sujeitos investigados”. A abordagem biográfica, dessa forma, livra-nos do risco de cometer equívoco semelhante e complexifica sobremaneira o potencial de análise da investigação que considera, na experiência de escolarização, a trajetória de vida dos três jovens protagonistas que serão apresentados a seguir. Esta escolha levou-nos a uma precaução aparentemente óbvia (mas absolutamente necessária) de não dissociar a vida da escolarização, nem tampouco a escolarização da vida e dos demais componentes que surgem imbricados aos percursos biográficos estudados, levando em conta a impossibilidade de que essas esferas sejam descombinadas em uma análise que se pretende sociológica.

Para tanto, foi necessário lançar mão de importante recurso que Lahire (1997) chama de “microscópio sociológico” – instrumento que nos possibilita ajustarmos nossas lentes para

promovermos o chamado “jogo de escalas53”, indo “do macro ou micro”, “do geral ao específico”, potencializando nossa capacidade de observação e de captação de “realidades encarnadas em seres sociais concretos” (ibid., p. 18). Entretanto, a utilização deste expediente metodológico também implica, consequentemente, em uma série de desafios e cuidados, sobretudo no momento do processamento do material empírico coletado e da redação e interpretação das narrativas dos protagonistas. A preocupação com os detalhes surge, neste contexto, como um significativo indicador para a composição das histórias de vida dos jovens, evidenciando as tensões, as microtensões e, até mesmo, as pequenas contradições que surgiam, por vezes, em suas respostas durante a entrevista.

Não é fácil, portanto, narrar a vida. Lahire (2004) já alertava-nos sobre tais dificuldades e quanto aos riscos ocasionados pela chamada “preguiça empírica” ou pelo “demônio da generalização abusiva” que, juntos, poderiam comprometer todo o processo de pesquisa e levar-nos a estabelecer conclusões e correlações precipitadas. Também nesta direção, Martuccelli (2007) adverte-nos igualmente quanto à generalização que poderia inviabilizar a compreensão dos percursos biográficos enquanto experiências eminentemente singulares, da mesma forma que evidencia a necessidade de que estas experiências individuais se traduzam em investigações sociológicas transversais e não se restrinjam, meramente, a uma série de perfis pessoais desprovida de qualquer potencial analítico.

Outra ameaça, entretanto, revelou-se ainda mais desafiadora neste decurso: a ameaça da coerência que, através de uma espécie de acordo subjetivo (e quase que involuntário) entre pesquisador e entrevistado, poderia induzir-nos a conferir às histórias concretas uma lógica linear, organizada e supostamente harmônica, fantasiada de realidade. Isto não quer dizer que este estudo deveria perseguir a contradição a todo custo, mas ressalta a importância de “modificar o gênero biográfico que privilegia, enquanto gênero discursivo, a coerência de um percurso, de uma vida, ou de um procedimento em detrimento de todas as incertezas, as incoerências, as próprias contradições de que são formados os personagens históricos reais” (LAHIRE, 2004, p. 320-321).

Se há algo, portanto, que deva ser previamente enfatizado como principal recomendação tanto para a escrita, quanto para a leitura e interpretação das narrativas dos jovens protagonistas é o reconhecimento de que não se trata de personagens estáveis e monocoerentes que (re)produzem a vida a partir de uma essência ou fórmula ordinária, mas de

53 O conceito de "jogo de escalas" foi cunhado originalmente por Jacques Revel (1998), e, de acordo com

Brandão (2008) implica em conjugar posições de observação mais particulares com as mais globais. Desta forma, a autora enfatiza que "a realidade social é por demais abrangente e complexa para comportar a pretensão de um verdadeiro e definitivo olhar, a partir de uma abordagem supostamente mais abrangente" (p.610).

indivíduos que devem ser compreendidos de maneira relacional e circunstancial, por meio do “tecido de imbricações sociais com os outros” (ibid., p. 18), ou seja, “ninguém é ‘esperto’, ou ‘dependente’, ou ‘fatalista’ no vazio. Cada traço que atribuímos ao indivíduo não é seu, mas corresponde mais ao que acontece entre ele e alguma outra coisa (ou alguma outra pessoa)” (ROUSTANG, 1990 apud LAHIRE, B. 1997, p. 18).

Lahire (2004, p. 45) ajuda-nos a fugir deste percalço narrativo com o entendimento de que os indivíduos são movidos por “princípios múltiplos de coerência”, estando, portanto, a nosso ver, sujeitos a pressões sociais diversas e, por vezes, contraditórias, segundo as quais (re)constroem sua individualidade em um processo permanentemente revisto e recomposto diante de cada nova circunstância relacional com a qual se defrontam. Desta forma,

podemos levantar a hipótese de que os diferentes momentos das entrevistas não se baseiam obrigatoriamente nas mesmas experiências e, portanto, de que não se trata exatamente da ‘mesma’ pessoa que fala nos diferentes momentos da entrevista. Em vez de ser unificado, homogêneo, o discurso do pesquisado é, às vezes, composto de geometria variável, evocando ‘partes’ ou momentos da experiência que não são necessariamente da mesma natureza. (LAHIRE, B., 2004, p. 43)

Frente a essa questão, tornamo-nos severamente desafiados a ajustar com precisão nosso microscópio sociológico, pois “olhando as coisas de perto, descobre-se a imprecisão de contornos que, anteriormente, se acreditavam claros e sem falhas” (ibid., p. 46). Os exemplos de imprecisão e incoerência são muitos: a escola que não “presta” para um dos jovens, mas que deseja ardentemente para seu filho e sua esposa; o desejo de retorno de outro jovem ao mesmo colégio do qual acabara de decidir se desligar; a mãe que se apresenta, paradoxalmente, tanto como companheira, quanto como algoz nos relatos de violência doméstica; o retorno ao crime que surge, por vezes, como algo impensável ou como possibilidade diante das dificuldades concretas em obter melhores condições de vida por meio do trabalho precarizado. Assim é a vida na realidade: inconstante, contraditória, mutável e,