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3.3 Apresentando os personagens

3.3.3 O jovem do Para-Pedro

Afirmando, hoje, no auge dos seus 18 anos, como “dono da sua vida”, o jovem do Para-Pedro parece também querer dizer, nas entrelinhas, que nem sempre sentiu-se assim: “eu não tive infância” – conta-nos, logo no início do diálogo, como esta importante etapa da sua vida lhe foi usurpada precocemente pela necessidade de prover a própria sobrevivência e pela corresponsabilidade que assumiu, junto a sua mãe, pelos cuidados dos seus quatro irmãos.

A qualidade de filho mais velho, associada ao desemprego da genitora e às precárias condições socioeconômicas da família, levaram o jovem a assumir, simbólica e efetivamente, a figura de provedor: “eu me sentia muito responsável por eles, porque minha mãe não tinha como sustentar a gente, (...) às vezes não tinha o que comer, e a gente sem comer, aí ela correndo de um lado e eu correndo de outro, aí a gente conseguia sobreviver”.

Residindo, desde os cinco anos de idade, na favela do Para-Pedro, situada no bairro de Colégio, zona norte da cidade, e limítrofe ao complexo da Central de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (CEASA-RJ), o jovem iniciou suas atividades laborativas em uma caixotaria da CEASA, ajudando na confecção de caixotes, na carga e descarga de caminhões

etc. Conta-nos que também chegou a trabalhar como ajudante em lojas de material de construção – atividades cujo exercício até hoje lhe causa fortes dores na coluna.

Ocupando, praticamente, o espaço deixado pela ausência de uma figura paterna na família, tanto no que diz respeito ao seu pai, quanto com relação ao pai dos seus irmãos, o jovem do Para-Pedro priorizava o trabalho como forma de garantir a sobrevivência e as necessidades da sua casa, dar aos seus irmãos o que não pudera ter.

A negligência paterna, porém, não consistia apenas na falta de apoio material em sua criação, mas também pela privação de uma atenção paternal, destacando que lhe faltou uma pessoa de quem gostaria de ouvir: “isso aqui é o certo, isso aqui é o errado, vai por aqui que é um caminho certo, por lá você vai se dar mal”. Nestas circunstâncias, o jovem conta que teve que aprender sozinho e na rua cada uma das lições que a vida lhe imputava.

Enquanto que sua relação com o pai se mostra, por esse ângulo, extremamente fria e ocasional, restrita atualmente a eventuais conversas pela rede social de internet whatsapp, o oposto ocorre em comparação com a sua mãe, com quem afirma manter uma intensa e profunda relação afetiva e de quem diz não conseguir ficar longe.

O jovem do Para-Pedro refere-se à figura materna com tamanho carinho que sequer é capaz de admitir a possibilidade de ter sido vítima de violência doméstica ao se recordar, por exemplo, do quanto que apanhou ao longo da sua infância ou das ocasiões em que seus pertences eram jogados por ela na rua. Saindo em defesa da genitora, o jovem corrige prontamente o possível uso do termo “maus-tratos”, considerando-o pesado demais, enquanto que, paradoxalmente, afirma que “ela não sentava, não conversava, não tinha paciência (...), era só couro”. Esta fase parece ter sido absolutamente superada, junto às possíveis mágoas que parecem ter se convertido em um profundo sentimento de admiração pela maturidade conquistada pela genitora: “minha mãe tá mais cabeça (...). Tá mais paciente, porque agora ela tá sabendo né, que não vale a pena agora bater”.

O jovem do Para-Pedro iniciou sua vida escolar na educação infantil, quando ainda residia na Favela de Antares, em Santa Cruz, zona oeste do município, recordando-se pouco deste período, lembrando-se apenas do quanto chorava sempre que era deixado na creche e se despedia da sua mãe. Após se mudar para a favela do Para-Pedro, foi matriculado em um CIEP da rede municipal, localizado na entrada da comunidade, onde cursou o primeiro segmento do ensino fundamental e foi alfabetizado. Posteriormente, circulou por outras escolas municipais do bairro, tendo sido reprovado no quarto e no sexto ano escolar. Acredita não ter acumulado mais reprovações em razão da política de aprovação automática implementada, à época, pela rede municipal do Rio de Janeiro.

Afirmando nunca ter gostado de estudar, o jovem aponta seu desinteresse como significativo para explicar o péssimo rendimento que acumulava na maioria das disciplinas. As duas exceções eram Ciências e Artes, aulas pelas quais se interessava, a primeira devido à curiosidade que mantinha por conhecer os animais e a segunda por seu notável fascínio por desenhar: “meu caderno é só desenho, cara” – diz o jovem que, vez ou outra, precisava ludibriar sua mãe quando ela constatava que só havia ilustrações em seu caderno: “ai eu falava para ela: não mãe, é aula de artes”.

Nestas circunstâncias, a rotina escolar do jovem do Para-Pedro era compartilhada com as atividades laborativas que exercia na caixotaria da CEASA, trabalhando pela manhã e estudando no turno da tarde. As faltas na escola eram sucessivas, assim como as vezes em que decidia fugir das aulas e pulava o muro do colégio, não para ficar “à toa”, mas para retornar à CEASA, pois dizia não se sentir capaz de aprender e considerava estar perdendo o seu tempo estudando.

Diferentemente da escola, o trabalho apresentava-se dotado de utilidade para o jovem do Para-Pedro: “eu, pra mim, eu ia ser mais importante eu trabalhando, porque nada, nada eu ia tá ganhando um dinheirinho, né.”

O envolvimento com o tráfico de drogas começou quando tinha por volta de 13 anos, seduzido pelo alto rendimento semanal de R$ 500,00 que, infinitamente superior ao que recebia trabalhando, possibilitava ao jovem o acesso a bens de consumo almejados e, até então, inalcançáveis pela via do trabalho, como roupas de marcas prestigiadas, carros e motos. Vivenciando a sedutora rotina infracional por um bom tempo, tornou-se intenso frequentador dos bailes promovidos na comunidade e usuário de maconha e lança-perfume, negando-se a experimentar outras drogas como a cocaína, pois afirmava conhecer seus efeitos: “perde o controle, a família, o respeito”.

Na época, quase foi apreendido em uma operação na comunidade, tendo sido encurralado por policiais, mas conseguiu escapar efetuando disparos que, mesmo não tendo atingido os agentes, serviram para que ganhasse tempo e pudesse fugir. A apreensão, no entanto, ocorreu posteriormente, quando o jovem se disse transtornado por não ter como presentear sua mãe na data do seu aniversário – presente que também tinha como objetivo a reconciliação de uma desavença mal resolvida com a genitora. Acompanhado por outro rapaz da comunidade, o jovem resolveu praticar um assalto e, no momento da fuga, foi apreendido em flagrante pela polícia, sendo reconhecido pela vítima.

Após a apreensão, o jovem foi duramente espancado e teve seu nariz quebrado pelos policiais que lhe ameaçaram de morte caso viesse a revelar o fato durante o exame de corpo

de delito: “se você abrir o bico, eu te mato”, disse um dos policiais ao jovem que, com muito medo, “optou” por silenciar-se.

A sua pele negra parecia ser propícia à violência: “pra mim, eu apanhei muito por causa da minha cor”, disse o jovem do Para-Pedro, explicando como o tom da sua pele era mais suscetível a encobrir com facilidade os diversos hematomas decorrentes do espancamento. Por este motivo, acredita ter sido o único a apanhar, enquanto que seu companheiro de assalto, de pele mais clara, recebeu tratamento diferenciado, não sofrendo da mesma violência física.

Esta, contudo, não era a primeira oportunidade em que o jovem do Para-Pedro se sentia discriminado. Autodenominando-se “imã de polícia”, o jovem conta que atraía constantemente a atenção dos policiais e já era abordado como suspeito muito antes de ter qualquer envolvimento com o tráfico ou com qualquer outra atividade ilícita. O jeito de se vestir, segundo o jovem, chamava a atenção dos policiais que deviam julgá-lo, “preventivamente”, como infrator.

Também por este motivo, o jovem do Para-Pedro conta que evitava sair da comunidade e do seu entorno, deixando de circular livremente pela cidade e de frequentar os bairros que gostaria de conhecer, como a Lapa (centro), Copacabana e Leblon (zona sul).

Após a apreensão por roubo, ficou internado no DEGASE por aproximadamente um mês e meio – período que destacou positivamente, como uma importante lição que teria recebido e que provocou uma profunda reflexão sobre a sua vida: “foi bom pra mim abrir minha mente em relação ao mundo, porque eu estava muito aéreo (...). Achava que eu era dono do mundo (...), foi mais de uma lição mesmo que Deus me deu.”

Entretanto, durante a internação, o jovem do Para-Pedro conta que foi novamente vítima de violência física, dessa vez por parte dos agentes do DEGASE. O motivo foi ter desenhado um bandido, com mochila, rádio e pistola no lençol de uma das camas do alojamento, fato denunciado por um dos internos aos agentes.

Em razão do desenho, o jovem relata ter apanhado muito, não só pela utilização do lençol, mas também pela própria natureza da ilustração: “não tinha papel, não tinha nada. Aí eu fui lá e desenhei no lençol mesmo. Mas eu acho que apanhei por causa do desenho, e por causa que eu desenhei no lençol”. Apesar do incidente, o jovem do Para-Pedro ressalta que seu interesse por desenho não diminuiu, destacando orgulhosamente a marca recentemente conquistada de 98 desenhos em seu caderno.

Depois de cumprir um período de internação no DEGASE, o jovem do Para-Pedro teve sua medida socioeducativa substituída pela Liberdade Assistida, apresentando-se ao

CREAS para acompanhamento em meio aberto. Como providências adotadas na época, destacam-se os encaminhamentos para reinserção escolar e para o Ministério do Trabalho, quando foi acompanhado para expedir sua primeira carteira profissional, aos 15 anos. Entretanto, o que o jovem do Para-Pedro destaca do período de acompanhamento, que perdurou por mais de um ano, não foram os encaminhamentos, mas o caráter acolhedor e personalizado da medida de Liberdade Assistida: “eu sentia que lá eles me acolhiam (...), eu preferia ir pra lá conversar do que ficar na rua e fazer uma besteira. Eu não me sentia indo lá por obrigação, é mais pelo distraimento mesmo, refrescar um pouco a mente.”

Por meio desta reflexão, o jovem do Para-Pedro destaca o quanto o cumprimento da medida socioeducativa teria sido fundamental para tornar-se “sujeito homem” que, segundo sua definição, representa “um homem maduro, que já sabe o que é certo e o que é errado, já sabe o objetivo da vida”. Considerando-se, hoje, um homem “responsável e positivo”, enfatiza que, por onde passa, sempre ganha a admiração de três ou quatro pessoas pelo seu modo de se relacionar com os outros.

Neste processo, contudo, outra importante personagem despontou-se como fundamental para que o jovem alcançasse esta condição: a sua esposa, a mesma namorada que fizera questão de apresentar na época em que era acompanhado pelo CREAS, hoje uma jovem de 18 anos com quem construiu uma nova família. Refere-se a ela carinhosamente como sua “dona”, ou como a única pessoa que consegue tirar-lhe o sorriso do rosto: “ela me dá muito conselho, eu gosto mais dela por causa disso, porque tem dois tipos de menina, tem aquela que te afunda e aquela que te levanta, e ela pra mim tá sendo aquela pessoa que me levanta”.

Com palavras de gratidão, o jovem compartilha com a esposa o mérito de cada uma das suas conquistas, referindo-se especialmente ao imóvel alugado e mobiliado na favela do Acari, bairro situado na zona norte do município, onde reside atualmente, arcando com todas despesas através do salário que recebe trabalhando como auxiliar de cozinha em um restaurante na Vila Valqueire, zona oeste, que é seu primeiro emprego de carteira assinada.

Ao falar sobre o trabalho, o jovem do Para-Pedro alterna momentos de orgulho e de insatisfação: o primeiro devido ao aprendizado que vem tendo desde que foi contratado e à confiança que conquistou da sua chefe e dos demais companheiros do restaurante; o segundo, por sentir-se sobrecarregado, desvalorizado e mal remunerado diante do seu empenho e das responsabilidades que vem assumindo na empresa. Deste modo, o jovem conta que o trabalho suga toda sua energia, tendo uma rotina bastante pesada, “dia sim, dia sim”, segundo suas palavras, com folgas apenas em semanas alternadas.

Demonstrando-se um hábil administrador dos seus recursos, o jovem do Para-Pedro conta como utiliza seu rendimento líquido de pouco mais de R$ 800,00 para pagar o aluguel e arcar com as demais despesas da casa, assumindo unicamente para si o que chama de “responsabilidade de um homem de trinta anos”, enquanto recomenda que sua esposa conclua o ensino fundamental, pois acredita que o estudo pode garantir-lhe um futuro melhor.

A perspicácia do jovem parece ter sido observada por sua chefe, que lhe confia frequentemente a missão de comprar mercadorias para o restaurante na CEASA, lugar que o jovem conhece como poucos, sendo capaz de negociar bons descontos junto aos comerciantes: “é porque ela já sabe que eu sou esperto nesse negócio de matemática assim, em algumas coisas, e eu sou muito bom de jogo”.

O jovem não parece considerar, entretanto, que esse reconhecimento ocorra na mesma proporção da confiança que lhe é depositada, colocando-se no centro de um dilema entre uma sensação de valorização que não se materializa em ganhos salariais reais. Resta ao jovem um sentimento quase que paternalista em relação a chefe, que julga ser “como uma mãe” para ele: “por um lado reclamo (...), mas se eu chegar e falar pra ela assim “a senhora pode me arrumar tanto?”, no mesmo dia ela me dá”.

Diante, portanto, de imensas dificuldades para encontrar melhores condições de trabalho e mobilidade social, uma sensação de desesperança, por vezes, parece tomar conta do jovem do Para-Pedro, principalmente quando exclama: “eu não tive um futuro”, constatando que a baixa escolaridade (ensino fundamental incompleto – 9º ano) limita suas chances de encontrar um emprego em que seja bem remunerado e a passagem pelo sistema socioeducativo praticamente o exclui de qualquer possibilidade de ingressar na almejada carreira militar, tanto na Marinha, quanto no Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE).

Confessa que às vezes pensa em voltar a estudar, mas a vontade repentina é logo interrompida pela rotina de trabalho que, segundo o jovem, consome toda sua energia: “é muita correria, entendeu, eu gasto minha energia toda (...). Vamos supor assim, eu vou pra escola, vou pra escola pra ficar dormindo?”.

Vendo frustradas suas expectativas em obter promoção ou reconhecimento no emprego atual, o jovem encontra na esposa um equilíbrio que o faz pensar melhor em suas decisões, recomendando-lhe que procure novas frentes de trabalho. A conquista de oportunidades melhores, no entanto, mostra-se para o jovem como improvável: “procurar outro trabalho é mole, difícil é encontrar”, responde à esposa, evidenciando sua preocupação em ficar desempregado: “nesse difícil de encontrar, eu fico de cabeça quente, porque eu fico

preocupado de eu sair desse trabalho e ficar em casa à toa. E eu não posso ficar em casa à toa”.

Eventualmente, o retorno ao crime surge como opção, quando se encontra estressado e revoltado diante de suas condições de trabalho e observa meninos de 13 e 14 anos no tráfico muito bem vestidos, com elevado padrão de consumo que ele, enquanto trabalhador, não consegue alcançar. Nestes momentos, o jovem do Para-Pedro ressalta a importância da esposa: “ela vai lá e me segura, fala que isso não é vida pra mim, que a gente tem um futuro pela frente”, admitindo que se não fosse por esse apoio, já teria voltado à rotina infracional: “eu sei que se eu tivesse no mundo agora, assim solto, sem ninguém, solteiro, eu ia estar no crime. Isso eu não nego não”.

Dessa maneira, a esposa parece estar sendo capaz de conter a revolta que o jovem do Para-Pedro diz crescer dentro de si, levando-o à reflexão sobre o que já passou em sua vida e no homem que se tornou: “eu era cabeça muito avoada, não queria saber de nada, (...) batia de frente até com traficante, hoje em dia, eu paro, penso muita coisa, vejo realmente se eu estou certo”.

Revelando-se, assim, honrado por cada ação que realiza, o jovem do Para-Pedro também não deixa de mencionar que se considera feliz e realizado, chegando a planejar cada passo do seu futuro, a partir do desejo de um dia ser pai: “trabalhar, ter minha casa, e construir uma família, e dar pro meu filho tudo o que eu não tive”, projetando garantir ao filho a melhor escola e a vivência de uma infância saudável, sendo presente em sua criação e utilizando a via do diálogo, sempre que for necessário repreendê-lo, pois enfatiza que “não vale a pena bater, não vale, (...) se vale a pena bater, eu era um anjo, eu era um anjo, que nessa vida eu já apanhei muito”.

3.4. Considerações elementares e perspectivas analíticas: traçando alguns pontos