• Nenhum resultado encontrado

Começa tudo outra vez....

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Começa tudo outra vez...."

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

Gilda Kelner, professora adjunta do Departam ento de Medicina Clínica da UFPE; m estre em m edicina clínica pela UFPE; m édica, psicanalista, coordenadora de Grupos Balint

N orma Filgueira, professora assistente do Departam ento de Medicina Clínica da UFPE;preceptora da residência de clínica m édica do Hospital das Clínicas da UFPE; Mestre em m edicina interna pela UFPE

Suzana Boxwell, psiquiatra, psicanalista; preceptora de estagiários e residentes do Hospital Barão de Lucena; chefe do Serviço de Saúde Mental do Hospital Barão de Lucena; coordenadora do Grupo Balint Júnior

Marcelo Bouwman, m édico, psicanalista; preceptor de estagiários e residentes do Hospital Barão de Lucena; coordenador do Grupo Balint Júnior

RES UMO:O presente ensaio descreve três experiênciasclínicas do

grupo Balint do Hospital das Clínicas da UFPE e do Hospital Barão de Lucena, onde os pacientes apresentam com prom etim ento cor-poral gravíssim o, expressando dor e incom petentes para expressar o sofr im en to. Os au tores relatam as dificu ldades tran sferen ciais destes pacientes e tentam articular sua estrutura com a estrutura m e-lancólica.

Palavras - chave : Grupo Balint, transferência, relação m

édico-pacien-te, m orédico-pacien-te, segredo.

ABSTRACT: Again and again... The present report describes three

clini-cal experiences inside the Balint group of two hospitals: Hospital das Clínicas ( UFPE) and Barão de Lucenas’s Hospital, w here patients had very serious illnesses, expressing pain and unable to express suffer-ing. The authors report the difficulties w ith these patients’ m anage-m ent of transference and try to articulate their psychic structure w ith m elancholic structure.

Ke y w o rds : Balint group, transference, patient-doctor relationship,

death, secret.

F

reud ( 1912/ 1976) introduziu a noção de transferência a partir de seus estu-dos sobre o inconsciente. Antes dele, Breuer ( 1893/ 1976) já sofrera os efeitos do fenôm eno da trans-ferência, principalm ente no tratam ento de Anna O, tendo sido obrigado a interrom pê-lo. Radm illa Zygouris ( 2003) , em li-vro recente, faz um a distinção entre a transferência e algo m ais da esfera dos sentires indizíveis, um vínculo inédito.

(2)

Depois de coordenar grupos Balint durante 17 anos, um deles com um a das participantes trabalhando conosco desde o início, pretendem os desenhar um a trajetória desses vínculos. São indivíduos que trazem as falas de terceiros para o grupo, subm etendo-as às escutas de outros envolvidos, quando são transform a-das, clareadas ou obscurecia-das, tornadas m ais dias ou m ais som bras das noites, ‘retaguardadas’ pelo hospital, perpassadas continuam ente pela doença e pela m orte. E, ainda, pela possibilidade ou im possibilidade de m ediação, de com unicação, de partilha subjetiva. As falas vão e voltam e, naturalm ente, quando voltam já não são m ais as m esm as.

Com o já descrevem os em trabalho anterior ( KELNER 2003) , a relação m édi-co-pacien te é diferen te de qu alqu er ou tro tipo de relação profission al ou interpessoal. Duas pessoas se encontram — o m óvel é a doença. Se se pudesse pensar de form a sim plista: sofrim ento para um , profissão para o outro. Na m aio-ria das vezes, não pode nem haver escolha... É o m édico que está de plantão, é o m édico que tem o convênio, etc. É tam bém o paciente que chega para buscar atendim ento, sem haver escolha da parte do m édico. Um a relação desigual quan-to às necessidades. Um precisa de cuidados e o outro precisa de reconhecim enquan-to e de fundos para a sobrevivência.

O estudo prático e continuado da relação m édico-paciente, dentro de um contexto m édico-institucional específico, é um dos objetivos do funcionam ento de um grupo Balint no hospital geral.

Há 50 anos, Michael Balint, psicanalista húngaro, iniciou seus prim eiros traba-lhos com grupos de m édicos, na Inglaterra, sendo seu propósito ajudá-los a adqui-rirem m aior sensibilidade diante do processo que se desenvolve, consciente ou inconscientem ente, na m ente do paciente, quando m édico e paciente estão juntos, provocando um a lim itada, porém considerável m udança da personalidade do m é-dico. Esta m udança deve perm itir ao m édico sobretudo poder “escutar” seu pa-ciente e com preendê-lo em consonância com essa distinta form a de escutá-lo.

(3)

relato inicial, os com entários de outros com ponentes do grupo, a inserção de tudo aquilo no hospital, a interlocução positiva ou negativa com outros setores do hospital e o significado de tudo aquilo para aquele paciente, para aquele m édico e para as situações por eles vividas.Exige-se o sigilo absoluto sobre tudo o que se ouve no grupo Balint.

Duas foram prim ordialm ente as m etas buscadas por Balint ao estudar a rela-ção m édico-paciente dentro dos grupos: 1) Buscar um enriquecim ento da práti-ca m édipráti-ca, devido à am pliação diagnóstipráti-ca decorrente da sem iologia do “saber escutar”. 2) Introduzir a noção de ação terapêutica da “droga-m édico”; um a vez que o m édico sem pre se prescreve ao seu paciente, é necessário conhecer m elhor sua posologia, sua toxicidade, seus efeitos colaterais ( BALINT, 1957/ 1984) .

Michaël Balint deu à m edicina a possibilidade de se renovar, am pliando a teoria analítica e as possibilidades de trabalho do analista. Dessa m aneira, de m odo algum desconsiderou a distância necessária entre a psicanálise e a m edici-na. O m édico pode m udar ininterruptam ente sem deixar de ser m édico, o psica-nalista pode trabalhar de m odos diferentes sem deixar de ser apsica-nalista, sem perder su a esp ecificid ad e — su a fu n ção d e d esvelar o s efeito s d o in co n scien te ( MISSENARD, 1982/ 1994) .

Desde 1950, os m édicos se reúnem em grupos Balint pelo m undo afora, coordenados por um psicanalista m édico, ouvindo um colega apresentar o caso de um paciente e podendo pensar nas relações que perpassam este par m édico-paciente, interagindo entre si e com a doença, com o hospital, com a sociedade em geral e com o m undo contem porâneo. A com preensão destas relações favore-ce um m elhor desem penho de am bos no que diz respeito à doença, à profissão e à própria vida.

Jovens m édicos, cujos nom es designam os com o Esculápio, Arquim edes ou outros, se deparam com pacientes gravíssim os, com as dificuldades dos hospitais públicos, com a m orte, com os erros m édicos, com os abusos das em presas seguradoras de saúde, com os donos de alguns hospitais que só visam ao lucro, com a m iséria hum ana, com o desam paro, com a injustiça, com a insensatez... não é fácil ( KELNER, 1999a, 1999b, 1999c, 1999d) . Há 17 anos os grupos Balint do Hospital das Clínicas da UFPE e do Hospital Barão de Lucena pretendem ajudá-los nesta dura tarefa.

(4)

para algum as condutas de seu tratam ento sem que ela nunca suspeitasse de nossa existência. Não estam os presentes m as existim os, com pom os a cena... nos basti-dores? Som os, por acaso, fantasm as?

“já não tem o fantasm as invoco a todos que venham em bando povoar m eus dias

atorm entar m inhas noites

entre tantos

loucos e livres existe um que é doce e que m e falta.”

( RUIZ, “Fantasm as”)

Com a continuidade da vida e do trabalho, vam os perdendo o m edo dos fantasm as e até querendo que os m eigos nos acom panhem e nos com ponham .

Fantasm a im plica, na linguagem com um , na volta de um m orto. Quantos m ortos carregam os? Quantas m ortes m orrem os? Quantas agüentam os?

“Em cada m orto que m orreu m orri.

Em cada voz que se calou, calei. E tantas vezes já m e despedi, De tanto ver m orrer tanto m orri Que, a m orrer, já m e habituei.”

( HORTAS, 1985, p. 23)

Qu an tos de n ossos du plos n ão são fan tasm as? Pelos qu ais sen tim os pieda-de, repu lsa, sim patia, ódio, m edo? En trar nu m desses fan tasm as é o equ iva-len te a en trar em n ós m esm os e, u m a vez den tro, n ão saberem os ir a n en h u m ou tro lu gar.

Muitos escritores nos fazem pensar que ninguém se livra de seu duplo, de sua som bra, de seu outro eu.

De repente, voltando aos com ponentes dos grupos, nós som os um e som os m uitos, tanto som os alguns pacientes com o alguns dos participantes dos grupos, quanto as inúm eras m isturas, nem sem pre identificadas.

(5)

Ao relerm os nossas anotações, nos perguntam os o quanto são nossas. Quanto tem de cada um em tudo aquilo? O grupo som os todos, a coordenadora, os coordenandos, os pacientes, o hospital, as histórias repassadas e o espaço poten-cial de criação e elaboração. Sabem os do início, do ponto de partida, m as não tem os controle daí por diante. Tom am os m uito cuidado, m as sabem os que isso não é tudo. Fernando Pessoa nos rem ete a um a inquietante questão: “Que parte de m im , que eu desconheço, é que m e guia?”( PESSOA, 1997, p.123-130) .

No fundo, é m ais fácil pensar que estam os escutando um a outra pessoa ou que o relator está m isturado com seu paciente do que no fato de que estam os todos no m esm o barco, em silêncio. Por trás deste nobre silêncio, m uitos outros se denunciam .

No entanto, existe tam bém um am plo espaço de reflexão, no qual nos distan-ciam os, nos separam os e nos interpretam os. E com eça tudo outra vez...

Que dizer de um jovem paciente que chegou à em ergência do hospital com quadro de astenia, vindo de outro Estado, por ocasião das férias, e o m édico, Esculápio, suspeitou que algo m ais grave estivesse por trás da sim ples presunção de um a virose, um surto epidêm ico?

Esculápio, professor de Hipócrates, que os gregos chamavam de Asclépio, foi o patrono dos médicos. Ele teve muito prestígio no mundo antigo, quando seus santuá-rios converteram-se em sanatósantuá-rios. Homero o apresenta na Ilíada como um hábil médico e Hesíodo e Píndaro descrevem como Zeus o fulminou com um raio, por pretender igualar-se aos deuses e tornar os hom ens im ortais. Com o tem po, passou a ser considerado um deus, filho de Apolo e da m ortal Coronis, com o poder de curar os enferm os ( BRANDÃO, 1992) . Esculápio usava o princípio, até hoje atual, de que a cura total do corpo só se fazia através da cura da m ente. Só haveria cura com “m etanóia”, ou seja, a transform ação dos sentim entos ( idem , 1993) .

O garoto tinha 24 anos, 24 anos não vividos, por isso um garoto, era técnico em inform ática, foi o produto da prim eira gestação ( de cinco) de sua m ãe. Os outros quatro conceptos foram abortados. Mãe produtora de m ortes?

A investigação revelou o indesejável, era portador de um hepatocarcinom a com m etástases generalizadas, sem perspectivas terapêuticas e sem poder escutar o diagnóstico. Mesm o depois de várias sessões de quim ioterapia, só o que pergun-tava era quando poderia voltar ao Am azonas, onde m uitas tarefas interrom pidas pelas férias deveriam ser retom adas. Não podia ouvir nada sobre diagnóstico, prognóstico, futuro.

(6)

personagens, representar m ais que um papel na vida. O futuro era apenas um im enso vazio, com o bem descreve Saram ago:

“Cada segundo que passa é com o um a porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu, isso a que dam os o nom e de futuro... talvez a idéia correta seja a

de que o futuro é som ente um im enso vazio, a de que o futuro não é m ais que o tem po de que o eterno presente se alim enta.” ( SARAMAGO, 2002, p. 210)

Não há propriam ente traum as a recordar, que evocassem o m edo, apenas o vazio, o que deveria acontecer e não aconteceu, o que deveria ter sido significado e ressignificado... Fica-se com a im pressão de que seu destino o ultrapassa. E que nunca o espelho refletiu um rosto que fosse seu.

O paciente parece falar para ignorar o m édico. Em todas as tentativas de ex-plicação, ele entende algo diferente do que é dito e retom a seu autom atism o discursivo. Julia Kristeva ( 2002) se pergunta onde está a alm a destas pessoas, ou se elas perderam a alm a.

Há que salientar a sem elhança deste discurso com o discurso m elancólico, um discurso m eram ente form al, em que não se percebe fantasm a nem represen-tação. Para o paciente, a verdade verdadeira está lá escancarada, ele não deixa brechas interpretativas ou explicativas para seu m édico. A única coisa a perseguir é a volta ao trabalho, às tarefas interrom pidas.

Se Esculápio pudesse pensar nos estudos de Lam botte ( 1997) , lhe pareceria que as palavras que ele dirigia ao garoto o atravessassem , se perdessem em dire-ção a um alvo atrás dele, com o se o garoto fosse um a m oldura vazia. No seu solipsism o, o garoto não interage, não escuta, não com preende; não está ali, talvez esteja no seu “exílio m elancólico”.

Realidade plana dos m elancólicos, o sentim ento de que nada dito ou feito fizesse qualquer diferença. Não há m ovim entos de assim ilação e expulsão, pare-ce que, neste paciente, há um sentim ento de existência, m as sem os pólos de atribuição, com o Lam botte1 salientou.

Esculápio se desespera. De repente, som e sua percepção, sua própria pre-sença. É com o se falasse para ninguém , reeditando um a dinâm ica do passado. Para ocupar este espaço, o m édico precisa com preendê-lo m inim am ente. O gr upo Balint favoreceu essa com preensão; preencheu o lugar de um parceiro confiável, que o fez apoderar-se de um saber custoso de ser suportado quando não partilhado. A dinâm ica do grupo favorece a atenuação do im enso vazio de Esculápio, não só por dividi-lo com todos, m as tam bém recordando outros

(7)

casos em que o vazio pressupostam ente insuportável tornou-se suportável, e com eça tudo outra vez...

A m orte ocorreu à noite. Na tarde deste dia, o paciente, m uito m al, ainda per-guntava a Esculápio quando seria a próxim a quim ioterapia... a próxim a repetição. E a m ãe dele, ao ser confirm ado o óbito, aos gritos, surpresa, sofreu algo inesperado, que ela não adm itia, negava... chorou convulsivam ente, todo o hos-pital participou de seu pranto. Houve necessidade de sedá-la para prosseguir com o desconhecido ritual do luto. A m orte teria que ser encarada, não dava para fazer de conta que não existiria ou estaria colocada no futuro.

Parecia a Esculápio que ele era desalojado, desligado dos acontecim entos. Desalojado enquanto pessoa e enquanto função. Situações anteriores, pacientes sem elhantes, quase o enlouqueceram tam bém . E era com o se, não situando o pré-m orto em seu lugar, o m édico tivesse que m orrer, fosse carregar m ais este fantasm a que não aceitava a m orte.

Freud m ostrou claram ente a função do luto: “O luto tem um a m issão psíqui-ca definida, que consiste em estabelecer um a separação entre, de um lado, os m o r to s, e d e o u tr o , as lem b r an ças e as esp er an ças d o s so b r eviven tes” ( FREUD,1913/ 1976, p.87) .

É com o se Esculápio chegasse para acolher e ajudar a sustentar a situação e fosse sentido com o intrusivo e com o responsável pela ruptura da única defesa possível, a rotina, a repetição.

O encontro com o outro, para o paciente, o encontro da alteridade, o m o-m ento da passividade o-m ais passiva, segundo Figueiredo ( 1999) , é o teo-m po da instituição/ destituição do “eu-m esm o”, tem po irrecuperável ( im em orial) por-que tem po pré-histórico, tem po fora do tem po, tem po atem poral, tem po da angústia m ais radical e originária, todavia, indispensável na instauração da sub-jetividade do hom em e que desde então nela reside com o sua condição de pos-sibilidade e de im pospos-sibilidade.

Com o bem disse Birm an ( 2003) , a subjetividade atual não consegue m ais transform ar dor em sofrim ento, estando aqui sua m arca diferencial e inconfun-dível. Ele cham a a atenção de que “a dor é um a experiência em que a subjetivi-dade se fecha sobre si própria, não existindo qualquer lugar para o outro no seu m al-estar... é um a experiência m arcadam ente solipsista, restringindo-se o in-divíduo a si m esm o, não revelando este então qualquer dim ensão alteritária... portanto a subjetividade contemporânea se evidencia como essencialmente narcísica, não se abrindo para o outro, de form a a poder dirigir para este um apelo.”

(8)

faço”( PESSOA, 1997, p.123-130) , este parecia ser o sentim ento de Esculápio trazido a nós e bradando por partilha.

Na verdade, quando Esculápio foi pedir à m ãe do jovem para investigar sua função hepática, ela se esquivou, tanto quanto o próprio paciente, com relação ao diagnóstico. É que um paciente tão jovem com hepatocarcinom a poderia ter sido infectado pelo vírus da hepatite B in utero, e a m ãe, solicitada a fornecer m aterial para esta investigação, o sangue, ficasse apavorada com a possibilidade de se descobrir que ele não era filho de seu pai e sim de seu tio, am ante da m ãe. Segredo que ela carregou durante todos estes anos, m esm o depois da m orte do tio.

Com o se desfazer deste crim e que tem o peso da realidade? Esculápio carre-gará m ais este segredo para o túmulo. O “crim e”, sob a roupagem de enigm a, de m istério, de dor im possível de ser vivida, é transferido a Esculápio. As palavras dele, se não pudessem vir a nós, este outro espaço, seriam enterradas vivas. Para o paciente, com o para Ham let, “palavras, palavras, palavras” ( SHAKESPEARE,1601/ 2001, p.48) , as palavras seriam podres até os recônditos. As palavras só lhe servi-riam para expressar o que já estivesse m orto no coração, restava-lhe o silêncio; falar seria perturbação, inquietação, torm ento, para si próprio e para terceiros. Ele tam bém não pode “incrim inar” a m ãe. A doença fez com que o garoto pas-sasse a representar algo, ele que ficou congelado durante 24 anos, representação esta feita à sua revelia.

Nós nos perguntávam os o quanto a negação do paciente, até sua m orte, nove m eses depois, sem pre solicitando o prazo para voltar a trabalhar, m esm o com um a enorm e ascite ( barriga d’água) , ictérico, quase verde, astênico, apontando todas as causas para suas dores nas costas ( “será que dorm i de m au jeito?”) , será que esta negação teria algo a ver com o segredo de sua m ãe? Sentíam os que pudesse ter, m as não tínham os elem entos em que nos em basar... O sentir, os sentires... O que era m esm o que ele precisava retom ar? O que já havia sido deixa-do inacabadeixa-do e ele não queria repetir? Segundeixa-do Deleuze ( 1968) , a repetição não se refere a algum a sem elhança ou equivalência, não é acrescentar nenhum a se-gunda ou terceira vez à prim eira, é elevar a prim eira à enésim a potência. E Garcia-Roza acrescenta: “É pelas m áscaras que a repetição se constitui, isto é, com o disfarce. As m áscaras, porém , não encobrem senão outras m áscaras...” ( GARCIA-ROZA, 1986, p. 44) .

O sofrim ento de Esculápio foi indescritível, com ím petos de dizer da gravi-dade da situação e absolutam ente sem espaço. Estava com pletam ente desalojado. Resgatava seu espaço pela Ciência e por nosso interm édio, seu grupo de partilha e reflexão.

(9)

que eu seja que não consigo ser, nem quero, nem posso? Com o se este peso não fosse dem asiado, o que a m ãe quer de Esculápio?

Os relatos sobre o garoto vinham e voltavam , até sua m orte, predom inando a im possibilidade de viver a pré-m orte, m ãe e filho “negantes” renitentes, proje-tando no m édico os sentim entos que não poderiam viver.

Um a das preocupações de Balint e dos seus seguidores é a de m anter o grupo de pessoas num nível de distância “regulam entar”, para evitar m isturas. Nossa experiência de 17 anos nos dem onstrou o quanto pôde ser ganho, em term os de com preensão, de partilha, de construção, se não estabelecerm os a distância com o d o g m a. Existem cu id ad o s, e m u ito s, n ão estam o s ali co m o am ad o r es, desvinculados de regras, de leis, da teoria, m as estam os abertos à sabedoria, no sentido que lhe conferiu Barthes, na Aula ( 1978/ 1992) . O grupo não se sujeitou a um saber dirigido, não atendem os à dem anda, institucional ou de pessoas, para nos enquadrarm os no que “eles” acharam que estava estabelecido, na cham ada dem anda tecnocrática. Procuram os nos desapegar dos estereótipos de coerção, dos cúm ulos de sacrifício e lim itação das em oções.

Exercendo, todos, e principalm ente o coordenador, esta liberdade, nos inda-gam os se nos agarram os a algo que nos aprisionasse ou, ao contrário, a algo que seduzisse as pessoas a m archarem conosco a nossa m archa. É im portante, neste m om ento, acionar um a fala de Barthes:

“Se cham am os de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, m as tam bém e sobretudo a de não subm eter ninguém , não pode então haver liberdade senão fora da linguagem . Infelizm ente, a linguagem hum ana é sem exterior: é um lugar fechado.

Só se pode sair dela pelo preço do im possível: pela singularidade m ística tal com o a descreve Kierkegaard, quando define o sacrifício de Abraão com o um ato inédito, vazio de toda a palavra, m esm o interior, erguido contra a generalidade, o gregarism o, a m oralidade da linguagem ...” ( BARTHES, 1978/ 1992, p.16)

Devem os ir atrás deste logro m agnífico que perm ite ouvir a língua, as falas, fora do poder.

No espaço do grupo Balint, com as m isturas que instituím os ( nossos grupos n ão agregam apen as m édicos) , as dispu tas de poder são vividas claram en te. O grupo faz girar os saberes, aprendem os com todos, principalm ente com os pacientes, e ensinam os a todos. Não tem os nenhum preconceito contra este ver-bo ensinar. E tam bém com freqüência registram os nossas experiências por escri-to ( KELNER, 1999) .

(10)

vínculos indizíveis, incom pletam ente com preendidos, diante dos quais as pala-vras são insuficientes. Nem por isso deixam os de pensar sobre eles, com discipli-na, m as tam bém com prazer, com im ensurável prazer. E escrever, com tantas linguagens quantos desejos houver.

O escritor é o sujeito de um a prática. Zygouris ( 2003) se regozija de que os verdadeiros clínicos não esperam que a teoria em curso os autorize a sentir e dar lugar a experiências inéditas.

Por fim , um dos últim os dram as vividos por nós, a partir do relato de um m édico psiquiatra, Arquim edes, de fora do grupo, a Esculápio.

Um problem a preocupava Hierão, tirano de Siracusa, no século III a.C.: havia encom endado um a coroa de ouro, para hom enagear um a divindade, m as suspei-tava de que o ourives o enganara, não utilizando ouro m aciço em sua confecção. Com o descobrir, sem danificar o objeto, se seu interior continha um a parte feita de prata? Só u m h om em talvez con segu isse resolver a qu estão: seu am igo Arquim edes, fam oso m atem ático e inventor de vários engenhos m ecânicos. Hierão m andou cham á-lo e pediu-lhe um a resposta que pusesse fim à sua dúvida. Arquim edes aceitou a incum bência e pôs-se a procurar a solução para o proble-m a. Esta lhe ocorreu durante o banho. Observou que a quantidade de água que se elevava na banheira, ao subm ergir, era equivalente ao volum e de seu próprio corpo. Ali estava a chave para resolver a questão proposta pelo tirano. No entusi-asm o da descoberta, Arquim edes saiu nu pelas ruas, gritando: Eureka! Eureka!

( “Achei! Achei!”) . Se ele m ergulhasse um a quantidade equivalente à coroa em ouro, na banheira, um a determ inada quantidade de água se elevaria. Se, ao m er-gulhar a coroa, a quantidade de água deslocada fosse inferior, teria havido frau-de. Este é o fundam ento do princípio de Arquim edes ( SERRES,1989) .

Arquim edes, nosso psiquiatra, estava em tratam ento de um linfom a não Hodgkin, num a fase de rem issão. Um a de suas pacientes crônicas, cuja filha estuda m edicina, soube do diagnóstico de Arquim edes, em bora ele tenha tido um cuidado obsessivo em escondê-lo, e exigiu ser inform ada do prognóstico, pois alegava estar im plicada neste enredo. Arquim edes negou a princípio, m as a paciente foi fornecendo argum entos, inclusive de seu tratam ento em São Paulo, e ele não pôde prosseguir com a negação, m as ficou literalm ente paralisado, sem saber o que fazer. Esculápio pretendeu com preender m elhor a questão se fosse analisada em grupo, na sistem ática do trabalho.

(11)

roubar a vida, pacientes estes que nos solicitam , m uitas vezes, um contrato de perm anência, ou, pelo m enos de longo prazo? Será que nosso direito à privaci-dade não lim ita o direito do paciente neste contrato de risco? Nosso Arquim edes não se pôde desnudar.

Riscos, riscos, riscos... esta é a vida.

Novam ente o segredo e Ham let. Ham let, um a convergência de opostos, o ser e não ser, aquele que não é, m as é... São inúm eras as pistas enganosas, com o destacou Bloom ( 2000) , no labirinto de interpretações de Shakespeare.

O príncipe ouve o espectro do pai, busca desesperadam ente a verdade e a vingança. Seria Ham let a própria consciência de Shakespeare?

Ainda de acordo com Bloom , Ham let recusa-se a agir precipitadam ente. Em parte, sua liberdade consiste em não se antecipar, em não tom ar atitudes prem a-turas.

E o segredo sobre o assassinato do pai o leva à m orte. Segredo/ m orte. Morte/ segredo.

Encerram os estas nossas reflexões com Barthes:

“Há um a idade em que se ensina o que se sabe; m as vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se cham a pesquisar. Vem talvez agora a idade de um a outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o rem anejam ento im previsível

que o esquecim ento im põe à sedim entação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessam os. Essa experiência tem , creio eu, um nom e ilustre e fora de m oda, que ousarei tom ar aqui sem com plexo, na própria encruzilhada de sua etim ologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o m áxim o de sabor

possível.” ( 1978/ 1992, p.47)

Recebido em 1/ 9/ 2003. Aprovado em 29/ 9/ 2003.

REFERÊNCIAS

BALINT, M.( 1957/ 1984) . O médico, o paciente e a doença, Rio de Janeiro: Livra-ria Atheneu.

BARTHES, R. ( 1978/ 1992) Aula. São Paulo: Cultrix.

BIRMAN, J. ( 2003) Dor e sofrim ento num m undo sem m ediação. w w w.estados gerais.org/ m undial

BLOOM, H. ( 2000) Shakespeare: A invenção do humano, Rio de Janeiro: Objetiva. BRANDÃO, J. S. ( 1992) Mitologia grega. Rio de Janeiro: Vozes, v.II.

(12)

BREUER, J. e FREUD, S. ( 1893/ 1976) “Estudos sobre a histeria”, in Obras completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Im ago, v.II.

DELEUZE, G. ( 1968) . Différence et répétition. Paris: PUF.

FIGUEIREDO, L.C.( 1999) “As províncias da angústia ( Roteiro de viagem ) ”, in Revista dePsicopatologia Fundamental, v.II,n.1, São Paulo: Escuta, p.50-63. FREUD, S. ( 1976) Obras completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Im ago

( 1912) “A dinâm ica da transferência”, v.XII. ( 1913) “Totem e tabu”, v. XIII.

GARCIA-ROZA, L.A. ( 1986) Acaso e repetição em psicanálise: Um a introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

HORTAS, M.L.( 1985) O livro das incandescências, Recife: Edições Pirata/ Alter-nativa.

KELNER, G. ( 1999a) . “Grupos Balint”. Pulsional, v.125, São Paulo: Livraria Pulsional, p. 35-48.

., BOUWMAN, M.; FILGUEIRA, N. ( 2003) . “ Relação m édico-paciente e Grupo Balint”, in Condutas em Clínica Médica, 3. ed.. Rio de Janeiro: MEDSI.( no prelo) .

______. , BOXWELL, S. ( 1999b) . “Interconsultas e o Grupo Balint”. Pulsional,

v.125. São Paulo: Livraria Pulsional, p. 7-16.

., FILGUEIRA, N. ( 1999c) “Tem po de vida e tem po de m orte no Gr upo Balint”. Pulsional, v. 125, São Paulo, Livraria Pulsional, p. 17-26. ., MOTA, A.A. ( 1999d) “O Grupo Balint na UTI”. Pulsional, v. 125, São Paulo, Livraria Pulsional, p. 27-34.

KRISTEVA, J. ( 2002) As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco. LAMBOTTE, M.C. ( 1997) O discurso melancólico, Rio de Janeiro: Com panhia

de Freud.

MISSENARD, A.( 1982/ 1994) A experiência Balint: história e atualidade. São Pau-lo: Casa do Psicólogo.

PESSOA, F. ( 1997) Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

RUIZ, A. Fantasm as. Site da In ter n et:w w w.in site.com .br/ rodr igo/ poet/ lem inski/ ar uizp.htm l

SARAMAGO, J. ( 2002) O homem duplicado. São Paulo: Com panhia das Letras. SERRES, M.( 1989) Elementos para uma história das ciências. Lisboa: Terram ar. SHAKESPEARE, W.( 1601/ 2001) Hamlet. Porto Alegre: L&PM.

ZYGOURIS, R. ( 2003) O vínculo inédito. São Paulo: Escuta.

Gilda Kelner

Av. Beira Rio, 660/ 1201 Madalena 50610-100 Recife PE

Referências

Documentos relacionados

A primeira seção sintetiza a teoria sobre federalismo fiscal e sua relação com equidade territorial na execução de políticas sociais A segunda seção apresenta

Neste texto se coloca um primeiro ensaio desta pesquisa, buscando se responder a seguinte questão: “De que maneira um manual didático pode contribuir com o ensinar

• O fechamento do contato ocorre: Quando ligamos a alimentação e se o líquido está acima do eletrodo B1, o relé irá operar depois de um tempo T.. • Ou quando o nível

Em revisões sistemáticas, existe também a fase de avaliação de qualidade dos estudos selecionados, que tem como objetivo filtrar os trabalhos que tiveram uma baixa classificação

Apesar dos AEAs apresentarem uma ´otima abordagem para ambiente mediados por computador, desafios que v˜ao desde a definic¸˜ao dos mecanismos de inteligˆencia arti- ficial

Outras variações dizem respeito às circunstâncias de tempo. A particularidade da inversão num indivíduo pode datar desde o início, até onde sua memória alcan­ ça, ou

[r]

Comunicação Básica em Língua Inglesa Fundamentos Teóricos da Lingüística Leitura e Produção de Textos I Metodologia do Trabalho Científico Norma-Padrão da Língua Portuguesa