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Levando em consideração os direcionamentos teórico-conceituais problematizados, apresentaremos, a seguir, os três jovens que protagonizam esta pesquisa. A redação de tais relatos foi possível após longa entrevista compreensiva com cada jovem que totalizou, entre uma e duas horas de aúdio e foi mediada por três diferentes dinâmicas de conversação: a) mapa de circulação urbana por meio do qual foi possível conversar sobre as vivências urbanas dos jovens e seus deslocamentos pela cidade, inventariar memórias de fatos significativos ocorridos em cada bairro, encontros e desencontros familiares, passagens por escolas, experiências laborativas, ou mesmo ligadas à prática infracional, bem como entender a própria dinâmica de apropriação da cidade etc.; b) imagens e memórias de escola, que contou com a apresentação de dez fotografias de espaços e momentos escolares aos jovens, sobre os quais foram convidados a comentar, correlacionando com suas memórias e experiências estudantis; c) acróstico, por meio do qual solicitamos que cada jovem correlacionasse as letras do seu nome com palavras e expressões que caracterizassem suas identidades. Para conferir maior flexibilidade a este exercício e diante da própria demanda apresentada pelos jovens na confecção dos acrósticos, foi aberta a possibilidade de construção de palavras, expressões ou até frases, sem que, necessariamente, precisasse ser respeitada a vogal ou consoante do nome como letra inicial.

Em razão da necessidade de preservação da identidade dos jovens, o acróstico produzido na dinâmica não será disponibilizado como apêndice desta dissertação, sendo apenas considerado para fins de análise. Neste caso, interessava-nos muito mais o diálogo que cada uma das palavras poderia suscitar, do que as expressões propriamente ditas. Apesar de relevantes, tais expressões poderiam simplesmente constituir-se de versões artificiais e estereotipadas sobre os personagens, devendo, portanto, serem utilizadas com cautela e mediante a devida confrontação com outros elementos narrativos ao longo da entrevista. Esta mesma preocupação inspirou toda a condução do diálogo, levando em consideração aquilo que Lahire (2004, p. 33) chama de “jogo de mostrar-ocultar” e, segundo o qual, os entrevistados buscam “controlar o que se diz ou o que se revela de si mesmo a diversas

pessoas que frequentamos, em espaços e ocasiões diferentes e sentir-se com o direito (a liberdade) de ocultar um mínimo dessas experiências e confidências sobre a vida”.

Esta ressalva é importante de ser enfatizada junto ao reconhecimento dos limites que este tipo de abordagem pode implicar ao trabalho. Deste modo, parte-se do pressuposto de que o

discurso dos entrevistados também pode contemplar versões fabricadas ou arbitrárias, conforme afirma Martuccelli (2007), a partir de uma espécie de pré-seleção de elementos biográficos constituída com base em relatos que soam preponderantes no período histórico em que são construídos. Neste sentido, deve-se primeiramente admitir o controle narrativo que o entrevistado exerce nesse tipo de abordagem para, a partir deste reconhecimento, pensar e construir estratégias possíveis de enfrentamento a esta questão.

A solução adotada encaminhou-se inspirada na figura do confidente que, segundo Lahire (2004, p. 33), é “aquele que desaparece depois de a confidência ter sido feita”, salientando que, apesar de considerar o eventual risco quanto à credibilidade dos relatos registrados, o confidente também “pode ser o receptor de palavras às quais mesmo os mais próximos não têm acesso”. Para além desta importante questão, enfatiza-se, também que a suposta “contradição” identificada no discurso do entrevistado nem sempre reside na linha entre a verdade e a mentira, mas pode evidenciar as diferentes formas que o personagem dispõe para interpretar a realidade a partir dos contextos ou exemplos apresentados.

Buscando, nestas circunstâncias, assumir a função de confidente e dissolver este controle narrativo da parte dos entrevistados, tentou-se imprimir uma dinâmica de conversação mais despojada e aproximada com os jovens. Dois deles foram entrevistados em uma rede de fast food, não apenas como alternativa diante das possibilidades limitadas com as quais a pesquisa se defrontava, como também por questões de enquadramento metodológico, conferindo o grau de informalidade previamente desejado. Uma dessas entrevistas foi precedida, ainda, por uma carona, no transcurso entre o trabalho do jovem e a lanchonete, tempo que foi devidamente aproveitado para iniciar informalmente uma conversa que rendeu bons registros narrativos.

Dessa forma, acreditamos ter sido possível alcançar, em maior ou menor grau, questões aprofundadas sobre o percurso biográfico dos jovens, não somente em função dos dispositivos previamente traçados para a pesquisa, mas principalmente em virtude de diversas questões que surgiram inesperadamente e que, aparentemente fúteis, foram essenciais para desconstruir, de certa forma, o controle narrativo dos jovens, ampliando consideravelmente o potencial analítico deste trabalho.

Enfatizamos, ainda, que por razões de sigilo, os nomes dos jovens e das instituições escolares e/ou socioeducativas citadas nos relatos foram preservados. No caso da identidade dos jovens, descartamos a utilização de siglas ou números como forma de identificação – traços que soariam pejorativos diante da adoção usual deste recurso em matérias jornalísticas e sensacionalistas quando noticiados os atos infracionais de grande repercussão cometidos por adolescentes e jovens.

A solução inicial seria combinar o termo “jovem” com uma característica marcante que lhe parecesse peculiar em relação a sua trajetória. O aprofundamento teórico, no entanto, fez com que mudássemos de ideia, tendo em vista que incorreríamos no grave erro de condensar toda a complexidade e individualidade do personagem em apenas um adjetivo pretensamente central. Lahire (2004, p. 45) critica este tipo de identificação ressaltando que “as diversas práticas, atitudes, etc. de um indivíduo singular não são redutíveis a uma fórmula geradora. O simples título mais desenvolvido para segurar o leitor viria, pois, destruir a lógica científica”.

Diante do impasse, foi feita a opção por correlacionar os jovens com as comunidades nas quais passaram a maior parte da sua infância e juventude e onde vivenciaram os fatos mais significativos (pertinentes a esta pesquisa) que sobressaíram em cada entrevista. Tal opção, no entanto, também merece uma ressalva: não se pretende aprisionar a análise do percurso biográfico dos personagens apenas aos limites físicos e simbólicos do universo comunitário, mas considerar o encadeamento intersubjetivo produzido nas relações que estabelecem na circulação pelo espaço urbano como um todo, pois, conforme assinala Carrano (2008, p. 62 e 63), “a ‘comunidade’ não deve ser espaço social único de referência para a investigação”, obrigando-nos a contemplar a perspectiva de uma “comunidade ampliada conformada pelos percursos, mediações sócio-culturais e redes de relacionamento estabelecidas nos espaços da cidade”.

Considerando esta condição, apresentamos, portanto, o jovem da Vila Norma, o jovem da Cidade de Deus e o jovem do Para-Pedro.