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Mais duas obras composicionais são dignas de nota nesse diário de memórias, pelos métodos e pelos resultados daquilo que é levantado neste trabalho, envolvendo tanto a ideia de aplicação de contornos quanto de circuitos, e que foram construídas ao longo do percurso: 2zero133 e Nada Novo34.

2zero1 A obra aponta para a complementaridade da experiência de contornos apli- cada em composição proposta neste trabalho, em termos de ambiente sonoro. Se em IXI o espaço musical derivado de espaços de falares populares apresentado é ele- troacústico, 2zero1 transfere as ideias e conceitos da teoria dos contornos para um espaço acústico, além de ser a única peça dessa coleção de composições que não tem a voz, falada ou cantada, na sua “linha de frente”.

Da mesma maneira que neste trabalho foram buscadas diferentes aplicações para contornos analítica e composicionalmente, nessa música em questão a ideia vem da utilização e desenvolvimento do material motívico < 2 0 1 > (Tabela 10), nos parâ- metros ritmo, forma, andamento e, claro, melodia. O desenho melódico escolhido é apresentado na sua forma original logo pela clarineta, já tendo sido precedido por sua inversão na apresentação da melodia na flauta (< 0 2 1 >), que logo depois reforça o original. Ainda nesse mesmo ponto, pode-se perceber a divisão temporal das células rítmicas na clarineta, para citar um exemplo: a primeira célula gestual ligada ao motivo relaciona-se com a inversão do desenho original (< 0 2 1 >) e a segunda, com o seu retrógrado (< 1 0 2 >). Na Figura 42, a indicação dos contornos no modo combinatorial acima das frases denota aplicação sobre melodia; abaixo, sobre o ritmo35.

Original Inversão Retrógrado Retrógrado da inversão < 2 0 1 > < 0 2 1 > < 1 0 2 > < 1 2 0 >

Tabela 10: Contorno original e variações

33Áudio em: <http://alexpochat.com/albums>. Intérpretes: Lucas Robatto (flauta) e Pedro Robatto

(clarineta). Partitura anexa.

34Áudio em: <http://alexpochat.com/5-elementi>. Intérpretes: Paulo Rios Filho (bateria); Humberto

Monterio (marimba); Rodrigo Fróes (baixo); Ricardo Flash Alves; (guitarra); Cândido Amarelo (guitarra e voz); Tulio Augusto Santos (gaita e voz); Alex Pochat (voz); Arranjo: Alex Pochat e Os 5 Elementos.

35Onde, no exemplo da entrada da clarineta: colcheia pontuada igual a zero; colcheia pontuada ligada

Figura 42: Apresentação do contorno em melodia e ritmo

Assim vai sendo desenvolvida e construída a estrutura da peça, em contrapontos melódicos e rítmicos, com outras nuances da influência do contorno empregado apa- recendo aqui e alí. No andamento, por exemplo, quando se pensa em uma variação de Adagio – Moderato – Andante, entre os comps. 59 a 66, está aplicada a inversão do original: < 0 2 1 >. Ou, de uma perspectiva mais afastada, quando se percebe a construção de sua forma em três partes, excluída a introdução: compassos 8 a 44 (< 2 >), comps. 45 a 59 (< 0 >) e comps. 60 a 73 (< 1 >).

Não obstante, onde encaixa-se o “falar” nessa peça, já que não se pode notar nenhuma expressão falada ou cantada ao longo de toda a música, mesmo que pelos intérpretes, à parte da “melodia falante”? Ocorre que esse gesto melódico < 2 0 1 > surge da fala que talvez mais simbolize o princípio de uma interpretação (ao me- nos na linguagem do baiano), para onde quer que ela possa fluir, dependendo do seu interpretador. A expressão “Rapaz...” foi, ao longo desse processo de pesquisa de circuitos interpretativos, uma das maiores recorrências de falares, justamente quando esses circuitos eram propostos aos interpretadores. E em Salvador, campo particular desse estudo, o “Rapáis”[sic] se tornou “Ra < 2 > pá < 0 > is < 1 >. Uma manifestação que denota o momento no tempo onde a criticidade e a expressão falada se fundem. Gesto motívico daquele que está na eminênica de expressar seus falares. Gesto fa- lado que pode ser exclamativo, reticente, indagativo (e muitas variações de contornos cada um desses gestos poderia oferecer), mas nunca cessante: como sugere o com- passo final de 2zero1.

Nada Novo Essa última obra é a que mais se afasta do estilo e gênero musicais das outras sete apresentadas até o momento. Principalmente por seu instrumental e forma. Todas as peças anteriores enquadram-se na esfera da música eletroacústica ou acústica (de concerto). Nada Novo é uma canção para banda de rock—e, nesse caso, o termo se refere estritamente à forma e não ao estilo (um roqueiro nunca a chamaria de canção). Ainda assim, o tema da fala interpretativa em uma dinâmica de

circuito composicional está totalmente presente na obra, e por isso sua inclusão. O processo de Nada Novo começa a ser composto em simultaneidade com os processos de IXI e Interpret that!, quando surgem as primeiras ideias sobre interpre- tações musicais poderem disparar novos meios criativos. Com mais um diferença peculiar sobre as outras: os polos de tensão e resistência do circuito agora assu- mem outras identidades, gerando outros mecanismos de interação na corrente. O compositor—que sempre em algum momento no circuito passa a ser um interpreta- dor de qualquer modo—está também no papel de intérprete (performer), e o ouvinte- interpretador, aquele que percebe e responde a um estímulo musical, agora interage com uma música “viva”, em tempo real. Explica-se: se nos circuitos anteriores as músicas-estímulo foram oferecidas como objeto de interpretação a partir de grava- ções ou partituras, na construção de Nada Novo o estímulo vem de música tocada ao vivo por banda de rock. E não só uma música, mas o que está sendo interpretado é o complexo do show. Então: o compositor proponente do circuito apresenta conjunto de canções em forma de show, interpretando-as como cantor, para um interpretador que não é apenas um, mas uma massa crítica em forma de plateia, com o intuito de, finalmente, criar novos materiais e procedimentos composicionais.

Do choque cultural de público baiano “tradicional”, acostumado a uma absorção em escala muito mais ampla de pagode e axé (e, nesse ponto, a música de concerto, o jazz e o rock estão no nível oposto e mais baixo no que diz respeito ao consumo de produto cultural, pelo menos nesse espaço delimitado e pesquisado), vem a resposta desse interpretador, não através de falares eloquentes e manifestações contrárias ou favoráveis ao que ouvem, mas através de cochichos atônitos resumidos a um: “o que é que é isso que eu estou ouvindo?!”. Esse falar interpretativo repleto de significado cultural passa a ser o núcleo duro da interpretação quem vem em resposta à primeira, agora por parte do compositor-intérprete-interpretador, no circuito que acabara de co- meçar. E desse material é que surge o germe da nova canção Nada Novo: seu texto (apresentado a seguir).

Nada Novo (texto)

você não tá tocando o que eu queria ouvir não foi bem o que eu pensava que ia encontrar achava que talvez pudesse até gostar

mas agora que eu vi, continua igual aqui

eu tou no mesmo lugar (o que é que tu queria?) nada novo

você fazendo esforço pra me agradar até quando essa história de se repetir em círculos andando nesse déjà vu

já não dá pra aguentar, é melhor eu me mandar alguém me tira daqui (o que é que tu queria?) nada novo

(por que, quando, como, onde, quanto – o que é que tu queria? de fora nada é novo e tá tudo sempre igual

mas basta só o “não querer” pra tudo ter de novo taí o que tu queria!)

de novo é que eu vi onde é que eu vim parar como é que eu pude achar que eu nunca tive aqui se nada vai mudar se eu não mudar em mim é melhor começar, depois não dá pra voltar não quero ter que ouvir...

nada novo

A narrativa poética é construída a partir do próprio circuito estabelecido, evidenci- ando-o, mas com uma inversão daquilo que comumente poderia ser esperado de uma história em música popular: o intérprete cantor assume o papel do sujeito interpreta- dor, aquele que fala que não está sendo tocado o que ele queria que fosse tocado, enquanto o compositor, que interpreta a resposta àquilo que foi previamente e musi- calmente apresentado, é representado pela segunda voz (no texto, a que sempre está entre parênteses; na música, na voz baixo). No referente à fala, mais uma importante “troca” pode ser percebida, quando ela é sempre executada pela voz do composi- tor e não do ouvinte—esse último já havia expressado sua fala antes da música ser composta.

Figura 43: Fala e motivo de Nada Novo

Em uma canção que tem forma AABA36 influenciada pela poesia, a narrativa mu-

sical tem seu processo construido a partir do texto cantado-falado e seus significados. A fala do compositor (o qu’é que tu queria?) vai sendo introduzida aos poucos, sempre respondendo às ansiedades musicais do ouvinte e sempre retrucada com o mesmo “nada novo!”—até a chegada a uma resposta definitiva. Na parte B, todo o texto falado pela voz baixo dialoga com o instrumental que apresenta o mesmo motivo rítmico da pergunta principal (Figura 43), em uma discussão complementar espelhada e inver- tida: enquanto o instrumental “canta” o motivo em ab ovo—quando em cada repetição de frase algo é acrescido—, a fala vai, aos poucos, esvaecendo, em um ab ovo inver- tido. Para colocar um fim à conversa, depois de um efusivo “taí o que tu queria!”, o sujeito compositor-intérprete-interpretador traz um solo de gaita em acompanhamento que vai se reconstruindo aos poucos, mudando o “tom” da última intervenção na es- trofe final do outro sujeito: “não quero ter que ouvir...”.

* * *

Agora expostas todas as obras partes constituintes deste trabalho, vale um sín- tese de suas relações com os tópicos temáticos enlencados na fundamentação teó- rica.

Pretendeu-se demonstrar, com as experiências composicionais apresentadas, como a força da palavra quando empregada em música pode intensificar a força dessa última, mais ainda quando isso ocorre não só pelo uso da voz, mas também pelo fa- lar. Ora, a palavra pode estar presente de várias manerias em um trabalho musical: oculta, como em 2zero1, acústica (Interpret that!), amplificada (Nada Novo), acus- mática (etnex), falada-cantada (ToDo), declamada (Gelatus Adventus), desconstruída (IXI), e todas essas formas em combinações que garantem materiais até em dema- sia para um compositor. Ele tem que lidar, ainda, com a palavra e suas oralidades em uma linha de tempo AM/DM37, que exige sua atenção para preferências entre palavras

36Com uma lente de aumento, a estrutura seria: [Estrofe-Refrão][Estrofe-Refrão]-Ponte-[Refrão-

Solo][Estrofe-Refrão], onde a seção da Ponte ao final do Solo assume o papel de parte B.

37Antes da Música e Depois da Música, apesar de que o “meio”, que é o fazer musical propriamente

faladas, escritas, cantadas, mediatizadas, tudo muito ou pouco misturado, no Antes da Música, para que, depois (DM), mantenha ou recrie inclusive esses mesmas mídias, de acordo com os desdobramentos que surgem no percurso composicional. Em ex- pi-co-le, a fonte de material falado fora a voz de um pregão popular transformada em resultado falado oculto para clarinetas, a melodia falante. Em Interpret that!, falares escritos acadêmicos (sem voz) vociferados por soprano cercada por contrabaixos.

É notável como a palavra e a voz faladas, recitadas ou cantadas são comuns ao homem, mas parece não haver dúvidas da força da primeira—alguns não se atrevem a cantar, mas raro é aquele que não fala. Pode-se dizer que o canto exerce poder cultural, social, entre outros, mas a fala abarca a todos. Talvez por isso mesmo, por essa identificação natural, é que se percebe, independente de méritos qualitativos, o impacto causado por uma música instrumental ou vocal que, no seu âmago, guarde um espaço para manifestação falada, em maior ou menor grau. Vide, como exemplo, o sucesso de Santos Football Music, de Gilberto Mendes, ou do extremo oposto dessa situação; uma peça toda viva a partir da palavra falada (ainda que com alturas), como Beba Coca Cola.

O labor do músico para com esse falar estende-se por vários campos e áreas de estudo, ao seu dispor. Campos transversais que não foram aprofundados neste trabalho, mas que dariam outros tantos àqueles que se dispõem a pesquisar e aplicar o tema de forma artístico-criativa: comunicação, linguística, psicologia, fenomenologia semântica, cultural, sócio-política, entre outros.

Mas só a fala não basta. Quem fala é tão importante quanto. Assim como a mú- sica tem o seu antes e depois, a fala também vem de um lugar e vai para outro. A indissociabilidade entre a fala e seu falador não pode ser desconsiderada, sob pena de vazios identitários. Esse estado de pertencimento é o mesmo que a música tem para com o seu compositor—apesar dela não perceber e, por isso, ser também de quem a ouve. Mas para um compositor que pretende construir música a partir de falares, os espaços ou ambientes ou lugares desses falares tomam importância como materiais, procedimentos e mesmo formas musicais: os faladores (sejam eles compositores, in- térpretes, analistas, ouvintes, etc.) e seus ambientes (ruas, feiras, salas de aula, de concerto, etc.), todos se confundem e interagem em um ecossistema cultural disponí- vel. Ademais, do mesmo modo que o compositor escolhe como trabalhar a questão da mídia fala, a mídia espaço está ao seu dispor, para ser utilizada de acordo com suas interpretações. Como fora o caso do encontro de faladores (ou seja, encontro de “lugares”); o compositor e o feirante. Em verdade, camadas de lugares (fala, feirante, feira) sendo confrontados por um compositor disposto a cruzá-los (os seus e os dele), para “voltar” ao seu espaço composicional—procedimentos, técnicas, trejeitos—, até chegar ao espaço musical: uma peça eletroacústica da feira com seus faladores e

falares (IXI). Os lugares trazendo suas próprias músicas, como no exemplo da feira de São Joaquim, para um compositor baiano, ou a catedral gótica de Notre-Dame de Reims, para Machaut, onde até mesmo as estruturas do espaço “soam” ou incitam o som (PUELMA, 2016). Lugares sendo interpretados pelo compositor por correspon- dências ou por contrastes.

Percebe-se a interconexão desses elementos e suas ubiedades nos momentos “pré” e composicionais, mas também ao conglomerar tudo no espaço musical final, pela aplicação do conceito de integração em ubiquidade: compositor, intérprete, pú- blico, ambientes—e muitos outros caminhos e possibilidades criativos quando entram em cena as novas tecnologias (KELLER). Como acontece quando se encontram os três diferentes mundos em Gelatus Adventus: o mundo da sala de concerto (com os mundos do compositor e intérpretes), o mundo do público (com seus tantos mundos interpretativos) e o mundo singular mas não menor do picolezeiro, que age linkando os dois primeiros ao oferecer, além do seu falar, picolés para os músicos e a plateia. Ou no caso de reprojeções de espaços com mais de um significado: ToDo, e.g., como espaço representativo de sistemas sonoros (7.1) e salas de aula, tornando o ouvinte parte da aula e parte do sistema (que o rodeia não com alto falantes, mas com caixas- claras).

Interessante notar como esses conceitos, de oralidade e ubiquidade (e mesmo os de narrativiade e interpretatividade), já se faziam presentes antes mesmo do percurso do Doutorado, mostrando como eles traduzem conteúdos já presentes no compor. Tome-se como exemplo a Tocatta e Fuga Quem é o mendigo? (2003), para 04 fa- ladores e 01 percussionista.38 Nessa obra, falas de mendigos são estruturadas em

uma narrativa cômico-irônica que inverte o papel de mendigo na sociedade: quem é o mendigo, aquele que vive na rua com o mínimo de necessidades ou aquele que, ao contrário, vive uma vida de necessidades? Crises identitárias colocadas em pauta, para possíveis criações de novas identidades—culturais, na pior das hipóteses. O texto é apresentado em uma fughetta pelos quatro faladores que estão dispostos es- palhados e disfarçados por entre a plateia, em um rompante que interrompe a exe- cução despretensiosa de Brasileirinho, por parte do percussionista que está no palco. Mais uma vez, confronto de falares e lugares; gerando outra vez novas narrativas e interpretações. Todos no ato e no resultado do compor.

38Em sua estreia, interpretada por Alex Pochat, Joélio Santos, Paulo Rios Filho, Tulio Augusto Santos

Tocatta e Fuga n°1, “Quem é o mendigo?” (texto)

eu num sou vagabundo não, viu? eu tô na rua é porque eu quero eu passo umas necessidade sim,

mas eu não tenho os desejo de uns e outro não

desejo de ter carrão, desejo de ter mulher, desejo de ter fama meu único desejo é o de ficar livre aqui na rua

aí, vem pá cá dizer que eu tô mendigando... quem é o mendigo?

Tal experiência de falas e grupo de faladores-compositores, criando e apresen- tado suas próprias peças, coincide com a criação e consolidação da OCA – Oficina de Composição Agora (2003–), formada por compositores da Escola de Música da UBFA. Esse, por sua vez, sofre influência direta do Grupo Próxima Música (1979-1981), mais conhecido como FALAMASSA—por ocasião do “show-concerto que apresenta lingua- gem falada transformada em Música” (POCHAT, 2012). O elo de conjunção entre as duas gerações é justamente Paulo Costa Lima, que, por sua vez, traz para ambos os grupos a influência de Widmer e do Grupo de Compositores da Bahia (LIMA, 1999).

A criação de mundos a partir do reconhecimento de espaços funde-se com a no- ção de criticidade (LIMA), quando, no momento seguinte à criação, surgem lugares de interpretação de todos os mundos, a partir desse novo ponto criado. Se por um lado a interpretatividade é algo diretamente apreensível da experiência realizada, da reação de ouvintes ao que ouviram, da sua capacidade de dar conta de um estímulo direto, por outro, ela parece ter um campo de ação muito mais amplo, não se resumindo à criticidade—e sem perder a capacidade de criar novos mundos. Talvez a linha tênue que separa as duas, pelo menos no campo geral de pesquisa aqui proposto, seja a linha da intencionalidade daquele que se propõe a trabalhar com elas, e dos tipos de mundos que podem surgir a partir da escolha entre compor e o pensar sobre compor. Essa trajetória—da imbricação do fazer e do pensar—guarda relação com diver- sas direções abertas e apontadas por vários trabalhos desenvolvidos no âmbito do grupo de pesquisa Composição e Cultura, a partir de resultado de experiências de en- sino conduzidas por Paulo Costa Lima—principalmente dos seminários de 2009, 2010 e 2011: “Ciclos”, “Topo-Base” e “Causalidade e Imaginação”, respectivamente—, con- vergindo em conferência ministrada pelo próprio em 2011 (UFRJ), com consequente publicação em Teoria e Prática do Compor I (LIMA, 2012). Essas experiências, cla- ramente criadas em um modelo de circuito interpretativo e que, por isso mesmo, en- volviam também a questão do ‘Campo de Escolhas’, abordavam e traziam à tona a consciência da importância do entrelaçamento estruturante de práticas e teorias—ou

indissociabilidade de teoria e prática, ou ainda, do fazer e do pensar—, das escolhas realizadas e da avaliação desses atos (revelando a presença de princípios, planeja- mentos, teorias etc...), indicando novos caminhos na criação de outros mundos do fazer e/ou do pensar.

O desenho dinâmico desse circuito fazer-pensar-fazer, apesar de ser, por na- tureza, infindável, pode ser perfeitamente emoldurado em linhas narratívicas no au- xílio do entendimento dele próprio—ou do engendramento de outras tantas linhas- resultado. Têm-se os agentes, seus actantes, suas histórias, seus discursos, e toda a pluralidade advinda de suas interseções. O “era uma vez... ” nada metafórico de um compositor que vai ao encontro dos falares de feirantes de um lugar como Salvador, absorve a complexidade do que é dito (e de como é dito) e transforma, de materiais em música, não somente a fala, mas também o feriante e a feira, em composição que reverbera a todos eletroacusticamente (etnex). E a história não termina aí: o compositor volta à feira, apresentando àqueles mesmos agentes, e no mesmo lugar, o resultado composicional obtido através da construção de relação entre o falador- feirante e o falador-compositor, provocando-lhes inquietações e estimulando outros falares, interpretativos, ao lhes mostrar, não uma uma história representativa de suas realidades, mas o falar interpretativo do compositor que as vê. Todos esses falares, os do compositor e os do feirante, os de antes e os de depois, entrelaçam-se em li- nhas abstratas de interpretatividade e narratividade, que levam o compositor a aplicar a ideia de contornos aos novos falares gestuais, às respostas interpretativas, para cri- ação, mais uma vez, de música em um espaço que não costuma ter linhas: o espaço eletroacústico (IXI). E nessa história toda, que pode nunca ter fim, quem seria o com- positor: o narrador, o herói, o vilão? E o feirante, então? Qual seria o cenário: a feira, a composição, o sistema quadrifônico? Essa história dá música. Ou muitas.

A trajetória desse recorte narratívico anterior se confunde com a narrativa guarda-

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