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ÔXI RAPÁ! FALARES INTERPRETTIVOS PARA COMPOSIÇÕES FALADAS

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

ÔXI RAPÁ!

FALARES INTERPRETATIVOS

PARA COMPOSIÇÕES FALADAS

ALEX POCHAT

Salvador

2017

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ÔXI RAPÁ!

FALARES INTERPRETATIVOS

PARA COMPOSIÇÕES FALADAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música, Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Música.

Área de concentração: Composição

Orientador: Prof. Dr. Paulo Costa Lima

Coorientador: Prof. Dr. Marcos da Silva Sampaio

Salvador 2017

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P739 Pochat, Alex

Ôxi rapá! Falares interpretativos para composições faladas / Alex Pochat.-- Salvador, 2017.

198 f. : il.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Costa Lima

Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Música-- Universidade Federal da Bahia, Escola de Música, 2017.

1. Música (Composição). 2. Composição falada. I. Título.

CDD 781.3

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ALEX POCHAT

ÔXI RAPÁ!

FALARES INTERPRETATIVOS

PARA COMPOSIÇÕES FALADAS

Tese aprovada como requesito parcial para a obteção

do grau de Doutor em Música, Universidade Federal da

Bahia, pela seguinte banca examinadora:

Paulo Costa Lima

Doutor em Educação e Doutor em Artes, Universidade Federal da Bahia e Universi-dade de São Paulo

Universidade Federal da Bahia

Marcos da Silva Sampaio

Doutor em Composição, Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia

Lucas Robatto

Doutor em Musical Arts – Woodwind Performance, University of Washington Universidade Federal da Bahia

Marcos Vinício Cunha Nogueira

Doutor em Comunicação e Cultura, Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ângelo Tavares Castro

Doutor em Composição, Universidade Federal da Bahia

Instituto de Humanidades Artes e Ciências Professor Milton Santos – UFBA

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Todo este trabalho é apenas um pretexto para agradecer àqueles que ajudaram a construí-lo, de formas mais ou menos diretas, e com quem pude aprender, por seus exemplos práticos, lições individuais ou combinadas dos valores de humildade, co-operação, união, companheirismo, serenidade, determinação, paciência, honestidade, respeito, responsabilidade, altruísmo e amizade. A eles agradeço e dedico esses mo-destos falares.

Paulo Costa Lima, Marcos Sampaio, Tadeu Mascarenhas,

Alexandre Vieira, Ana Telles, Cândido “Amarelo”, Carlos Silva, Cristiano Macchi, Eli-seu Rodrigues, Humberto Monteiro, Jaime Reis, Jorge do Picolé, Jorge Sacramento, José Pedro Silva, Lucas Robatto, Ludovic Afonso, Paulo Rios Filho, Pedro Robatto, Ricardo “Flash” Alves, Rodrigo Fróes, Tulio Augusto Santos, Vanda Otero, Whatson Cardozo,

Alexandre Espinheira, Ana Margarida Lima, Gilmário Celso, Guilherme Bertissolo, Marco Feitosa, Natan Ourives, Pedro Amorim Filho, Pedro Dias, Rodrigo Garcia, Son Melo, Vinicius Amaro, Angela Lühning, Ângelo Castro, Damián Keller, Ilza Nogueira, Katharina Döring, Lawrence Kramer, Marcos Nogueira, Michael Klein, Paulo Chagas, Roberto Victorio, Wellington Gomes,

Diana Santiago, Heinz Schwebel, José Mauricio Brandão, Laila Rosa, Maísa Santos, Selma Magalhães,

Victor, Lucia e Gerardo Pochat, Gauriji,

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RESUMO

O presente trabalho é o resultado de uma investigação sobre aspectos fundamentais de relações que conectam fala e música, no âmbito da composição musical. Em um percurso que combina atos de análise e de compor, janelas interpretativas são abertas para que, através das lentes da oralidade, ubiquidade, narrativa, hermenêutica e contornos musicais, não apenas o falar, mas também os faladores, seus lugares, suas histórias, todos possam ser confrontados com o compositor-pesquisador—também um falador, com seus próprios lugares e histórias. Um circuito criativo de diferentes falares em busca de uma musicafalada, em plena reflexão sobre os meandros do entrelaçamento da pesquisa com a produção artística, e do discursivo com o não dis- cursivo, mesmo quando a preocupação central, o motor da investigação, é a fala e suas contingências compositivas.

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ABSTRACT

This work is the result of an investigation into fundamental aspects of the relations connecting speech and music, in the realm of musical composition. Along a path that combines acts of analysis and composition, interpretative windows are opened so that, through the lenses of orality, ubiquity, narrative, hermeneutics and musical contours, not only the speech, but also the speakers, their places, their stories, all of them can be confronted with the composer-researcher—also a speaker himself, with his own places and stories. A creative circuit of different speeches for the pursuit of a spoken music, which sees itself as contributing to a better understanding of the interaction between research and artistic production, something that also involves the interaction between discursive and non-discursive aspects of speech, in other words, speech as part of a compositional cycle and the consequences it generates.

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LISTA DE TABELAS

1 Matrizes de comparação do K525, de Mozart . . . 62

2 Operações da análise . . . 69

3 Comparação da análise . . . 70

4 Contornos no parâmetro ritmo . . . 76

5 Contornos no parâmetro alturas . . . 76

6 Índices dos contornos < 1 0 4 > e < 2 3 0 5 > . . . 103

7 Permutações em 04 Faixas . . . 107

8 Divisão espacial em LR, a partir de contorno . . . 108

9 Divisão de amplitude a partir de contorno . . . 108

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LISTA DE FIGURAS

1 Circuito composição-interpretação . . . 22

2 Circuito composição-interpretação, como apresentado no princípio do per-curso do doutorado, quando da discussão acerca do tema “causa e compo-sição” . . . 22

3 Campo de escolhas: “palavra viva” . . . 32

4 Da fala à feira . . . 37

5 Da fala ao compositor . . . 38

6 Transposição ubíqua 1 . . . 39

7 Transposição ubíqua 2 . . . 39

8 Sistema 7.1 em ToDo, em 7.1 . . . 40

9 Circuito de corrente contínua . . . 53

10 Circuito de corrente alternada . . . 54

11 Segmentos da melodia da primeira frase do K525, de Mozart . . . 58

12 Contornos das melodias dos segmentos das frases do K525, de Mozart . . . 58

13 Contornos de cada verso-melodia (com exclusão de notas repetidas) . . . . 68

14 Mapa de comparações da análise . . . 71

15 Índice de oscilação . . . 72

16 Índice de direção . . . 73

17 Contraste de direções (versos 17 a 20) . . . 74

18 Ritmo e prosódia (excerto) . . . 75

19 Cartaz de 1952 com slogan “Isto faz um bem...” . . . 78

20 Beba Coca Cola de Décio Pignatari . . . 79

21 Motet em ré menor, excerto . . . 82

22 Motivo em ToDo em 7.1, na caixa-clara . . . 89

23 Motivo em ex-pi-co-le . . . 91

24 1ª Intervenção do vendedor de picolé . . . 94

25 [gostei, ixi! se tiver medo volta. . . rá, rá, rá, rá!] Sonograma . . . 101

26 [gostei, ixi! se tiver medo volta. . . rá, rá, rá, rá!] Espectrograma – frequências 101 27 [gostei, ixi! se tiver medo volta. . . rá, rá, rá, rá!] Espectrograma – alturas (os números representam o contorno pela notação combinatorial) . . . 102

28 [gostei, ixi!] . . . 102

29 [se tiver medo volta. . . rá, rá, rá, rá!] . . . 102

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31 setivermedovolta I (estéreo) . . . 104

32 Parte A: contorno com variações . . . 106

33 Parte B: sobreposição textural da Parte A e Camadas 1 e 2 . . . 106

34 setivermedovolta II . . . 106

35 Textura de permutações (0 – 15s) . . . 107

36 Forma da dinâmica do trecho (04 canais em mono) . . . 108

37 Coda com contorno original nos espaços de silêncio (relação temporal) . . . 108

38 Sistema 5.1 em Interpret that! . . . 111

39 Interpret that! (texto original) . . . 112

40 Alturas indefinidas no soprano . . . 113

41 Trítonos em cluster em Interpret that! . . . 114

42 Apresentação do contorno em melodia e ritmo . . . 117

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SUMÁRIO

1 Introdução 13

2 Fundamentação 23

2.1 E por compor em falar... . . 23

2.2 Fala e faladores . . . 23

2.2.1 Oralidade e Ubiquidade . . . 24

2.2.2 Narratividade e Interpretatividade . . . 40

2.3 Fala e contornos . . . 56

3 Análise 64 3.1 Contornos em música cantada-falada . . . 64

3.1.1 Compositor, obra e equilíbrio . . . 65

3.2 Faladores em música falada-cantada . . . 76

3.2.1 Obra, compositor e arroto . . . 77

4 Composição 85 4.1 Memórias faladas . . . 85

4.1.1 O compositor e o picolé: Gelatus Adventus . . . 92

4.1.2 Feira versus feirante: IXI . . . 97

4.1.3 ToDo o que?: Interpret that! . . . 109

4.2 Memórias extras . . . 116

5 Considerações finais 126 Referências Bibliográficas 128 Anexos 134 5.1 Equilibrista – partitura . . . 135

5.2 Equilibrista – poema original . . . 141

5.3 ToDo em 7.1 – partitura . . . 142

5.4 etnex o falatório – sonograma . . . 154

5.5 ex-pi-co-le – partitura . . . 156

5.6 Gelatus Adventus – partitura . . . 162

5.7 IXI – sonograma . . . 179

5.8 Interpret that! – partitura . . . 181

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Música e fala. Pensar sobre as possibilidades criativas e os desdobramentos no campo da composição musical que advêm dessa relação é matéria que merece aten-ção, principalmente quando se percebe a relativa escassez de trabalhos analíticos e/ou composicionais voltados para esse tema, se comparado ao da música instru-mental. Mais ainda quando se pensa não apenas em música falada, mas também na amplitude de variáveis e capacidades criadoras combinadas de seus principais agen-tes: o compositor e o falador.

O caminho investigativo aqui proposto surge quando um compositor-pesquisador se coloca em um ambiente de intercâmbio entre faladores, gerando falas, interpreta-ções, novas falas e possíveis e consequentes composições musicais a partir desse intercâmbio. Em princípio, trata-se de uma problematização no campo do compor, almejando a invenção de possibilidades criativas, sem contudo imaginar que a com-posição seja algo imune ao trabalho de teoria; portanto, trata-se também de uma pro-blematização que permite o acesso a campos de teoria, e, de forma mais específica, à observação crítica do entrelaçamento de teorias e processos composicionais. Essa formulação do ambiente de problematização busca acolher as experiências composi-cionais já realizadas no passado, mas também reconhece que a própria escritura da tese pode ser entendida como um ambiente semelhante; e mais, também representa um modelo abstrato para a reflexão sobre o desafio de composição/investigação de música falada. Sendo assim, percebe-se que a escolha de caminhos de fundamen-tação teórica não se isola do desafio composicional, pelo contrário, atende a suas demandas, e claro, outras também estabelece.

Os faladores desse ambiente de intercâmbio são aqui o compositor, assumindo esse papel com sua “fala” obra-criativa (obra essa já anteriormente focada nas rela-ções entre fala e música), e aquele a quem esta obra é direcionada; o falador que res-ponde, com sua “fala”, ao estímulo artístico composicional, apreciando-o, questionando-o, reverberando-o. Daí podem surgir outros tantos falares, em um circuito interpretativo entre a fala do compositor e da sua contraparte—o ouvinte, o performer, o analista—, prontos para se tornarem, na mão desse mesmo compositor, outras composições tan-tas (ou materiais de análises e de novas reflexões críticas), que tenham por núcleo essas falas e esse ambiente de intercâmbio.

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Os métodos e processos investigativos e composicionais tornam-se, então, lados da mesma moeda. Nessa investigação por resultados práticos e teóricos em artes, mais especificamente em música, de “métodos se tornando composições se tornando pesquisas se tornando composições”, o compositor passa a ser pesquisador por bus-car, da melhor forma possível, entender essas articulações sutis, nomear processos que as mobilizam, imaginar caminhos de construção musical a partir dessas mesmas articulações e entroncamentos. Assim, o todo da investigação guarda relação estreita com o próprio compor, como se a ideia da pesquisa fosse da mesma ordem da ideia musical—assim como o todo de cada composição guarda relação estreita com os pro-cessos investigados, os entroncamentos e os circuitos percorridos.

Todo esse caminho investigativo, por sua vez, remete a uma recente discussão sobre o papel e formas metodológicas de pesquisa em artes, algumas vezes travada em torno da noção de pesquisa artística: novos métodos e dinâmicas de criação se-rão sempre o enfoque principal de uma pesquisa voltada para a criação musical, em qualquer das tantas áreas em que elas possam se dar, como percebe Paulo Costa Lima;

A geração de novas dinâmicas de concatenação de materiais (geral-mente sonoros) faz parte daquilo que constitui o objeto mais autêntico de nossa área de pesquisa. O desafio da metodologia de pesquisa em composição envolveria, dessa forma, a proposição de bases racionais e serem utilizadas como referência, tanto pela instância da concatena-ção de materiais como por sua articulaconcatena-ção em linguagem, ou seja a produção de discurso. (LIMA, 2016, p. 13)

No dilema da pesquisa artística, uma corrente que aponta que a criação ou ati-vidade artística, por ser produtora de conhecimento transmitido por suas obras, pode ser considerada como pesquisa; outra, que a pesquisa artística é um atividade dis-tinta da criação ou pesquisa acadêmica (LÓPEZ-CANO, 2015). Para uma, um novo universo de confluência entre as práticas e modos de pensar artístico e científico aca-dêmico; para outra, um “slogan publicitário” sem conteúdo medular, para promoção de novos cursos de pós-graduação, carentes de recursos financeiros ou objetivos acadê-micos (LÓPEZ-CANO; SAN CRISTÓBAL, 2104). E mesmo na primeira, percebe-se, quando se propõe enfoques sobre os problemas metodológicos, as críticas sobre a tendência de reflexões “a partir da abstração de discursos epistêmicos e da filosofia da ciência, no lugar de fundamentar-se em casos concretos de resultados de pes-quisa artística”1 (SOLLEVELD apud LÓPEZ-CANO; SAN CRISTÓBAL, 2014, p. 32).

A respeito dessa “não construção de teoria sobre uma realidade”, por ter um caráter metateórico, López-Cano e San Cristóbal observam:

1(...) desde la abstracción de discursos epistémicos y de la filosofía de la ciencia en lugar de

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Não deixa de ser curioso que, enquanto a pesquisa artística se apre-senta como um trabalho cuja característica principal é o papel da prá-tica artísprá-tica na formulação e solução de problemas de pesquisa, esses tipos de reflexões metodológicas se fundamentam muito pouco nessa atividade, e raramente mencionam trabalhos reais de pesquisa artís-tica.2 (LOPÉZ-CANO; SAN CRISTÓBAL, 2014, p. 32)

Lucas Robatto, por sua vez, reforça a importância da distinção do conceito de pesquisa que não seja de caráter exclusivo e restritivo, mas sim uma concepção que permita a troca e complementação de objetivos e experiências:

A emergência do modelo profissional de Pós-Graduação stricto sensu na área das Artes como opção paralela e reciprocamente complemen-tar ao modelo acadêmico vem possibilicomplemen-tar não somente um atendi-mento mais pleno às demandas por qualificação profissional de alto nível na área das Artes no Brasil, mas também abre espaço para que os Programas acadêmicos possam se dedicar mais integral e intensi-vamente às pesquisas de caráter mais básico. Nesta perspectiva, é fundamental que sejam desenvolvidos canais para a discussão e inter-câmbio de experiências entre instituições acadêmicas e profissionais no país e no exterior, ampliando assim a atuação e o raio de aten-dimento da universidade brasileira no campo das Artes. (ROBATTO, 2015, p. 108)

Percebe-se a relevância dessas noções e discussões,3 principalmente na ideia

de que participar do campo mais amplo da pesquisa a partir de sua própria perspec-tiva (o fazer artístico) enquanto adicionando valor para o desenvolvimento da cultura e educação, como evidencia Kathleen Coessens, faz-se necessário para essa condição ainda pouca explorada, e que implica em um “compromisso com uma tarefa possivel-mente comprometedora, mesclando arte e pesquisa em arte, criatividade e reflexão sobre ela, o ato de fazer e de conceituar” (COESSENS, 2014).

Nessa busca por novas “aventuras metodológicas no campo da criação musical” (Id., Ibid.), a proposta e posição aqui apresentadas têm como falador um interpretador de música, papel que pode ser assumido ora por um compositor, ora por um intérprete ou performer, ora por um ouvinte ou um leitor de música—que podem ser desde lei-gos a analistas musicais. Todos esses falares ou pensamentos que giram em torno de (e são gerados por) uma ou mais obras musicais, por sua vez expressas em pa-lavras faladas e/ou escritas e/ou musicadas, podem vir a formar um frutífero campo de ideias e materialidades musicais, prontos para serem, mais uma vez, pensados

2No deja de ser curioso que mientras la investigación artística se presenta como un trabajo cuya

característica principal es el papel de la práctica artística en la formulación y solución de problemas de investigación, este tipo de reflexiones metodológicas se fundamentan muy poco en ésta actividad y rara vez mencionan trabajos reales de investigación artística.

3Cf., entre outros, BOURNER; BOWDEN; LAING, 2001; FISCHER, 2010; LEE, 2009, ROBATTO,

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sobre ou transformados em obra de arte. Ou: teorias e músicas prontas para se-rem recompostas—ou ao menos discutidas—a partir da ideia do próprio ciclo do fazer musical, em uma dinâmica em forma de circuito entre faladores e suas falas. E os re-sultados, por se tratarem de discussões acerca do “todo” da própria atividade musical (sua criação e recriação), não seriam melhor aproveitados se não fossem na forma de música falada.

Sobre o termo interpretador, que doravante será utilizado, deve-se notar que será referido àquele que interpreta criticamente alguma obra de arte, independente de quão profunda possa vir a ser essa crítica. Isso não descarta, e nem poderia, o ouvinte leigo, o intérprete (performer) ou o analista musical (que geralmente nunca é descar-tado dessa alcunha, de qualquer modo). Jerrold Levinson, mesmo reconhecendo a conexão entre as atividades às quais chama de interpretação performática e interpre-tação crítica—lembrando, como às vezes é sugerido, que “o intérprete performático faz implicitamente o que o intérprete crítico faz explicitamente”4—, atesta as

similardi-dades entre ambas, mas também aponta suas diferenças. Ele assume a concepção da interpretação crítica como:

Algo distinto, de alguma forma, da descrição incontroversa de uma obra de arte, que envolve caracteristicamente ou a explicação de aspectos manifestos de uma obra ou a atribuição de aspectos de um tipo mais sutil à obra, e como algo interessado, de maneira central, com o sen-tido, o significado, ou o ponto de uma obra, aproveitando isso para incluir a elucidação das relações ou funcionamento internos de uma obra, na medida em que seja mostrado para contribuir com o quê o trabalho está fazendo ou dizendo, tanto em parte como no todo.5

(LE-VINSON, 1993, p. 33)

Para ele, a interpretação performática consiste essencialmente em algo mais, “ainda que algo que seja idealmente informado por, e informado de, interpretação na-quele outro sentido”6 (Id., Ibid., p. 34). Ele a vê como uma maneira considerada de

tocar um peça musical, “envolvendo determinações altamente específicas de todas as características definidoras da peça, conforme a partitura e suas convenções de leitura associadas”7 (Id., Ibid., p. 36). Em performance, outras discussões, entre elas aquela

4(...) the performer interpreter is doing implicity what the critical interpreter is doing explicity.

5I will take for granted a conception of the latter as distinguishable in some way from uncontroversial

description of a work of art, as characteristically involving either explanation of a work’s manifest features or ascription of features to the work of a more subtle sort, and as centrally concerned with the meaning, significance, or point of a work, taking this to include elucidation of a work’s inner workings or internal relations, in so far as this is shown to contribute to what the work is doing or saying, either in part or in whole.

6(...) though something which is ideally informed by, and informed of, interpretation in that other

sense.

7(...) involving highly specific determinations of all the defining features of the piece as given by the

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sobre se a interpretação representa a ideia do próprio intérprete sobre determinada música ou sua concepção sobre a ideia do autor (ou compositor) desse mesma mú-sica, podem avançar com DAVIES; SADIE, Grove; COOK, 2001; CORREIA, 2007, para citar alguns.

Neste trabalho, além do compositor e/ou do analista musical, tanto o ouvinte quanto o intéprete exercerão também a função de interpretador—de novo, indepen-dente de quão profunda essa interpretação crítica possa ser. Até porque, conforme será visto, essas funções e papéis se amalgamarão entre si em alternância, tudo em prol daquilo do que eles têm a dizer a respeito do que diz uma obra. Todos tornam-se faladores para gerar e interpretar, direta ou indiretamente, música falada.

Uma interação entre práticas compositivas diversas, proporcionando diálogos en-tre erudito, popular e étnico—e levando à elaboração de uma obra8de referência com

recursos tecnológicos atuais—, foi experienciada em pesquisa de mestrado9 que trata

sobre o tema da musicafalada, doravante assim grafada, e que demonstra toda a já conhecida riqueza musical dos falares do brasileiro, especialmente do baiano—lugar de confluência de diversas civilizações, sinapse de culturas, encruzilhada de atitu-des composicionais. Questões e discussões que lidam sobre as associações entre música e linguagem (BRÜN, 1986; AGAWU, 1999; ALBRIGHT, 2006; CERQUEIRA, 2006), com seus possíveis desdobramentos àquelas entre composição e fala, bem como o conceito de gesto musical (HATTEN, 2004; LIDOV, 2005; GRITTEN; KING, 2006, JENSENIUS et al, 2010), aplicado às possibilidades do falar em música, foram levantadas para, posteriormente, serem empregadas à prática musical proposta em direção ao tema.

À época, a oportunidade criada pelo desenvolvimento tecnológico áudio-digital, quando aplicado ao aproveitamento da fala em música contemporânea, deu vazão a um experimento-virando-obra acusmático que tinha como foco principal a fala dos fei-rantes da Feira de São Joaquim (SSA–BA), não deixando de lado, entretanto, toda sua eruptiva paisagem sonora, que, combinadas, geraram materiais, processos—mesmo forma—e, ao final, a composição anteriormente citada.

Decerto que a exploração do uso da voz em música que vá além do canto não é algo desconhecido, incluindo aqui a sua exploração no campo da música eletroacús-tica, quando da emersão de tecnologias e técnicas de geração, análise e manipulação sonora, nos anos 1950. Nesse contexto, alguns marcos composicionais podem ser citados, como Symphonie pour homme seul (1950), de Schaeffer & Henry; Visage (1961), de Berio; I am sitting in a room (1970), de Lucier; e Six Fantasies on a Poem by Thomas Campion (1978–79), de Lansky. E, como não poderia deixar de ser, os

8etnex o falatório (2011): obra acusmática em 04 canais. 9O Falatório Concertante de Salvador (POCHAT, 2012).

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processos estruturais musicais que floresceram no século XX também incidiram na música eletroacústica. Em Gesang der Jünglinge (1955–56), de Stockhausen, para citar um exemplo, as estruturas musicais criadas a partir das estruturas acústicas dos sons falados com base na fonética têm seu continuum organizado por técnicas seri-ais (BERGSLAND, 2010). E para citar outro, Brün trata, em Futility 1964 (1964), do assunto “significado e compreensão” em uma obra também eletroacústica que apre-senta um diálogo entre sons processados e manipulados e texto falado—e que incita o próprio tema: “(. . . ) Já que uma linguagem adquirida é uma linguagem perdida, e mesmo a tentativa de lhe dizer isso parece uma perda de tempo, já que é linguagem e, portanto, está perdida”10 (BRÜN).

E se na história da música eletroacústica a voz falada já se faz presente e influente a partir do seu nascedouro, como não poderia deixar de ser com a música acústica? Ou, melhor dizendo, com a música. Regressar a tempos imemoriais para lembrar a relação intrínseca entre a fala e a melodia cantada seria temática para outros tantos trabalhos, mas, permanecendo na mesma época do parágrafo anterior, ou melhor, algumas poucas décadas antes—e para que se finque âncora no mesmo século—, basta lembrar de que “a culpa pela voz falada” em música, como diria Hans Keller, é nossa; e de Schoenberg. E, não por coincidência, daí todo o interesse de relações desse Sprechgesang com o atonalismo (e, por que não, com o serialismo, como no exemplo de Stockhausen), observados por Keller como “desintegrações” de alturas e de tonalidades, respectivamente. Como ele acautelava:

Temos estado tão preocupados com a perda da tonalidade, por um lado, e com a perda da altura da voz falada, por outro, que nunca pa-ramos para considerar que os dois [atonalismo e voz falada] perten-cem um ao outro—e, mais importante ainda, o porquê desse pertenci-mento.11(KELLER, H., 1965)

Mas, e o falador? Se em música é tão evidente a figura do compositor, o que dizer da fala e do falador? Certo que o “feirante-falador” já fora peça fundamental na composição de “etnex”, o herói de uma narrativa cômico-irônico-dramática, atuando direta e indiretamente em todas as nuances do processo e da obra criativa. Mas quão mais não poderia ser aprofundado o olhar interpretativo do compositor, bem como sua perspectiva de observador, não apenas naquilo que é falado (e como é falado) por um falador? Os tantos outros porquês e (em) quês que ele abarca. Sem contar a figura do falador; aquele que, por sua vez, é o compositor de sua própria fala.

10Since a language gained is a language lost and to even try to tell you this seems a sheer waste of

time for it is language and thus lost (trecho do texto de Futility 1964.

11We have been so preoccupied with the loss of key on the one hand and the speaking voice’s loss

of pitch on the other, that we have never stopped to consider that—and, most important, why—the two belong together.

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As experiências do mestrado com processos composicionais que envolveram mu-sicafalada trouxeram à percepção a necessidade de um formato conceitual que pre-servasse e garantisse a autonomia e o agenciamento dos envolvidos (falador, com-positor, aportes teóricos diversos, práticas composicionais, ocasiões, lugares). E a noção de narrativa passou a se mostrar, de forma convincente, como uma possível solução para esse problema, quando o compositor passa a ser o observador (e cons-ciente dessa observação) de sua própria narrativa e das possíveis relações com seus agentes. Mais ainda quando se toma a definição abrangente de Almén para a mesma:

Como temos visto, a maior parte do que é tradicionalmente conside-rado como questão–tema da narrativa—personagem, cenário, ponto de vista, e assim por diante—pertence, mais particularmente, às ma-nifestações literárias da narrativa, embora existam análogos musicais. Se tais conceitos são removidos para revelar as propriedades essenci-ais da narrativa, o que permanece são alguns fatores irredutíveis— temporalidade, hierarquia, conflito e a perspectiva do observador.12

(ALMÉN, 2008)

Almén que, corroborando Liszka, adiciona que “a narrativa rastreia o efeito de mu-danças ou conflitos transgressivos sobre um sistema cultural predominante, conforme inflectido pelo que é importante para o observador”13 (Id., Ibid.).

Se na pesquisa de mestrado ênfase foi dada às atitudes composicionais que po-dem emergir diante do confronto de possibilidades criativas provenientes das caracte-rísticas individuais da linguagem e da música, somadas à noção de gesto e como esta pode entrelaçar as mesmas (tudo isso convergindo àquela tal de musicafalada), aqui, o exame investigativo gerador de processos criativos acerca do mesmo tema dar-se-á sob a ótica de duas outras dar-se-áreas prdar-se-ático-teóricas, e não tão distantes. Uma, bem definida, a teoria dos contornos, com seus conceitos e ferramentas comparativas apli-cados tanto em análise quanto em composição musicais, e que investe diretamente no objeto sonoro: a fala. A outra, uma mescla entre as instâncias da oralidade, da ubi-quidade, da narratividade e da interpretatividade, que concorrem para aquele mesmo sujeito: o falador.

Um olhar hermenêutico sobre esse falador pode revelar (ou apontar para novos) caminhos de construção dessa musicafalada, principalmente quando se põe em pers-pectiva não apenas a relação entre música e fala, mas, sim, a relação entre compositor

12As we have seen, most of what is traditionally considered the subject matter of narrative—character,

scenery, point of view, and so on—more particularly belongs to the literary manifestations of the nar-rative, although musical analogues do exist. If such concepts are stripped away to reveal the core properties of the narrative, what remains are a few irreducible factors— temporality, hierarchy, conflict, and the observer’s perspective.

13(. . . ) narrative tracks the effect of transgressive shifts or conflicts on a prevailing cultural system, as

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e falador: semelhanças e dessemelhanças no processo criativo—esse último, afinal, o enfoque principal deste trabalho. Mais ainda porque o “sobre o quê” esse falador es-tará se debruçando é: sobre música! Para que fique claro: um compositor-pesquisador estará interpretando o que um falador (e, de novo, ele pode ser tantos... leigo, douto, etc.) tem a dizer (melhor, falar) sobre música, estrita ou amplamente, para então... gerar nova música. O olhar hermenêutico pode revelar esse próprio circuito e sua teorização, ao perceber, como aponta Ian Bent, o papel de uma obra dentro de sua sociedade contemporânea; ou o mundo da mente do compositor aberto ao ouvinte (ou leitor de partitura); ou a experiência dinâmica que se desdobra durante a audição; ou o campo da experiência que se revela ao ouvinte. “Senão, pode constituir um fluxo infinito de experiências latentes para uma sucessão de plateias futuras e desconheci-das”14 (BENT). O que fica evidente como objetivo aqui, e que será mais aprofundado

ao longo deste percurso, é o ato de interpretar como estímulo criativo, e que, como po-derá ser visto, servirá como modo de inspiração e geração de materialidade ao fazer composicional.

A música não interpretada é inerte, culturalmente neutra; somente quando atos de interpretação liberaram a capacidade da música de se mostrar de maneira diferente sob diferentes circunstâncias e atri-buições a música assume agenciamento e efetividade. O significado não é algo pregado a uma produção auto-determinada, senão inde-pendente dela; o significado produz as coisas sobre as quais investe.15

(KRAMER, 2011, p. 17)

E se o enfoque hermenêutico dará conta do escopo dos materiais composicionais, ainda que sempre presente em todo o percurso criativo (REYNOLDS, 2002), a teoria dos contornos, e suas aplicações, se fará presente nos processos e procedimentos pelos quais passarão justamente aqueles atos interpretativos. A fala cantada (ou o canto falado) se mostrará especialmente bem gerenciada analítica ou composicional-mente pela ideia de desenhos melódicos, quer seja na música acústica ou acusmática, e isso, como será visto, incidirá em parâmetros muito mais além do que “apenas” o das alturas.

Essas duas áreas, aparentemente distantes—a do olhar hermenêutico acerca do falador e a visão estrutural–organicista sobre o desenho de sua fala—, são unidas aqui na esperança de ampliar horizontes do pensamento e prática composicionais,

14(...) the role of a work within its contemporaneous society; or the world of the composer’s mind laid

open to the listener (or reader of a score); or a dynamic experience that unfolds during listening; or a field of experience that reveals itself to the listener. Otherwise, it can constitute an infinite stream of latent experiences for a succession of unknowable future audiences.

15Uninterpreted music is inert, culturally neutral; only when acts of interpretation release the capacity

of music to appear differently under different circumstances and ascriptions does the music assume agency and effectivity. Meaning is not something tacked on to a self-determined production otherwise independent of it; meaning produces the things that it invests

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e não apenas no recorte da musicafalada. Para tanto, o caminho aqui traçado é o de, primeiro, confrontar os estudos nas áreas propostas com o tema principal, identifi-cando e investigando modos de relação entre fala e composição musical e amparado por uma revisão de literatura presente no primeiro capítulo, Fundamentação, para, em seguida, empregá-los analítica e composicionalmente, nos capítulos 2 e 3, respectiva-mente. No capítulo 2, então, obras de compositores contemporâneos são analisadas a partir da perspectiva em questão, para que, no terceiro capítulo, seja apresentada uma coleção de obras/experimentos musicais que tenham, em seu processo concep-tivo, interferência dos modos de relação identificados. Nesses dois capítulos, tanto a área da música acústica quanto a da eletroacústica são dignas de atenção.

Ao fim, a partir desses experimentos composicionais—sempre confrontados com práticas anteriores e teorias relacionadas—entre os espaços criativos que abastecem a interação entre fala e composição musical, fecha-se o ciclo ou circuito criativo da narrativa proposta, descrito em forma de memorial: falas e faladores gerando com-posições; composições sendo interpretadas, também através da fala, pelos próprios faladores que, direta ou indiretamente, participam do processo composicional; novas composições sendo geradas a partir das falas desses últimos “espaços interpretati-vos”. Composição gerando interpretação gerando composição. Faladas.

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Figura 1: Circuito composição-interpretação

Figura 2: Circuito composição-interpretação, como apresentado no princípio do per-curso do doutorado, quando da discussão acerca do tema “causa e composição”

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2.1 E POR COMPOR EM FALAR...

Conforme exposto na introdução, o assunto da fala aplicada à composição tomará aqui dois caminhos distintos—embora não soberanos ou limitadores, um para com o outro, nem mesmo excludentes, ao longo das etapas do pensar criativo.

Um, o da fala como materialidade composicional: não apenas a voz e o texto dessa voz, mas como, onde, por que e por quem são produzidos, tudo isso passa a aflorar (ou a ser extraído) como material analítico e/ou composicional, acareado pelos tópicos da oralidade, ubiquidade, narratividade e interpretatividade. O outro, o da fala como próprio desenho de procedimentos composicionais, desenhos esses que são apresentados pela aplicação da teoria dos contornos ao material sonoro falado, para consequente processamento criativo—esse último, por sua vez, não limitado apenas ao material falado, mas ao todo composicional.

De novo, os caminhos se cruzam, já que tanto o primeiro arcabouço teórico pode (e deve) ser aproveitado como fonte de procedimentos, como a teoria dos contornos também está à disposição do compositor para geração de material criativo.

2.2 FALA E FALADORES

A fala é do falador. Assim como é impossível desassociar a música do seu compo-sitor e sua execução do seu intérprete1 (que ainda podem ser o mesmo), quando se

intenta uma musicafalada não se pode deixar à parte aquele que [re]produz e/ou con-cebe aquele material sonoro que é a fala. Portanto, a atenção do compositor musical ao falador é tão ou mais importante do que aos sons e possíveis significados atribuídos aos mesmos—pelo mesmo compositor ou por quem quer que seja. E independente de quão direta seja a participação desse falador, em quaisquer que sejam o nível e o momento do percurso criativo, apenas a ciência de sua presença poderia ampliar a paleta de opções do fazer musical; afinal, se um olhar investigativo cai sobre o com-positor de uma obra falada (e sobre a complexidade advinda dessa relação), maiores poderiam ser as chances de se compor, a partir desse olhar, uma musicafalada.

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Assim sendo, um exame que tem como escopo os “quê”, “como”, “onde”, “porquê”, “quem” (de formas não excludentes) desse falar e seu falador (também no plural)—e que pretendem ser “materializados” para, depois, processados composicionalmente e confrontados com teorias que podem trafegar tanto por essas relações como por suas contrapartes musicais—, planeja colaborar com a emersão de reflexões sobre diferentes modos de se pensar e trabalhar materiais à disposição do compor.

A intenção, então, é a de introduzir e explorar o tema da fala, da música e da musicafalada nesse espaço hermenêutico composto por 04 grandes áreas. E em todas elas, faz-se presente a interação entre o falador e o compositor–pesquisador:

Oralidade a fala como elemento expressivo do pensar e do compor, a “palavra viva”, que mais tarde pode vir a se tornar “música viva”;

Ubiquidade o falador, sua fala e seu ambiente, para futuras reflexões no ambiente composicional;

Narratividade o falador na história contida no seu falar e consequente inserção des-ses três no compor—falador, fala e história;

Interpretatividade os “quês” e “porquês” do falador falar o que fala, principalmente no que concerne musicafalada.

2.2.1 Oralidade e Ubiquidade

Dizer que a fala é causada pelo pensar não parece ser um caso de falácia Post hoc, ainda que alguns insistam em afirmar que falam sem pensar, e que uma coisa poderia não ter relação causal com a outra. Claro que um pensamento (e, por que não, incluir também o sentimento?) pode ser expresso de outras tantas formas, e as artes talvez sejam o melhor exemplo. Mas, paradoxalmente, essa relação intrínseca entre pensa-mento e fala não necessariamente se faz tão presente nas artes que se utilizam da palavra diretamente,2 como a literatura e mesmo a música, quando do caso daquela

que contém em si elementos textuais: os textos podem ficar eternamente no papel sem nunca ser expressos pela fala, no caso da literatura poética (e.g.), ou serem sem-pre cantados—e nunca falados—, no caso da música que tem a voz como um dos seus meios.

Surge então o tópico da oralidade, que trata da relação íntima entre a voz e a palavra, ainda que essa relação seja mais ampla do que a relação–tema principal da presente discussão—fala e música—, como visto mais adiante. No recorte proposto,

2As artes dramáticas talvez sejam a exceção, pelo uso da oralidade como um dos seus principais

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abstrai-se da ideia geral de oralidade como transmissão através da expressão ver-bal de conhecimentos armazenados em memórias e tradições coletivas o seu falador, ainda que nos dias atuais ele possa ou não estar imerso em uma sociedade familia-rizada com a letra (escrita ou impressa) e a tecnologia. Esse falador e seus falares (seu pensamento, sua voz e suas palavras) são trazidos para o âmbito da composição musical, para que, em diálogo com os falares do falador-compositor, possam surgir novas expressões criativas—orais.

Walter Ong destaca a importância da voz e da palavra (para ele, indissociáveis) na própria construção da sociedade humana:

A evolução da sociedade humana e a hominização do mundo... pode, assim, ser compreendida em um sentido básico, mas de forma alguma exclusivo, como um triunfo da voz, da palavra, através da qual o ho-mem chega a uma compreensão da realidade e através da qual ele constrói a sociedade humana. Porque a palavra, como vimos, não é apenas o repositório da inteligibilidade e da inteligência; é também o agente mantendo a sociedade unida. A palavra, que é essencialmente som, unifica não apenas um homem ao outro; forma grupos a partir de homens. É a expressão e encarnação da comunidade.3 (ONG apud

CALI, 2011, p. 133)

Ainda que possuinte [essa oralidade] de caráter tão importante e decisivo, Paul Zumthor, para quem a música tem total vinculação com essa mesma representação artística na formação de uma “palavra viva”, relembra que “(...) é preciso um esforço de imaginação para reconhecer entre nós a presença de uma poesia oral bem viva” (ZUMTHOR, 2010, p. 8).

Já há muito tempo (. . . ) em nossas sociedades a paixão da palavra viva se extinguiu, progressivamente expulsa de sua “personalidade de base”, matriz de nossos traços de caráter individual: esta história foi muitas vezes contada. Em razão de um antigo preconceito em nossos espíritos e que performa nossos gostos, todo produto das artes da lin-guagem se identifica com uma escrita, donde a dificuldade que encon-tramos em reconhecer a validade do que não o é. (. . . ) As especula-ções críticas dos anos 1960 e 1970 sobre a natureza e funcionamento do “texto” deixaram de contribuir para clarear por esse lado o horizonte e ainda o embrumaram mais, recuperando, travestida ao nosso hábito mental, a antiga tendência de sacralizar a letra. (ZUMTHOR, 2010, p. 9)

3The evolution of human society and the “hominization” of the world... can thus be understand in

a basic, though by no means an exclusive sense, a triumph of voice, of the word, through which man comes to an understanding of actuality and through which he constructs human society. For the word, as we have seen, is not only the repository of intelligibility and intelligence; it is also the basic agent holding society together. The word, which is essentially sound, unites not just one man and another; it forms men into groups. It is the expression and incarnation of community.

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Sobre essa “sacralização da letra”, Ong ainda reitera o poder da palavra falada ao citar Platão, que pensava na escrita como uma tecnologia externa, estrangeira, tão externa quanto nos é, nos dias atuais, o computador (talvez já nem mais tanto assim). E entre as três tecnologias (escrita, impressa ou “computadorizada”), Ong considera a da escrita (amparado por discussões anteriores de Michael Clanchy sobre o tema) como a mais drástica:

Ela iniciou aquilo que a impressão e os computadores apenas continu-aram, a redução do som dinâmico a um espaço quiescente, a separa-ção do mundo do presente vivo, onde apenas palavras faladas podem existir. Em contraste com o discurso natural, oral, a escrita é comple-tamente artificial. Não há maneira de se escrever ‘naturalmente’. O discurso oral é completamente natural aos seres humanos, no sentido de que, todo o ser humano, em qualquer cultura que não esteja fisioló-gica ou psicolofisioló-gicamente prejudicada, aprende a falar.4 (ONG, 1982,

p. 81)

Ele ainda exalta a capacidade da fala de não apenas implementar a vida consci-ente, mas também a de elevá-la a partir das “profundezas do inconsciente”, enquanto “as regras da gramática vivem no inconsciente, no sentido de que você pode saber como usar as regras e até mesmo como estabelecer novas regras sem ser capaz de dizer o que elas são”5(Id., Ibid.). Claro que Ong não condena a escrita, pelo contrário:

Dizer que a escrita é artificial não é condená-la, mas louvá-la. Como outras criações artificiais, e na verdade mais do que qualquer outra, ela é absolutamente inestimável e, de fato, essencial para a compreen-são de potenciais humanos interiores, mais completos. (. . . ) O afasta-mento de um ambiente natural pode ser bom para nós, e é, na verdade, de várias formas, essencial para uma vida humana plena. Para se viver e entender plenamente, precisamos não apenas da proximidade, mas também do afastamento. E isso a escrita, como nada mais, provê para a consciência.6 (Id., Ibid.)

Por isso mesmo, ao longo da história, o caso não foi o de substituições entre ora-lidades e tecnologias, e sim de interseções. Em uma tentativa de reduzir a diversidade das situações possíveis que cabem na temática da poesia oral, Zumthor (2010, p. 36) enumera as quatro “espécies ideais” de oralidade, a saber:

4It initiated what print and computers only continue, the reduction of dynamic sound to quiescent

space, the separation of the word from the living present, where alone spoken words can exist. By contrast with natural, oral speech, writing is completely artificial. There is no way to write ‘naturally’. Oral speech is fully natural to human beings in the sense that every human being in every culture who is not physiologically or psychologically impaired learns to talk.

5Grammar rules live in the unconscious in the sense that you can know how to use the rules and

even how to set up new rules without being able to state what they are.

6To say writing is artificial is not to condemn it but to praise it. Like other artificial creations and

indeed more than any other, it is utterly invaluable and indeed essential for the realization of fuller, interior, human potentials. (. . . ) Alienation from a natural milieu can be good for us and indeed is in many ways essential for full human life. To live and to understand fully, we need not only proximity but also distance. This writing provides for consciousness as nothing else does.

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primária ou pura uma oralidade totalmente desassociada da escrita (incluso qual-quer sistema visual de simbolização traduzível em língua);

mista coexistente com a escrita, quando essa influência continua externa, parcial ou retardada—e procedente da existência de uma cultura escrita, “possuindo uma escrita”;

segunda também coexiste com a escrita e a partir dela se (re)compõe, “no interior de um meio que esta [a escrita] predomina sobre os valores da voz na prática e no imaginário”. Procedente de uma cultura letrada—toda expressão marcada pela presença da escrita;

mediatizada mecanicamente diferenciada no tempo e/ou espaço, pertencente à cul-tura de massa.

Pierre Lévy reforça a distinção de oralidades primária e secundária, levando em conta a volatilidade dessa palavra viva:

A oralidade primária remete ao papel da palavra antes que uma socie-dade tenha adotado a escrita, a oralisocie-dade secundária está relacionada a um estatuto da palavra que é complementar ao da escrita, tal como o conhecemos hoje. Na oralidade primária, a palavra tem como função básica a gestão da memória social, e não apenas a livre expressão das pessoas ou a comunicação prática cotidiana. Hoje em dia a pa-lavra viva, as papa-lavras que “se perdem no vento”, destaca-se sobre o fundo de um imenso corpus de textos: “os escritos que permanecem”. O mundo da oralidade primária, por outro lado, situa-se antes de qual-quer distinção escrito/falado. (LÉVY, 1993, p. 47)

Para Levy, a persistência da oralidade primária se deve à “forma pela qual as representações e as maneiras de ser continuam a transmitir-se independentemente dos circuitos da escrita e dos meios de comunicação eletrônicos” (Ibid., p. 51). E quando diz que a palavra viva se “perde ao vento”, não o faz desmerecendo-a, até porque, para ele, a própria literatura (e agora cada vez mais com seus muitos meios) deveria ter o papel de elevar a oralidade primária.

A literatura, pela qual a oralidade primária desapareceu, hoje tem tal-vez como vocação paradoxal a de reencontrar a força ativa e a magia da palavra, essa eficiência que ela possuía quando as palavras ainda não eram pequenas etiquetas vazias sobre As coisas ou idéias, mas sim poderes ligados à tal presença viva, tal sopro... (Id., Ibid.)

Todas essas espécies têm todas em comum o meio pelo qual elas trafegam: a voz. E Zumthor reforça a importância dessa voz, sem a qual mesmo a linguagem é

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impensável: “A voz não traz a linguagem: a linguagem nela transita, sem deixar traço” (2010, p. 11). E a escuta, que, “do mesmo modo que a voz, ultrapassa a palavra” (Id., Ibid., p. 178)—quando se refere à circularidade da linguagem: quem fala o quê a quem. Para ele, existe uma linha tênue entre os três modos pelos quais essa voz pode exprimir sua poesia: a voz falada (que ele chama de dito), o recitativo escandido ou salmodiado, e o canto melódico. Nesses modos de performance, ele compara o dito e o cantado, primeiro, citando Nicolas Ruwet,

O canto depende mais da arte musical que das gramáticas: ele se coloca, por essa razão, entre as manifestações de uma prática signi-ficante privilegiada, a menos inapta, sem dúvida, para tocar em nós o cordão umbilical do sujeito, onde se articula nos poderes naturais a simbologia de uma cultura. (RUWET apud ZUMTHOR, 2010, p. 200)

Para, depois, afirmar que:

No dito, a presença física do locutor se atenua mais ou menos, ten-dendo a se diluir nas circunstâncias. No canto, ela se afirma, reivindi-cando a totalidade do seu espaço. Por isso a maior parte das perfor-mances poéticas, em todas as civilizações, sempre foram cantadas; e, por isso, no mundo de hoje, a canção, apesar de sua banalização pelo comércio, constitui a única verdadeira poesia de massa. (ZUMTHOR, Ibid.)

Têm-se, então, os modos da palavra expresso por fala7, canto-falado8 e canto,

podendo ela estar sob os domínios da oralidade pura, mista, segunda ou mediatizada. Acontece que, como prevê Zumthor, essas espécies podem se multiplicar em tantas variações quanto os graus existentes na difusão e no uso da escrita, e.g., como na mista e na segunda, ou, como no caso da mediatizada, “na situação atual, e, talvez, provisória, ela coexiste com a terceira, a segunda e mesmo, em algumas regiões afastadas, com a primeira espécie...” (Id., Ibid., p. 36).

A partir do levantamento e combinações dessas espécies e modos através dos quais a palavra viva pode ser escolhida e utilizada como material a favor do compositor musical, pode-se levantar um conjunto de opções para essa finalidade, sem ainda acrescentar a suposta possibilidade de utilização das mesmas como procedimentos, posteriores a essas escolhas—ou anteriores, dependendo da ordem escolhida por esse mesmo compositor: se top bottom ou vice-versa (REYNOLDS, 2002).

Afastando-se um pouco do eurocentrismo, em Tradição viva, Hampaté Bâ recorda como, nas tradições orais, não apenas a função da memória é mais desenvolvida,

7Aqui será sempre utilizado o termo fala, ou falares—substituindo o dito, que sugere Zumthor. 8Este canto-falado (ou fala-cantada) implica um composto de proporções naturalmente variadas da

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mas, pelo homem estar ligado à palavra que profere, ele é a palavra. Ainda mais especificamente nas tradições africanas, a fala é a “exteriorização das vibrações das forças”, e toda manifestação de uma só força, seja qual for a forma que assuma, é considerada sua fala. É por isso que “no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma” (2004, p. 172). E nessas tradições orais e africanas em particular, fala e música são inseparáveis por natureza:

(...) para que a fala produza um efeito total, as palavras devem ser en-toadas ritmicamente porque o movimento precisa de ritmo, estando ele próprio fundamentado no segredo dos números. A fala deve reproduzir o vaivém que é a essência do ritmo. Nas canções rituais e nas fór-mulas encantatórias, a fala, é, portanto, a materialização da cadência. E se é considerada como tendo o poder de agir sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram força, forças que agem sobre os espíritos que são, por sua vez, as potencias da ação. (Id., Ibid, p. 174)

Na linguagem musical,9 a utilização da voz traz naturalmente consigo o poder

dessa oralidade, amplificando e embaralhando recursos decodificadores dos seus pró-prios símbolos, numa amálgama de elementos musicais e textuais. Mas se o texto escrito, quando transformado em poesia oral, parece ter mais multiplicidade de dados a serem decodificados em sua comunicação—e natural que seja assim—, quando ele é cantado ao invés de “só” falado ou “só” cantado-falado (e ele ainda pode se misturar com qualquer uma das espécies propostas por Zumthor), esse mesmo texto, ou outro qualquer, parece, paradoxal e inversamente, ganhar outras tantas diversidades de in-terpretação quando é falado em contexto musical, onde o “natural” é que seja cantado ou cantado-falado. A força do contraste do falado e daquilo que é música (também cantada, se for o caso) é agente aproveitado e reaproveitado nos processos criativos ao longo da história.

O impacto transformador desse tipo de situação pode ser notado em música po-pular, como no rap, e em música tida como tradicional—para evitar o rótulo folclore, que no caso da oralidade até coubesse mais—, como no caso do repente, para citar apenas dois exemplos significativos. Decerto que, em ambos, o falar e cantar muitas vezes se confundem, mas se é trazido à tona o exemplo do repertório da música de concerto contemporânea, talvez o impacto dessa multiplicidade de modos e espécies fique mais evidente: o oratório eletroacústico de Pentecostes, em fita magnética, de Krenek (1956), Spiritus intelligentiae sanctus, para tenor e soprano. Ou outro exemplo, já citado anteriormente, Futility 1964, de Brün, também eletroacústica, com narrador (ou seja, fala) e texto do próprio Brün. Dois exemplos de oralidade mediatizada, mais

9Uma discussão mais aprofundada sobre a música como linguagem (ou se seria ela, como a voz,

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ou menos faladas e coexistindo com escritas de espaços e tempos distintos. O pri-meiro, um diálogo com a então nova experiência da música eletrônica e acusmática (ainda com fita magnética) com um ‘velho’ texto litúrgico; o segundo, uma peça tam-bém eletroacústica, tamtam-bém em fita, amparada por [ou amparando] texto autoral que discute a própria relação entre criação e interpretação de música contemporânea. Am-bos trazendo o impacto da fala em ambiente contrastante ao falar. E esses são bons exemplos de como os sons vocais em música eletroacústica (tanto falados quanto cantados) têm tido papel protagonista, como lembra Denis Smalley:

Não é de se admirar que a voz humana, tanto real como simulada, seja predominante nas obras eletroacústicas. Podemos rapidamente distin-guir entre o real e o irreal, entre a realidade e a fantasia, e apreciar a passagem entre eles. A humanidade, a franqueza, a universalidade, a expressividade e o repertório sônico extenso e sutil da voz oferecem um escopo que nenhuma outra fonte-motivo pode rivalizar.10

(SMAL-LEY apud ROADS, 2015, p. 80)

E como corrobora Berio: “A voz, o que quer que ela faça, mesmo o ruído mais simples, é inegavelmente significativa: sempre desencadeia associações”11 (Ibid., p.

81).

Contudo, esses já são exemplos prontos, já compostos, logo, não mais materiais perpassando pelo tema da oralidade e, por conseguinte, aptos a se transformarem em novas composições. Ou seriam? Não a obviedade de tomar uma obra musi-cal já composta, ou trecho dela, como material temático, motívico, formal, etc. para novo processo criativo—apesar desse ato não ser de todo estranho a compositores, em certa medida ou outra—, mas, sim, tomar como caminhos de materialidades as opções que essa diversidade da “palavra viva” podem proporcionar, aí sim, como ma-teriais temáticos, motívicos, formais, processuais, etc.

Mas, ainda sobre a voz, ou, melhor, o pensamento sobre a mesma, Lawrence Kramer lembra as amplas fases pelas quais ele tem passado recentemente. Um, as-sociado a Derrida, que “toma a voz como o meio privilegiado de uma presença (do ser, da consciência, da verdade, da autoridade, da divindade) que escapa continuamente de sua invocação”12 (Apud KRAMER, 2012, p. 104). Outro, associado a Dolar e Žižek,

que, segundo Kramer, veem a voz como:

10It is no wonder that the human voice, both real and simulated, is prevalent in electroacoustic works.

We can quickly distinguish between the real and the unreal, between reality and fantasy, and appreciate the passage between them. The voice’s humanity, directness, universality, expressiveness, and wide and subtle sonic repertory offer a scope that no other source-cause can rival.

11The voice, whatever it does, even the simplest noise, is inescapably meaningful: it always trigger

associations.

12(. . . ) takes voice as the privileged medium of a presence (of self, consciousness, truth, authority,

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(. . . ) uma auto-divisão mais fundamental entre a (meia) luz da pre-sença, tanto indo como vindo, e a escuridão impenetrável do que eles chamam de voz-objeto: um, ou o, lembrete não simbolizável encon-trado em cada voz, carregado de pavor, e sentido mais frequentemente como a voz da lei: punitiva, desamorosa e, de certo modo, não viva.13

(Id., Ibid.)

Ainda assim, Kramer está mais interessado no caráter e poder expressivo da voz: a voz expressiva—para ele, “o fundamento da veracidade (. . . ); sua existência é a ra-zão pela qual o som pode se comunicar no excesso de palavras”14 (2012, p. 105). E

daí a relação da voz com a fala (speech), uma fusão “sempre inquieta e nunca con-cluída”, e que tem como produtos a “melodia falante” e a “fala melódica”. Na primeira, o que é falado é conhecido mesmo que não seja ouvido, em uma substituição da fala pela voz; na segunda, aquilo que é expresso (voiced) é conhecido independente do que é falado, em uma subordinação da fala pela voz.

Essa “melodia falante”, Kramer define como “um híbrido das instâncias musicais e verbais; ela combina a consistência material da música com o valor simbólico das palavras, mas sem fundi-los, como a melodia cantada tende a fazer”15 (2012, p. 39).

Mas, como diria o próprio Kramer, o que a fala traz quando entra nessa história? Para ele, a “fala melódica” se dá naquelas horas em que a vocalização expressiva pode extinguir a linguagem, horas em que ela se destaca das palavras e age por si mesma;

(...) horas em que a voz, literal ou figurativa, fala, literalmente ou figura-tivamente, na melodia e não com palavras. Tal fala carrega a força da direção, (...) independentemente de suas palavras serem compreen-didas. Embora as palavras possam fornecer um ponto de orientação, elas não determinam nada. Elas se fundem em sua substância foné-tica e servem principalmente como o meio para a melodia, à medida em que a ordem comum da fala se transforma de dentro para fora.16

(Id., Ibid., p. 99)

Na fala melódica, as palavras transportam o som, a palavra é o instrumento do som, e nela, o som fala por si mesmo (p. 100).

13(. . . ) a more fundamental self-division between the (half) light of presence, both coming and going,

and the impenetrable darkness of what they call the object-voice: an, or the, unsymbolizable remainder found in every voice, charged with dread, and felt most often as the punitive, unloving, and in a sense nonliving voice of law.

14(. . . ) ground of the truthfulness (. . . ); its existence is the reason that tone can communicate in

excess of words.

15(. . . ) a hybrid of the musical and verbal instances; it combines the material consistency of music

with the symbolic value of words, but without merging them together as sung melody tends to do.

16(. . . ) times when the voice, literal or figurative, speaks, literally or figuratively, in melody rather

than with words. Such speech carries the force of address, (...) regardless of whether its words are understood. Although the words may provide a point of orientation, they determine nothing. They melt into their phonetic substance and serve primarily as the medium for the melody as the ordinary order of speech turns itself inside out.

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Figura 3: Campo de escolhas: “palavra viva”

Kramer e todos os outros antes dele citados amplificam ainda muito mais o já amplo assunto proposto aqui, o assunto de composição musical que se utiliza da fala e a partir dela é construída. Mas, tudo aquilo que é levantado através de suas óticas e perspectivas colabora com uma espécie de construção de campo de possibilidades de materiais acerca do tema, e que com ele pode contribuir. E o campo é o da fala. Mas o da fala que se bifurca em voz e palavra. Que se bifurca em expressão e linguagem. Que se bifurca em som e sentido. E não uma coisa ou outra: mas uma, outra, e uma e outra.

Se o ato da fala é pensado como expressão, essa expressão, quando alcança o compositor/receptor, já o faz a partir de certo filtro (do próprio compositor), mas as possibilidades criativas ainda estão todas lá. A fala seria o campo mais amplo, que se confunde com sua própria existência (se é fala, se é canto, se é canto-falado; se é, ainda, melodia “falante” sem fala explícita); o meio pelo qual ela se transporta seria a própria oralidade do seu interlocutor: pura ou mista ou mediatizada; e o núcleo dessa comunicação, aquela que o receptor/compositor primeiro percebe, seria a voz e/ou a palavra (Figura 3). E, no final das contas, para o compositor—até que se dêem as suas escolhas—, todos esses são e/ou.

E mais: esse campo de escolhas que surge de uma fala (lato sensu), ao chegar ao compositor e ao ser trabalhado por ele, passa a ser a fala do compositor—questão vista e proposta mais adiante. Mas o ponto é que de uma negativa na recepção pode surgir seu espelho ou seu oposto no ato criativo. Por exemplo, uma expressão oral

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falada através de um meio mediatizado misto pode se tornar uma expressão com as mesmas características ou uma composição cantada-falada, expressa sem a interfe-rência da escrita e sem o uso da palavra—apenas da voz.

A escolha da voz, por si só, já se encaixa nessa oralidade e expressividade mate-rializadas, e a cada outro passo de escolha, se cantada ou falada, se mediatizada ou não, se a partir de uma escrita ou formuladora de uma, esse encaixe vai desencade-ando uma “música de palavra viva”. Mas a voz—e o falar—é apenas um dos fatores criativos para essa musicafalada. Os ambientes dessa fala e desse falador, e futuro ambiente musical, são outros tantos.

Se o ato da fala cria-se no ambiente “interno” do agente falador, e se esse falador, por sua vez, pertence a outro ambiente (ou tantos outros), todos esses lugares da fala e/ou do falador, e que são emaranhados em complexidade indissociável simultânea e consecutiva, passam a ser também suscetíveis à observação do compositor—este, por sua vez, ambientado em algum outro lugar ou espaço.

A fala pertence a alguém, que pertence a algum lugar, e que podem, todos (a fala, o falador e seu local), vir a pertencer a um lugar musical. Juntos ou em separado. E esse local ou lugar musical não é apenas um espaço em um momento sonoro (ainda que possa ser “apenas” isso): assim como de um lugar surgem matérias e substâncias formantes de um indivíduo ou sociedade, desses lugares específicos da fala podem surgir de micro a macro formantes composicionais, sejam métodos, processos, mate-riais, formas.

E já que se tem como proposta observar algum lugar onde algo pode estar—e suas correlações—, é possível recorrer às ideias de ubiedade e ubiquidade: aquilo que está presente em algum lugar e aquilo que está presente em todo lugar, respec-tivamente. Tais conceitos são abordados com o propósito de confrontar os pertenci-mentos e seus câmbios, em trocas, se não de identidades, pelo menos de perspec-tivas: a fala, que pertence a um falador, mas que pode pertencer a alguém mais; o falador, que pertence a um lugar, mas que pode pertencer a outro; o compositor, que pertence a uma música, mas que pode pertencer ao ouvinte (ou seria o contrário?). A ideia desses e de outros deslocamentos é sugerida aqui com intuito de, primeiro, tra-zer à memória sua existência, e segundo, vislumbrar a quais lugares se pode chegar com ela.

Quando se fala em ubiquidade na contemporaneidade, talvez o que primeiro vem à baila seja o termo computação ubíqua, cunhado por Mark Weiser (1991), e que chama a atenção à crescente capacidade de interação e integração onipresente entre a computação e o ser humano. Weiser e Brown definem, a partir de uma linha crono-lógica de três grandes fases de tendências ou rumos, o que seria essa computação ubíqua (Ubicom):

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A primeira era nós chamamos de “mainframe”, para lembrar da rela-ção que as pessoas tinham com computadores que eram, na sua mai-oria, geridos por especialistas a portas fechadas. Toda vez que um computador é um recurso escasso, e deve ser negociado e compar-tilhado com outras pessoas, nosso relacionamento é aquele da era “mainframe”. (. . . ) Se muitas pessoas compartilham um computador, é computação “mainframe”.17 (WEISER; BROWN, 1996)

A segunda grande tendência é a do computador pessoal:

(...) A relação da computação pessoal é pessoal, até mesmo íntima. Você tem seu computador, ele contém suas coisas, e você interage diretamente e profundamente com ele. Curiosamente, a Internet [uma era da transição] reúne elementos da era “mainframe” e da era PC. (. . . ) Na próxima década, os resultados da interconexão maciça de informações pessoais, empresariais e governamentais criará um novo campo, um novo meio, contra o qual surgirá o próximo grande relacio-namento.18 (Id., Ibid.)

A terceira onda da computação é a da computação ubíqua,

cujo ponto de cruzamento com computação pessoal será em torno de 2005-2020. (...) terá muitos computadores compartilhando cada um de nós. Alguns desses computadores serão as centenas que podere-mos acessar no decorrer de alguns minutos de navegação na Internet. Outros serão embutidos em paredes, cadeiras, roupas, interruptores de luz, carros—em tudo. A Computação Ubíqua é fundamentalmente caracterizada pela conexão das coisas no mundo com a computação. Isto ocorrerá em muitas escalas, incluindo a microscópica.19 (Id., Ibid)

E nessa grande e veloz expansão, a área da música também é cada vez mais ‘afetada’ e beneficiada, com a abertura de novas possibilidades nas áreas amadoras e profissionais.

No manifesto da música ubíqua, Pimenta et al. propõem uma definição ampla da mesma: “Sistemas ubíquos de agentes humanos e de recursos materiais que pro-porcionam atividades musicais através de ferramentas de suporte à criatividade”20

17The first era we call “mainframe”, to recall the relationship people had with computers that were

mostly run by experts behind closed doors. Anytime a computer is a scarce resource, and must be negotiated and shared with others, our relationship is that of the mainframe era. (. . . ) If lots of people share a computer, it is mainframe computing.

18The personal computing relationship is personal, even intimate. You have your computer, it contains

your stuff, and you interact directly and deeply with it. Interestingly, the Internet brings together elements of the mainframe era and the PC era. (...) Over the next decade the results of the massive interconnec-tion of personal, business, and government informainterconnec-tion will create a new field, a new medium, against which the next great relationship will emerge.

19(...) whose cross-over point with personal computing will be around 2005-2020. (. . . ) will have lots

of computers sharing each of us. Some of these computers will be the hundreds we may access in the course of a few minutes of Internet browsing. Others will be imbedded in walls, chairs, clothing, light switches, cars—in everything. UC is fundamentally characterized by the connection of things in the world with computation. This will take place at a many scales, including the microscopic.

20Ubiquitous systems of human agents and material resources that afford musical activities through

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(PIMENTA; KELLER; LAZZARINI, 2014, p. xiii). Música que tem como suporte os conceitos e tecnologia da computação ubíqua (a noção da tecnologia da computação estando em todo e qualquer lugar), e que tem nos seus vários tipos de dispositivos de computação fixos e portáteis seus “recursos materiais” e “ferramentas de suporte à criatividade”. Uma nova área que abarca a computação ubíqua, música ubíqua e a interação homem–computador (Id., Ibid., p. xv).

Relacionado à música ubíqua (Ubimus), está o conceito de ecocomposição, um tipo específico de arte que “congrega o compositor, o público e o ambiente”:

A ecocomposição envolve lidar com a experiência sonora no lugar, reu-nindo o meio ambiente e o público para que participem ativamente da criação musical. Em vez de isolar objetos sonoros—como é feito na música acústica—a ecocomposição lida com eventos sonoros do mundo real. (...) o som é mantido em contexto, ancorado em um tempo e local específicos. No entanto, a ecocomposição traz mais um ator à cena: o público.21 (KELLER, D., 2012, p. 213)

Para Damián Keller, essas ecologias sonoras “abarcam pelo menos três dimen-sões: recursos materiais, agentes humanos, e o contexto onde a atividade criativa acontece”22 (KELLER; LAZZARINI; PIMENTA, 2014, p. 15). E, por isso mesmo, tanta

atenção é dada às possibilidades que surgem com a Ubicom a favor da Ubimus, nas três dimensões que elas, juntas, podem ativar e desenvolver criativamente.

Quando a musicafalada é confrontada com essas mesmas três dimensões, afigura-se um encontro fácil: há o agente humano—o falador—, afigura-seu contexto e os recursos materiais. Todos esses—e cada um desses—podendo contar com um elemento a mais como exponencial criativo: a fala.

Para essa discussão, talvez fosse antes apropriado um breve distanciamento da “ubiquidade contemporânea” até a ubiedade—e também ubiquidade—levantada por Leibniz, filósofo que já antecipava esses termos e conceitos na confluência entre os séculos XVII e XVIII. Apesar de, à época (com os “Novos Ensaios sobre o Entendi-mento Humano”, originalmente escrito em 1704 e só publicado em 1765), Leibniz es-tar relacionando esses modos à metafísica (aplicados às questões da alma, de Deus, dos mônadas), e mesmo sendo depois estudados e confrontados sob perspectivas de teorias físicas de espaço e tempo-espaço (SLOWIK, 2016), seus conceitos parecem

21Ecocomposing involves dealing with the sonic experience in place, bringing together the

environ-ment and the public to take an active part in music making. Instead of isolating sound objects—as is done in acousmatic music—ecocomposing deals with real-world sound events. (. . . ) sound is kept in context, anchored to a specific time and location. However, ecocomposing brings one more player to the scene: the public.

22(. . . ) encompass at least three dimensions: material resources, human agents and the context

Referências

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