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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUCSP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA ANDREA DE DAVIDE RATTO MORELLI

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ANDREA DE DAVIDE RATTO MORELLI

Barreiras, refúgios, claustros: vias cruzadas numa travessia.

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

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ANDREA DE DAVIDE RATTO MORELLI

Barreiras, refúgios, claustros: vias cruzadas numa travessia.

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica, pelo Núcleo de Método Psicanalítico e Formações da Cultura, sob a orientação do Prof. Dr. Luis Cláudio M. Figueiredo.

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Banca Examinadora

_________________________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Luis Claudio M. Figueiredo

_________________________________________________________________

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Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial deste trabalho, por processos fotocopiadores ou eletrônicos.

São Paulo, 4 de fevereiro de 2013

________________________________________________

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Para Isabella, Marcello

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Ao meu orientador Professor Dr. Luis Cláudio Mendonça Figueiredo, pelas indicações de leitura, pela oportunidade de conviver com sua capacidade intelectual e por ter clareado minha percepção várias vezes.

E juntamente com ele, agradeço a meus demais professores e colegas as incontáveis oportunidades de aprender, e a convivência que me trouxe não apenas conhecimento, mas aperfeiçoamento como ser humano.

A professora Dra. Elisa Maria de Ulhoa Cintra, cujo carinho, continência e inteligência foram para mim um estímulo e um apoio consistentes.

A Professora Dra. Marina R. Ribeiro pela atenção, refinamento e ponderações enriquecedoras para com meu trabalho.

A minha analista Dra. Maria da Penha Amâncio de Camargo Barros Munhoz por suas contribuições e cuidados para com minha saúde.

Aos meus supervisores os Drs. Mario Pacheco de Almeida Prado (In Memoriam), Heitor Fernando Bandeira de Paola e Neilton Dias da Silva pelas contribuições, á minha formação como psicanalista.

A meus pais, Regina Maria de Dávide Ratto, e José Affonso Pinheiro Ratto

(ambos In memoriam) por me darem a vida e terem contribuído de corpo e alma para

aquilo que sou.

A meu esposo Ricardo, e meus filhos Isabella e Marcello que muito me compreenderam e apoiaram e são grande parte do sentido desta travessia.

A meu sogro, Sr. Plácido Morelli cuja presença junto a meus filhos muitas vezes permitiu que eu me ausentasse sem tanta angústia.

A minhas auxiliares: Núbia Cristina, Sulimar e Maria que tanto me ajudaram na administração do dia a dia em casa e no consultório.

A meus pacientes em cuja companhia permaneço aprendendo e que me auxiliam imensamente na difícil tarefa de ser tolerante e lutar para ir além.

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“Quem possua a noção sem a experiência e conheça o universal, ignorando o particular nele contido, enganar-se-á muitas vezes no tratamento, porque o objeto da cura é, de preferência, o singular”.

Aristóteles.

MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.

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em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RESUMO

Este estudo tem por objetivo recolher informações sobre alguns tipos de organizações patológicas da personalidade, utilizando conhecimentos psicanalíticos. Vários autores embasam-no partindo de Sigmund Freud, Melanie Klein, Joan Riviere, Wilfred Bion, Herbert Rosenfeld, Hanna Segal e chegando a John Steiner, Donald Meltzer, Frances Tustin, Judith Mitrani e James Grotstein, cujos trabalhos nessas áreas são discutidos mais profundamente. Esforços são realizados para compreender e identificar pontos de convergência, divergência e/ou intersecção entre conceitos como claustros, refúgios psíquicos, cápsulas autistas e pseudorrelações objetais adesivas. Discussões da importância da continência e da elaboração das posições esquizoparanoides e depressivas perpassam todo o trabalho e são fundamentais para a abordagem do material clínico apresentado. A continência psíquica do analista é questionada em face de dificuldades como a sedução dos claustros e a atratibilidade de pseudorrelações objetais adesivas, o embaraço diante da ternura e lutas por dominar ou excluir o analista. Diante da dificuldade de manejo com sistemas defensivos complexos, como os das organizações patológicas, a confiança na existência da necessidade inconsciente da verdade psíquica permanece estimulante e acalentadora tanto para continuar a trajetória do exercício psicanalítico, quanto para alcançar as necessidades dos pacientes.

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ABSTRACT

This study aims to gather information on some types of pathological organizations of the personality, using psychoanalytic knowledge. Several authors underlie it, starting with Sigmund Freud, Melanie Klein, Joan Riviere, Wilfred Bion, Herbert Rosenfeld, Hanna Segal and getting to John Steiner, Donald Meltzer, Frances Tustin, Judith Mitrani and James Grotstein, whose works in these areas are discussed more deeply. Efforts are made to understand and identify points of convergence, divergence and/or intersection among concepts like claustrum, psychic retreats, autistic capsules and adhesive pseudo-object relations. Discussion of the importance of continence and the development of schizo paranoid and depressive positions, permeate all the work and are fundamental to the approach of the clinical material presented. Analyst's psychic continence is questioned in face of difficulties as the claustrum seduction, attraction of adhesive pseudo-object relations, embarrassment of tenderness and struggles for dominate or exclusion of the analyst. Facing the difficulties of handling complex defensive systems, such as pathological organizations, confidence in the existence of unconscious need of psychic truth remains encouraging and cherishing, both to continue the trajectory of psychoanalytic exercise, and to achieve the needs of patients.

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1 APRESENTAÇÃO ... 10

2 INTRODUÇÃO ... 12

3 EXPERIÊNCIAS CLÍNICAS: ONDAS NUNCA VOLTAM? APROXIMAÇÃO PARA ACOLHER AS FORMAS SONORAS E AS FORMAS AFETIVAS ... 21

4 COMPREENDENDO AS ORGANIZAÇÕES PATOLÓGICAS DA PERSONALIDADE ... 28

4.1 Pseudorrelações-objetais adesivas, cápsulas autistas e a não instauração do ritmo de segurança ... 28

4.2 Narcisismo destrutivo e organizações mafia-like; as gangues que oferecem proteçãoe mantém o ego refém ... 38

4.3 Refúgios psíquicos: objetos pseudoprotetores, falsa continência, relações perversas ... 52

4.4 Claustros: territórios interiores para onde a identidade pode ser seqüestrada ... 62

4.4.1 Comparando claustros e refúgios ... 68

5 RETOMANDO A CLÍNICA: ONDAS SE DESDOBRAM ... 73

5.1 A partir do balanço do ritmo de segurança: entre o acolher e o aderir ... 73

5.2 Agitações: dificuldades para uma continência verdadeira entre ilhas de organização patológica e ondulações autísticas ... 77

5.3 Seduções: pseudorrelações objetais adesivas, falsa continência de refúgios e claustros ... 88

5.4 Recolhendo do mar da clínica: embaraço diante da ternura, desejo de excluir o analista, conflitos edípicos precoces e tentativa de visão binocular ... 96

6 CAMINHOS CRUZADOS EM TERRAS E MARES: CONTINÊNCIA, ENTRELAÇAMENTO DE DEFESAS, PERVERSÕES E A NECESSIDADE DA VERDADE ... 107

REFERÊNCIAS ... 119

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1 APRESENTAÇÃO

Desde a infancia, duas questões humanas intrigavam-me. Uma delas, era a existência de dores físicas, para as quais existiam recursos, ainda que fossem limitados e às vezes parecessem não funcionar. A segunda era a existência de outras dores, inscritas naquilo que na época eu chamaria de alma, imperceptíveis a olho nu ou na aparência física. Essas dores pareciam-me misteriosas, complicadas e surpreendentes em suas formas e em seus efeitos. Para elas os remédios comuns eram inúteis. A observação de que essas dores interferiam ou mesclavam-se umas às outras também me instigava.

Minha mãe foi quem primeiro mencionou a possibilidade de algumas dessas dores virem de uma parte da mente chamada inconsciente. A partir daquela época, no início dos anos setenta, a ideia do inconsciente e seu “descobridor”, Freud, passaram a me acompanhar. Ainda hoje fazem com que eu possa aceitar, compreender (um pouco), e ter humildade diante da tarefa humana e inalienável de lidar com dores físicas e psíquicas.

Vindo de uma formação psiquiátrica e psicanalítica e exercendo as duas atividades, percebo que atualmente o panorama da saúde mental, não é luminoso. Faltam recursos em diversos níveis, desde geográficos até humanos. A falta de compreensão e de acolhida para a complexidade das questões mentais parece-me um dos problemas mais sérios, e é com a intenção de buscar mais recursos para essa acolhida (e compromisso) que se efetua esta pesquisa.

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2 INTRODUÇÃO

O trabalho se inicia com uma aproximação de material clínico, cujos desdobramentos virão depois de contribuições teóricas, as quais apresentam conteúdos que pretendemos entrelaçar, e que supomos apresentar razoável complementaridade. São provenientes de autores dos quais falamos brevemente nesse momento, e cujos trabalhos clínico e teórico falam por si.

Embora esta pesquisa focalize material clínico, seu objetivo é utilizá-lo para o estudo de algumas questões teóricas. Em respeito ao sigilo, vários dados são omitidos e modificados. O material entra como apoio e como articulador para o estudo e para a investigação de algumas ideias psicanalíticas.

Não se pretende esgotar os temas, o que seria impossível em se tratando de Psicanálise. Foi feita uma seleção de autores e, como algumas obras usadas não dispõem de tradução, optou-se, depois de pesquisar a ABNT, por usar a tradução livre e a citação textual original logo abaixo, permitindo, assim, um rápido cotejar entre ambas.

Embora tendo o trabalho de Steiner como disparador e parte do âmago desta pesquisa, houve desdobramentos a outros campos. Este trabalho constitui-se numa proposta de diálogo entre ideias e conceitos, alguns dos quais são mais detalhadamente estudados. Apresentamos resumidamente alguns dados bibliográficos de autores mais utilizados.

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Herbert Rosenfeld nasceu na Alemanha, em 1910, emigrou para a Inglaterra fugindo da perseguição nazista em 1935 e, depois de tornar-se analista, desenvolveu um brilhante trabalho com pacientes psicóticos e/ou borderlines, principalmente no campo da patologia narcísica. Foi membro da Sociedade Britânica de Psicanálise. Faleceu em 1986.

Donald Meltzer foi um singular pensador da Psicanálise. Foi membro da International Psychoanalytical Association, mas retirou-se dela por discordar das regras de formação de analistas. Já exercia e continuou exercendo alentadas atividades clínicas e didáticas de forma independente e em conjunto com vários colegas. Estudou profundamente as obras de Freud, Klein e Bion e publicou estudos e discussões sobre elas, além de desenvolver várias linhas de trabalhos ricos e inquietantes. Nasceu em 1922 e faleceu em 2004.

Frances Tustin nasceu na Inglaterra, mas trabalhou muito tempo nos Estados Unidos da América, realizando um corajoso e impressionante trabalho com crianças, adultos e jovens que se enquadram no espectro autista. Faleceu em 2004, e tem como seguidora Judith Mitrani, que vive e trabalha nos EUA e teve uma convivência profissional e pessoal com Frances Tustin. Mitrani (2007) fez acréscimos e explicitações importantes a várias questões levantadas por Tustin. Atualmente continua desenvolvendo linhas de pesquisa iniciadas pela mentora, mas possui um trabalho com brilho, consistência e alma próprias. É analista didata e supervisora no Centro Psicanalítico da Califórnia e na Sociedade para Estudos Psicanalíticos de Los Angeles.

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Melanie Klein (1982), ao estudar a identificação projetiva, abriu um campo prolífico para a compreensão de dificuldades psíquicas que eram de natureza diferente da repressão. A identificação projetiva permitia compreender fenômenos mentais com tremendos efeitos sobre a vida emocional e sobre a conduta de um indivíduo. As fantasias veiculadas dessa forma podem atribuir algo a um objeto ou adquirir algo dele, e envolvem não apenas livrar-se de aspectos mentais indesejados, mas também entrar (em fantasia) na mente de outros para obter aspectos de seu psiquismo. A partir de um sólido trabalho, e do desenvolvimento destas ideias, chegou a outros conceitos, dentre os quais o das posições esquizoparanoide e depressiva.

Joan Riviere (SPILLIUS; MILTON; GARVEY; COUVE; STEINER, 2011, p. 198) descreveu sistemas de defesas para evitar o contato com angústias depressivas. Rosenfeld (1988, p. 198) por sua vez, descreveu uma organização de defesas a que chamou mafia-like, ou gangue, que podia dominar o psiquismo e, mesmo que o paciente quisesse mudar e superar seus problemas tornava a tarefa dificílima.

John Steiner, partindo principalmente das contribuições dos autores anteriores, realizou com critério um minucioso trabalho apoiado em atividades clínicas, descrevendo que as organizações patológicas permitem criar um tipo de “clima” psíquico, semelhante a uma posição, que ele nomeou como refúgio psíquico (1981, 1991, 1993, 1994, 2011). Steiner fundamenta-se nas descrições de Klein das posições esquizoparanoide e depressiva, para desenvolver o conceito. A organização faz com que mesmo partes saudáveis do Self se submetam a ela.

Outro vértice que contribui para a discussão presente é o apontado por Tustin. A seu ver algumas crianças analisadas por Klein como sendo esquizofrênicas tinham um funcionamento defensivo muito diferente, mas também fortemente impeditivo de seu desenvolvimento, e bastante enraizado. Esse lhe pareceu ser consequente a mecanismos que não são organizados pelo ego na acepção a que estamos acostumados a pensar sobre ele.

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considerar a necessidade daquilo que Bion trouxe como capacidade negativa1, que supõe o abster-se de qualquer saturação de conhecimento e alívio rápido para qualquer questão (BLÉANDONU, 1993).

Em 1981, Steiner introduz o termo organizações patológicas, no trabalho “Perverse relationships between parts of the self”2, (Relações perversas entre partes

do self). A partir daí, desenvolve uma linha de pesquisas que o conduz a postular uma situação em que angústias das posições esquizoparanoide e depressiva são evitadas, e em que se estabelece algo como um equilíbrio entre elas. O autor demonstra que mesmo quando um tratamento parece caminhar razoavelmente bem, se esta situação se fizer presente, isso indicará um sistema defensivo muito complexo, que pode comprometer profundamente o desenvolvimento do trabalho. Defesas são ferramentas necessárias, mas:

Defesas são paradoxais por serem um aspecto essencial da atividade psicológica do ser humano, e poderem promover o desenvolvimento ou impedi-lo. Defesas podem começar como uma proteção para o ego, mas se não for possível renunciar a elas, poderão interferir num desenvolvimento saudável. Por exemplo, na teoria Kleiniana da posição esquizoparanoide, a aquisição da possibilidade de divisão binária do self e do objeto, em bom e mau protege o ego frágil e imaturo e é um pré-requisito para que ele se organize e desenvolva-se de forma saudável.

Entretanto, se tal divisão for rigidamente mantida e houver nisto uma defesa contra o conhecimento da realidade, a divisão será destrutiva para o desenvolvimento3(Tradução livre).

Defences are paradoxical in that they are an essential aspect of human psychological activity; they can foster development or they can hinder it. Defences may start off by providing protection for the ego, but if never given up they can interfere with healthy development. For example, in Klein´s theory of the paranoid-schizoid position‘ paranoid-schizoid’ position, the achievement of binary splitting of the self and object into “good” and “bad” protects the fragile immature ego and is a prerequisite for ego organization and healthy development. However, if splitting is rigidly retained and knowledge of reality defended against, splitting is destructive of development. (SPILLIUS; MILTON; GARVEY; COUVE; STEINER, 2011, p. 305).

1Bion tomou de John Keats a acepção do termo. Numa carta a seus irmãos, Keats diz que “At

once it struck me, what quality went to form a Man of Achievement, especially in literature, and which Shakespeare possessed so enormously- I mean Negative Capability, that is when man is capable of being in uncertainties. Mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact or reason.” Certa vez isto me chamou atenção, qual qualidade servia para formar um homem de alcance, especialmente na literatura, e que Shakespeare possuía tão enormemente: a capacidade negativa que é quando o homem é capaz de existir em incertezas, mistérios e dúvidas sem qualquer irritada busca por fato ou razão.

2Este trabalho encontra-se revisado e algo modificado e publicado sob a denominação: Relações

perversas nas organizações patológicas. In: ______. Refúgios psíquicos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997. Cap. 9, p. 123, e nos originais de Psychic retreats, de 1991.

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Podemos observar que defesas são úteis, fazem parte naturalmente do desenvolvimento humano, mas podem contribuir para a patologia se usadas de forma rígida, repetitiva e se delas não se puder abrir mão diante da necessidade de mudanças e de novas adaptações em favor do desenvolvimento. É nesta acepção que Steiner descreve os refúgios psíquicos, estados em que um paciente está imerso, em maior ou em menor grau, sustentado por sistemas defensivos complexos, arraigados, que não permitem crescimento mental. Em alguns casos, ele observou que o paciente procurava a análise para revitalizar o sistema defensivo, ou para, através do tratamento, ganhar condições para organizar outro, sem que o analista percebesse, ou mesmo assim.

Steiner destacou que os refúgios poderiam ser representados de várias maneiras, e que uma figurabilidade era um aspecto importante deles. Ele diz:

A visão que o paciente tem do refúgio reflete-se nas descrições que fornece, e também nas fantasias inconscientes reveladas em sonhos, recordações e relatos da vida diária, que proporcionam uma imagem pictórica ou dramatizada de como o refúgio é experimentado inconscientemente. Tipicamente, ele aparece como uma casa, caverna, fortaleza, ilha deserta ou local semelhante, vistos como área de relativa segurança. Alternativamente, ele pode tomar uma forma interpessoal, em geral como uma organização de objetos ou objetos parciais que se propõe a oferecer segurança. Ele pode ser representado como um estabelecimento comercial, um internato, uma seita religiosa, um governo totalitário ou uma gangue de mafiosos. Frequentemente ficam evidentes elementos tirânicos e perversos, na descrição, mas algumas vezes a organização é idealizada e admirada. (STEINER, 1997, p. 18).

Steiner ressalta que a organização tem maneiras típicas de se mostrar, através de representações que aparecem em sonhos, ou em relatos durante a análise, como casas, fortalezas e também nas relações interpessoais. Se a organização é parte importante do mundo interno do paciente, ela encontrará formas de ser representada, mesmo que sua natureza real se mantenha oculta.

Nos refúgios não existe a capacidade negativa. Suportar mistérios e/ou dúvidas é parte da elaboração das posições esquizoparanóide e depressiva, e só se pode evoluir nessas posições a contento, se não se buscarem saídas de puro (e rápido) alívio e for possível vivenciar o processo.

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por Rosenfeld, nos deteremos em seus trabalhos. Mas várias contribuições, por exemplo, as de Meltzer, Tustin e Mitrani também respaldam a tarefa.

Em contraposição às organizações patológicas, e como mais um recurso para evidenciá-las, recorremos às palavras de Winnicott para descrever uma pessoa saudável:

Se partirmos do princípio de que se alcançou um grau razoável em termos de capacidade instintiva, veremos então novas tarefas para a pessoa relativamente saudável. Existe, por exemplo, a relação que ele ou ela mantém com a sociedade - uma extensão da família -. Digamos que um homem ou uma mulher saudáveis sejam capazes de alcançar uma certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou pessoais. É claro que deve existir alguma

perda, no sentido de controlar o impulso, mas uma identificação extremada com a sociedade acompanhada de perda do self, e da importância do self, não é normal de modo algum.

Se fica claro que não nos satisfazemos coma ideia de saúde como uma simples ausência de doença psiconeurótica – ou seja, de distúrbios relativos à progressão das posições do id em direção à genitalidade plena e à organização de defesas relativas à ansiedade e relações interpessoais, - podemos dizer que, em tal contexto a saúde não é fácil. (WINNICOTT, 1999, p. 10).

De forma cristalina, apreende-se que não se é sadio só por ter algum grau de desenvolvimento e que nem toda organização defensiva é saudável, por exemplo, uma identificação defensiva intensa com o grupo social pode significar uma perda insalubre da individualidade. Vê-se que a vida de relação traz a necessidade de acolher a diversidade do mundo e dos seres humanos, a tolerância ao diferente e ao frustrante. Requer também a aceitação de mudanças e a capacidade para adaptar-se e transformar-se, além do estabelecimento de relações reais consigo mesmo e com os outros. Winnicott expõe o quanto de esforço individual é exigido para uma pessoa ser e manter-se saudável, pois ela terá que vivenciar o ônus e o bônus de ser o que é.

Talvez em pequenos momentos seja possível emergir das profundezas do oceano interior e fazer algum contato; lembremos Joseph que denominou estes momentos de shifts4, em que mudanças de atitudes mentais muito sutis ocorrem. Esse contato, ainda que efêmero, poderá servir de continente e base para outros

4JOSEPH, B. Equilíbrio psíquico e mudança psíquica. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992. O termo é

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contatos, que, a partir dali, possam surgir, numa sequência que, mesmo tímida, poderá ser essencial.

Alguns tratamentos podem criar, sem intenção, uma moldura propícia para que refúgios ou outras organizações defensivas patológicas se mantenham. O paciente pode ser visto de forma empobrecida, apenas como vítima, e não ser percebido ou considerado como um agente terapêutico ou antiterapêutico da maior importância para si mesmo, e, ainda, poderá estar no que Steiner (1994, 1997, 2011) mostra - como um conluio não inocente com a organização patológica dentro de sua personalidade:

Vejamos o que Steiner diz da forma pela qual a organização se apresenta: A organização pode apresentar-se como um objeto bom que protege o indivíduo de ataques destrutivos, mas na verdade, sua estrutura é composta de elementos bons e maus, que se originaram tanto do self quanto dos objetos para dentro dos quais foram projetados. Esses elementos são usados como material para a construção da organização extremamente complexa resultante. Em minha opinião o self dependente, que é dominado pela organização, pode ser complexo também, e não uma vítima tão inocente como pareceria em princípio. (STEINER, 1997, p. 23). Grifos nossos.

A organização mistura aspectos bons e maus tanto do self quanto de objetos, mimetizando um objeto confiável, mas essa mistura cumpre a função de disfarçar a destrutividade. A extrema complexidade da estrutura resultante fica óbvia. Significativa é também a colocação de que o self dependente, que é dominado pela organização, é igualmente complexo e não a vítima inocente que a princípio parece ser.

Tentamos ter em mente a importância da capacidade negativa, e não saturar com respostas precoces a presente pesquisa. O material teórico trouxe enriquecimento e desdobramentos férteis, e ao invés de saturação, muitos desafios para os quais ainda se requer mais estudo.

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Examinamos as organizações patológicas descritas por Rosenfeld, com a idealização de aspectos destrutivos do narcisismo e, a seguir, a estrutura organizada que ele denominou gangue.

Para apoiar o estudo do narcisismo, valemo-nos das compreensões de Joan Riviere, pois suas postulações permanecem fundamentais até hoje, como também seus aportes ao estudo de sistemas defensivos complexos.

Faz-se breve explicitação dos conceitos kleinianos das posições esquizoparanoide e depressiva. Outros conceitos básicos são comentados ao longo do texto, como o splitting e a fragmentação, bem como sobre as áreas neuróticas e psicóticas da personalidade. Um referencial bioniano e certos conceitos pertinentes também são utilizados, uma vez que fundamentam muitos dos trabalhos dos autores aqui apresentados.

O texto obedece a uma organização em capítulos, que descrevemos brevemente nesse momento para auxiliar seu acompanhamento e destacar alguns pontos fundamentais.

O capítulo 3 “Um olhar para a clínica: Ondas nunca voltam?” descreve o início do tratamento de um paciente, cuja voz era dificílima de ser ouvida, e perdia-se como ondas. A música Ripples é usada como ponto de partida e permite fazer associações com fenômenos psíquicos que levam ao estudo de conceitos descritos nos capítulos seguintes.

O capítulo 4 possui quatro subdivisões. O item 4.1 traz conceitos de Tustin e Mitrani e define o que seriam objetos autísticos e pseudorrelações de objeto. Expõe também o tipo de retraimento autístico, e como este pode ficar encoberto e ser mantido, mesmo que outras áreas da personalidade se desenvolvam.

O item 4.2 enfoca o narcisismo em sua vertente destrutiva, da forma como foi descrita por Rosenfeld, e que lhe deu ensejo a investir no estudo de sistemas defensivos complexos, que podiam tornar o paciente viciado e aprisionado neles, em troca de contar com sua proteção. Daí chamar tais sistemas de máfia ou gangue.

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elas. Este seria o refúgio, em que apesar da aparência de estabilidade, há vários problemas, além do fato de não ser possível nenhum crescimento. A questão de ocorrer um acordo perverso entre partes da personalidade para manter o status quo, também é discutida, bem como a questão da continência verdadeira em contraposição à falsa.

O item 4.4 esclarece o que seriam claustros, conceito proposto por Meltzer para designar uma projeção para dentro de objetos parciais do mundo interno, num momento de formação de identidade, o que faz com que esta fique comprometida com tais objetos, trazendo várias implicações patológicas.

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3 EXPERIÊNCIAS CLÍNICAS: ONDAS NUNCA VOLTAM?

APROXIMAÇÃO PARA ACOLHER AS FORMAS SONORAS E

AS FORMAS AFETIVAS

Sail away, away

Ripples never come back Gone to the other side Sail away, away

The face that launched a thousand ships Is sinking fast, that happens you know The water gets below

Seems not very long ago Navegue, navegue, veleje Ondulações nunca retornam

vão para outro lado/navegue, navegue... A face que lançou centenas de navios

está afundando rapidamente, isto acontece, você sabe/ As águas ficam mais fundas

parece nem ter sido há muito tempo atrás...

Estes versos foram extraídos de uma canção de um grupo de rock, chamado Genesis5. A música “Ripples” é de autoria de Tony Banks e Mike Rutherford, do álbum A Trick of the Tail, e o principal vocalista da banda, na época (anos 70), era Phil Collins. Os comentários sobre a música não dizem respeito a seu valor artístico, mas ao fato de que sua melodia e letra contribuem para pensar o material clínico. A letra expõe e permite associações do tipo: navegar, estar perdido e perdendo coisas que, de tão sutis, podem beirar o inapreensível. Embora de estilo simples, sem sofisticação, a letra aborda uma questão importante: é possível “lançar muitos barcos”, fazer enormes esforços e afundar. A canção afirma, falando diretamente ao interlocutor, que isso é algo que já se sabe: as dificuldades, as coisas que não voltam, as águas que ficam mais fundas. Alude ao fato de que a experiência da perda está sempre por perto. Faz-nos pensar que navegar, embora seja coisa conhecida, é também uma experiência sujeita a transformações e complexidades insuspeitadas. Lembrei-me dessa música apenas mais recentemente, em 2011, mas sua presença, aliada aos versos de Fernando Pessoa em Mar Português, serviu de continente para eu que pudesse continuar escrevendo sobre o caso do qual quase havia desistido.

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A melodia tem um que de tristeza, é envolvente e suave, com tons que ondulam e parecem convidar a uma entrega. Se essa entrega for feita, seguindo-se também a letra, um mergulho em algo fluído ocorrerá seguindo-sem data para retorno. Há um ir para outro lado, deixar-se, entrar numa frequência abrangente, que preenche o espaço e, sem que percebamos como, isso tudo o transforma. Os líquidos têm a propriedade de mudar o modo como um espaço está (de seco para molhado), ao mesmo tempo em que podem se acomodar a ele, ou dele escapar. Um líquido pode ligar (provocando uma reação química) ou aderir a algo, pode tornar-se sólido, escorrer, esvair-se, gaseificar-se. Remete-nos a coisas das quais conhecemos uma forma, mas não a que forma chegarão. As coisas que podem ser vistas e sentidas em suas ondulações ou seus tsunamis.

A letra convida a “ir para longe”, no balanço de ondulações que nunca voltam, criando uma imagem de algo pequeno e constante, que leva a algo maior e incerto. Sugere simultaneamente um balanço acolhedor lembrando a continência materna e o perigo de naufrágio. A mensagem revela a duplicidade de um objeto que acolhe, mas pode levar à destruição. Também parece mostrar que não podemos só ser contidos, ainda que o mar seja uma boa metáfora para um continente “infinito”, mas que temos de ter uma capacidade própria para conter, ou afundaremos.

Em Mar Português, Pessoa traz as lágrimas como um ingrediente de peso para a salinidade do mar, como se um elemento tão pequeno e delicado estivesse ao lado e fosse parte fundamental de algo grande e rude, como o oceano. Sugere à nossa imaginação que a enormidade das perdas e das tristezas são mares profundos. Convida-nos a pensar nas dores oceânicas que atravessamos e na necessidade de alargar a “alma” o que remete à continência e a ter contato com a capacidade negativa. Essa implica em enfrentar perdas, dispersões, incertezas. Experiências que, no entanto, valem a pena, se a alma não é pequena, noutra alusão a algo que a meu ver, trata-se da novamente da capacidade de continência.

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chegar ao lugar onde poderia encontrá-la. Os “navios naufragam”; pode-se sentir, e era preciso preparar-se.

Da crista de uma onda de vozeirão, podíamos ser arremessados, pois a voz se transformava, e era impossível ouvir a conclusão de uma frase que completaria seu sentido. As ondulações-palavras iam literalmente embora, mas poderiam ir para um encontro, uma perda ou uma retomada, num vaivém. As palavras e qualquer sentido que elas pudessem ter podiam ir e iam a outro lado, talvez intangíveis. Um constante conviver com o inatingível, com o que parece que será encontrado, mas é perdido.

Havia também a sensação de que aquelas conversas me lançavam em busca de algo - justamente o que era inaudível e poderia ser importante. Por isso, Mariano pareceu-me um bom nome, pela lembrança de mar, marear, mareando, maresia, efeitos físico-químicos e emocionais do contato com o mar, com a água, com as formas ondulantes.

Mariano se esforçava para soltar sua voz. Em meio ao discurso, fazia exercícios fonoaudiológicos para limpar a garganta. O ritmo era mais ou menos assim: a voz tentava ser forte, parecia lutar para sair, parecia cansar-se, enrouquecer, depois voltar a ter alguma força, então sumir, ou quase; mudar o timbre, e outra vez recomeçar. Sempre era necessária outra tentativa de ouvir e entender, perder e encontrar, encontrar e perder. Com todas estas dificuldades, eu conseguia ouvir muito, e também perder muito, e a impressão que eu tinha era de inundação, trabalho pesado, delicado, como a laboriosa restauração de algo antigo (recolher restos de naufrágio?).

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fonoaudiológicos, as alterações na voz persistiam. O paciente se envergonhava, sofria muito, sentia-se inseguro e cansado diante daquilo tudo. Nunca fora gago, nem tivera qualquer problema semelhante na infância.

Ouvir esse paciente era um exercício de persistência e calma diante das alterações e dos tropeços apresentados por seus discursos. Os fragmentos de fala que se quedavam inaudíveis ou incompreensíveis preocupavam-me. Assustava-me a possibilidade de que os fragmentos perdidos ou fora do lugar pudessem fazer falta inestimável ou iniciar um desabamento em alguma parte de minha mente ou na dele se não conseguíssemos segurá-los. Como às vezes não ouvia o fim de frases, lembrava-me das estórias das mil e uma noites, que não podem acabar, pois seu fim traria a morte.

Devido ao clima comecei a pensar na defesa autista, na impossibilidade de tolerar qualquer descontinuidade, qualquer finalização ou acabamento e também algum sentido, pois, se pudéssemos juntar os sons e completar as frases, seria um momento de terminar, definir, identificar e separar. Esse fato foi abordado em nossos encontros depois de muita reflexão dentro de mim. Numa ocasião, o paciente disse gostar de perceber que eu prestava muita atenção no que ele dizia e que eu devia fazer aquilo porque ele precisava muito. No entanto eu temia que não conseguisse ir além do que parecia um exercício auditivo, de acolhimento do caos. Temia que a confusão me colocasse muito distante do que realmente precisava ser ouvido, além do concreto da balburdia sonora. Mas creio que Mariano precisava colocar essa situação entre nós, para que fosse digerida. Temia que ficássemos envolvidos na aderência aos sons, à busca, naquela espécie de estar ao lado, mas sem sentido ou diferenciação.

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comunicação entre duas mentes. Ou se aquele ritmo era a forma de estar com ele, de juntar duas mentes (at-one-ment?). Pensava em Meltzer (1997)6, ao dizer que, no primeiro ano de análise, os progressos que ocorrem são muito menos por insight e bem mais por sintonia na contratransferência.

A experiência de tentar colar em algo que escorre parecera-me uma proposta para entender o medo de se perder completamente, de sumir, de tolerar o desafio e a experiência de perda que eu devia suportar para que ele, mais tarde, pudesse fazê-lo. Aos poucos, fui pensando e falando com Mariano, que era importante tentar encontrar suas falas e suas ideias, mesmo que demorássemos um pouco, afinal talvez ficar um tempo juntos ajudasse a perceber que tínhamos fôlego e que estávamos vivos. As palavras podiam sumir, mas elas voltariam, pois, afinal, o que está vivo aparece. Manter os ouvidos e a mente vivos poderia ser parte fundamental da trilha.

Comentava com ele sobre a situação da criança com o carretel, que some e volta, à espera da mãe, enquanto aprende a pensar em sua ausência e ter esperança de seu retorno. Todas essas experiências afetivas decorrentes da situação sensorial concreta que ali se colocava foram aos poucos sendo trazidas e verbalizadas em nossos encontros. Sentir-me procurando por ele como uma etapa inicial do contato construído entre nós pareceu-me, a princípio, trazer a certeza de que eu o julgava vivo e importante e de que suas coisas vivas, mesmo que embrionárias, seriam levadas em consideração por nós, ou ao menos por mim.

Numa das vezes em que coloquei isso a ele, vi-o chorar e relembrar o acidente do qual viera a “sequela”.

Outro aspecto importante das sessões era o clima grave, pesado, até sombrio, com a tensão e o embaraço que, às vezes, precedia o pronunciar de cada palavra e me deixava em suspenso, preocupada, com um misto de vontade de acolher, entender, medo de ser incapaz e ofender Mariano por não ter sido capaz. Receio de evidenciar a dificuldade dele, com a minha. Quando tentei

6MELTZER, D. A evolução das relações objetais. In: TIRELLI, Luisa; SCAPPATICCI, Anne Lise S.

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escrever este caso, vi-me com enorme dificuldade de achar as palavras certas e se as encontrava parecia que a forma como as encadeava resultava em um texto confuso, com uma estranha cadência, e gerava caos. Outro “efeito” do contato com as “ondulações” do caso? A dificuldade de ter que gerar algo mental, tirar as palavras da simples forma sonora para que tivessem também uma alma?

Aos poucos ia juntando as partes: tinha que ouvir em ondulações, ouvir as ondulações, aceitar que não voltariam e que iria perdê-las. Que ali estava/havia algo sendo mostrado por estar perdido. A presença da ausência de alcance para o status mental, algo que parece ter a tendência para ficar dessa forma, uma forma autista?

O compartilhar da perda através das lacunas, em vários sentidos, parecia ser tarefa fundamental, mas a experiência afetiva poderia ser ofuscada pela invasão dos sons e do problema prático da comunicação. No entanto, tentava trazer a experiência de algo que se vai, mas deveria ou poderia estar presente, sem colocar precocemente a experiência emocional da perda, embora ela estivesse, até certo ponto, implícita. Mas havia algo que precisava ter lugar, o ritmo de segurança (TUSTIN, 1990), que envolve encontros e perdas, numa dose suportável, e algo que começasse a indicar essas duas possibilidades, que assim poderiam ficar disponíveis para pensar. Tal ritmo implica na possibilidade de colocar juntas duas experiências opostas, como encontro e perda, e mantê-las suportáveis, sem que uma corresponda ao aniquilamento da outra. Experiências que, embora antagônicas, podem coexistir e estar próximas, sem destruir uma à outra.

No entanto, parecia-me que a “perda” não se concluía, era algo ondulante, cuja presença diluída era invasiva e constante. Íamos falando disso: das idas e vindas, e que as palavras entre nós podiam servir para várias coisas: algumas eram pedaço, outras eram as som, outras podiam ser palavras-sonho... Daquelas que ajudam a ir além das coisas e do próprio som.

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Mar Português retratam ondulações que se perdem, pessoas que se perdem. As ondulações dentro do útero jamais voltarão após o nascimento, o parto é a última etapa desse navegar para longe, sem volta. O ritmo ondulante assegura a estadia no útero enquanto engendra a futura partida. Uma mudança de um continente para outro, que envolve a necessidade de que o bebê venha a consolidar gradualmente, uma continência própria, pois não há desenvolvimento só com a continência externa.

Imagens de um fundo líquido, de coisas molhadas, de algo que se esvai ao mesmo tempo em que algo chega ou retorna. De algo que cria um ritmo, e de algo que nos toca como a água que molha e envolve ao entrarmos nela e, de certa forma altera nosso estado, foram constantes com esse paciente e um pouco do que eu tentava verbalizar com ele. Estar com pessoas é algo ondulante, há chegadas e partidas...

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4 COMPREENDENDO AS ORGANIZAÇÕES PATOLÓGICAS DA

PERSONALIDADE

4.1 Pseudorrelações-objetais adesivas, cápsulas autistas e a não instauração do ritmo de segurança

Frances Tustin analisou, dedicada e pacientemente, crianças, jovens e adultos com defesas ou francamente autistas. Ela observou nesses pacientes formas peculiares de vivenciar a experiência consigo mesmos e com o mundo. Postulou que, ao nascer, nem sempre a criança está preparada para a ruptura e para a mudança que tal evento traz e, por outro lado, algumas crianças parecem ter sofrido experiências de separação num momento, -seja no interior do útero ou logo após o nascimento-, em que estavam especialmente sensíveis e incapazes de suportá-las (TUSTIN, 1990). Tais eventos foram para esses pacientes muito traumáticos e mobilizaram defesas que se tornaram patológicas. Embora parte essencial do trabalho de Tustin tenha se desenvolvido com autistas, atendeu pacientes diversos. Sua percepção e aprofundamento daquilo que designou como defesas e formas autistas deram-lhe grande sensibilidade e levaram-na a ampliar a aplicação de suas descobertas. Percebeu que pacientes neuróticos (no sentido clínico aceito para a palavra), neuróticos mais graves e borderlines podiam mostrar defesas e funcionamentos mentais que se assemelhavam muito ao tipo de defesas dos autistas.

Vejamos as palavras de Tustin:

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Tustin propõe que a consciência de separação entre o bebê e sua mãe é flutuante no início da vida, e é tolerada pelo bebê de forma variável, dependendo tanto de fatores inerentes à própria criança, quanto a fatores ambientais. Num ambiente “hostil”, a criança seria muito menos capaz de suportar a ausência da mãe ou a consciência dessa separação. Tustin menciona que “o indivíduo emergente começa a sentir - talvez a princípio apenas momentaneamente - que tem limites corporais distintos. Esses limites corporais indicam um espaço interior, eles não são apenas bordas a partir das quais uma superfície é subentendida.” (TUSTIN, 1990).

No indivíduo normal, alguma consciência de separação está presente desde o nascimento e é suportada, e se alterna com a fusão. Aí também começa a noção de conteúdo interno, de limite entre bebê e mãe como objetos dotados (separadamente) de conteúdos próprios. A capacidade para suportar a consciência flutuante de separação é importante porque permitirá que as noções de espaço interno/externo, conteúdos internos/externos, e mais tarde a individuação, sejam desenvolvidas.

A consciência de separação entre bebê e mãe torna-se viável ao bebê principalmente por dois motivos. O primeiro é que as atividades autoeróticas do bebê (como a sucção) e as interações físicas e psíquicas com a mãe são muito intensas e mantêm uma forte associação entre ambos, estar junto e separado ao mesmo tempo. A segunda é que tudo isso mantém a vivência da separação num grau ameno e tolerável pelo bebê. Tais estados se alternam, e ela denomina este vaivém de ritmo de segurança (rhythm of safety, TUSTIN, 1990). Para isso, a mãe teria que ser bastante responsiva e ter um acolhimento sintônico e tranquilo para com seu bebê, o que significa que é capaz de vê-lo como um ser separado, dotado de uma mente própria, mas mesmo assim estar muito unida às necessidades psíquicas nascentes nele.

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mental de seu filho. Ela não deve invadi-lo psiquicamente, nem invalidar seu psiquismo.

Apesar de muito junto, a mãe deve, de alguma forma, aceitar a diferença, admirar seu bebê e dar-lhe lugar no mundo e em si mesma, ainda que o considere seu. Essa seria uma ligação primitiva, mas não regressiva, pois depende de um refinamento, um modo de estar junto em que não há dissolução de individualidades (MELTZER, 1995; TUSTIN, 1990). A capacidade para suportar a separação seria variável em cada bebê, por isso é importante que ela seja feita de forma suave e que a mãe tenha esta capacidade. Graus diferentes dessa capacidade trarão diferentes consequências.

Na situação autista, ocorrem vários problemas. Primeiramente, os bebês autistas seriam muito sensíveis à separação e/ou passaram por separações inadequadas e de difícil processamento mental. Tais separações ocorreram num momento em que ainda não podiam ser suportadas e foram, portanto, traumáticas (TUSTIN, 1990). O bebê, ao encontrar uma mãe pouco responsiva, ou qualquer outro evento inesperado, teve de suportar um grau de “decepção” ou separação para ele impossível, significando que o encontro e a acolhida na medida de suas necessidades não ocorreram. Nessas crianças, uma vivência terrível se instala: talvez um vazio, uma ruptura, algo como uma perda de inteireza física, um arrancamento. A criança não encontra recurso mental para lidar com isso. Para Tustin, a essa situação definitivamente traumática seguem-se as medidas autistas (como reação específica ao trauma). Essas crianças precisariam demasiadamente do ritmo de segurança, e não o encontraram.

Cabe lembrar que esses bebês não são capazes de projeção. Eles têm grande necessidade de sentir a continuidade física com seu objeto, pois não têm

ainda funções mentais minimamente integradas, e dependem,

fundamentalmente, do suporte físico e do acolhimento psíquico materno. Só mais tarde poderiam abrir caminho para o mental. Mas as reações autistas divergem do desenvolvimento normal de ligações afetivas e o substituem pelas defesas e formas autistas.

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separação tolerável. Para essas mães, a separação não deveria ou não precisaria existir, e não puderam preparar suavemente seus bebês para ela. Essas mães criam um estado de ligação fusional com seus bebês, sem se darem conta de que estão dificultando as coisas, pois a separação é inevitável e o bebê irá senti-la em algum momento. Quando não é possível, pelas vicissitudes normais do desenvolvimento ou outro problema qualquer, manter a indiferenciação e a fusão com a mãe, a perda cai sobre a criança, perda essa aparentemente sem chance de reparo. Se a situação pudesse ser suportada, a mente individual se fortaleceria aos poucos.

Nas defesas autistas, as vivências de separação são abafadas, criando estados em que há uma hipertrofia de contato com sensações físicas tranquilizadoras, e a tentativa de escapar a todo contato emocional. Isso porque tal contato ocorreu justamente pela vivência de uma dor de separação, quando tal dor não podia ser simbolizada, e ficou, por isso, num doloroso nível físico (TUSTIN, 1990). As sensações físicas agradáveis são uma forma de se opor e de vedar o contato com essas experiências traumáticas e formam os “objetos” e as “formas autistas”. Elas ocupam a mente destes bebês e colocam-nos à distância da separação, prejudicando e talvez os incapacitando para o desenvolvimento de ligações com objetos reais.

O preenchimento da ausência de contato com uma mãe viva e continente é feito pelas sensações físicas que as formas e os objetos autistas propiciam. Elas dão a ilusão de uma fusão com a mãe, uma sensação física, uma superfície na qual ficam aderidos. Isto é impeditivo do encontro com uma mãe verdadeira. O crescimento da sensorialidade turva o crescimento de outras capacidades.

Tustin afirma que há uma diferença útil e significativa entre ego e self. Ela diz:

...As primeiras atividades de ego pareciam surgir, em primeiro lugar, do sistema neuromental. A princípio o bebê recém-nascido que carece das experiências do mundo exterior pode apenas reagir em termos de tendências neuromentais inatas que são expressadas7 através de

atividades auto-sensuais. O ego primário é um ego autosensual. Esta visão está de acordo com a afirmação de Freud de que “o ego é primeiro e acima de tudo um ego corporal” (Freud, 1923) No desenvolvimento normal, a crescente experiência do mundo exterior facilita a maturação e

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sofisticação deste ego elementar. Mas a criança autista traumatizada fecha a porta à experiência do mundo exterior. Assim o desenvolvimento do ego fica morbidamente fixado a um nível físico agreste, cru de reações precoces, superconcretizadas e hipertrofiadas. Isto leva ao senso de haver uma concha vazia intumescida construída das próprias atividades físicas do indivíduo. Esta é uma barreira às relações com o mundo exterior.

Os pacientes autistas nos estados encapsulados também carecem de um senso de self e de identidade individual. Isto porque o senso de self e de identidade individual depende das relações com as outras pessoas. As crianças autistas evitam tais relações e deste modo não possuem senso de self. Portanto vim a perceber que estava errada ao atribuir a crianças um “falso self” conforme descrito por Winnicott (1960). Também compreendi que os estados de autismo não são narcisísticos. Isto porque um senso de self é obviamente um pré-requisito para o desenvolvimento do narcisismo. Pacientes tipo esquizofrênicos e crianças negligenciadas desenvolveram relações com pessoas, embora estas sejam frágeis e perturbadas. Assim pode-se dizer que elas tem um “falso self” e que são narcisistas. A criança autista psicogênica, e os pacientes neuróticos em um estado autista, evitam relações humanas. Portanto, eles são destituídos de um senso de self, e não se pode dizer que têm um falso self ou que são narcisistas. (TUSTIN, 1990, p. 42).

Tais conclusões contribuem para uma diferenciação importante dos fenômenos que se pretende investigar ao longo deste trabalho, pois permitem definir que, além da questão dos pacientes narcísicos e com aspectos psicóticos, é possível deparar-se com quadros em que há defesas arcaicas, muito estáveis, que não permitem o desenvolvimento e o progresso da análise, mas são de outra natureza. Se estas forem confundidas com as organizações patológicas do tipo descrito por Rosenfeld e Steiner, podem permanecer inacessíveis e levar a um impasse, ao esvaziamento ou estancamento do processo de análise.

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(2007) fundamentam a existência de áreas, ou cápsulas de autismo (como prefere dizer Tustin), em muitos indivíduos. Esta perspectiva é considerada ao longo de nossa discussões clínicas.

Tustin diz:

...O funcionamento da criança autista é muito diferente. Ela está em mundo dominado pelas sensações no qual ela procura mais as sensações do que os objetos como tais. Ela não responde às pessoas como pessoas, mas principalmente em termos das sensações que elas provocam. Ela está em um estado primitivo de busca de correspondência, em termos de sensação, do mundo exterior que coincidam com seus padrões inatos. Se ela se torna consciente da falta de ajustamento a suas tendências inatas de busca de padrão, ela bloqueia isto a fim de se sentir contínua com o mundo exterior e não separada dele. (TUSTIN, 1990, p. 49).

Clareando um pouco mais as formas autistas, menciona-se: “não são compartilháveis com outras pessoas”, e são “tipos aberrantes de experiências eróticas padronizantes”, sendo “ineficazes no sentido de um funcionamento efetivo” (TUSTIN, 1990). As formas “dariam vida a uma mãe sempre presente” e “infinitamente controlável” (Id. Ibid.). O paciente autista ou com uma cápsula de autismo teria desistido de estabelecer contato humano por senti-lo como insuportável e perigoso. Teria criado as formas para se satisfazer, de modo que não tenha o contato com a dolorosa separação, que nem é entendida como tal, mas como esvaimento, arrancamento ou queda “num buraco negro com uma picada ruim”, como relatou um dos pacientes de Tustin quando pode falar sobre o que sentia. As formas povoam o mundo do autista e fazem com que ele não se preocupe nem seja atingido por dores humanas. Ou não o perceba.

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Judith Mitrani aponta uma questão fundamental: na dificuldade de estabelecer relações objetais, podem se desenvolver pseudorrelações-objetais de um tipo adesivo. Ela não vê esse estado como sadio, nem normal e diferencia-o do que foi descrito por Ogden como posição autista contígua.8 Chamamos atenção para as ideias de Mitrani:

Eu delineei o desenvolvimento de pseudorrelações objetais adesivas que se petrificam (Mitrani, 1994ª e 1995ª) como uma aberração assimbólica do desenvolvimento normal, enraizadas em experiências traumáticas de extrema privação ocorrendo no útero e/ou na tenra infância. Esta forma de “ser” interrompe prematuramente o desenvolvimento necessário e a confiança num ritmo de segurança (Tustin, 1986b) entre mãe e criança, resultando num impedimento da emergência de um estado elementar de subjetividade e do gradual desenvolvimento de uma verdadeira objetividade.

Tal modo de pseudorrelações pode existir de uma maneira similar à descrita por Grotstein como uma via dupla, ao lado de relações normais e relações narcísicas. Entretanto, as pseudorrelações objetais adesivas em formas encapsuladas, endurecidas e desafiadoras quase sempre são patologicamente defensivas e estáticas. (Tradução livre).

I have outlined the development of an enduring mode of adhesive pseudo-object-relations (Mitrani 1994a and 1995a), as an asymbolic aberration of normal development, rooted in traumatic experiences of

extreme privation occurring in utero and/or in early infancy. This way of “being” prematurely interrupts the necessary development of and trust in a “rhythm of safety” (Tustin, 1986b) between mother and infant, resulting in a crippling of the emerging elemental state of subjectivity and the gradual development of true objectivity

Such a mode of pseudo-relating may exist, on something similar to what Grotstein referred to as a “dual track” (1986), alongside normal and narcissistic object relations. However, in its encapsulated, enduring and rigidified form, adhesive pseudo-object-relations are nearly always pathologically defensive and static. (MITRANI, 2007 p. 37). Grifos da autora.

Nesse trecho, Mitrani declara que, em alguns pacientes, há um rígido e persistente desenvolvimento de um tipo de pseudorrelação objetal adesiva. Ela escolhe o termo pseudo para frisar o arremedo de relação e a ausência de relação verdadeira, e com isso, a ausência de “metabolização” psíquica, portanto de possibilidade simbólica. A aparência de relação funda-se numa aderência ao objeto enquanto superfície, não como objeto, e este último não é buscado como algo que tenha conteúdo. Afirma tratar-se de um estado aberrante do

8Para Ogden, a posição autista contígua implica em uma dialética pré-simbólica entre

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desenvolvimento onde não há simbolização, e tal estado pode persistir como uma anomalia assimbólica na mente de um sujeito.

Mitrani enfatiza a qualidade aberrante que resulta da experiência traumática, ocorrendo numa fase onde há extrema fragilidade, e acompanha Tustin ao sugerir uma forma de evitar a separação, mas não exatamente com uma “forma autista” (TUSTIN, 1990), e cunha o termo pseudorrelação objetal adesiva (a qual é assimbólica).

Continuando, vemos que essa forma de “ser” interrompe prematuramente o desenvolvimento da necessária confiança em um ritmo de segurança entre mãe e criança. Isso resulta numa incapacidade para que possam emergir de dentro da criança os inícios dos estados de subjetividade e também o gradual desenvolvimento de uma verdadeira objetividade, provocando o comprometimento da capacidade de autopercepção e de percepção do mundo e do outro. O uso do termo aberração é útil por evidenciar a anormalidade grave em que consiste o não desenvolvimento dos processos de subjetivação, simbolização e diferenciação. Talvez essas aberrações não sejam maiores do que as equações simbólicas9, mas são tão problemáticas quanto.

A autora segue dizendo que essas pseudorrelações podem coexistir com outras formas de relações normais ou narcísicas, como em uma estrada onde há várias pistas para o tráfego numa mesma direção (ao modo de uma Rodovia Bandeirantes ou uma highway) e carros diferentes trafegam paralelamente10. Comenta que Freud já havia percebido que aspectos primitivos do psiquismo são comumente preservados e convivem ao lado de versões mais evoluídas da mesma questão. Alega para exemplificar que - como Tustin percebera- alguma

9Equação simbólica é termo cunhado por Hanna Segal para designar que, ao invés de símbolo

verdadeiro, que representa ou remete à coisa simbolizada, na equação simbólica a representação é vista e vivida como sendo o objeto que deveria apenas representar.

10Esta ideia baseia-se num artigo de James Grotstein, chamado A Dual Track Theorem, publicado

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autossensualidade pré-simbólica é normal e convive com a capacidade simbólica, sem impedi-la de evoluir, o que ajuda a confirmar as possibilidades de paralelo entre capacidades e aspectos mentais.

Várias características marcam as pseudorrelações objetais adesivas, e são mencionadas a seguir.

1 Não há percepção de que o objeto é humano e tem uma existência separada do sujeito.

2 O objeto é usado e procurado por proporcionar sensações reconfortantes ao sujeito.

3 As ansiedades que nas relações objetais são paranoides e depressivas, são nas pseudorrelações objetais muito elementares, do tipo: cair, entrar no nada, desmanchar, sem esperança de recuperação. Não haveria qualquer possibilidade de progresso para além da situação adesiva. 4 Nas situações em pauta, as experiências não são mentalizadas:

unmentalizedexperience”.

5 A autossensualidade é usada para bloquear as dores e outras sensações normais.

6 Mitrani usa a expressão “equações adesivas” para dizer da intensidade com que as sensações são usadas para equivaler a toda e qualquer emoção e para vedar a própria noção de ser um self e de estar vivo. Viver se resume a estar aderido a algo que dá boas sensações.

7 O ego permanece passivamente não integrado.

8 O desenvolvimento da capacidade para pensar fica prejudicado, embora possa existir noutras áreas do self.

9 As reações à separação não são normais, sendo de indiferença ou colapso.

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Mitrani usa o termo onipotência ao falar das pseudorrelações-objetais. Ela dá a impressão de que as funções psíquicas mais evoluídas operam, mesmo sem mudanças de áreas bem primitivas e que ao invés de mudá-las, ajudam a mantê-las. Uma forma paralela, que até pode dar sustentação às defesas autistas. Ou seja, parece que as funções psíquicas operam de forma conivente com a autossensualidade, pois Mitrani diz:

Quando a onipotência falha nas pseudorrelações objetais adesivas, essa falha é sentida como colapso catastrófico ou como uma apavorante sensação de ser rasgado e arremessado para fora. (Tradução livre). When omnipotence fails in the adhesive pseudo-object-relationship, this failure is felt as a totally catastrophic collapse or as a dreadful sensation of being ripped and thrown away (MITRANI, 2007).

Mitrani também usa o termo adhesive equation, que parece denotar também um mecanismo psíquico posto em ação para dar suporte à autossensualidade. Seria um mecanismo que, de certa forma, evita a evolução para funções psíquicas. Lembra o termo “equação simbólica”, que foi cunhado por Segal e retrata um mecanismo primitivo, e capaz de ser usado rigidamente. Talvez por esse motivo Mitrani fale de desenvolvimentos de aberrações assimbólicas, embora equação possa implicar alguma evolução nas funções psíquicas. No entanto Mitrani quer ressaltar que algo pré- ou protopsíquico ocupa o lugar e a função de algo psíquico.

Pode-se ver aqui outra possível aplicação da ideia do postulado das vias paralelas de Grotstein11, que desde Freud já tinha seus começos, pelo paralelismo consciente/inconsciente. Antigos mecanismos não são abandonados e seguem juntos e concomitantemente a outros, diferentes ou mais evoluídos.

Completando as ideias de Mitrani, temos que a falha da onipotência das relações adesivas é sentida como um colapso totalmente catatrófico, ou como uma sensação apavorante de ter sido atirado para fora. Isso permite até certo ponto lembrar os partos prematuros ou os descolamentos de placenta que podem até matar o bebê e que sugerem sensações físicas extremas.

11Grotstein desenvolve a ideia de vias paralelas até uma ponto de admitir que enquanto pensa, a

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Podemos, para finalizar, ressaltar um possível funcionamento psíquico mais evoluído, cujas capacidades sejam canalizadas para sustentar a situação autista, pois com terrores tão elementares, defender-se deles parece imperativo ou a melhor (única?) saída.

4.2 Narcisismo destrutivo e organizações mafia-like; as gangues que

oferecem proteçãoe mantém o ego refém

Herbert Rosenfeld (1968, 1988) realizou uma investigação fundamental sobre personalidades com características narcisistas. Os ângulos abordados por ele são uma das bases para o desenvolvimento do conceito de Steiner sobre refúgios psíquicos e também podem ser pensados como um dos alicerces mais consistentes para a compreensão das organizações patológicas da personalidade. Suas ideias sobre relações objetais narcísicas e sobre organizações defensivas estáveis são centrais no desenvolvimento do trabalho de Steiner. A introdução do conceito de narcisismo remonta a Freud (191012). Há elementos interessantes em seu estudo sobre Leonardo da Vince. Freud descreveu como o artista se relacionava com seus alunos, como se fossem ele próprio, e deles cuidava como fora ou gostaria de ter sido cuidado e amado por sua mãe. Portanto, embora se servindo de um objeto para amar, era a si mesmo que Leonardo amava, pois o objeto era depositário do peso de sua transferência e identificação.

Em Sobre o Narcisismo: uma introdução,13 Freud menciona que o primeiro tipo de escolha objetal de uma criança recai sobre as pessoas que são sua fonte de alimento, cuidados e proteção e chama esse tipo de ligação de anaclítica. Diz, porém, que há outro tipo de amor em conformidade com outro tipo de relação: o narcisista. Os aspectos narcísicos descritos por Freud ajudam na compreensão dos fenômenos envolvendo questões que Rosenfeld mostrará. Pode-se dizer que Rosenfeld é responsável por enriquecer o estudo do narcisismo, pois ele

12Leonardo da Vince e uma lembrança de sua infancia. (1910). In: OBRAS completas. Edição

Standard. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974. v. XI.

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descreve vertentes patológicas deste, que fornecem ferramentas valiosas para o trabalho clínico.

Freud (1914) destaca o narcisismo como componente importante e inevitável do ser humano, mas não o isenta de problemas. Pela força do narcisismo, o indivíduo está sujeito a escolher para amar objetos que tenham ressonância com seu próprio eu. Apesar de crer que as escolhas narcísicas são comuns, principalmente nas mulheres, Freud coloca que as relações narcísicas poderiam levar a complicações nas relações objetais, tanto que cita as perversões sexuais como exemplo cabal de escolhas narcísicas. Ele esclarece as diferenças entre as escolhas:

Uma pessoa pode amar:

1-Em conformidade com o tipo narcisista: a) O que ela própria é (isto é, ela mesma); b) O que ela própria foi;

c) O que ela própria gostaria de ser;

d) Alguém que foi uma vez parte dela mesma.

2- Em conformidade com o tipo anaclítico (de ligação): a) A mulher que o alimenta;

b) O homem que a protege. (FREUD, 1974, v. XIV, p. 107).

Juntando a esses itens um pouco da visão kleiniana, nota-se que escolhas do tipo narcisista são ligadas aos mecanismos da onipotência, da autoidealização, da negação de dependência e se sustentam na projeção e no splitting de partes indesejadas, sobre outros objetos. São, portanto, baseadas na posição esquizoparanoide e não têm compromisso com a aceitação da realidade, das diferenças entre objetos, nem limites. Também são encontrados nas defesas maníacas. Um paciente que estabeleça com seu analista esse tipo de relação desejará incorporar os aspectos desejáveis do analista e negar que precise dele. Poderá como mostra Rosenfeld, entrar em severos estados confusionais com o analista.

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