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O compositor e o picolé: Gelatus Adventus

3.2 Faladores em música falada-cantada

4.1.1 O compositor e o picolé: Gelatus Adventus

O que dizer sobre uma peça musical que começa a partir da influência direta do grito de um vendedor de picolé e que é arrematada pela inserção desse próprio “picolezeiro” na obra, tornando-o um agente duplo: um inspirador (criador) e um intérprete? É assim que se dá a narrativa da história entre um compositor e um vendedor de picolé.

Em primeiro lugar, o pregão do vendedor de picolés é tomado como material mu- sical de fala melódica para ser usado em um trio de clarinetas, haja visto a descrição anterior de ex-pi-co-le. O desafio à época era como trabalhar o tema musical (o próprio pregrão) em um campo muito restrito de timbre e registro, fornecido pela escolha das três clarinetas. Após sua conclusão, parte-se para a escolha de determinado interpre- tador para que, a partir da sua experiência e impressões acerca da obra em questão, novas materialidades criativas emergissem e pudessem abrir caminhos e seguimentos a nova(s) obra(s), tornando ativo o circuito tratado neste trabalho.

Quem melhor para interpretar um trabalho artístico que tem em seu nascedouro (e em suas vísceras) o falar de um vendedor de picolé do que um vendedor de picolé? Melhor; se ainda for “o próprio” vendedor de picolé? Se por um lado pode-se perder as capacidades analíticas descritivas que um perito em música ofereceria, por outro, quão ricas não poderiam ser as respostas interpretativas de um leigo em música que relata apenas suas experiências e impressões—sem a necessidade de usar seus ta- lentos como crítico experto e como ele se pareceria depois de ter tido uma experiência (parafraseando Brün, em citação anterior). É a aposta na “genialidade do homem co- tidiano” como ouvinte e interpretador de arte. Após tomada essa decisão e escolha, parte-se para o passo da submissão da obra para apreciação desse interpretador. Inicia-se a corrente do circuito.

Como para um vendedor de picolé uma partitura seria mais um estímulo interpre- tativo de artes visuais do que musical, dá-se a necessidade de apresentar-lhe áudio da obra em questão. Esse áudio poderia ser de gravação de execução ao vivo ou de estúdio. Com as duas possibilidades à disposição, é escolhida a gravação de estúdio. A abordagem e o convite ao vendedor de picolé para que apreciasse uma determi- nada música também é algo digno de nota, nessas memórias faladas. Isso porque não apenas a música era estranha para ele, mas, antes disso, o compositor-pesquisador que o abordava também o era: a composição de ex-pi-co-le é trabalho inteiramente solitário do compositor, mesmo que envolvendo de forma (in)direta o picolezeiro. Esse último não sabia de forma alguma que um peça musical estava sendo feita a partir de seu pregão, que continuava sendo falado-cantado dia após dia.

Pode ser facilmente imaginada a surpresa de alguém, um vendedor de picolé, que é abordado por um estranho para ouvir uma música estranha. Pelo menos dois

fatos inusitados—ou que não acontecem todo o dia: i) um picolezeiro ser convidado a ouvir e dar sua opinião sobre uma determinada música e; ii) que essa música seja uma composição contemporânea, ou de concerto, ou erudita (pra ele, todos nomes tão estranhos como a própria música).

E, mais uma surpresa (agora do compositor), a resposta interpretativa foi: silêncio. Era o impacto mudo ao ouvir sua própria voz, desconhecida. Ele não reconhecera seu grito na música, mesmo com o motivo sendo apresentado no início. E mesmo nas audições seguintes, tendo-lhe sido explicado que seu “chegou o picolé” estava presente de várias formas naquela música, a resposta inibida resumia-se a poucas palavras. O plano A, de abstrair impressões e opiniões de um ouvinte que tem relação direta com a obra que ouve, os tais “falares interpretativos”, fora por água abaixo. Restava ao compositor interpretar o silêncio como método para continuar um circuito criativo.

O choque sem palavras parecia apenas reforçar a necessidade e carência cultu- rais da inserção do homem comum a variadas formas artisticas—ou seria o contrá- rio? E vem então o desafio de se utilizar justamente esse silêncio impactante como interpretação para geração de materiais composicionais. O que seria esse silêncio ensurdecedor de um vendedor de picolé ao ouvir música contemporânea, “estranha” aos seus ouvidos, e como esse fato poderia se tornar outros germes criativos na mão de um compositor que o interpreta?

Se o silêncio representa o distanciamento entre o vendedor de picolé e essa mú- sica “tão perto e tão longe”, entre outras possíveis interpretações, por que não, então, estreitar essa relação e convidar o principal sujeito incógnito da primeira composição para que se tornasse o sujeito principal e agora totalmente manifesto na resposta mu- sical a ex-pi-co-le? Um intérprete de sua própria criação e parte de outra: a criação do compositor, que trata dessa idéia de palavras e interpretações que se transformam em novas composições, dentro de um espaço musical narrativo hermenêutico. Talvez esse fosse o novo material composicional mais evidente, inclusive do ponto de vista cultural. E assim surge Gelatus Adventus9(2015).

A peça é escrita para Clarineta, Piano, Violino e Violoncelo. E vendedor de picolé. A fala original, que dá início a toda essa história, agora pode estar mais aparente no título, mas muito mais diluida, em tratamento composicional, ao longo da peça. A própria escolha do contraste de instrumental, diferente da anterior, reforça essa dis- sipação, e o tema motívico agora vai passando e se alterando pelo clarinete, violino e violoncelo, esses três, por sua vez, em diálogo constante com o piano—ora diálo-

9Áudio em: <http://alexpochat.com/albums>. Intérpretes: Carlos Silva (clarineta); Ana Telles (piano);

Ludovic Afonso (violino); José Pedro Silva (violoncelo); Jorge do picolé (vendedor de picolé). Partitura anexa.

Figura 24: 1ª Intervenção do vendedor de picolé

gos mais próximos, como na primeira parte da peça, ora mais “afastados”, como, por exemplo, no contraste entre os comps. 57 a 72 (cl, vl, vc) e comps. 73 a 82 (pn). De certo modo, esses diálogos representam a aproximação e distanciamento entre o compositor e o vendedor de picolé, o interpretador. E não por acaso, a parte em que todos se “conectam”, no momento mais desordenadamente planejado (comps. 85 a 87), é a parte em que o picolezeiro entra em cena. Antes, ele já fizera-se presente (comp. 32): sua fala, que é exposta pelo próprio na forma original, vai se apresentando aos poucos, como na vida real10 (Figura 24).

Até que surge a congruência entre interpretadores: os intérpretes “tradicionais”, o mais novo intérprete picolezeiro, o regente e, claro, a plateia, todos interpretadores. Congruência essa simbolizada pela distribuição de picolés; cada intérprete, o maestro e, na saída do palco do picolezeiro, a plateia, todos ganham um picolé, enquanto o vendedor desempenha sua parte falada-cantada. E sai, ao longe, da mesma forma que entrou.

Para aprofundar a interpretação a respeito do processo de composição da peça e de seu próprio resultado artístico—quem sabe admitindo-se outros circuitos futuros— é iniciada uma conversa informal por email com o musicólogo Michael Klein, em busca de suas impressões, a seguir expostas de acordo com os temas levantados durante toda a dinâmica apresentada (ou pelo menos grande parte dela).

Sobre o fato de a resposta à primeira audição de ex-pi-co-le, por parte do vende- dor, ter sido uma aparente “não-resposta”:

10A primeira intervenção dá-se não da cochia, mas do lado de fora da sala de concerto, como se um

Minha reação inicial é que não importa se o vendedor de picolé quis responder à sua “própria” música ou não. Para mim parece uma ques- tão de metanível no processo composicional. Em ouras palavras, você quis criar uma peça a partir de um material de um vendedor, e então, em um metanível, você quis uma outra peça na qual o vendedor res- ponderia à primeira. (...) De um certo ponto de vista, a única mudança está na narrativa do seu processo composicional: você quis que sur- gisse algo, que não veio, então você fez surgir algo diferente.11 (KLEIN,

18.08.16)

Ao perceber esse metanível, Klein está tocando no ponto anteriormente já levan- tado de “circuitos dentro de circuitos”, que é a própria narrativa, ou enredo, principal. Todos os outros níveis, a partir desse, são como subenredos ou subníveis da pro- posta principal. A priori, ou deixando a peça de lado, Klein questiona a necessidade do circuito, da forma como é proposto:

Ao perguntar ao vendedor o que ele pensou [a respeito da música] você estava estabelecendo algo que não poderia ser [estabelecido]. Se você quer saber o que as pessoas pensam sobre sua música, você não precisa ir à “fonte” (como perguntar a um passarinho que você gravou o que ele pensa sobre sua música). Você só precisa andar pelas ruas e obter suas respostas [deles]. Ou você vai a um concerto e obtém respostas. Então, é mais uma questão etnográfica, não narratívica.12

(KLEIN, 22.08.16)

Mas acrescenta, referindo-se à peça e em termos de narratividade:

Para mim, a primeira entrada do vendedor de picolé é algo como: “será que eu ouvi isso?”. Mas aSEGUNDAentrada (durante a parte em que

o quarteto simplesmente repete o padrão, de novo e de novo) é um verdadeiro momento hermenêutico. Naquele ponto, se eu não ouvia “narrativamente” antes, definitivamente eu ouço narrativamente a par- tir dalí. Minha primeira reação é a de que, uma vez que os instrumentos “ouvem” o vendedor, eles meio que reagem com aquele padrão louco, como se eles tivessem tentando afogar a voz que não é bem-vinda. Mas então, o vendedor assume o controle, como seELEfosse o verda- deiro agente da peça inteira. Uma vez tendo o vendedor ido embora, o quarteto tenta assumir a história, mas assim que eles se “esquecem” do vendedor, ele volta! E então tudo se dissipa. Então... na minha cabeça, é uma peça que definitivamente nos incita a ouví-la narrati- vamente. Poderíamos ouví-la dessa forma antes do vendedor. Mas definitivamente o fazemosDEPOISdo vendedor.13 (Id., Ibid.)

11My initial response is that it doesn’t matter if the popsicle vendor wanted to respond to his “own”

music or not. That seems, to me, to be a matter of a meta-level in the compositional process. In other words, you wanted to create a piece from material taken from a vendor, and then at the meta-level, you wanted another piece where the vendor would respond to the first piece. (...) From a certain point of view, the only change is in the narrative of your compositional process: you wanted something to come about, and it didn’t, so you made something else come about.

12By asking the vendor what he thought, you were setting up something that couldn’t be. If you want

to know what people think of your music, you don’t need to go to the “source” (like asking a bird that you recorded what she thinks of your music). You just need to walk down the street and get their responses. Or you go to a concert and get responses. Then it’s really an ethnographic question, not a narrative one.

A resposta, sobre “estabelecer algo impossível”:

Quando eu pergunto ao vendedor de picolé o que ele pensa sobre algo que ele talvez nem reconheça, estou aberto (e ansioso, talvez) para obter algo novo dele, para que eu possa usar como novos ma- teriais. Se esta novidade é uma ótima interpretação da música (como você fez, ao responder o e-mail), está OK. Caso contrário, pareceu- me que essa própria trama—eu mesmo, entrando nessa história cí- clica com o vendedor, que também é o personagem principal (ou se- ria o compositor?)—tornou-se o melhor material narrativo para a peça, stricto e lato sensu. (POCHAT, 23.12.2016)

Ao que Klein responde:

Acho que agora entendo o porquê de você ter questionado o vendedor sobre sua música. Vejo que é parte de um processo. Fico imaginando se esse processo tem um fim. Você usa seu pregão para fazer uma peça. Você o questiona sobre a peça, e então usa aquele material para uma nova peça. Você poderia lhe perguntar sobre a segunda peça, e assim por diante. Logo logo, é como a própria interpretação—nunca encontrando um ponto fixo. Contudo... agora me pergunto até que ponto o vendedor começa a se tornar, estranhamente, a autoridade em sua música meramente por ele ser aquele a quem você pergunta o tempo todo. Só pensando em voz alta.14 (KLEIN, 26.01.2017)

Realmente, esse circuito ou ciclo pode nunca ter fim, até por que, se o tivesse, não seria um ciclo. Mas cabe muito bem essa nota sobre o ponto fixo, até porque ele poderia se referir não apenas ao mesmo observador-interpretador com diferentes perspectivas de acordo com diferentes momentos narratívicos, mas a todos os possí- veis agentes nessa narrativa circular e com níveis ou camadas sobrepostas. Pode ser uma “fonte” respondendo à sua própria interferência criativa, ciente ou não desse fato, mas pode ser também qualquer outro “ponto flutuante”; como um musicólogo anali- sando um circuito criativo-interpretativo de um compositor baiano que escreve uma peça musical sobre [e com] um picolezeiro. Gerando outras tantas interpretações e criações artísticas... sem fim.

entrance (during the part where the quartet just repeats that pattern over and over) is a real hermeneutic moment. At that point, if I didn’t hear “narratively” before, I’m definitely hearing narratively at that point. My first response is that once the instruments “hear” the vendor, they kind of react with that crazy pattern, as if they’re trying to drown out the unwelcome voice. But then the vendor takes over, as ifHEis the true

agent of the whole piece. Once the vendor goes away, the quartet sort of tries to take up the story, but just when they have “forgotten” the vendor, he comes back! And then it all dies away. So. . . in my mind, the piece is definitely one that prompts us to hear narratively. We could hear this way before the vendor. But we definitely doAFTERthe vendor.

14I think I understand now why you asked the vendor about your music. I see that it is all part of a

process. I wonder if that process has an end. You use his street cries to make a piece. You ask him about the piece, and then you use that material for a new piece. You could ask him about the second piece, and on and on and on. Pretty soon it is like interpretation itself – just never finding a fixed point. Still... now I wonder to what extent the vendor starts to become oddly the authority on your music simply because he is the one you ask about all the time. Just wondering out loud.

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