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3.3 Apresentando os personagens

3.3.2 O jovem da Cidade de Deus

Tendo completado recentemente 21 anos de idade, o segundo personagem desta pesquisa se trata de um jovem de pele parda que cresceu na comunidade da Cidade de Deus. Localizada na zona oeste do Rio de Janeiro, a comunidade foi elevada à condição de bairro através de um decreto municipal, estando circunvizinha a uma região prestigiada da cidade, como a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes, onde o jovem frequentava praias, shopping centers e cinemas. Afirmando ter tido uma “vida boa” e nunca ter lhe faltado nada, o jovem da Cidade de Deus foi criado por sua mãe, na companhia do seu padrasto e tio, com quem residiu a maior parte da sua infância.

Julgando possuir facilidade para aprender e ter sido um bom aluno, apesar de indisciplinado, cursou toda a primeira etapa da sua vida escolar na mesma escola municipal, desde a educação infantil até o sexto ano do ensino fundamental O desinteresse pela escola, segundo o jovem, começou a surgir quando cursava o quarto ano de escolaridade – primeiro ano em que foi reprovado, enquanto que seus problemas com disciplina tornavam-se cada vez mais graves. Reconhecido na escola pelas sucessivas questões indisciplinares, o jovem da Cidade de Deus relata que uma brincadeira violenta com uma colega de classe foi interpretada como agressão pela direção da escola, decorrendo em sua expulsão, sob a acusação de quase ter quebrado o braço da aluna.

Após ter sido expulso, em meados do ano letivo, o jovem da Cidade de Deus conta que não foi matriculado em outra instituição de ensino, mas depois de um tempo conseguiu uma oportunidade de trabalho como jovem aprendiz56 em uma rede de supermercados. Apesar da frequência escolar constituir-se como uma das condicionalidades para ingresso neste tipo de vaga, o jovem ressaltou que conseguiu burlar a regra através de um amigo de sua mãe que já trabalhava no supermercado há vários anos.

Na mesma época, tornou-se usuário de maconha, por volta dos 14 anos, dizendo-se influenciado pelos amigos e pelo tempo ocioso: “Ah, hora vaga em casa, você tá sem fazer nada, tá só na rua, os amigos fuma, você “ah deixa eu ver se é bom”, aí experimenta e “pô gostei mané”, aí no outro dia fuma de novo, vai fumando, quando vê tá fumando”.

56 Segundo o Manual de aprendizagem do Ministério do Trabalho e Emprego (BRASIL, 2009, p.13), o programa

jovem aprendiz "é o programa técnico-profissional que prevê a execução de atividades teóricas e práticas, sob a orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional", sendo firmado por meio de "contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e de prazo determinado, com duração máxima, em regra, de dois anos".

A frequente utilização da maconha ocasionou na primeira apreensão do jovem da Cidade de Deus: “eu tava sentado num local e usando. A viatura parou, o polícia já chegou violentamente, pegando no meu peito e tal, aí eu me debati com ele, dei uns empurrão”. Conduzido à delegacia, argumentou ser usuário e que as 17 gramas da maconha que portava seriam para seu próprio consumo. O policial, no entanto, duvidou de sua versão e tentou enquadrá-lo por tráfico. Ao final, acabou sendo dispensado como usuário, tendo sido levado por sua mãe que, segundo o jovem, precisou assinar uma documentação para liberá-lo.

Com base nesta experiência, o jovem da Cidade de Deus dizia-se revoltado com este tipo de abordagem policial: “muitas vezes eu já vi amigos meus que não eram envolvidos tomar tapa na cara de policiais”. Ao questionar a forma preconceituosa como os habitantes da sua comunidade eram tratados pela polícia, o jovem utilizou um exemplo recente, fortemente veiculado pela mídia na semana da entrevista: “teve agora uma operação na Cidade de Deus, na linha do BRT tem mais de umas trinta pessoas, vai me dizer que todas aquelas trinta pessoas que tá lá no chão, de cabeça no chão, deitada, é tudo envolvido?”.

Para o jovem da Cidade de Deus, portanto, não fazia diferença estar envolvido ou não com a criminalidade, pois o tratamento que recebia enquanto morador da comunidade somada à condição de usuário de drogas já praticamente o enquadrava na categoria bandido: “a justiça é falha, o cara chega aqui porque tá usando a farda, mata você, joga uma arma na sua mão, fala que você deu um tiro em cima dele, pronto, acabou. Você é o bandido da história, entendeu?”.

Pouco tempo depois, tendo por volta de 15 anos, o jovem da Cidade de Deus envolveu-se com o tráfico, buscando, segundo ele, ser mais respeitado na comunidade e poder “tirar onda com dinheiro, moto e outras coisas”. Não falou com entusiasmo deste período, exceto pela questão financeira, ressaltando a facilidade que a prática infracional propiciava nesse sentido: “o cara quando tá envolvido no tráfico, o cara que faz o dinheiro dele.” Por outro lado, destacou os aspectos negativos da vivência no crime:

Não tem vantagem nenhuma, a vantagem pô, se você achar vantagem de ficar na favela, trezentos e sessenta e cinco dias do ano vendo as mesmas pessoas, subindo pra outras favelas, trocando tiro com polícia, vendendo droga, ficando com mulher, e só ali naquele local, você não sai dali. Você não vai pra uma praia, você não vai tirar uma viagem, é só ali.

A segunda apreensão do Jovem da Cidade de Deus ocorreu já no contexto do seu envolvimento com o tráfico, tendo sido posteriormente encaminhado ao DEGASE, onde permaneceu internado provisoriamente por cerca de uma semana. Fala negativamente sobre este período, evidenciando que não vê a medida de privação de liberdade como uma boa

alternativa na vida dos internos, tanto pelas condições precárias de higiene e salubridade que diz ter vivenciado no alojamento, quanto pela facilidade em formar uma rede com outros jovens e de aprofundar o envolvimento com a criminalidade, podendo, inclusive ascender na hierarquia da facção: “eu tava lá dentro, aí fomos pra um, pro recreio no caso, aí um moleque, “vai lá no morro que a gente fecha, que não sei o que, vou te apresentar fulano, ciclano, beltrano”.

Em seu julgamento, o jovem da Cidade de Deus conta que foi sentenciado à medida de Liberdade Assistida graças à ausência dos policiais que fizeram sua apreensão, parecendo acreditar que merecia uma medida mais severa: “No meu caso, você tira pelo meu caso, porque eu era envolvido, porque um policial não compareceu, não foi o que me prendeu, os que eles mandaram ir não souberam argumentar com a juíza, e eu ganhei liberdade assistida”.

Encaminhado para o CREAS da localidade em que residia, o jovem conta que também não encontrou um espaço acolhedor e não se viu identificado com o acompanhamento: “não tinha uma atenção (...). Eu chegava, como é que tá, que não sei o que”, aí só anotava, entendeu? Não tomava uma atitude”. Nesta época, chegou a voltar a estudar em uma outra escola próxima à comunidade, na modalidade de Educação de Jovens Adultos (EJA), em ano equivalente ao sexto ano do ensino fundamental regular.

Entretanto, o jovem da Cidade de Deus descumpriu a medida e envolveu-se novamente com o tráfico. Após uma madrugada de serviço na boca-de-fumo, o jovem retirou- se para dormir, mas logo foi acordado por policiais que o encontraram com uma carga de crack e 300 reais em dinheiro. Por não ter sido apreendido pela polícia na ocasião, o fato não foi bem recebido e interpretado pela facção criminosa que o julgou como traidor. O jovem teve, dessa forma, que fugir da Cidade de Deus sob pena de sofrer as mais duras sanções por parte das lideranças do tráfico.

Acompanhado por sua mãe e padrasto, passou residir em outra parte da zona oeste, primeiramente em uma comunidade no bairro de Campo Grande e, posteriormente, no bairro de Sepetiba, onde voltou novamente a estudar na modalidade EJA, em horário noturno. Neste período, apresentou-se ao fórum e foi reencaminhado para cumprimento da medida de Liberdade Assistida que vinha descumprindo, dessa vez em outro CREAS que atendia os bairros da localidade em que passou a morar.

No novo CREAS, o jovem conta que recebeu atenção diferenciada por parte do profissional que ficou encarregado pela supervisão da sua medida: “tem pessoas e pessoas. Ele chegava: “você tá estudando? – Não – Então, vou te encaminhar aqui e tal”, uma pessoa que se preocupa entendeu (...). Ele tomava providencia e eu ia”.

Qualificando o socioeducador como “superatencioso”, o jovem enfatiza o quanto esta característica fez diferença em seu acompanhamento: “mesmo eu cumprindo a medida e às vezes eu ficava uma semana, duas semanas, três semanas sem ir lá, e ele ligava, “o que que tá acontecendo, cara é isso e isso”, entendeu?”

Pouco tempo depois, o jovem da Cidade de Deus foi morar com seu pai e sua madrasta na Paraíba, período em que relata não ter cumprido a medida porque sua documentação não teria sido transferida para o novo estado. Na Paraíba, retornou novamente à escola para cursar o sexto ano, mas não chegou a concluir o ano letivo, retornando ao Rio de Janeiro após seis meses.

Voltando para Sepetiba, o jovem da Cidade de Deus retomou o seu acompanhamento no CREAS e retornou à escola. O tempo em que passou estudando na Paraíba parece ter recuperado no jovem o apreço pela aprendizagem, fato notadamente marcado quando constatava que já havia aprendido muito dos conteúdos ministrados pelos professores da escola em Sepetiba: “Cheguei aqui “professor, isso daí eu já aprendi lá já” (...). Fazia uma prova surpresa, um teste, dez; matemática, nove; ciências, nove e meio, sete”.

Entretanto, outra mudança acabou por interromper a jornada escolar do jovem que, novamente, não conseguiu concluir o sexto ano do ensino fundamental. Após conseguir um emprego, o jovem decidiu morar com um tio no bairro de Inhoaíba, também na zona oeste do Rio de Janeiro, facilitando seu deslocamento até o trabalho e tornando inviável a conciliação com o horário escolar. Trabalhando como repositor em uma rede de supermercados, o jovem da Cidade de Deus cumpre cerca de doze horas diárias de trabalho, incluindo horas extras, tendo uma folga semanal e um domingo no mês para descanso.

Em Inhoaíba, também conheceu sua esposa, com quem vive atualmente e ajuda na criação de sua enteada, demonstrando ter construído um forte vínculo afetivo por elas: “sempre que eu posso, eu tô ali perto, dando carinho, dando afeto, tento fazer o máximo pra que seja o melhor cara”. Ressalta, ainda, que se não fosse pela importância que atribui à esposa, talvez nem estivesse empregado. Ter alguém de quem precise “cuidar” parece ter sido fundamental para que o jovem construísse um senso de comprometimento com o próprio rumo: “Eu não estaria trabalhando, porque o cara não tem responsabilidade, não tem do que cuidar, ah, hoje em dia de repente eu estaria morando de aluguel, comprado uma moto, ou alguma coisa, e estaria por aí”.

Descarta, contudo, a hipótese de retornar à criminalidade. Afirma já ter passado por esse momento e não estar mais disposto, como antes, a morrer por um chefe de facção, manifestando uma aparente decepção por não ter sido retribuído com a mesma fidelidade na

ocasião em que foi tratado como traidor: “não vale nada, (...) você tá num negócio desse, você tá disposto a dar sua vida pela pessoa, e a pessoa do nada vai lá arruma alguma coisa pra você, e pra te matar”. Além disso, ressalta as vantagens da vida que tem hoje: “ter meu trabalho, minha paz que, chegar, poder ir em qualquer lugar, entendeu, chegar aqui, como eu tô agora, sentar e ninguém ter medo, ninguém pensar que eu vou cometer alguma coisa”.

O retorno à escola por vezes lhe surge como opção, ao constatar como a baixa escolaridade limita suas chances de obter melhores oportunidades de trabalho: “pra você arrumar um emprego hoje em dia, sem estudo, é precário, não tem uma flexibilidade de você chegar e ter uma oportunidade, entendeu, de uma coisa melhor? Se você não tem estudo, você não tem oportunidade”.

Entretanto, as dificuldades para conciliar o horário escolar com a jornada de trabalho no supermercado desestimulam o jovem da Cidade de Deus que se vê praticamente obrigado a optar por aquilo que garante a sua sobrevivência e a de sua família, evidenciando o profundo dilema que precisa enfrentar: “se você for estudar, e não trabalhar, quem vai te sustentar?”.