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Guardados de professora : bordados da prática docente e emaranhados de linhas de pesquisa

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação

PATRÍCIA YUMI FUJISAWA CÂNDIDO

GUARDADOS DE PROFESSORA: BORDADOS DA PRÁTICA

DOCENTE E EMARANHADOS DE LINHAS DE PESQUISA

CAMPINAS 2020

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PATRÍCIA YUMI FUJISAWA CÂNDIDO

Guardados de professora: bordados da prática docente e

emaranhados de linhas de pesquisa

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Educação Escolar da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Educação Escolar, na área de concentração: Educação Escolar.

Orientador: Guilherme do Val Toledo Prado

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DE DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA PATRÍCIA YUMI FUJISAWA CÂNDIDO E ORIENTADA PELO PROFESSOR DR. GUILHERME DO VAL TOLEDO PRADO

Campinas 2020

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Guardados de professora: bordados da prática docente e

emaranhados de linhas de pesquisa

Autora: Patrícia Yumi Fujisawa Cândido

COMISSÃO JULGADORA:

Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado Profa. Dra. Adriana Varani

Profa. Dra. Vanessa França Simas

A ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Julgadora consta no SIGA – Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa de Mestrado Profissional em

Educação Escolar da Faculdade de Educação.

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Imagem 1: As crianças, 2019. Fonte: acervo pessoal.

Dedico esta narrativa-bordado de pesquisa para as crianças que estiveram comigo compartilhando o cotidiano da escola em todas as miudezas e grandiosidades que foram possíveis.

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AGRADECIMENTOS

Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.

— O mundo é isso — revelou — Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.

Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.

Eduardo Galeano

Aqui do alto, a vislumbrar o caminho de pesquisa percorrido, me dou conta das tantas fogueiras e dos muitos fogos que estiveram iluminando o meu andar. Fogueiras grandes, pequenas, algumas com doces e constantes chamas a chamuscar minhas ideias, outras, com labaredas envolventes, que não me deixavam desviar o percurso de ser professora-pesquisadora. Daqui, posso contemplar tamanha boniteza do caminho aceso, aqui, tenho a certeza de que não estive sozinha e que, por isso, só tenho a agradecer:

Ao Guilherme do Val Toledo Prado, professor e orientador, por, mais do que iluminar os caminhos desta pesquisa narrativa, sempre me deixar tentar, voltar e tentar novamente. Meu muito obrigada por todo o apoio e a escuta, por se fazer perto e por estar tão gentilmente atento às minhas perguntas e escritas, contribuindo e incentivando para que eu fosse professora-pesquisadora da minha prática docente.

Às crianças, grandes e pequenas, porque me mostraram todos os dias que ser professora é, antes de mais nada, estar sempre em relação com elas. Agradeço por ser humanamente melhor por causa delas.

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À Vanessa, professora, amiga e parceira de trabalho, por ler cuidadosamente cada linha sem verso do texto e o iluminar como só ela conseguiu fazer. Obrigada por sempre se fazer presente neste meu percurso de ser professora.

À Liana, professora, amiga e avó da Laura, por estar sempre inteira em muitas conversas, em encontros comigo e com Bakhtin. Presente no caminho, todo o tempo, sempre a acendê-lo com suas chamas amorosamente azuladas a me contar de caminhos possíveis.

À professora Adriana Carvalho Koyama, porque me acolheu em minhas memórias de professora, me ajudou a transformá-las narrando e, assim, pensá-las para além delas.

Às professoras Adriana Varani, Inês Ferreira de Souza Bragança, Liana Arrais Serodio, Renata Barrichelo Cunha e Vanessa França Simas, porque em ato amoroso, aceitaram participar das bancas de qualificação e de defesa partilhando de palavras ditas e escritas, me ajudando a pensar minha pesquisa.

À amiga Adriana Pierini, por me mostrar que seja na dança, na folia ou na tristeza estaria lá, corrigindo as vírgulas, incentivando-me sempre.

Às amigas Rosaura, Isabela, Adriana e Vanessa, porque sempre estiveram a acender as chamas, a dar pitacos sobre a vida, a caminharem ao lado.

Às professoras-pesquisadoras e aos professores-pesquisadores da primeira turma do Mestrado Profissional da Faculdade de Educação, as muitas fogueirinhas e os muitos fogos que juntas e juntos tornavam-se uma imensa d’uma fogueira com a chama acesa a todo momento. Por estarem sempre prontas e prontos a desvendar coletivamente os mistérios das pesquisas que nos uniu.

Às amigas que o Programa de Mestrado Profissional me trouxe, Silvia, Viviani, Liliam, Juliana, Carina, Riza e Emily, bonitezas de uma chama mais próxima, sempre de mãos dadas no percurso de sermos pesquisadoras das nossas práticas docentes. Pela amizade que vai para além da pesquisa e chamusca a vida.

Às professoras e aos professores do GEPEC, do Grupo de Terça e do GruBakh, que sempre estiveram muito próximas e próximos pelo caminho, por responderem com chama constante às demandas das escolas tão nossas.

Às amigas Daniela, Rayane, Giovana, Juliana Rímoli, Angélica, Mikaeli, Eliane, Juliana Matiazzo, Pamela e Andréa, porque sempre estiveram lá me apoiando e me oferecendo escuta aos dilemas e aos encantamentos de ser professora e professora-pesquisadora.

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À minha mãe, Miriam, ao meu pai, Celio, e à minha irmã, Mariana, que estiveram desde o começo do caminho a alimentar o fogo sem que esmorecesse. Obrigada pela partilha da vida, pelo acolhimento.

Ao Vinícius, companheiro de jornada, porque sempre respeitou e incentivou minha aventura de percorrer o caminho da pesquisa.

A vocês, meu muito obrigada por iluminarem os caminhos, por seguirem comigo e me ajudarem com os emaranhados de linhas da narrativa-bordado de pesquisa.

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sabendo nós, enfim, que o que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca e que é preciso andar muito para alcançar o que está perto.

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RESUMO

Esta dissertação é a pesquisa narrativa de uma professora sobre sua própria prática a partir da questão “quais perguntas surgem ao organizar os guardados no inventário e como, na busca por respondê-las, são construídos conhecimentos da prática profissional?”. A metodologia de pesquisa narrativa orienta esta pesquisa, fazendo com que os caminhos, as perguntas, as inquietações que vão surgindo durante a pesquisa sejam narradas de modo a dar a ver como se deu o percurso de construção de conhecimentos. Os materiais usados nesta pesquisa são os guardados de professora e de estudante que são inventariados. O processo de inventariar é narrado e, com isso, a professora-pesquisadora se vê em meio a muitas perguntas de sua prática. Essas questões são agrupadas e respondidas em quatro momentos, que são chamados de emaranhados de linhas, e que dialogam com temas como a formação continuada de professoras e professores, a escrita narrativa do cotidiano escolar, as experiências em sala de aula e a prática docente em um contexto escolar que tem como plano de fundo o trabalho com o material apostilado. A aproximação destes temas com os estudos bakhtinianos permite a ampliação dos sentidos ao que vai sendo narrado e pesquisado ajudando, assim, na construção considerações de pesquisa que dizem respeito à escrita narrativa como possibilidade da professora-pesquisadora se colocar distante do que pesquisa e vive com as estudantes e os estudantes para, dessa maneira, poder ter outros entendimentos da sua prática e da pesquisa. Além disso, é possível oferecer conselhos da prática docente que dialogam com os temas que são trazidos pelas perguntas reveladas com o inventário e mostram entendimentos possíveis para uma prática única, singular e irrepetível da professora-pesquisadora. Nesta pesquisa narrativa, portanto, a professora-pesquisadora entende que a partir do ato narrativo é possível recuperar saberes, experiências e memórias que se revelam em seu guardados inventariados e que ajudam a produzir saberes transgredientes a sua prática docente.

Palavras-chave: pesquisa narrativa; inventário; prática docente; escrita; professora-pesquisadora.

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ABSTRACT

This dissertation is the narrative research of a teacher about her own practice based on the question “what questions arise when organizing those formation and teaching materials kept in the inventory and how, in the search for answering them, are knowledge of professional practice constructed?”. The narrative research methodology guides this research, making the paths, the questions, the concerns that arise during the research be narrated in order to show how the knowledge construction path took place. The materials used in this research are those stored by teacher and student that are inventoried. The inventorying process is narrated and, with this, the teacher-researcher finds herself amidst many questions of her practice. These questions are grouped and answered in four moments, which are called tangles of lines, and which dialogue with topics such as the continuing education of teachers, the narrative writing of everyday school life, classroom experiences and teaching practice in a school context that has as a background the work with the handout material. The approximation of these themes with the Bakhtinian studies allows the expansion of meanings to what is being narrated and researched, thus helping in the construction of research considerations that relate to narrative writing as a possibility for the teacher-researcher to place herself far from what she researches and lives with students so that she can have other understandings of her practice and research. In addition, it is possible to offer advices on teaching practice that dialogue with the themes that are brought up by the questions revealed with the inventory and show possible understandings for a unique, singular and unrepeatable practice of the teacher-researcher. In this narrative research, therefore, the teacher-researcher understands that from the narrative act it is possible to recover knowledge, experiences and memories that are revealed in her inventoried materials and that help to produce knowledge that is transgressive to her teaching practice.

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Lista de imagens

Imagem 1: As crianças. ... 5

Imagem 2: A escrita. ... 15

Imagem 3: Os desenhos. ... 21

Imagem 4: Carta da Kristina. ... 36

Imagem 5: A flor. ... 38

Imagem 6: A gelatina.. ... 40

Imagem 7: O apoio. ... 41

Imagem 8: Nicolau e o plástico bolha. ... 50

Imagem 9: O abraço de Carolina. ... 51

Imagem 10: A experiência. ... 74

Imagem 11: Diogo escreve no livro da vida. ... 90

Imagem 12: Abertura de tema do livro de ciências do 2º ano. ... 96

Imagem 13: Página do livro de ciências do 2º ano. ... 97

Imagem 14: Registro de assembleia feito por Kamila. ... 107

Imagem 15: Jogo "Nunca 10". ... 111

Imagem 16: Mandalas. ... 111

Imagem 17: Registro do "balanço de conhecimentos". ... 113

Imagem 18: As atividades diferenciadas. ... 115

Imagem 19: A primeira turma. ... 121

Imagem 20: A capa do Portfólio I. ... 125

Imagem 21: Lucas e o desafio dos elásticos. ... 155

Imagem 22: A flor na primavera. ... 164

Imagem 23: Brinquedos com materiais recicláveis. ... 170

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Sumário ALGUMAS LINHAS 15

AS LINHAS QUE ME FAZEM PROFESSORA-PESQUISADORA 21

PENSANDO A NARRATIVA-BORDADO DE PESQUISA 41

Uma pergunta e um inventário 42

Outros inventários e outras perguntas 52

O olhar atento e a pergunta de pesquisa 67

As possibilidades da narrativa-bordado de pesquisa 71

PRIMEIRO EMARANHADO DE LINHAS: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS E ALGUMAS MEMÓRIAS 74

As memórias de uma experiência 75

Outras memórias de outra experiência 81

Os desdobramentos 85

As memórias narradas 88

SEGUNDO EMARANHADO DE LINHAS: AS PRODUÇÕES DAS CRIANÇAS 90

O material apostilado 91

As respostas das crianças 97

A prática pedagógica e as produções das crianças 105

Os lembretes 117

TERCEIRO EMARANHADO DE LINHAS: A ESCRITA NARRATIVA 121

O outro olhar 122

A formação inicial e as narrativas 123

As pipocas pedagógicas 129

As narrativas e o início da docência 132

As narrativas e as metanarrativas 135

As palavras outras 151

QUARTO EMARANHADO DE LINHAS: A FORMAÇÃO CONTINUADA 155

As fragilidades 156

As outras formações 161

Os entendimentos 174

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APÊNDICE I – Inventário I 191

APÊNDICE II – Inventário II 196

APÊNDICE III – Inventário IV 200

APÊNDICE IV – Inventário V 208

APÊNDICE V – (Fo)focando um texto inacabado 223

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ALGUMAS LINHAS

Imagem 2: A escrita, 2011. Fonte: acervo pessoal.

Helena sonhou que queria fechar a mala e não conseguia, e fazia força com as duas mãos, e apoiava os joelhos sobre a mala, e sentava em cima, e ficava em pé em cima da mala, e não adiantava. A mala, que não se deixava fechar, transbordava coisas e mistérios.

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A dificuldade de fechar a mala de Helena (GALEANO, 2012) não deixa dúvidas sobre a quantidade de coisas e mistérios que, mesmo em sonho, ela precisava guardar. Eu, professora, com tantas cartas, narrativas, fotografias, cadernos, desenhos, textos das estudantes e dos estudantes e muitos outros guardados de nove anos de docência, já não me espanto com os mistérios que surgem deles, porque narrei e pesquisei aqui alguns entendimentos.

Nesta narrativa-bordado de pesquisa1, entendimentos e coisas guardadas se misturam. Por isso, sinto o dever de adiantar o que vocês, leitoras e leitores, encontrarão nas páginas que se seguem de modo a poupar-lhes tempo, ou melhor, instigar-lhes a leitura. É preciso que eu diga, ainda que de modo breve, algumas palavras que dizem respeito ao objetivo, à metodologia, ao referencial teórico, aos materiais de pesquisa e aos processos de interpretação.

A ideia que movimentou essa pesquisa foi entender como, ao organizar meus materiais guardados de professora e de estudante em um inventário, foram surgindo muitas perguntas da minha prática docente e, com elas, fui narrando e pesquisando as respostas, os entendimentos possíveis. Dessa maneira, a pergunta que orienta esta pesquisa é: quais perguntas surgem ao inventariar meus guardados e como, na busca por respondê-las, são construídos conhecimentos da prática profissional?

Para que seja possível compreender melhor, é preciso pensar a pergunta de pesquisa a partir de três pontos. A necessidade dessa aparente divisão se dá porque os pontos se entrecruzam, fazendo com que um parta dos outros e que os outros partam do um. Por isso, para algumas leitoras e leitores menos acostumadas e acostumados a dissertações como essa, com uma escrita narrativa e as idas e vindas que podem soar repetitivas, opto por realizar essa explicitação em três pontos.

O primeiro ponto diz respeito ao inventário. O inventário tem se constituído um importante instrumento nas pesquisas narrativas do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC) por possibilitar uma organização dos materiais de pesquisa. Ao inventariar meus muitos guardados de professora e de estudante, tornei-os meus materiais de pesquisa e, com eles, pude dar a ver indícios da minha prática docente.

O segundo ponto é sobre as perguntas que surgiram ao inventariar e ao narrar este processo de inventariar. Quando organizei meus (guar)dados2 de professora atuante e em

1 O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Número do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 13876819.3.0000.8142. Número do parecer: 3.365.985.

2 No decorrer de “Pensando a narrativa-bordado de pesquisa” narro sobre a distinção que faço entre “guardados”

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formação no inventário e fui escrevendo sobre esta organização, tornaram-se visíveis muitas perguntas da minha prática docente que me movimentaram em diversas tentativas de respondê-las. Perguntas que davam a ver a minha prática, que revelavam, por exemplo, a minha inquietação ao perceber que eu tive turmas que pouco ou nada constava em meu inventário. O que teria acontecido? Foram essas perguntas que orientaram as narrativas que aparecem neste texto.

O terceiro ponto diz respeito a metodologia de pesquisa. A metodologia de pesquisa narrativa foi minha companheira nesta busca, pois fui entendendo que era no narrar que eu ia construindo a pesquisa, investigando minha prática e que, enquanto pesquisava, também narrava, deixava marcas dos caminhos percorridos, tentando explicar os supostos desvios que também constituíram esta minha escrita de mim.

Busquei deixar claro nesta narrativa-bordado de pesquisa que, por se tratar de um percurso, nem sempre fui pelo caminho que eu considerava mais fácil ou, digamos, rápido, mas percebi que a pesquisa constituiu-se um ato único, irrepetível e responsável3 (BAKHTIN, 2010a; BAKHTIN, 2010b; PONZIO, 2010) para e com a minha prática. Consegui compreender que a pesquisa narrativa se faz também dos percalços da pesquisadora e do pesquisador, do escrever e reescrever, do repensar aquilo que foi escrito e achar que não era mais aquilo, mas narrar o porquê de se achar isso, o que fez mudar de ideia, narrar o percurso deixando claro o caminho, as encruzilhadas para que a leitora e o leitorentendam o processo reflexivo, para que andem junto e, se assim o quiserem e for possível, também aprendam com ele.

A perspectiva de pesquisa narrativa tal como abraçam muitas colegas e muitos colegas do GEPEC entende ainda que a pesquisadora e o pesquisador devem se deixar ver para suas leitoras e seus leitores. Neste sentido, uma marca deste texto era o uso da primeira pessoa do singular, que permitiu com que eu me posicionasse em minhas narrativas, dialogasse com autoras e autores, os meus muitos outros, mas partindo sempre da minha relação, do meu entendimento em relação a minha prática docente.

Neste movimento de me dar a ver em minha escrita, escolhi outras três marcas que me são caras. A primeira é o uso, nesta narrativa de mim, da flexão em gênero feminino, uma vez em que acredito que as mudanças partem de pequenas coisas, pequenas brechas que aos poucos vão se tornando maiores e englobam mais e mais pessoas que, por estarem e pensarem juntas, se fazem mais fortes. Colocar as mulheres como potenciais leitoras desta narrativa é

3 Esses e outros conceitos bakhtinianos serão abordados com maiores explicações no decorrer da narrativa-bordado

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mais do que um posicionamento linguístico, envolve pertencimento de uma classe de trabalhadoras em que a imensa maioria é constituída de mulheres que ficam apagadas em obras e discursos que generalizam no sempre masculino.

A segunda marca é a abertura de todas as narrativas que compõem este texto com contos do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Como professora preocupada com as minorias, as desprestigiadas e os desprestigiados, trago para diálogo as narrativas de um autor que retrata em palavras a riqueza de muitos desses cotidianos. Cotidianos de pessoas que não teriam suas histórias contadas em livros, que são mulheres ordinárias e homens ordinários, comuns e, por serem tão comuns, encantam e tornam-se personagens tão marcantes, extraordinárias.

Por fim, a terceira marca que carrego nesta narrativa de mim vem ao encontro com esta conversa com pessoas comuns, por isso, escolho como metáfora que me acompanha no caminho da pesquisa a bordadeira e seus bordados. Bordar era um desejo antigo meu, uma vontade daquelas que vão e vem, que carregamos sempre. Há alguns anos venho observando um movimento de jovens bordadeiras que enxergam esta prática como um espaço de luta, de expressão daquilo que se quer dizer. E por que não juntar minha pesquisa sobre a prática docente com aquela velha vontade de bordar? As mãos, geralmente de mulheres, passam a agulha com as linhas coloridas, furando o tecido, desfazendo algum desenho que não ficou ao gosto que queriam, fazendo caminhos por entre os buracos tão pequenos do tecido. Bordam-se desenhos, narrativas e palavras de mãos comuns, que ainda assim são únicas, responsáveis a sua prática e à realidade em que vivem.

É assim, em meio a palavras minhas já ditas por tantas outras e tantos outros que vocês poderão encontrar as narrativas, que venho bordando, da minha prática docente em diálogo com os meus (guar)dados inventariados, as escritas de autoras e autores que trazem para a conversa temas comuns do cotidiano escolar, como o uso do material apostilado, as experiências e as memórias e a formação continuada. De modo a ampliar os sentidos possibilitados com o entrecruzar das linhas das autoras e dos autores com as perguntas da minha prática docente, trago algumas contribuições de Bakhtin para interpretar e realizar a interlocução nas discussões.

Tendo todos os pontos e marcas da narrativa-bordado de pesquisa devidamente esclarecidos, volto a dizer que quero deixar registrado aqui como este texto está organizado e o que as leitoras e os leitores poderão encontrar em cada um de seus emaranhados de linhas:

Na narrativa “As linhas que me fazem professora-pesquisadora”, trago o meu memorial de formação no qual narro os caminhos percorridos desde a infância, passando pela

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minha escolha em fazer graduação em Pedagogia, os dilemas de quando fui estagiária e pesquisadora de Iniciação Científica, a apreensão em ser professora pela primeira vez e as experiências que me levaram a ser professora-pesquisadora no Programa de Mestrado Profissional em Educação Escolar da Unicamp.

Na próxima narrativa, “Pensando a narrativa-bordado de pesquisa”, procuro evidenciar os caminhos percorridosem busca do entendimento de minha pesquisa a partir do olhar para o inventário. Neste capítulo, narro a escolha da metodologia utilizada na pesquisa: a pesquisa narrativa em que, ao contar meu percurso de investigação, vou deixando marcas escritas, ressignificando o que eu pensava sobre a pesquisa, descobrindo outras formas de fazer, como o exercício de (fo)focar4 o texto. Trago também as muitas perguntas que surgiram com o processo de inventariar, perguntas estas que movimentaram minha escrita narrativa e minha pesquisa e que me ajudaram a entender minha pergunta de pesquisa.

Já na narrativa seguinte, em “Primeiro emaranhado de linhas: algumas experiências e algumas memórias”, trago minha inquietação ao descobrir que uma de minhas turmas não tinha registros em meu inventário. Aos poucos e com a escrita, entendo os motivos que me levaram a não guardar nenhum material desta turma. Foram memórias sensíveis que revelaram mesmo sem, a princípio, a materialidade dos (guar)dados e que, ao narrá-las, percebi que acabei por tornar-lhes materiais e ressignifiquei-as de acordo com o meu olhar do presente.

Na narrativa que se segue, “Segundo emaranhado de linhas: as produções das crianças”, teço uma discussão com os materiais apostilados, com o que percebo das respostas que as crianças me dão ao usá-los e com o que tenho feito na sala de aula para além das páginas das apostilas. Trago, assim, muitos (guar)dados das estudantes e dos estudantes que me ajudaram a refletir sobre a minha prática. A defesa deste emaranhado de linhas foi, portanto, pela autoria das crianças em suas produções de conhecimentos.

No “Terceiro emaranhado de linhas: a escrita narrativa”, trago outros olhares para as narrativas que escrevi no início da docência, a partir de um exercício que o GEPEC, em especial um de seus grupos de estudos, o GruBakh, tem se apropriado e chamado de metanarrar5. A escrita de metanarrativas procura trazer as contribuições de Bakhtin que dialoguem com aquilo que foi outrora narrado, de modo a ampliar os sentidos, possibilitando outras discussões. Dessa maneira, neste emaranhado de linhas, produzi metanarrativas, que

4 Este exercício e o processo pelo qual foi criado serão explicados no “Pensando a narrativa-bordado de pesquisa”. 5 O exercício de metanarrar e as metanarrativas serão tratados com maior profundidade no “Terceiro emaranhado

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dialogaram com Bakhtin e com as narrativas escritas quando eu era uma professora iniciante, fazendo com que eu entendesse um pouco mais da professora que fui no começo da docência.

Em seguida, no “Quarto emaranhado de linhas: a formação continuada”, me apoio em meus certificados inventariados de cursos, seminários, congressos, encontros e formações para discutir a formação continuada e alguns de seus desdobramentos em minha prática pedagógica e no lugar de professora que ocupo. Para que tal conversa fosse possível, recorri ao que havia aprendido no “Terceiro emaranhado de linhas: a escrita narrativa” e também exercitei a escrita de metanarrativas neste emaranhado.

Na última narrativa, “Bordando com os emaranhados de linhas”, trago as considerações da pesquisa e os conselhos do lugar de professora que pesquisou a própria prática docente, sempre provisórias e provisórios, mas, agora, mais breves e diretas, do que havia narrado e pesquisado neste texto com os emaranhados de linhas possíveis para o momento em diálogo com a minha pergunta de pesquisa.

É, então, com esses emaranhados e não outros, com o ir e o vir do narrar e do pesquisar que inicio esta narrativa-bordado de pesquisa. Em meio a tantas perguntas e entendimentos que insistiram em saltar do meu inventário de (guar)dados e a tantas coisas e mistérios que transbordaram da mala de Helena (GALEANO, 2012), que possamos seguir juntas e juntos nas próximas linhas, sem soltar a mão de ninguém.

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AS LINHAS QUE ME FAZEM PROFESSORA-PESQUISADORA

Imagem 3: Os desenhos, 2019. Fonte: acervo pessoal.

Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:

– A uva – sussurrou – é feita de vinho.

Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.

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Galeano (2012) escreveu que talvez sejamos as palavras que contam o que somos. Se ele e Marcela Pérez-Silva tiverem razão, que palavras contam o que sou? Nas discussões que tenho participado que dialogam com os estudos de Bakhtin tenho entendido que nos constituímos com a ajuda de nossos outros, das palavras e acabamentos que eles nos dão6 (BAKHTIN, 2010a). Como posso, então, escrever sobre mim sem pensar no que sou do que dizem que sou? Se a uva é feita de vinho, eu, certamente, sou feita de palavras da minha mãe, do meu pai, da minha irmã, das minhas avós e dos meus avôs, de tios e tias, de minhas amigas e meus amigos, de meu companheiro, de meu orientador e de tantas outras gentes.

E o que todas elas e todos eles vão dizendo que me ajudam a me contar neste espaço de memorial de formação? Não em segredo como o homem dos vinhedos confidenciou para Marcela Pérez-Silva (GALEANO, 2012), começo aqui a contar um pouco do que sou com a ajuda das palavras que me contam.

Nasci em São Paulo, filha de mãe farmacêutica e de pai funcionário do Banco do Brasil. Minhas avós e meus avôs vieram do Japão ainda jovens para o Brasil de navio em uma longa viagem com outras e outros que, assim como elas e eles, fugiram da guerra. Fico pensando em tudo o que poderia implicar esta vinda para o país. Deixar as terras de origem sem saber se voltariam, guardar alguns poucos pertences para tentar viver de outra maneira em outro lugar... Penso nisso tudo, porque não tive muito contato com minhas avós e meus avôs. Tínhamos uma barreira linguística que acabava dificultando o nosso contato: minha avó materna, mais próxima fisicamente e afetivamente não falava português, enquanto que eu não falava japonês. Nos entendíamos por meio de minha mãe que se fazia de tradutora e também nos agarrando em algumas palavras soltas que voavam pelo contexto, mas não sei de suas histórias por suas palavras, apenas o que minha mãe, meu pai e meus tios e tia conseguiram saber. Minhas avós e meus avôs já partiram, deixando saudades, levando as histórias e as palavras que só elas e eles tinham.

Ser neta de japonesas e japoneses sempre me marcou. Seja nos traços físicos que eram muito distintos de minhas amigas e meus amigos, seja na personalidade que, até mesmo na minha lembrança mais longínqua, tendeu para uma introspecção e uma timidez, por muitas vezes, excessiva.

Ainda bem pequena vim com meu pai e com a minha mãe para Campinas, interior de São Paulo, por conta de uma nova oportunidade de trabalho para minha mãe. Morávamos em Sousas, distrito de Campinas, bem em frente à indústria em que ela trabalhava e dessa época

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eu pouco lembro. Sei só o que me contam e o que as fotografias mostram: eu de fraldas engatinhando para lá e para cá, eu de cabelo amarrado no topo da cabeça, eu acenando para as funcionárias e os funcionários da empresa, comendo melancia no quintal, dentro do balde no chuveiro com azulejos quadrados azuis ao fundo. Não me recordo quanto tempo moramos naquela casa, pelo que me dizem as palavras dos outros, naquela época, Sousas não era um lugar com muitos recursos ou infraestrutura, por isso nos mudamos para o centro de Campinas.

Foi quando comecei a ir a uma escola de Educação Infantil perto do nosso apartamento. Eu adorava o muro branco com os desenhos de abelhas com grandes olhos que pareciam sorrir, gostava do cheiro do refeitório com as mesas do meu tamanho, de abrir minha toalha da lancheira vermelha, do parquinho com várias amarelinhas no chão, dos meus amigos e das amigas, mas antes de adorar tudo isso, chorei bastante. Eu chorava, porque não queria ir para a escola, chorava, porque não queria ficar longe do meu pai e da minha mãe, chorava, porque não entendia aquilo de ficar umas horas na escola sozinha com umas “tias”7 que insistiam em falar comigo a todo instante e com umas crianças que pareciam que não entendiam os meus temores, que já estavam, sabe-se lá como, acostumadas com aquela rotina.

Aos poucos, bem aos poucos, fui me acostumando com aquilo de ficar na escola no período da tarde. Até que era gostoso brincar com as meninas e os meninos da minha turma. Aprendi a ler e a escrever na escola, levava as lições de casa nos cadernos brochura de capa mole encapados com aquele plástico xadrez que variava a cor de acordo com a turma que eu estava. Naquela época comecei a devorar gibis da turma da Mônica. Eu adorava quando tínhamos que escrever nossas próprias tirinhas usando as personagens, mas sempre ficava chateada, porque eu nunca conseguia colocar tudo o que queria escrever nos dois ou três balões que entravam em cada quadrinho.

A Mônica e a Magali falavam nas tirinhas que eu criava, falavam mais do que cabia na atividade, mais do que eu quando estava na escola. As “tias” tentavam me fazer falar qualquer coisa que fosse, me colocavam no teatro, na contação de histórias, na roda de conversa, me deixavam ao lado da menina mais tagarela e eu? Eu fazia “sim” e “não” ora com a cabeça, ora com os olhos e, assim, dava a minha contribuição à turma e ao andamento das atividades. A minha dificuldade sempre fora conversar com quem não fosse a minha mãe e o meu pai, com

7 Naquela época e naquela escola era comum tratarmos as professoras e demais funcionárias da escola por “tia”.

Hoje, depois de ler autores como Louro (2004) e Freire (1999) e tendo participado das discussões sobre a feminilização na disciplina do Mestrado Profissional “História e memória da profissão docente (EE035)”, entendo que a profissão docente exige uma militância em recusar o carinhoso vocativo de “tia” e estabelecer o tratamento de “professora” que acaba por caracterizar uma formação, uma profissionalização para o ensinar, envolve a responsabilização pelos atos, além de deixar claro seus direitos enquanto profissional.

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outras crianças eu até falava um pouco quando queria, mas com outras adultas e outros adultos, raramente.

Minha mãe me conta que a primeira vez que eu falei com a “tia” Kátia, minha professora mais querida, aquela que esteve comigo durante o pré-primário, ela saiu correndo, deixou a turma sozinha e foi contar para a coordenadora. E olha que tudo o que eu falei com ela foi “amarra” e indiquei o meu tênis. Imaginem vocês se eu tivesse feito uma frase mais elaborada. Claro que não lembro bem ao certo de nada disso, sei, porque as palavras me contaram.

Lembrar mesmo eu lembro de quando quis dar um presente para a “tia” Kátia. Eu queria que fosse algo especial, que ela se recordasse de mim toda vez que olhasse. Por isso, em casa, antes de ir para a escola, eu fiz um embrulhinho e o entreguei sem dizer nenhuma palavra. Era uma cadeirinha azul de plástico em que eu sentava minhas bonecas. Ela perguntou se era um presente, eu fiz que “sim” com a cabeça. “Tia” Kátia me agradeceu muito e eu fiquei achando que havia feito a melhor escolha de presente que alguém poderia ter feito.

Pouco antes de sair desta escola de Educação Infantil, aos cinco anos ganhei uma irmãzinha, a Mariana. Eu não entendia muito bem o que era ter uma irmã, entendia que minha mãe ficou fora um tempão, que íamos, eu e meu pai, visitá-la depois da escola e que eu fiquei alguns dias com a minha tia mais querida que fazia arroz com ovo frito em todas as refeições e eu amava.

Depois que minha irmã foi para casa, foi legal vê-la rolando, engatinhando, roubando os bombons da caixa que tínhamos dado para distraí-la... Mas ela começou a crescer, a andar e a bagunçar as minhas coisas. Eu tinha duas prateleiras com coleções de miniaturas devidamente organizadas e que Mariana vinha e misturava tudo, não colocava nada no lugar. Como poderiam os trens ficarem amontoados com os hipopótamos? Eles deveriam ficar perto dos carrinhos e dos navios, que eram, obviamente, meios de locomoção.

Para evitar conflitos, minha mãe e meu pai decidiram que deveríamos mudar para um apartamento com um quarto para cada filha. Quando mudamos eu e a minha irmã já estudávamos em um colégio maior que tinha turmas desde o maternal até a 8ª série. Eu não tinha muitas amigas e muitos amigos ali, porque a timidez de sempre me acompanhava. Mas eu tinha abrigo em outra professora, a “tia” Patrícia8 da 2ª série. Eu queria ser um pouquinho como ela, linda, carinhosa, tão presente naquilo que nos ensinava. Ela me lembrava a “tia” Kátia

8 Minha professora da 2ª série, Patrícia Regina Infanger Campos, que um tanto tempo depois tive o prazer de saber

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na paciência que tinha em tentar me fazer falar, enquanto que eu, fiel aos meus princípios, também só lhe respondida com “sim” e “não” com a cabeça. Eu e muitas colegas e muitos colegas éramos apaixonadas e apaixonados por ela, como as alunas e os alunos daquele livro “Uma professora muito maluquinha” do Ziraldo.

Estudei nesta escola até a 8ª série. Eu gostava muito dali. Todos os anos tínhamos um ou dois livros de leitura obrigatória. Até a 3ª série desenvolvíamos projetos com estes livros como o “Raul da ferrugem azul” da Ana Maria Machado e “As cores de Laurinha” de Pedro Bandeira. Da 4ª série em diante, acho, tínhamos avaliações dos livros. Foi assim que eu conheci Jorge Amado, Tom Sawyer, Mr. Passepartout e sua viagem ao mundo em 80 dias, Sherlock Holmes, “O gênio do crime” de João Carlos Marinho e muitas outras figuras da literatura. Eu anotava secretamente as indicações de livros que as professoras de português davam no meio de uma fala e outra, mas que não eram leituras obrigatórias. Essa paixão pelos livros, como tudo, teve lá suas consequências.

Geralmente no dia da avaliação sobre o livro do semestre, eu atendia a inúmeras ligações de telefone de amigas minhas querendo saber o resumo. Naquela época não tínhamos acesso à internet com tanta facilidade e também, se tínhamos, não pensávamos em buscar os resumos online. Lembro que eu enfatizava os acontecimentos que eram importantes, que poderiam constar nas provas, elas iam tomando notas dos nomes das personagens, faziam rabiscos, setas de quem era que se relacionava com quem e os porquês.

Nesta fase, ainda muito tímida, mas já com algumas amizades que carrego até hoje, eu gostava muito de criar histórias e me comunicar com minhas amigas por meio de cartas. Trocávamos muitas correspondências com narrativas que eram quase como novelas, escritas diariamente, com confissões e brigas, sempre em folhas de monobloco coloridas, com desenhos nas margens, dobradas em um sem fim de vincos e voltas que davam vez a pássaros, corações e envelopes.

Durante um ou dois anos na escola, participei das aulas extracurriculares de ginástica rítmica. Eu adorava os movimentos, a leveza e a delicadeza que eram combinados com uma música, mas que eu raramente conseguia seguir, entender e sentir sua marcação. Me apresentei junto com outras meninas algumas vezes, fomos a uma competição com clubes tradicionais da região de Campinas. Lembro que eu estava muito nervosa, mas, como sempre, não conseguia ouvir a música para acompanhar os passos, terminei a coreografia antes do tempo correto, mas, mesmo assim, minha professora, a “tia” Gi, me passou para uma turma mais

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avançada. Fiquei muito feliz, mas não prossegui com as aulas, porque nenhuma amiga iria comigo e já era tão difícil fazer amizades que acabei desistindo.

No fim do Ensino Fundamental eu e minhas amigas nos dividimos em outras escolas. Fui para uma bem perto de casa, preparatória para o vestibular e foi uma mudança drástica. A escola anterior tinha uma metodologia, vejo agora, mais construtivista, as professoras e os professores elaboravam o material todos os anos: uns amontoados de folhas xerocadas e grampeadas nas pontas e no centro, como um livrinho. Elas e eles eram muito próximas e próximos das alunas e dos alunos, até mesmo de mim que continuei quase nunca abrindo a boca perto das adultas e dos adultos.

Naquela outra escola, logo no início das aulas eu recebi quatro enormes apostilas com folhas vistosas e coloridas encadernadas, um fichário organizador de estudos com divisórias para as matérias estudadas, as matérias dadas, além de um cronograma de provas do ano todo: duas avaliações por semana, durante todas as semanas. Além disso, as relações com as professoras e os professores eram distantes, elas e eles tinham muitos alunos e muitas alunas e se desdobravam em várias unidades de ensino. Acabava que eu me sentia apenas mais uma estudante ali.

Não fiz muitas amizades nos três anos de Ensino Médio. A sensação que eu tinha era de estar dentro de uma novela de final de tarde com suas intrigas e seus conflitos, aquilo me aborrecia profundamente. Quando passei no vestibular nem senti o peso de sair daquele lugar como havia sentido nas outras duas escolas. Era mais uma libertação. Mas era tanta liberdade que eu tinha de escolher e as escolhas não eram, e ainda não são, o meu forte.

Em 2006 passei em três vestibulares para diferentes cursos: Pedagogia na Unicamp, Ecologia na Unesp em Rio Claro e Psicologia na PUC-Campinas. Com muitas dúvidas de qual caminho seguir, minha mãe conseguiu marcar uma conversa com profissionais das três áreas para que eu pudesse decidir melhor. Acabei escolhendo Pedagogia mesmo com a amiga da minha mãe dizendo que o curso na Unicamp era mais voltado para a pesquisa, que a prática era muito, muito diferente. Mas tomei a decisão pensando sempre na “tia” Kátia e na “tia” Patrícia. Elas me marcaram de tal forma que me fizeram pensar que eu poderia, mesmo muito tímida, um dia, ser um pouquinho como elas: uma professora com muita paciência e doçura. Era isso, eu tinha certeza de que queria ser professora de Educação Infantil.

Os dois primeiros anos de graduação foram de tateio na universidade. As aulas me levavam a pensar sobre sociologia, filosofia, psicologia, história da educação e pesquisa – esta última confesso que me aborrecia. Eu entendia que aquelas disciplinas eram necessárias por

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possibilitarem a reflexão sobre a escola. Mas que reflexões eram aquelas se eu não estava mais na escola? Eu não tinha contato com a prática, o máximo de escola que conhecia era o que eu guardava na memória como aluna. Será que as minhas reflexões eram válidas mesmo assim?

Enquanto eu questionava, a partir de 2007, alimentei uma parte de mim que talvez estivesse um pouco adormecida desde as aulas de ginástica rítmica que eu havia tido no Ensino Fundamental. Voltei, então, por um certo tempo aos movimentos do corpo e da arte. Fiz aulas de dança irlandesa, dança do ventre, jazz e, junto com tudo isso, me dediquei a uma prática que foi por muitos anos a minha paixão: o tecido acrobático, uma modalidade circense. Foi com o tecido que fui superando alguns medos, fui me enroscando e me apresentando em festivais da escola de dança, tendo que me mostrar além da fala, além também do corpo.

Em 2008, eu estava no terceiro ano da graduação já bem sabida das bibliotecas da universidade, os pontos em que o pôr do sol era mais bonito, qual era o melhor café e a que horas o restaurante universitário era mais ou menos cheio, qual sequência de truques de tecido acrobático era mais fácil ou mais difícil para mim e minhas limitações, mas eu não tinha a dimensão de que algo muito legal estava por acontecer: o Projeto Integrado. Buscando nos auxiliar com a experiência de sermos estagiárias em uma escola pública, o professor Guilherme do Val Toledo Prado e as professoras Elizabeth Barolli e Anna Regina Lanner estiveram conosco indicando leituras e propondo que desenvolvêssemos um projeto com as crianças do estágio.

Três vezes por semana eu acompanhava uma turma de 1º ano em uma escola municipal de Campinas. Rodeada pelas pequenas e pelos pequenos e responsável por auxiliar de modo mais direcionado um aluno com dificuldades de aprendizagem, foi naquela turma que desenvolvi vínculos muito intensos, senti saudades das crianças durante os finais de semana e ganhei meus primeiros desenhos e bilhetes das alunas e dos alunos.

Em parceria com duas amigas minhas, a Daniele e a Mariana, desenvolvemos um projeto que envolvia nossas memórias como boas leitoras que éramos. Escolhemos o tema Monteiro Lobato e durante várias semanas apresentamos o mundo lobatiano para as crianças de nossos estágios. Era encantador ver o quanto as meninas e os meninos se envolviam com as nossas ideias, os sorrisos estampados nos rostos quando li um trecho do livro Sítio do Picapau e propus para que cada menina e cada menino escrevesse uma carta9 para a personagem do sítio que mais gostava. Foi neste contexto que nasceu uma outra paixão: trabalhar com cartas na sala de aula.

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“Emília, você é a minha fã”

“Caro Saci essa é pra você sou o Miguel acho você muito legal gosto das suas bagunsas não estou falando que eu faço um pouco de arte eu faço muita arte mas de fezenquando sou bonzinho puxa estamos falando quanto tempo de arte acho que escrevi de arte uma, duas, ou três linhas nossa saci você é muito legal asisto o seu dvd gosto de você tcháu. Asinado Miguel”

Trecho do relatório de estágio, novembro de 2008. Fonte: acervo pessoal.

Vendo o quanto a carta poderia ser potente como instrumento pedagógico capaz de mobilizar as alunas e os alunosa escreverem sobre si, no ano seguinte, comecei uma Iniciação Científica10 financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) sob orientação do professor Guilherme em que eu trocava correspondências com estudantes de um quinto ano do Ensino Fundamental em uma escola municipal a fim de revelar o que elas e eles diziam de si por escrito que não conseguiam me comunicar pessoalmente. Passei, então, todo o ano de 2009 acompanhando pela manhã as aulas da professora Tamara11 que muito me inspirou ao mostrar as poesias de sua prática pedagógica e trocando cartas com cada uma das alunas e dos alunos da turma do Garfield.

Quando narro as minhas duas experiências como estagiária também preciso contar que os estágios me marcaram à medida em que mostraram uma série de dificuldades que eu, quando professora, poderia ter: indisciplina, dificuldades de aprendizagem, falta de motivação, carência de diálogo entre família e escola, problemas com a gestão e uma série de outros pontos que me amedrontaram um pouco, já que durante a graduação me prepararam para refletir, para pensar de maneira filosófica, sociológica e psicológica, mas não para o que eu deveria exatamente fazer quando me deparasse com alguma situação que me tirasse do eixo. Hoje percebo que eu queria uma receita pronta, algo como um manual explicativo que, lógico, nunca recebi, pois, depois entendi, cada um tem sua própria prática pedagógica e cada turma é formada por crianças únicas e singulares.

10 Pesquisa de iniciação científica intitulada “A carta como instrumento mediador das relações entre sujeitos em

sala de aula – estudo de caso em uma classe de 5º ano do Ensino Fundamental”, desenvolvida com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), de 01 de setembro de 2009 a 30 de junho de 2010, número do processo: 09/08121-6.

11 Na época a professora Tamara Abrão Pina Lopretti era doutoranda do GEPEC sob orientação da professora

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Neste caminhar entre as inseguranças e as alegrias fui construindo, a partir do que vivi e ouvi, algumas certezas do que eu queria para depois que eu me formasse. Certezas de que não era mais ser professora de Educação Infantil, mas sim: ser professora de escola pública, por acreditar em educação de qualidade e gratuita, por querer fazer a diferença no meio daquelas e daqueles que já são, de alguma forma, oprimidas e oprimidos pela sociedade, para lutar por mais equidade, para dar continuidade, na prática, ao ensino oferecido pela Unicamp; ser alfabetizadora, por ouvir várias professoras do GEPEC contando de encantos que só me pareciam possíveis em salas de primeiras letras, pela delícia de ver as pequenas e os pequenos do estágio lendo umas tantas palavras; e, por ser apaixonada pela leitura e a escrita, transmitir o mesmo sentimento para as minhas alunas e os meus alunos, para que elas e elespudessem dizer de si, conhecer novos mundos, descobrir outros olhares e vozes, assim como eu havia feito quando era aluna do Ensino Fundamental.

Três meses depois que me formei, em outubro de 2010, quando passei em um concurso público em um município do interior de São Paulo12, me atribuíram uma sala de 2º ano do Ensino Fundamental dizendo que eu daria continuidade à alfabetização iniciada no ano anterior. Então, eu seria uma professora de escola pública como tinha certeza de que queria, eu seria, ainda, professora alfabetizadora, parecia que só me faltava conquistar a última certeza: fazer da leitura e da escrita a nova paixão de minhas alunas e meus alunos.

Foi quando entrei pela primeira vez na sala de aula como professora e a realidade era que as crianças não queriam ouvir as histórias dos livros que eu, cheia de paixão, queria ler. Elas não queriam conversar sobre o que fizeram no final de semana na roda, não quiseram perguntar nada além do meu nome e tampouco se interessaram em escrever um texto coletivo para o livro da vida. Naquele dia elas queriam guerrear com lápis, borrachas e outros objetos até que uma menina engolisse um giz, queriam gritar aos quatro cantos para que eu gritasse de volta. Elas queriam que eu, como todas as outras professoras que por ali passaram, fosse embora dando-lhes o título de “a pior sala da escola”. E eu, na ousadia de ainda querer algo, só queria mesmo era sair dali, ir e implorar para que o mundo desse conta de todas aquelas demandas sozinho.

Da política olho por olho, dente por dente ou sobre luzes e conversas

12 Conforme consta no projeto enviado para o Comitê de Ética em Pesquisa, escolhi não divulgar neste texto o

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22 crianças na minha listagem e mais duas fora dela. Tenho uma classe em que o espírito de equipe é invejável. Por exemplo, se por uma ideia do além o Adriano13 “pega sem pedir” o estojo do Brayan, sem problemas, afinal, é aí que chega o Estéfano com um caderno na mão e, dois segundos depois, na cabeça do Adriano. Vendo tal cena, surge do nada a Carolina que, munida apenas das próprias mãos, não se intimida e dá vários tapas na cabeça do Estéfano. Este ao invés de revidar, começa a ficar vermelho, vermelho, VERMELHO de raiva, aperta muito forte as duas mãos, chora umas lágrimas de crocodilo (mas daquelas que doem de ver) e transpira até encharcar o uniforme. Nisso uma animada guerra de giz se inicia. É giz rosa, azul, branco, laranja e amarelo voando pela classe toda. O objetivo é acertar quem ou o que der pra acertar, nem que esse acertar resulte na garganta da Joana. Desesperada, chora sem parar, tenta cuspir e começa a ficar vermelha, cheia de bolinhas no rosto, porque, segundo a coordenadora, “ela tem isso mesmo”. Mas, tudo fica bem, afinal o Kauan chega para ajudar sua colega e diz um tranquilizante “você vai morrer”.

(...)

Só sei que hoje eu peguei lápis no ar na guerra de lápis, apartei aluna com dor no estômago, tirei um, dois, três de trás do armário, desci para o café pelo lado errado da escola, gritei a ponto da Vanessa14 confidenciar depois “nunca pensei que você conseguisse gritar assim”, prendi meu dedo na porta do armário, segurei vários várias vezes para evitar brigas, tirei da mão de uma menina uma sacola cheia de apagadores de lousa que ia parar na cabeça de um, recebi seis pedidos de desculpa de seis meninos que levaram advertência por causa da guerra de giz... E ganhei uma flor, uma carta da menina dos apagadores, um namorado do 2ºA, um armário sem chave, um planejamento semanal pra cumprir, uma dor de garganta, um cansaço físico e mental.

E, apesar de todos os pesares, das reclamações, das vontades de chorar, de sumir, de dizer bem alto “não quero mais”, acredito há luz no final do túnel. Não consigo vê-la ainda, sequer posso imaginá-la porque não sei bem se recordo qual é a forma da luz (foram muitos espaços escuros hoje), mas que ela existe, existe”.

Registro narrativo “Da política olho por olho, dente por dente ou sobre luzes e conversas”, 06/10/2010. Fonte: acervo pessoal.

13 Todos os nomes das crianças que constam nesta dissertação foram modificados a fim de preservar suas

identidades.

14 Vanessa França Simas fez faculdade comigo e também entrou comigo na mesma escola pela primeira vez. Hoje

é doutora pelo GEPEC com a tese “A professora-pesquisadora-iniciante e seus outros: caminhos partilhados na invenção de ser professora” em que narra como se constituiu professora nesse início de profissão.

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Como iniciei esta jornada em outubro, foram apenas três meses com aquela turma. Um tempo de angústia de ver/sentir/pensar que muita coisa fugia ao meu controle. Foram várias as vezes em que chorei quando cheguei em casa por desespero em pensar que poderia ser sempre daquela maneira, que eu já tinha duas das minhas certezas, mas que nada daquilo fazia sentido. Meu corpo, que sempre foi bem fiel aos meus sentimentos, vivia a adoecer. Tanto que participei do processo seletivo do Mestrado Acadêmico da Faculdade de Educação da Unicamp, pois queria dar continuidade àquela coisa de pesquisar que eu tanto havia gostado na Iniciação Científica, mas, doente, não consegui fazer uma boa prova e acabei não passando para as outras fases.

Penso que talvez eu tivesse desistido de ter aquelas certezas do final da graduação tão enraizadas se não fosse pela parceria que estabeleci com a professora Vanessa que se encontrava na mesma situação que a minha (colega de turma de graduação, recém formada, professora iniciante assumindo uma turma de 2º ano no início de outubro na sala de frente com a minha) e por um grupo15 de gente muito querida do GEPEC que nos acolheu no meio da tormenta. A cada final de dia eu relembrava tudo o que havia vivenciado com a turma – as guerras, as brigas, os gritos, as tentativas, as frustrações – e escrevia em forma de narrativas. Meus escritos eram compartilhados com o grupo de professoras, professores e coordenadoras por e-mail que, gentilmente, logo que possível, me davam uma devolutiva do que leram com perguntas, apontamentos e muitas, muitas ideias.

Paty,

Vc conseguiu, em poucas linhas, me fazer rir e chorar!

Eu lembro do dia que uma amigona que trabalhou comigo junto à meninos em situação de risco da zona portuária, lááá em Santos me disse algo como "Nossa, nunca imaginaria vc gritando!!" Tenho isso no meu memorial!

Há luz sim! Muita! E como o Gui disse, por vezes só a enxergamos com ajuda (conhece a história, contada por Eduardo Galeano, do menininho que pediu ao pai que a ajudasse a “olhar” o mar na primeira vez que o viu do alto de um morro?...)

São seres pequeninos e as possibilidades são grandes!

15 Vanessa França Simas, Rosaura Angélica Soligo, Liana Arrais Serodio, Márcia Leardine, Maria Fernanda

Pereira Buciano, Cristina Maria Campos, Claudia Roberta Ferreira, Adriana Stella Pierini, Heloísa Helena Dias Martins Proença, Ítala Tomei, Guilherme do Val Toledo Prado, Ana Maria Falcão de Aragão e Tamara Abrão Pina Lopretti.

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É sempre bom conversar muito, muito, muito com eles, elas... assim vamos entendendo, aos poucos, algumas lógicas a princípio inconcebíveis!

Pense que (diz a lenda! rs) há a “fase teste”! Ela passa...

Fui reler a narrativa sobre “o primeiro grito” (coloquei em anexo)... e pensei em algumas coisas a respeito destes “testes”... Há uma demanda por atenção que também muitas vezes não damos conta na dinâmica “um-para muitos”... É preciso cavar espaços e organizar o “um-para-um”...um de cada vez...em alguns momentos...

É difícil mesmo...

Mas a sensibilidade de vcs ensinará um montão à todos nós, vcs vão ver! Já com vontade de abraços,

Mafê

E-mail em resposta à minha primeira narrativa “Da política olho por olho, dente por dente ou sobre luzes e conversas”, 06/10/2010. Fonte: acervo pessoal.

Foi a partir deste movimento de viver, lembrar, escrever e receber reflexões que, timidamente, fui notando alguns avanços com aquela turma. Nossas rodas de conversa nunca foram rodas de fato, as atividades das folhas nem sempre eram terminadas, muitas das brincadeiras ainda acabavam em conflitos, as duplas podiam ser verdadeiros campos de batalha, mas já conseguíamos ler a história escolhida para o dia, eu já via encantos no menino que tentava se controlar para não estourar com as colegas e os colegas, produzíamos textos e cartas cada vez melhores.

(...) Hoje por três vezes quase chorei. A primeira, emocionada, porque a grande maioria das atividades que eu dei foram bem recebidas e bem feitas. A segunda, emocionada, porque uma aluna veio me perguntar o motivo por eu estar triste depois de ter me colocado calada frente à lousa. A terceira, emocionada, porque ao sentar ao lado de uma aluna, vi a luz e a alegria em seus olhos, ela, que não se aguentava quieta, não se continha e declamava a quem quisesse saber “a prô está me ensinando a escrever”.

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O fim daquele ano de 2010 deu início a outros quatro anos16 em que muito aprendi na prática e, às vezes com mais ou menos intensidade, com o grupo que ainda me lia e dialogava comigo sobre a alfabetização, o letramento e outros tantos dilemas do cotidiano escolar. Passei a ver a vida na sala de aula, a me encantar com as crianças, a entender as diferenças ali, no meio de tudo, a inventar histórias, a ver alunos e alunas preferindo a leitura feita no chão da sala. Aos poucos eu entendia como deveria interceder em um conflito, quais ações eu poderia ter com aqueles que apresentavam alguma dificuldade. Listei os livros que eram mais bacanas, aprendi que os dias de educação física eram sempre cheios de energia, que os vínculos são realmente importantes para o aprendizado, que os dias seguintes aos dias ruins poderiam ser bons.

E, assim, depois daquela experiência inicial de muita angústia, diálogo, experiências compartilhadas, frustrações e avanços, eis que alcancei todas as minhas certezas do tempo de graduação: eu era professora alfabetizadora em escola pública com alunas apaixonadas e alunos apaixonadospelas letras lidas e escritas.

No final de 2011, vestida do sempre encanto pela literatura, resolvi prestar o vestibular novamente e fui aprovada para o curso de Letras na Universidade de São Paulo (USP). Em 2012 meus dias passaram a ser de correria e planejamento: acordava muito cedo para estudar e preparar as aulas, ia de carona de Campinas para trabalhar no período da tarde e depois da escola pegava o fretado até a USP. Tinha duas disciplinas por noite, me embrenhava na cantina, conversava com as colegas e os colegas de curso que em sua maioria já trabalhavam e já, inclusive, tinham outra graduação como eu. De lá, voltava no fretado que me deixava na porta de casa quase à meia-noite.

O cotidiano tumultuado não tirava a delícia da experiência de cursar uma graduação já tendo outra na bagagem, sem o peso de ter que me formar e ser professora de Língua Portuguesa, Língua Espanhola ou Literatura, que eram as três possibilidades a partir do currículo que eu ia construindo. Eram noites de quase puro deleite. Ali eu aprendi um pouco de latim, das obras clássicas gregas, cursei disciplinas eletivas de literatura infantil, de literatura espanhola, entendi um tanto de fonética e um muito de variações linguísticas, fiz e reencontrei grandes amigos, aumentei minha lista muito bacana de livros e carreguei comigo a timidez ainda característica.

Por dois anos e meio imersa nessa rotina, ouvi muito as pessoas dizerem que eu era maluca, que jamais fariam uma segunda graduação, que era puxado e que não sabiam como eu

16 De 2010 a 2014 fui professora alfabetizadora, ora com turmas de 2º ano, ora com turmas de 1º ano do Ensino

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conseguia. Será que aquelas também eram palavras que me contavam, tal qual Galeano (2012) descobriu como Marcela Pérez-Silva? Provavelmente. Mas, enquanto aquelas palavras iam me dizendo, a cada semestre eu escolhia apenas aquelas disciplinas que me despertavam interesse, não necessariamente as obrigatórias, e, assim, eu fui aos poucos alimentando minha paixão pela literatura e nadando contra a maré do pensamento e da palavra de muita gente.

Em 2012 participei de um curso de profissionalização em tecido acrobático em que aprendi novas técnicas, truques, aprendi a planejar aulas, mas, além disso tudo, me arrisquei mais, senti que eu estava na minha melhor forma, sabia que era a fase que mais me dedicava naquela modalidade. No meio do ano de 2013 comecei a dar aulas de tecido para crianças na escola de dança, mesmo com a rotina atribulada com as idas e vindas da USP, e a participar de um grupo, uma companhia, mais voltada para eventos com outras e outros praticantes de tecido acrobático.

Ainda envolta com a timidez característica, mas me sentindo mais fortalecida, sendo professora de crianças na fase de alfabetização, dando aulas de tecido acrobático, cursando uma segunda graduação e alimentando um blog pessoal com escritos literários, em 2014, acreditei que eu podia ser, também, autora de um livro. E, assim, para possibilitar que o meu olhar para as coisas do cotidiano e os sentidos que eu dava para as falas e gestos de minhas alunas e meus alunos tocasse outras pessoas, organizei um livro chamado “Pois algum lugar deve ser” com muitas narrativas curtas e literárias, compartilhadas no diário virtual, transcorridas dentro da sala de aula e também fora do espaço escolar.

A ideia de me deixar ler por quem quisesse me assustava, porque me tirava do controle de quem poderia ser minha interlocutora ou meu interlocutor, quais interpretações eu poderia ter pelos olhos de outras ou outros, mas também me colocava em uma situação de protagonista das minhas histórias, em que eu podia me posicionar, me contar sem que, necessariamente, precisasse me expor oralmente, que sempre foi a minha maior dificuldade.

Muito a dizer, pouco sabiam como. Escritas em três linhas de papel usado, não lhes importavam os riscos, as caraminholas e o desdém que sofriam: tinham certeza que podiam mais. Parecia-lhes que quando não nasciam prontinhas para desembocar em outras, nada que fosse quantidade servia. Desacostumadas, porém, a surgirem dando causa e efeitos, agora só sabiam se portar como amontoados. A sorte é que não se bastavam e continuavam tentando ser mais, mais que palavras.

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No final daquele ano prestei um concurso em outro município e fiquei em uma boa colocação. Eu precisava organizar meus horários na escola, na USP e com as aulas de tecido acrobático, pois sabia que seria chamada para assumir uma turma em breve. Então, tive que fazer algumas escolhas, já que eu queria “dobrar”, como comumente chamamos nas escolas, para guardar dinheiro e iniciar uma nova etapa junto com meu companheiro desde o início de 2014, Vinícius. “Dobrar” nada mais é do que a tarefa, vejo agora, insana, de ter duas turmas diferentes, uma em cada período. “Dobrar” exige, então, da professora algo como um botão de liga e desliga que precisa ser acionado a cada sala que ela entra para não confundir as alunas e os alunos, não trocar as expectativas ou as atividades, para não cansar de ser sempre duas – observando agora, de maneira distanciada, acho que eu não tinha este botão.

Com a chegada de 2015 decidi, assim, trancar a faculdade logo no início do ano. Tranquei querendo ficar, querendo concluir, eu sentia que precisava terminar o que havia começado. Foi depois de muito custo e de algumas horas na terapia que consegui dizer para mim mesma que tudo bem não dar prosseguimento ao que eu havia começado, que existem coisas que podem ficar inacabadas e que são assim mesmo. Naquele ano eu também me distanciei do tecido acrobático, passei minhas turmas para outra professora e saí da companhia. Eu achava que, naquele momento, precisava de algo diferente.

Pensando ainda no acúmulo de cargo, eu precisava de uma turma no período da manhã na escola em que eu já trabalhava, porque a probabilidade de terem turmas livres para a escolha no período da tarde no novo município era maior do que no período da manhã. Então, pelas manhãs permaneci na escola de sempre, porém com uma alteração muito significativa: eu era, pela primeira vez, professora de um 4º ano17. Aquilo me assustava um pouco, pois eu sempre pensei que não iria gostar da experiência de ser professora dos maiores. Achava-os enrijecidos pela escola, marcados tristemente pelos “nãos” que poderiam esconder suas vontades. Ledo engano. Nossa turma era ótima, aprendemos muitas coisas juntos, trocamos cartas, fizemos assembleias para discutirmos tudo o que acontecia, questionamos a escola e o mundo. Ali fomos felizes.

17 No município em que trabalho as turmas de 1º, 2º e parte do 3º ano estudam no período da tarde, enquanto que

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Imagem 4: Carta18 da Kristina, 2015. Fonte: acervo pessoal.

Então, em meados de 2015, já sem as aulas na USP e me encantando com as alunas e os alunos do 4º ano, fui chamada para assumir o cargo no outro município. Assim, posso dizer que foi um ano atípico por eu ser professora em dois períodos, por eu estar em outra escola sendo que sempre só havia trabalhado em uma, por eu ser professora de um 4º ano sendo que eu sempre estive nas salas de alfabetização, por eu não conseguir dizer... Faço agora um esforço de me contar com talvez mais detalhes do que eu gostaria, porém o tanto que for preciso, como eu já disse lá no começo desta narrativa, para que você entenda os caminhos que me trouxeram até aqui.

No período da tarde eu era professora de outra escola pública, mas em um outro município, de um 2º ano do Ensino Fundamental. Tinha novas colegas de trabalho, novas expectativas, outros materiais didáticos, novas alunas e novos alunos e uma certeza enorme de que ali naquela escola rural eu também seria feliz. Em meu primeiro dia de aula acompanhei a professora que já estava com eles, pois assumi aquela turma em junho, e, no papel de quase

18 Transcrição da carta de Kristina com as peculiaridade de sua escrita preservadas: “Querida Patrícia, eu estou

muito feliz olha eu não sei se levo muita bronca mas oque eu sei é que você é uma boa professora. E eu sou uma boa aluna? Eu me comporto? Bom eu não acho que o sorvete de menta tem gosto de pasta. Os meus irmãos tem uma beliche. E o seu quarto? Você tem um quarto próprio? Eu achei a Olimpíada legal gostei mais de golfe. Eu não estou mais na dança. Bom espero sua carta Um beijo”.

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estagiária, observei a movimentação da classe, a postura da professora, as atividades que faziam. Achei logo de cara que iríamos nos dar bem já no dia seguinte com as mil coisas que eu tinha na cabeça, os jogos que eu traria, os projetos que iria propor, mas me enganei. E agora começa a parte mais difícil de todo este memorial. A parte que eu, professora com alguns anos de docência, com cinco turmas de alfabetização nas costas, com uma quantidade significativa de saberes docentes na mão, com minha lista de livros muito bacana, com princípios, brinquedos e jogos diferentes, não consegui agir ali.

Meu primeiro dia como professora daquela turma foi bem parecido com o meu primeiro dia de professora da vida. As coisas voavam, as crianças corriam pela sala e se xingavam, um menino correu classe afora e se escondeu de mim pela escola. E eu, como há cinco anos atrás, eu só queria dizer ao mundo que ele cuidasse daquilo sozinho. Foram seis meses de muita luta. Luta no sentido de que eu não queria estar ali e meu não querer me fazia também não conseguir contornar nenhuma situação. Os projetos que eu pensei para aquela turma foram resumidos aos livros didáticos que não tinham obrigatoriamente de ser cumpridos, meus jogos ficaram esquecidos no armário, todos os dias alguém se agredia verbalmente ou mesmo fisicamente, às vezes o menino ainda fugia.

Tentamos fazer o livro da vida, textos coletivos, observar pequenas coisas da natureza, organizar uma gincana, formar duplas, trios, não formar nada, brincar de amarelinha, dançar conforme a música, tentamos não nos agredir verbalmente. Tentamos muito e não conseguimos. Ao inventariar19 meus guardados percebo que com nada fiquei desta turma. Não tenho fotos, registro das aulas, não guardei nossas tentativas, não lembro muito de nossas histórias, não escrevi narrativas ou mesmo textos inacabados, não guardei saudades.

Como se ainda o estresse fosse pouco, no final de novembro juntei minhas muitas coisas com as coisas do meu companheiro e nos casamos em uma manhã de domingo de chuva e às voltas de muita gente querida. Até hoje fico pensando como é que dei conta de “dobrar” pela primeira vez, organizar um casamento e a reforma de um apartamento em um único ano. Acho que quando imersa no turbilhão, não sobra muito tempo para pensar.

Só sei que em dezembro, exausta, agradeci o fim, o ir embora daquela escola, depois de mais uma tarde, mas, dessa vez, para não voltar no dia seguinte. Minhas angústias, todas as tentativas frustradas daquela experiência foram silenciadas por mim. Na época eu sabia que aquele tão querido grupo de professoras e professores que me ajudou no início da docência poderia muito ter feito: ao me auxiliarem, ajudariam também os alunos e as alunas. Mas minha

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