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AMÉRICA LATINA E O DIALOGISMO ENTRE O JORNAL E O LIVRO: uma abordagem sistêmica e diacrônica do

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Dirceu Martins Alves

AMÉRICA LATINA

E O DIALOGISMO ENTRE O JORNAL E O LIVRO:

uma abordagem sistêmica e diacrônica do

texto impresso ao virtual eletrônico

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Dirceu Martins Alves

AMÉRICA LATINA

E O DIALOGISMO ENTRE O JORNAL E O LIVRO:

uma abordagem sistêmica e diacrônica do

texto impresso ao virtual eletrônico

São Paulo

2010

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Amálio Pinheiro, pela orientação, confiança e amizade;

às professoras Cecilia Salles e Jerusa Pires, pelas valiosas leituras e sugestões

na Banca de Qualificação;

aos demais professores do Programa de Comunicação e Semiótica;

aos colegas do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem;

à Maga, pelo companheirismo e colaboração,

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¿América Latina, América Hispana, Iberoamérica, Indoamérica? Cada uno de estos nombres deja sin nombrar a una parte de la realidad.

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ALVES, Dirceu Martins. América Latina e o dialogismo entre o jornal e o livro: uma abordagem sistêmica e diacrônica do texto impresso ao virtual eletrônico. 2010. 173 f.Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RESUMO. Este trabalho tem por objetivo investigar as relações dialógicas entre o jornal e o livro na América Latina, para demonstrar como a imprensa contribuiu para a formação da literatura do continente. Na primeira etapa, procedeu-se a uma análise das crônicas do descobrimento, baseada nos conceitos de paródia e antropofagia, postulados por Haroldo de Campos e Rodríguez Monegal, o que permitiu vê-las na travessia pelos textos da cultura. Na segunda etapa, um cotejamento entre folhetins, crônicas, contos breves e diversos jornais do continente, seus suportes, foi feito com base nos conceitos de meios e mediações, nos quais o receptor é um agente transformador dos textos e dos meios, segundo Martín-Barbero. Esses novos paradigmas de análises serviram para pensar a propagação do folhetim na América Latina. No jornal La Patria Argentina publicaram-se os primeiros folhetins gauchescos, abandonando o ambiente francês para recriar uma realidade própria, uma série de romances fundadores da literatura argentina – primeiro produto de massa do país. No México, o folhetim absorveu o cenário da Revolução para criar uma ficção próxima da realidade, plasmando um estilo de crônica posteriormente desdobrado pelos grandes autores. No Brasil, o folhetim recriou o ambiente urbano e a sua fala coloquial, alguns anos depois de sua chegada. O problema é investigar por que as crônicas jornalísticas foram desprezadas como gênero literário pela crítica latino-americana. Por que na Europa não se desenvolveu o conto breve, que aqui nasceu das crônicas jornalísticas? Teriam sido seguidos os paradigmas europeus de análise dialética entre alta e baixa literatura? No Brasil, este trabalho se vincula aos estudos sobre cultura e ambientes midiáticos, de Amálio Pinheiro, que seguem a proposta de Boaventura Santos, contra a hegemonia do Norte. Tendo como metodologia o método comparativo, apoiado na semiótica da cultura, de Tinianov a Júri Lotman, privilegiando seus desdobramentos latino-americanos, verificou-se como os romances caleidoscópicos, formantes do corpus desta pesquisa – Serafim Ponte Grande, Rayuela, El Otoño del Patriarca, Yo el Supremo,Libro de Manuel, Tres Tristes Tigres – incorporam o corpo-gráfico do jornal, o melodrama, o cinema e a canção popular. O trabalho contribui para a área de comunicação ao mostrar como o jornal fez a mediação entre a produção escritural e o gosto do leitor, que modificou o próprio meio. Mostra para os estudos literários que a literatura se formou a partir de uma circularidade oscilante entre a tradição do livro e os desdobramentos da mídia impressa, tendo a imprensa/literatura como meio comunicativo.

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ABSTRACT. This study aims to investigate the dialogical relations between the newspaper and the book in Latin America, to demonstrate how the press contributed to the formation of the literature of the continent. In the first step, we proceeded to an analysis of the chronicles of the discovery, based on concepts of parody and cannibalism, postulated by Haroldo de Campos and Rodriguez Monegal, which allowed to see them in crossing the texts of culture. In the second step, an examination between serials, chronics, short stories and newspapers of the continent, his supporters, was based on the concepts of media and mediation, in which the receiver is an agent of transformation of texts and media, according to Martín-Barbero. These new paradigms of analysis were used to think the spread of bulletin in Latin America. In the newspaper La Patria Argentina is the first published serials gaucho, abandoning the French ambience to recreate its own reality, a series of novels founders of Argentine literature – the first mass product of the country. In Mexico, the serial absorbed the scene of the Revolution to create a fiction closer to reality, shaping a style of chronic subsequently deployed by major authors. In Brazil, the serial recreated the urban environment and its colloquial speech, a few years after his arrival. The problem is to investigate why the journalistic chronicles were despised by critics as a literary genre in Latin America. Why Europe has not developed the short story, who was born here of chronic journalism? Would have followed the European paradigms of analysis dialectic between high and low literature? In Brazil, this work is linked to studies on culture and media environments, Amálio Pinheiro, following the proposal of Boaventura Santos, against the hegemony of the North. Following the comparative method as a methodology, supported by the semiotics of culture, since Tynjanov up of Lotman, focusing its development in Latin America, it appeared as novels kaleidoscopic, formants of the corpus of this research – Serafim Ponte Grande, Rayuela, El Otoño del Patriarca, Yo el Supremo, Libro de Manuel, Tres Tristes Tigres – enter the body-graphic journal, melodrama, film and popular song. The work contributes to the area of communication to show how the newspaper made the mediation between production and taste of the book reader, which changed the medium itself. Shows for literary studies that literature was formed from an oscillating circularity between the tradition of the book and the ramifications of the printed media, and the press/literature as a means of communication.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Primeira edição da Gazeta de Buenos Ayres...037

Figura 2 – Primeira edição do Telégrafo Mercantil...038

Figura 3 – Alexandre Dumas, travestido de mosqueteiro...048

Figura 4 – Cena da telenovela “A Moreninha”...050

Figura 5 – Edição do folhetim “Memórias de um Condenado”...060

Figura 6 – Página do folhetim “Memórias de um condenado”...061

Figura 7 – Capa da edição em verso de Juan Cuello...077

Figura 8 – Folha de rosto da edição em verso de Juan Cuello... 078

Figura 9 – Cartaz de divulgação do filme Juan Moreira...082

Figura 10 – Cartaz do filme Los de Abajo... 098

Figura 11 – Cartaz do filme Los de Abajo...099

Figura 12 – Revista Fray Mocho...131

Figura 13 – Pablo Picasso: Mujer y pintor tejiendo...136

Figura 14 – Nota sobre “los dibujos de Pablo Picasso”...137

Figura 15 – “Tablero” de direção de Rayuela, início do romance...145

Figura 16 – Complementação do “Tablero” de direção de Rayuela...146

Figura 17 – Edição de Rayuela...147

Figura 18 – Foto da primeira edição de Último round... 149

Figura 19 – Foto de Último round...149

Figura 20 – Página 107 do Libro de Manuel...152

Figura 21 – Página 156 de Tres Tristes Tigres...153

Figura 22 – Página 154 de Tres Tristes Tigres...154

Figura 23El Libro Total aberto na tela...157

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 010

1 AS CRÔNICAS DO DESCOBRIMENTO E A RELAÇÃO COM A

CULTURA NA AMÉRICA LATINA ... 017

2 O ROMANCE-FOLHETIM E A RELAÇÃO COM AS CRÔNICAS DO

DESCOBRIMENTO E COM OUTRAS SÉRIES CULTURAIS ... 028

2.1 O Problema da Periodização da Imprensa ... 029 2.2 O Problema da Periodização da Literatura ... 039 2.3 O Folhetim no Brasil ... 047 2.4 O Folhetim na Argentina ... 068 2.5 O Folhetim no México ... 092

3 AS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS E O CONTO BREVE ... 102

3.1 O Nascimento da Crônica... 103 3.2 O Narrador-Repórter Registra o Circunstancial e Promove a Evolução do

Folhetim à Crônica Atual ... 106 3.3 A Revolução Modernista. A Crônica como Fundadora de uma Escritura... 117 3.4 O Conto Breve Latino-Americano ... 124

4 A RELAÇÃO DO CORPO-GRÁFICO DO JORNAL COM OS

ROMANCES CALEIDOSCÓPICOS LATINO-AMERICANOS... 134

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5 O INTERTEXTO DA COMPOSIÇÃO EM MOSAICO DAS PÁGINAS

DA INTERNET COM LIVROS IMPRESSOS E LIVROS DIGITAIS... 156

5.1 El Libro Total... 157

CONCLUSÃO ... 159

BIBLIOGRAFIA... 166

ANEXOS ... 174

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INTRODUÇÃO

Investigar as relações dialógicas entre o jornal e o livro no Brasil e na América Latina se faz necessário para entendermos as condições e os processos de implantação da imprensa no continente e, assim, evidenciar a contribuição desta para a criação de textos de comunicação, os quais mais tarde seriam catalogados como literatura, numa radical transmigração de gênero. A diferença processual na produção de textos impressos (livros e demais impressos) entre a América Latina e a Europa, por exemplo, pode ser bastante esclarecedora das idiossincrasias desses dois universos, conectados pelos seus muitos vasos comunicantes desde os descobrimentos.

A imprensa, inventada na China, onde não teve condições adequadas para se desenvolver, cresce e se consolidou na Europa a partir da invenção de Gutenberg. Cresceu e se consolidou, sobretudo, porque encontrou um ambiente favorável, como veremos com mais detalhes em um dos capítulos deste trabalho. Os mercadores de Veneza já compravam um jornal de notícias sobre navios carregados de mercadorias que haviam chegado ou estavam por chegar aos portos europeus, escritos à mão, muito antes da prensa de Gutenberg. Mais tarde do que isso, e ainda antes de Gutenberg, jornais manuscritos circulavam por quase toda a Europa, dando notícias variadas.

É curioso notar como no velho continente, onde se consolidou a imprensa, muito antes dos países latino-americanos a terem, seja por razões econômicas ou por proibições das Coroas de Portugal e de Castela, se tenha ficado aquém na produção de gêneros híbridos, derivados do aproveitamento de códigos e linguagens, produzidos antes por meios mais antigos. Constatar que a Europa, que já contava com os teatros das grandes cidades e uma vasta produção de obras dramáticas, que inventou o folhetim, gênero literário feito nos jornais e, ao qual não faltou o melodrama, não tenha chegado à produção de telenovelas como as que têm produzido Brasil, México, Colômbia, Peru e Argentina, por exemplo. As telenovelas são herdeiras diretas do romance-folhetim, que passou antes pela radionovela, como já se demonstrou em vários estudos.1

Na América Latina o processo de migração de um gênero para o outro resulta, quase sempre, numa combinação de elementos do velho e do novo, chegando a predominar mais a

1 Marlyse Meyer mostra em Folhetim: uma história, uma exaustiva trajetória do folhetim (MEYER,

2005). E Martín-Barbero mostra como o folhetim migra para o rádio e para a televisão no seu livro

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incorporação de novos elementos do que a perda dos que já tinha. Um exemplo é o uso das tecnologias do audiovisual nas telenovelas, que incorporou a estrutura de cortes dos capítulos do folhetim, o melodrama da radionovela, a expressividade do teatro de revistas, e outras séries mais. Importa também dizer que a tecnologia aportada no continente pelos meios gráficos deu as condições para a criação de algo novo, totalmente diferente. Um exemplo é o conto breve latino-americano, criado pelas possibilidades que a imprensa trouxe e, que a Europa não conheceu.

O conto breve, um dos gêneros que consagrou a literatura latino-americana, é fruto das práticas quotidianas de escritura e publicação nos jornais e revistas da América Latina. Outro produto possibilitado pela imprensa latino-americana é a crônica jornalística. Trata-se de um texto escrito em prosa, obrigado a ser breve pelo pouco espaço que pode ocupar no jornal, e que foi desprezado até bem pouco tempo como produto de segundo escalão, sem valor estético como o texto publicado em livro. Não se trata de dizer que não se fez crônica em jornais e/ou revistas de outras partes do mundo, mas antes, de mostrá-la na diacronia do continente latino-americano, onde não imperou o livro como o suporte hegemônico de comunicação escrita e artística. Como sabemos, o livro foi o suporte consagrador da escritura sobre a oralidade no centro europeu, hierarquizado, portanto, como o lugar das grandes ideias e da supremacia da estética verbal.

A crônica e o conto breve publicados no jornal encontraram na América Latina um ambiente de recepção e interação excepcional. Veremos que a quantidade de pessoas alfabetizadas, sempre considerada menor em comparação com os países europeus, não impediu a circulação de jornais. Os olhos acostumados com a cultura visual do continente se deparam com o mosaico do jornal impresso. As mãos, outra forma de conhecer, também não são privadas do contato tátil. É o que diz Amálio Pinheiro:

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epifenomenal: faz parte da sua rede estrutural, ou seja, modifica os processos de produção e leitura das diagramações, títulos, espaços, letras etc., e contribui grandemente para toda a história das trocas e conexões entre os sistemas do jornalismo impresso e os sistemas e sub-sistemas da cultura, das artes e dos demais meios. Saber que o jornal faz convergirem olho e cidade, faz permear-se corpo e cultura, num espaço de política de lazer e prazer, desagrada a toda e qualquer tendência teórica de extração ocidentalizante “que o engavetam no lado que todos julgam negativo dentro do imbricado complexo de dicotomias convencionalmente admitidas, como as que existem entre “trabalho” e “ócio”, “mente” e “corpo”, “seriedade” e “prazer”, fenômenos “econômicos” e “não econômicos” (Dunning, 1992, p. 14). Por isso mesmo os jornais devem ser considerados aqui como uma espécie de produção gráfico-visual com códigos que estabelecem nexos especiais, isto é, diferenciados, com processos civilizatórios, o Brasil e a América Latina, que subvertem, em boa mediada, as fórmulas redutoras dos dualismos conceituais baseados na superioridade do acúmulo do conhecimento abstrato (PINHEIRO, 2004, p. 17-18).

E o agregado de códigos e linguagens que o jornal impresso fez e, ainda faz, esteve consorte com as condições de mobilidade e agregação das sociedades latino-americanas:

A mobilidade em mosaico do jornalismo impresso aproveitou-se, neste continente, de uma sorte de montagem sintática das “culturas em ritmo rápido” (Zumthor, 1982, p. 94), aptas para incorporar os agregados metonímicos provenientes dos mais diversos códigos e linguagens. Trata-se de processos de produção e recepção desdobrados, em interações múltiplas, pelo caráter migrante, mestiço e solar da sociedade. Resumindo abruptamente: apropriação, através de procedimentos de construção sintático-espacial, de materiais e linguagens complexos, oriundos das mais variadas e heterogêneas culturas, no trânsito da casa à rua, do livro ao jornal aberto e dobrável sob o sol (PINHEIRO, 2004, p. 18).

Por tratar-se de uma abordagem da formação e evolução da imprensa e da literatura na América Latina, território tão vasto, não cabe aqui dar exemplos exaustivos de jornais, países, obras ou autores. Vale mais a pena a cata seletiva dos meios de comunicação, obras ou autores significativos, e seus respectivos países, para ilustrar o ponto em foco.

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não as imagens visuais. Daremos um salto no tempo agora, apenas para dizer que com a evolução na diagramação das páginas de jornais, levada a cabo na América Latina durante a primeira metade do século XX, também a poesia modernista passa a fazer a crônica do cotidiano, a partir da observação da paisagem cultural. Oswald de Andrade no Brasil e Oliverio Girondo na Argentina são dois grandes exemplos.

Com essa assertiva da relação do jornal (meio cultural da cidade) com a produção escritural de poemas (urbanos), devemos entender que a poesia vanguardista brasileira, ou modernista para a América hispânica, se aproveita do jornal para criar poemas em forma de crônicas, ligeiras e consorte com os avanços tecnológicos do seu tempo. O que não quer dizer que não tenha havido poemas escritos em forma de crônica no período da América-Colônia. Os poemas panfletários de Gregório de Matos na Bahia, por exemplo, escritos com o intuito de denunciar uma situação de opressão dos governadores contra o povo, eram poemas-crônicas que relatavam a vida social, política e cultural do Brasil do século XVII. Não é por acaso que Ronald Carvalho (1935) considerou os poemas panfletários de Gregório de Matos como sendo o primeiro jornal do Brasil, muito tempo antes da implantação da imprensa no país. Vale advertir que a poesia não é objeto direto de análise desse estudo, que prima mais pelas narrativas desdobradas das crônicas do descobrimento. O que não impede de mencionar a poesia quando for para ajudar a aclarar algum ponto em questão, principalmente aquela poesia que faz a crônica da paisagem cultural em forma de verso.

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Houve um percurso, proporcionado pela imprensa, que foi desde as primeiras crônicas ao conto breve, e às crônicas escritas para ocupar os espaços mínimos no mosaico dos jornais impressos. Esses desdobramentos ocorreram de modo mais ou menos rápido, pois a America Latina não precisou de muito tempo para produzir a renovação da linguagem, desde a consolidação da sua imprensa até o boom da literatura latino-americana, ocorrido em meados do século XX.

A análise dos desdobramentos dos gêneros com a aglutinação de novos códigos e linguagens, também de novos suportes, deve ser encaminhada pela consideração das relações entre Mídia e Cultura. Julio Cortázar, ao escrever Último round, um livro jornal, e Rayuela, um romance de histórias entrecruzadas, produz um aglomerado de textos compostos de frases escritas com tipos garrafais da publicidade, em disparidade com os tipos de outros formatos e tamanhos na página seguinte, às vezes na mesma página. Nesses livros são incorporadas frases de pichações de muros e de banheiros públicos, poemas, letras de canções, duas histórias diferentes narradas num mesmo romance, bastando que o leitor salte ou retroceda algumas páginas para se entrar na outra história. Dessa forma, Cortázar antecipa para o leitor o processo de navegação que ele terá de fazer algumas décadas depois ao lidar com o intertexto nas páginas da web. Tal virtualidade literária nos induz a considerar a relação entre livro impresso e meio digital para demonstrar como as possibilidades virtuais já estavam dadas pelo romance caleidoscópico latino-americano, muito antes de se pensar em páginas web. Não se trata aqui de estudar a produção de textos nos meios digitais da América Latina, nem de analisar a produção de livros digitais, senão, de estabelecer analogias entre a estrutura em mosaico do jornal impresso, que migrou para o livro impresso, e que hoje dialoga com as páginas da internet. O ponto principal, me parece, é fazer uma escavação mais abaixo dessa superfície onde vemos a interpenetração movediça entre as séries culturais, constantemente dilatando os gêneros, para investigar e tentar entender as conexões dela com as estruturas sociais e de linguagens, portanto, produtoras de discursos, das comunidades latino-americanas. Para manejar essa temática tão obtusa, delimitamos a investigação em cinco capítulos.

No primeiro capítulo, intitulado As crônicas do descobrimento e a relação com a

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paisagem, o escritor atuando como repórter, a subjetividade narrativa, a incorporação da fala do outro, procedimentos fundadores da escritura do continente e recorrentes até hoje nessa literatura.

No segundo capítulo, O romance-folhetim e a relação com as crônicas do

descobrimento e com outras séries culturais, analisaremos o modo como os jornais latino-americanos se espalham pelas cidades e contribuem para a divulgação de uma literatura popular, formando leitores para o consumo da futura cultura de massa. Mais especificamente, pretendemos demonstrar como o romance-folhetim vai pouco a pouco se desprendendo do modelo europeu, para se impregnar do ambiente ao seu redor, fazendo a crônica da paisagem. O cotidiano das cidades brasileiras e a fala coloquial do povo passa a ocupar as páginas dos folhetins nacionais após alguns anos do início da publicação dos modelos consagrados por Alexandre Dumas, Eugène Sue, e Ponson du Terrail, que continuaram a ser publicados, mas desde então, rivalizando com a experimentação brasileira. Em Buenos Aires, o jornal La patria argentina, publicou uma série de romances-folhetins de Eduardo Gutiérrez, dos quais nove eram de temática gauchesca e tinham como cenário o entre lugar campo cidade, onde se davam as façanhas dos heróis do mundo gauchesco. O jornal e essas narrativas coincidem com o primeiro produto de cultura de massa do país, e com a formação da literatura argentina. No México, os folhetins retratam o ambiente de violência da Revolução, fazendo com que o mundo fictício tenha apenas uma linha tênue de separação da realidade. Dialogam, de certo modo, com as narrativas que Cortez faz de um mundo fantástico e absurdamente violento. Um bom exemplo é o romance Los de abajo, de Mariano Azuela, cuja energia narrativa contaminará as páginas das obras de Juan Rulfo e Carlos Fuentes.

No terceiro capítulo, As crônicas jornalísticas e o conto breve, analisaremos uma série de crônicas publicadas em diversos jornais ao longo dos séculos XIX e XX, e a relação delas com a cultura local, levando em consideração alguns aspectos da comunicação: a reportagem do cotidiano, e o desprezo da crítica que não lhe reconhece nenhum valor literário. E essa prática escritural diária, ou quase diária, se desdobrará em outro gênero de literatura também desprezado, o conto breve – tipo de narrativa no qual América Latina chegará à excelência, e que na Europa não se desenvolveu.

No quarto capítulo, A relação do corpo-gráfico do jornal com os romances

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escritor latino-americano, nesse caso, é um jornalista, que pelo prazer de escrever, mete todas as colunas do jornal no seu livro, não poupa nem os anúncios publicitários. Veremos ao longo do trabalho, que o cronista e/ou repórter sempre estiverem presentes ao largo da história da produção escritural do continente.

No quinto capítulo, O intertexto da composição em mosaico das páginas da

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AS CRÔNICAS DO DESCOBRIMENTO COMO TEXTOS DA

CULTURA NA AMÉRICA LATINA

Na tarefa de se pensar a América Latina a partir da sua produção e proliferação de signos (verbais = oralidade e escritura), no caso a imprensa e a relação com a literatura, é bastante importante começar pela análise dos textos dos primeiros cronistas do continente. As crônicas do descobrimento, escritas pelos europeus que entravam em contato como o novo mundo, nos dão uma primeira visão do outro sobre as dimensões do continente. O outro que ajudaria na gestação do latino-americano e, portanto, deve ser visto como co-fundador de uma geografia humana, aquém do estigma de colonizador, por mais que o processo tenha sido doloroso. A gênese do latino-americano é de cunho incorporador. E o uso que grandes autores do continente fizeram das crônicas do descobrimento, incorporando-as às suas escrituras, fundamenta a tese de importantes críticos literários, poetas, artistas e escritores que veem nesses textos a fundação da literatura de vários países da América Latina.

No caso do Brasil o texto (crônica) mais importante é a Carta de Pero Vaz de Caminha,2 o cronista que chegou ao Brasil nas naus de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil. Pero Vaz de Caminha foge do estilo das chamadas Relações (relações de viagens ultramar que se faziam na época), para imprimir um estilo de escritor. Nas Relações o que importava descrever era a precisão das milhas navegadas, a direção que seguiram, os meios técnicos utilizados para se chegar a um determinado ponto cardinal e a descrição precisa do que se encontrou em ultramar, seguindo uma retórica do poder. Pero Vaz segue essa retórica do poder, mas insere a ambiguidade no seu discurso ao incorporar a fala indígena. A subjetividade do narrador, característica tão peculiar aos futuros cronistas dos séculos vindouros, é o que permite uma condição dialógica aos primeiros habitantes das terras brasileiras.

(...) A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os

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cabelos são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar (CAMINHA, 1963, p. 226-227).

O poeta e crítico brasileiro Mário Chamie dedicou todo o livro Caminhos da Carta: uma leitura antropofágica da Carta de Pero Vaz de Caminha, ao estudo do aproveitamento que uma figura como Oswald de Andrade faz da Carta no seu postulado teórico e na sua realização prática de escritura. Segundo ele, Oswald de Andrade viu bem essa dupla via discursiva de Pero Vaz e de outros cronistas do Brasil-Colônia:

Oswald de Andrade tem para com alguns textos de alguns cronistas do Brasil-colônia uma visão bipartida.

De um lado, considera esses textos produtos espontâneos de possível e ingênua simplicidade de seus autores. Vislumbra nesses textos a presença do deslumbramento provocado pela descoberta do novo mundo. É como se, embora letrados, nossos primeiros cronistas esquecessem sua bagagem de homens cultos, para desarmados renderem-se às impressões primitivas da terra à vista.

De outro lado, Oswald acusa nessas descrições do Descobrimento a presença escolarizada de uma retórica do Poder a que seus autores serviam. Dizer retórica é reconhecer preceitos e convenções. Dizer Poder é sublinhar rituais de cerimônia e protocolo. E escrever, segundo convenções e protocolos, é privilegiar interesses culturais ou ideológicos que os preceitos e os rituais necessariamente representam (CHAMIE, 2002, p. 13).

Chamie destaca que “a leitura antropofágica da Carta de Caminha pede duas instâncias de procedimento” (CHAMIE, 2002, p. 15), o que ele faz de maneira exaustiva, com exemplos pormenorizados, e que trataremos aqui de sintetizar.

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Pero Vaz percebe essa ignorância genuína e se permite sentir-se atraído por ela, julgando-a inocente e inata (CHAMIE, 2002, p. 21-22).

A ignorância tática de Caminha é exposta logo no início da Carta, o qual não devemos deixar de citar:

Senhor, posto que o Capitão-Mor desta Vossa frota, e assim (mesmo) os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a noticia do achamento [...] não deixarei de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que – para o bem contar e falar – o saiba pior que todos! Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de por mais do que aquilo que vi e me pareceu (CAMINHA, 1963, p. 27-28).

Há um entrecruzamento de ignorâncias no encontro do português com os indígenas que Caminha soube plasmar como matéria literária, e que servirá de exemplo metafórico para a teoria da antropofagia cultural.

Entrecruzadas, portanto, a ignorância tática do cronista e a ignorância genuína dos nativos, Pero Vaz configura, no cenário interno da Carta, o drama da reversibilidade, cujos pólos principais – propriedade e posse – se desdobram na leitura oswaldiana, em termos de letra versus selva, de erro versus erudição, de invenção versus cópia, de instinto versus razão, e, sobretudo, de dever protocolar versus o “ver e parecer” livres do cronista. Nas interações desses pólos, a letra, a erudição, a razão e o dever protocolar do invasor são, “vingativamente”, penetrados pela selva (o selvagem), pelo erro, pelo instinto e pela naturalidade descomprometida do invadido. Vale dizer: se a Carta já sinaliza e descreve a conquista do indígena pelo conquistador, ela antropofagicamente já subscreve a “devoração” gradativa do conquistador pelo conquistado (CHAMIE, 2002, p. 24-25).

Ainda com Mário Chamie, vemos que “a segunda instância da leitura oswaldiana da Carta consiste no garimpo textual de palavras, de frases, de fragmentos ou de micro-discursos nativos incrustados no tecido verbal do texto de Caminha (CHAMIE, 2002, p. 24-25). O garimpo de palavras, de frases, de fragmentos ou de micro-discursos da Carta de Caminha também será feito por Mário de Andrade. A crítica Telê Ancona Lopez ressalta que entre as cartas do escritor se encontra a confissão de autor: “Copiei sim, copiei trechos inteiros da Carta de Caminha”, diz Mário a respeito do seu Macunaíma. Não precisamos gastar espaço para perseguir as pistas da Carta nesse importante livro de Mário de Andrade, já temos a confissão do autor, comprovada por críticos responsáveis, que analisaram cuidadosamente o livro Macunaíma e os excertos de autores e de textos da cultura latino-americana que Mário de Andrade fez.

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Manifesto Antropofágico, publicado na Revista de Antropofagia, com a citação chistosa do local e da data de publicação, colocados uma linha antes do nome da revista. Logo após o nome de assinatura do manifesto,

Oswald de Andrade

Em Piratininga, Ano de 374 da Deglutição do Bispo Sardinha (Revista de Antropofagia, Ano I, n. I, maio de 1928)

lembrando que Piratininga é o nome indígena da cidade de São Paulo, fundada como Aldeia do Piratininga. E o Bispo Sardinha foi comido antropofagicamente (no sentido literal) pelos indígenas brasileiros.

Em relação à paródia, ao aproveitamento de textos mais antigos para a reescritura da tradição, finalizamos a análise da relação de Oswald com a Carta de Caminha, com uma última observação de Mário Chamie. E se insistimos nessa relação de Oswald com a Carta é porque ela é emblemática no continente:

Pode-se afirmar que o garimpo do Oswald-poeta, feito sobre o texto matriz de Pero Vaz de Caminha inclui, no seu processo, a paródia, a colagem e a citação. Mas é preciso alertar que será esta uma inclusão diferenciada. De fato, Oswald, ao invadir o discurso de apropriação da Carta, para criar os seu poema pau-brasil, o deglutirá digerindo-o e metabolizando-o. Uma vez criado esse poema, certamente: a) conterá ele elementos de paródia do original apropriado; b) contará com a citação de suas frases; c) utilizará palavras ou passagens suas de empréstimo, caracterizando o seu aspecto de colagem textual (CHAMIE, 2002, p. 24-25).

Em relação à paródia, à incorporação dos discursos, enfim, ao aproveitamento das Cartas dos primeiros cronistas, temos no colombiano Gabriel García Márquez outro exemplo emblemático dessa relação dialógica. No seu livro El Otoño del Patriarca, escrito em 1973, García Márquez recria uma Macondo que, metaforizada como um pequeno país latino-americano, que cheira a goiaba, a almíscar, a úmido, a Caribe e a Selva, situa a trama num tempo não muito distante do presente. Mas um tempo quase presente que se entrecruza com vários tempos desde o descobrimento. Isso permite que o Patriarca abra a janela e veja as três caravelas de Colombo ancoradas na Bahia do mar do Caribe de seu país. A conjunção de vários tempos na obra de García Márquez constitui uma das características de estilo narrativo que ficou conhecido como realismo mágico.3 Um termo polêmico ao qual não queremos

3 Para a discussão sobre Realismo Mágico, ver Irlemar Chiamp, Emir Rodriguez Monegal. Discutimos

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discutir aqui, para não desvirar o foco da questão. O que importa dizer é que esse tipo de escritura mescla a realidade com a ficção, alcançada pela narrativa de cenas que fundem o urbano com o rural, o moderno com o arcaico, o natural com o sobrenatural, e ainda, tudo isso com o maravilhoso. Enfim, a razão e a desrazão do continente latino-americano, que ficou conhecida como realismo mágico, tem sua dívida com as crônicas do descobrimento. E essa dívida, ou esse intertexto, pode ser verificado, como mínimo, nas três características de aproveitamento do original que Mário Chamie aponta acima sobre Oswald. Ou seja, elementos de paródia do original; citação de frases do original, e, colagem de palavras ou passagens inteiras. E isso vale para muitas obras da literatura latino-americana. Lembremo-nos de Cem anos de solidão, por exemplo, e de toda a obra de García Márquez, quem disse: “o Diário de bordo de Cristovão Colombo é o primeiro texto de realismo mágico nas Américas”.

Vejamos um trecho da Carta de Colombo, escrita por Frei Bartolomé de las Casas, sobre a primeira viagem, e logo depois a presença dela em El Otoño del Patriarca.

Vicente Muñoz Puelles observa que o Frei Las Casas acompanhou Colombo na primeira viagem, e teve os manuscritos originais do Almirante nas mãos, podendo manipulá-los à vontade, antes que estes desaparecessem, talvez para sempre. Logo após a chegada de Colombo às Bahamas, Las Casas descreve os primeiros contatos com os índios. Ele estabelece um discurso ambíguo, dizendo que quem escreve é o próprio Almirante (Colombo). Mas vai acrescentando um yo (eu), ao longo do texto que deixa transparecer um narrador/observador que se faz presente. E nesse ponto ele se aproxima de Caminha, num possível jogo literário. Apenas se aproxima, pois Caminha, como vimos, diz logo no início que outros e inclusive o Comandante poderão fazer a crônica, mas aquela é a sua maneira de fazê-lo, portanto, a sua assinatura. Ao passo que Las Casas vai deixando suas marcas ao longo do texto:

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hechos, de muy hermosos cuerpos y muy buenas caras: los cabellos gruesos casi como sedas de cola de caballos, y cortos: los cabellos traen por encima de las cejas, salvo unos pocos detrás que traen largos, que jamás cortan. De ellos se pintan de prieto, y ellos son de la color de los canarios ni negros ni blancos, y de ellos se pintan de blanco, y de ellos de colorado, y de ellos de lo que hallan, y de ellos se pintan las caras, y de ellos todo el cuerpo, y de ellos solo los ojos, y de ellos sólo el nariz. Ellos no traen armas ni las conocen, porque les mostré espadas y las tomaban por el filo y se cortaban con ignorancia” (COLÓN, 1992, p. 64-65).

Duas das instâncias da Carta de Las Casas, ou de Colombo são: a) ignorância, b) a ingenuidade. García Márquez se vale dessas duas instâncias para construir, ironicamente, personagens ignorantes e ingênuos. Um deles é o próprio patriarca que não sabia ler até bem entrada idade. Depois começa a aprender com a esposa e sai soletrando as sílabas do alfabeto em voz alta pela residência presidencial. Leva toda tarde uma estudante vestida de uniforme escolar para fazer amor na estrebaria conjunta à casa presidencial. Acredita ser um Don Juan, um burlador de estudantes adolescentes. Sem saber que na verdade tratava-se de prostitutas travestidas de estudantes, pagas por seus subordinados para passarem por aquela rua no horário de saída das colegiais, e fingirem que gostavam de tudo o que ele fazia ou dizia. Palavras e frases são retiradas também: “para que no les vieran la vergüenza senil, y el jueves

menos pensado le poníamos a uno las condecoraciones prendidas con alfileres en la última casa (…).” (MÁRQUEZ, 1991, p. 34). A quinta-feira menos pensada (“el jueves menos pensado”) no contexto de El otoño del del Patriarca, é uma alusão à chegada de Colombo. A quinta-feira, 11 de outubro de 1492 seria o dia anterior ao da chegada, o último dia de vida sem a chegada do outro.

E a alusão ao dia da chegada de Colombo, considerado oficialmente como sexta-feira, 12 de outubro, aparece logo na página seguinte, nas recordações do patriarca, a incorporação: “(...) y contemplando las islas evocó otra vez y vivió de nuevo el histórico

viernes de ocutubre en que salió de su cuarto al amanecer (...)” (MÁRQUEZ, 1991, p. 35).

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personagem, entrecruzando os tempos, são frases cifradas, que o leitor tem de ir decifrando para entrar no texto artístico.

O narrador de El Otoño del Patriarca tem muitas vozes, ora estão narrando para o general presidente, ora ele mesmo está narrando, ora outros personagens de que se estava falando antes tomam a palavra e saem narrando. O jogo dialógico é a uma constante narrativa que se mantém, sem aviso prévio de que se vai mudar de narrador, ou de que as muitas vozes vão se entrecruzar:

(...) había visto renacer los tulipanes holandeses en los tanques de gasolina de Curazao, las casas de molinos de viento con techos para la nieve, el transatlântico misterioso que atravesaba el centro de la ciudad por entre las cocinas de los hoteles, había visto el corral de piedras de Cartagena de Índias, su Bahía cerrada con una cadena, la luz parada en los balcones, los caballos escuálidos de los coches de punto que todavía bostezaban por el pienso de los virreyes, su olor a mierda mi general, qué maravilla, dígame si no es grande el mundo entero, y lo era, en realidad, y no sólo grande sino también insidioso (…) (MÁRQUEZ, 1991, p. 34-35).

Vemos assim, como García Márquez, ou a voz dialógica do seu narrador vai assumindo o discurso de Colombo. E o discurso de Colombo recriado, ainda mais do que colagens de frases e de passagens, plasma toda a Carta dentro dessa obra ficcional de García Márquez.

Vimos no trecho da Carta de Colombo citado acima, como ele diz, através da pena de Las Casas, que deu gorros vermelhos (“bonetes colorados”) aos índios, os quais lhe davam de tudo em troca desses gorros vermelhos e colares de vidro. Essa troca de objetos passou a ser vista como a primeira exploração comercial das riquezas dos índios, pelas correntes marxistas. Há muita literatura que diz criticamente: “Deram-lhes gorros vermelhos e lhes levaram o ouro e a prata”. Ou a partir do discurso nativista, indigenista ou originário: “Deram-nos gorros vermelhos e levaram “Deram-nosso ouro”. Enfim, o presente de Colombo, bonetes

colorados, é já um símbolo no imaginário ocidental. García Márquez parodia essa passagem,

e exagera ao colocar de gorros vermelhos os mestiços, não os índios, pois na sua trama o tempo já avançou. O efeito da sua crítica é a ironia risonha. O leitor não pode ter outra reação que não o riso ao ler que o patriarca, ao despertar, depois de evocar aquela histórica sexta-feira, se encontrou com todo mundo da casa presidencial usando tais gorros. E depois descobre que também lá fora, nas ruas do país inteiro, haviam carnavalizado tudo:

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los paralíticos en las escaleras y los leprosos en los rosales se paseaban con bonetes colorados de domingo de carnaval, de modo que se dio a averiguar qué había ocurrido en el mundo mientras él dormía para que la gente de su casa y los habitantes de la ciudad anduvieran luciendo bonetes colorados y arrastrando por todas partes una ristra de cascabeles, y por fin encontró quien le contara la verdad mí general, que habían llegado unos forasteros que parloteaban en lengua ladina pues no decían el mar sino la mar, y llamaban papagayos a las guacamayas (…) (MÁRQUEZ, 1991, p. 34-35).

Haviam chegado uns forasteiros que diziam la mar e não el mar. Essa diferenciação linguística de García Márquez é mais uma frase cifrada. Sabemos que na língua espanhola a palavra mar tanto pode ser empregada no feminino como no masculino. E Las Casas escreve la mar por toda a Carta, o que podemos ver logo na apresentação do relato da primeira viagem: “Porque, cristianísimos y muy altos y muy excelentes y muy poderosos Príncipes, Rey y Reyna de las Españas y de las islas de la mar, Nuestros Señores, este presente año de 1492 (…)” (COLÓN, 1992, p. 35).Fica evidenciada a alusão aos espanhóis como forasteiros (uso do espanhol peninsular), e aos habitantes (uso latino-americano do idioma), como aqueles que aceitam de imediato a novidade do uso dos gorros vermelhos e a põem em prática, ou melhor, em cena.

A cultura da América Latina é paródica, antropofágica e carnavalizadora. A festa de fevereiro é uma data mais vistosa no calendário, mas não é outra coisa que a opulência do carnaval que acontece no dia a dia da cultura. Durante todo o percurso da pesquisa queremos nos fundamentar na reinterpretação que Emir Rodríguez Monegal fez de Bakthin, à luz de uma nova historiografia da América Latina:

Do ponto de vista dos colonizadores ou do ponto de vista dos colonizados, o conflito de culturas e de mitos produziu versões igualmente carnavalizadas. Nessas versões, as culturas opostas e até heterogêneas aparecem inesperada e brilhantemente integradas. Os antropólogos já estudaram as infinitas variações de alguns cultos afrocubanos ou afrobrasileiros, o sincretismo de culturas que eles implicam, a mescla e confusão de qualquer possível “origem” que pratiquem. No conceito de Carnaval, a América Latina encontrou um instrumento útil para alcançar a integração cultural que está no futuro e para vê-la não como uma submissão aos modelos ocidentais, não como mera corrupção, de algum original sagrado, mas como paródia de um texto cultural que em si mesmo já continha a semente de suas próprias metamorfoses (MONEGAL, 1979, p. 408).

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(...) y llamaban papagayos a las guacamayas, almadías a los cayucos y azaguayas a los arpones, y que habiendo visto que salíamos a recibirlos nadando entorno de sus naves se encarapitaron en los palos de la arboladura y se gritaban unos a otros que mirad qué bien hechos, de muy fermosos cuerpos y muy buenas caras, y los cabellos gruesos y casi como sedas de caballos, y habiendo visto que estábamos pintados para no despellejarnos con el sol se alborotaron como cotorras mojadas gritando que mirad que de ellos se pintan de prieto, y ellos son de la color de los canarios, ni blancos ni negros, y de ellos de lo que haya, y nosotros no entendíamos por qué carajo nos hacían tanta burla mi general si estábamos tan naturales como nuestras madres nos parieron y en cambio ellos estaban vestidos como sota de bastos a pesar del calor, que ellos dicen la calor como los contrabandistas holandeses, y tienen el pelo arreglado como mujeres aunque todos son hombres, que de ellas no vimos ninguna (…) y después vinieron hacia nosotros con sus cayucos que ellos laman almadías, como dicho tenemos, y se admiraban de que nuestros arpones tuvieran en la punta una espina de sábalo que ellos dicen dientes de pece, y nos cambiaban todo lo que teníamos por estos bonetes colorados y estas sartas de pepitas de vidrio que nos colgábamos en el pescuezo por hacerles gracia (…) (MÁRQUEZ, 1991, p. 35-36).

Da descrição física dos indígenas, da paisagem natural que se intromete o tempo todo na narrativa de Las Casas, da paródia da descrição física que García Márquez faz, pode-se dizer que há um intertexto dessa passagem de El Otoño del Patriarca também com a Carta de Caminha. Como já vimos:

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, dos bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência (CAMINHA, 1963, p. 32).

No caso do México, evidentemente, se pensa nas Cartas enviadas por Hernán Cortez aos Príncipes e Reis de Espanha. As Cartas de Cortez atuam na cultura do continente de maneira mais intensa, mais tensa, e talvez apareçam mais na literatura, nas artes, nos teatros, nos discursos políticos do que as Cartas de Las Casas e Caminha, por exemplo. Isso se deve à matança de Cortez para conquistar riquezas, e que o Capitão narra sem nenhum pudor. Cortez também descreve a natureza, faz a crônica da paisagem, instaura a instância da ignorância, da ingenuidade e também a da astúcia. Mas é o lado cruel, o da tentativa de aniquilamento e destruição que mais se sobressai na reincorporação dos seus textos. Eles têm incorporado o discurso militante ante-colonização:

(...) Antes que os nativos pudessem se juntar, queimei seis povoados e prendi e levei para o acampamento quatrocentas pessoas, entre homens e mulheres, sem que me fizessem qualquer dano (...)

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majestade, em sua real ventura nos deu Deus tanta vitória, posto que matamos muita gente sem que nenhum dos nossos sofresse dano (CORTEZ, 1986, p. 33).

O trecho acima pertence à segunda Carta, na qual Cortez segue dizendo que não só mata e aprisiona, mas corta as mãos dos vencidos na guerra, sem compaixão:

(....) No outro dia vieram cerca de cinqüenta índios que traziam comida e começaram a olhar as saídas de nosso acampamento, bem como as cabanas onde dormíamos. Os de Cempoal vieram até mim e alertaram-me para olhar aqueles homens que eram maus e vinham espionar. Dissimuladamente prendi um deles sem que os outros vissem. [ ...] Depois tomei mais outros cinco ou seis e todos confessaram a mesma coisa. Em vista disso, mandei prender todos os cinquenta e cortar-lhes as mãos e os enviei a seu senhor para que dissessem a ele que quando ele viesse saberia quem éramos (CORTEZ, 1986, p. 33-34).

Vejamos agora um trecho da terceira Carta de Cortez. As torturas e os crimes formam um cenário de horror mais forte do que a ficção poderia criar. Pareceria que os personagens do folhetim francês Rocambole se inspiraram nas torturas de Cortez. No capítulo dedicado ao folhetim veremos como os personagens praticam a vingança, em cenas bizarras, muito parecidas com as crueldades reais de Cortez. Uma grande coincidência, evidentemente, mas o folhetim virá da França para se desdobrar nas Américas:

(...) continuamos a fazer nossos constantes ataques à cidade, sempre provocando muito dano e matando muita gente. Há uns vinte dias que vínhamos fazendo esse tipo de ação, quando os nossos começaram a insistir comigo, dizendo que era preciso tomar o mercado. Eu me escusava argumentando que só o faria quando tivesse plenas condições. Até o tesoureiro de vossa majestade veio me dizer que todo o real queria que eu tomasse logo o mercado, pois assim os inimigos perderiam o seu posto de abastecimento e morreriam de fome e de sede, pois só lhes sobraria a água salgada da lagoa (CORTEZ, 1986, p. 89).

E na quarta Carta Cortez continua severo e determinado na conquista do espaço e das riquezas:

(...) Mas, a 5 de fevereiro o dito capitão partiu novamente para lá e espero que desta feita ele possa realizar o seu trabalho, pois além de ser aquela uma terra rica em minas os seus nativos não param de importunar os seus vizinhos que se tornaram nossos amigos. (...) pedi ao capitão que os derrotasse, os matasse e tomasse por escravos os que sobrassem vivos, ferrando-os com a marca de vossa majestade. Tenha por certo, mui excelentíssimo príncipe, que a menor destas entradas me custa mais de cinco mil pesos de ouro e que as Pedro de Alvarado e de Cristóbal de Olid custam mais de cinquenta, sem contar outros gastos de minha fazenda. Porém, como é para o serviço de vossa majestade, se a minha pessoa fosse junto, isto seria uma grande honra e recompensa (...) (CORTEZ, 1986, p. 113).4

4 Trechos de cartas enviadas à Espanha por Hernán Cortez nas quais ele narra como aniquilou a

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O mundo narrado por Cortez aparece incorporado de maneira crítica na análise semiótica que Carlos Fuentes faz do encontro das duas civilizações na sua obra El espejo enterrado. A incorporação do mundo em destruição, de modo mais fictício, ocorre no seu livro El naranjo. Uma reunião de cinco relatos que não se sabe se são cinco contos ou cinco novelas curtas. Carlos Fuentes diz que não importa definir, o que importa é o trabalho com o tempo, a busca de uma memória que nós, latino-americanos, não temos. No início do livro o leitor se dá conta de que a numeração das páginas segue uma ordem decrescente. Estratégia para se conduzir ao passado, que passa a ser a matéria da ficção. E logo nas primeiras páginas ele evoca o discurso do Cortez da destruição:

Cayeron los templos, las insígnias, los trofeos. Cayeron los mismísimos dioses. Y al día siguiente de la derrota, con las piedras de los templos indios, comenzamos a edificar las iglesias cristianas. Quien sienta curiosidad o sea topo, encontrará en la base de las columnas de la Catedral de México las divisas mágicas del Dios de la Noche, el espejo humeante Tezcatlipoca. ¿Cuánto durarán las nuevas mansiones de nuestro único Dios, construidas sobre las ruinas no de uno, sino mil dioses? (FUENTES, 2003, p. 111).

Fuentes vai incorporando o discurso de Cortez. A busca pelo passado revela que o latino-americano, fruto da mestiçagem, não tem origem. Carlos Fuentes chegou a dizer que o tema do francês Júlio Verne era o futuro, e que o nosso, latino-americano, é o passado.5

Fica evidente o trato ficcional do passado, ora carnavalizado, ora entrecruzado ou superposto, ora paralelo nas melhores narrativas do continente. Além de Gringo Viejo e El naranjo, do próprio Carlos Fuentes, é assim em El Otoño del Patriarca, e de certo modo em Cem anos de solidão, de García Márquez. É assim em O reino deste mundo, de Alejo Carpentier. E assim nos romances de Miguel Ángel Astúrias, de Juan Rulfo, de Augusto Roa Bastos, entre outros. Por ser uma literatura que se volta para o passado e o trata como tema ficcional, sempre no limite da realidade com a ficção, as crônicas do descobrimento atuam como um manancial inesgotável, sempre presentes na cultura. E o romance folhetim soube manter a relação com as crônicas do descobrimento, para beber dessa fonte. E essa relação se deu pelas exigências de novos fazeres para os novos meios, pela imposição da paisagem cultural. Como o romance-folhetim se relacionou com as crônicas do descobrimento e com outras séries da cultura é o que veremos no segundo capítulo.

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2 O ROMANCE-FOLHETIM E A RELAÇÃO COM AS CRÔNICAS DO

DESCOBRIMENTO E COM OUTRAS SÉRIES CULTURAIS

A literatura latino-americana teve sua formação e seu desenvolvimento mediados principalmente pela imprensa escrita (jornais e revistas), e falta ainda esclarecer melhor como a literatura foi impulsora de muitos dos avanços tecnológicos e culturais desses próprios meios. Ambas, literatura e imprensa estabeleceram uma relação de proximidade que possibilitou um roce constante, de forma tal que a produção de ambas só é possível separar, hoje em dia, por um esforço didático. Elas compartilharam os mesmos escritores, os mesmos temas: políticos, sociais, econômicos e recreativos. Também compartilharam os mesmos leitores/ouvintes. Falar do romance folhetim no Brasil e na América Latina implica falar também da implantação da imprensa no continente.

É verdade que nem toda a literatura do continente se formou a partir dessa relação com a imprensa que se estabelecia, uma vez que a grande tradição do livro também foi levada em consideração pelos latino-americanos. Mas o fenômeno de comunicação e arte no qual se tornou a nossa literatura foi formado a partir de uma circularidade entre a tradição e a inovação experimental que as novas tecnologias foram propiciando pouco a pouco à imprensa. É essa segunda relação que deve ser privilegiada para analisar a produção escritural numa nova perspectiva, que não a subordine ao velho continente, que não legitime a suposta superioridade de quem veio primeiro. Definitivamente, não há degradação dos modelos europeus pelos latino-americanos. Essas teses são formuladas, e quase sempre homologadas, pelas crenças nos mitos de origens. E depois, pela crença de que a tecnologia dos países mais avançados neste aspecto determina o modo de vida dos países menos desenvolvidos do ponto de vista tecnológico. Essa visão não leva em conta os usos e as mediações. Nem a antropofagia cultural e a dimensão da mestiçagem.

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Considerando que o folhetim seguiu uma cronologia de publicação nos países latino-americanos, que segue bem de perto a cronologia de publicação da França, no século XIX, se faz conveniente uma pequena abordagem sobre o problema da periodização – ainda que esta implique uma digressão –, antes de atacar o folhetim propriamente dito.

2.1 O Problema da Periodização da Imprensa

A periodização da imprensa é feita em cima de muitas incertezas, várias hipóteses, e não poucas conjecturas. Enrique Ríos Vicente, no seu estudo El Periodismo en Hispanoamérica, começa a encadeação dos seus argumentos citando uma série de frases de García Ponce, todas iniciadas por orações subordinadas:

Si la primera imprenta en llegar al continente americano fue a México (1536-1539 fecha más probable) y más tarde a Santo Domingo, Lima y otras ciudades, transcurrieron más de doscientos setenta años para que en Venezuela se llegara a los primeros intentos para su establecimiento (PONCE apud VICENTE, 1994, p. 468).

Nenhum dos dois autores estudados, nem Ponce nem Vicente, se arriscam a afirmar com certeza qual é a data exata da chegada da imprensa no México. Vicente termina o parágrafo, após fechar aspas, dizendo que “el cajista lombardo Juan Pablos se desplazó a México como regente de la primera imprenta y es considerado en México como el primer impresor de la ciudadad” (VICENTE, 1994, p. 468). De fato, há uma coincidência da instalação da imprensa no México com o aparecimento das folhas volantes (“hojas volantes”), que se constituíram como gérmen do jornalismo de gazetas, ou primeiro jornalismo, como ficou chamado. Vicente considera esse jornalismo de gazeta “equivalente ao produzido na Europa no século XVII” (VICENTE, 1994). A primeira folha volante foi impressa por Jun Pablos em 1541, e narrava, ou melhor, comentava os acontecimentos relacionados ao terremoto da Guatemala: Relación del espantable terremoto... De modo que já se pode vislumbrar uma tendência para narrar o maravilhoso, o fantástico, o real, e os costumes, dando as notícias de tal forma que o estilo narrativo vai ajustado ao conteúdo que transmite.

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informa que à chegada dos navios de aviso e das frotas, se publicavam folhas volantes que “contenían notícias de España y Europa en general, y a veces se hallaban ilustradas con toscos grabados” (VALDÉS, 1955, p. 16). A expressão “toscos gravados” nos dá uma pista da experimentação iconográfica que se estava vivendo naquele período. Estudos apontam que os astecas, maias, e incas tinham sistemas avançados de comunicação e que, embora não usassem nenhum alfabeto ocidental, tinham sim uma espécie de escrita baseada nas imagens, do qual o Popol Vuh, livro pintado na pedra, é um dos grandes exemplos que nos restou. Esses sistemas primitivos (ou primeiros) foram totalmente destruídos pelos espanhóis. Foi destruído o sistema como era até então, mas não os desdobramentos desse sistema, através da penetração de seus códigos e linguagens no sistema da escrita e da imagética implantados pelos espanhóis. As gravuras dessas primeiras gazetas não satisfazem os eruditos porque não reproduzem o padrão estético dos europeus, tampouco podemos dizer, em favor delas, que seguem a estética indígena. Elas são já produtos de uma mestiçagem, tentando se adaptar a um novo meio. E isso está aquém da falta ou do excesso de tecnologia.

Vicente aponta que “as gazetas supunham um passo decisivo no mundo informativo colonial, exigido em parte pelo próprio jornalismo exterior” (VICENTE, 1994, p. 469). E esse papel foi cumprido pela Gaceta de México y Noticias de Nueva España (de janeiro a junho de 1722), a primeira em aparecer nas colônias espanholas. Seu editor, Juan Castorena y Úrsula, natural de Zacatecas, disse que decidiu colocar em prática a publicação regular ao tomar conhecimento das gazetas da Europa, que impulsionavam os ideais da Ilustração. Castorena também nos diz que organizou as notícias de acordo com a procedência. Já em ralação aos conteúdos, predominavam aqueles referentes à religião e ao governo. Entretanto, é de se estranhar que um jornal que se ocupava apenas de religião e políticas do governo, não tenha durado mais tempo, já que contava com uma boa logística. Valdés justifica o seu desaparecimento, dizendo que “el alto precio de los materiales de imprenta, la marcha del editor a Mérida y las sátiras, ahogaron la vida de nuestro primer editor” (VALDÉS, 1955, p. 16). Seria interessante investigar a quem essas sátiras eram dirigidas e qual a tipologia delas. No momento, nos basta registrar que elas dividiam espaço nas páginas com assuntos religiosos e políticos.

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referencias muy importantes de la vida social y política del período colonial” (VICENTE, 1994, p. 469). Mas na sua reinauguração já começou a sofrer problemas de imposição e vigilância, devidos à situação que se encontrava o gazetismo na Espanha. A Resolução de fevereiro de 1731, assinada por Floridablanca, estabelecia a proibição de todos periódicos, exceto o Diario de Madrid e os de caráter oficial.6 De modo que, devido ao rumo que tomava a Gaceta de Guatemala, as autoridades montaram guarda para exercer controle e coibir a difusão de ideias proibidas no semanário. Notamos que os jornais nascem bastante independentes, editados por um “impressor”, como eram chamados os editores e redatores da época. E algum tempo depois passam ao domínio dos Estados, que os convertem em oficiais, ou oficiosos.

O terceiro modelo de publicação periódica na América Ibérica corresponde ao Peru. Nos levantamentos de Vicente, a Gaceta de Lima apareceu em 1º de dezembro de 1743 e durou até a década de 1780. O autor cita um estudo de Temple, no qual este último diz que a dita gazeta “aunque se publicó sin interrupción, no fue muy regular”7 (TEMPLE apud Vicente, 1994, p. 469). Mas essa gazeta tem alimentado muitas opiniões controversas em relação ao seu período, e inclusive um duplo dela atormenta os historiadores e críticos. O próprio Vicente ressalta que os problemas decorrem, principalmente, do fato de que em 1715 apareceu uma Gaceta de Lima, impressa no “taller” de José Contreras y Alvarado. Essa gazeta que não é a historiada; teria surgido 28 anos antes da outra, oficial na história da imprensa peruana. Alguns estudiosos mais recentes estão relendo os estudos dos mais antigos. Castorena, por exemplo, referiu-se a um novo estilo de jornalismo gazetil, o que estaria dirigido à Gaceta Nueva, publicada em Madrid, em 1661. Mais tarde, Francisco González de Cossío, após reproduzir o números 2 de uma Gaceta Nueva de Madrid, na sua Introdução do livro Gacetas de México, vol. I, conclui que as palavras elogiosas de Castorena, nas quais ele apontavam o surgimento de um novo estilo jornalístico estavam dirigidas, na sua interpretação, à Gaceta de Lima, e não à de Madrid.

Havia um ambiente propício à implantação do jornalismo regular em Lima? Na opinião dos estudiosos sim, havia:

Lima tuvo fundamentos suficientes como para haber producido incluso algún tipo propio de gaceta (1715 señalan algunos, Cossío desde 1700), porque

6 Em Historia del periodismo español, Saiz conta como a Espanha estava atravessando, com essa

Resolução, o que ela chamou de “una larga noche” (SAIZ, 1983).

7 Não tivemos acesso direto ao texto de Temple. A referência completa é dada por Vicente: TEMPLE,

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desde 1618 comenzaron a aparecer los “noticiarios” que fueron sustituyendo al periodismo primitivo. El primer “noticiario” fue publicado en 1618. Este tipo de noticiarios hacia 1622 comenzaron a estructurarse en forma de periódicos. En el famoso Diario de Lima de Suardo se relata que en 1630 “muchas nuevas vinieron de Castilla, las cuales se imprimieron a toda prisa en esta Corte. Este mismo Suardo relata en detalle el interés por las noticias de Castilla que luego de la censura correspondiente eran pasadas a los impresores. Este diario era una memoria manuscrita de lo que aconteció en el virreinato entre 1629 y 1639, redactado por Juan Antonio Suardo, bajo las órdenes del virrey Conde de Chinchón (VICENTE, 1994, p. 469-470).

De todo modo é preciso observar que por mais avanços que se tenham dado ao jornalismo com o gazetismo no continente, muitos estudiosos afirmam que nos tempos da conquista não havia nascido ainda a imprensa moderna. Ela ainda não é moderna do ponto de vista tecnológico e comercial como será a futura imprensa de massa. Mas ela antecipa uma tendência futura da imprensa do mundo todo que é o duplo interesse por tudo que vem de fora e por tudo que a circunda no ambiente ao qual está inserida. E ainda devemos considerar que os relatos e as notícias dos feitos e sucessos da América já haviam começado a serem narrados pelas primeiras crônicas. Alguns consideram os cronistas como precursores do jornalismo.

Entre os cronistas já mencionados, destaca-se o alemão Ulrico Schmidel, soldado da expedição de Pedro de Mendonza, que chegou ao Rio de la Plata em 1535, e uns trinta anos depois (1567) publicou em Frankfurt a sua obra intitulada Historia y Descubrimiento del Río de la Plata y Paraguay. É uma crônica, com extensa enumeração de tribos, em alguns casos desenvolvidas, diz ele, dos frutos, da pesca e das formas de organização social. Schmidel teria omitido muita coisa que presenciou, acusam muitos, e atribuem o seu proceder ao fato de ele ser militar e religioso católico fervoroso. Teria Schmidel pecado, na visão dos estudiosos da comunicação, pela imparcialidade e pela falta de objetividade nas suas reportagens. As acusações partem de uma visão assentada na crença de que o jornalismo pode ser totalmente objetivo e imparcial, negando a participação de um sujeito que participa do processo ao relator os fatos (SALLES, 2009).

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franciscano da cidade. Segundo, a história da Argentina se confundia com as do Uruguai e do Paraguai, numa total falta de delimitação geográfica do que se chamava Vice Reino do Prata. Terceiro, a Argentina preferiu fixar a data oficial da imprensa nacional a partir de um jornal liberal e nacionalista, para coincidir com o ano da sua independência, 1910. Como a data oficial da imprensa nacional brasileira antecede a da Argentina, consideraremos primeiro o problema no Brasil, e logo voltaremos ao caso argentino.

No Brasil não houve imprensa, pelo menos de modo oficial, até o começo do século XIX. A Coroa portuguesa proibia que a colônia tivesse imprensa. Todavia faltam-nos estudos que comprovem a existência e a tipologia de possíveis jornais escritos à mão em terras brasileiras. Se no começo do século XVII esses jornais eram recorrentes no México, na Guatemala e no Peru, como já vimos, inclusive a sua origem no século XVI, de certo podem ter surgido também em português na colônia luso-americana. Mas a historiografia considerou que o primeiro jornal brasileiro, escrito em língua portuguesa, surgiu no Rio de Janeiro: A Gazeta do Rio de Janeiro (1808), mesmo ano da chegada da família real portuguesa, que viera fugida da perseguição que Napoleão impunha aos reis da Europa. A Gazeta do Rio de Janeiro teve seu primeiro número publicado em 10 de setembro de 1808. Era uma espécie de Diário Oficial da Coroa, editado pelo frei Tibúrcio José da Rocha. Editava os decretos do rei e não tinha nenhum propósito independentista, evidentemente, como já fazia o jornalismo das gazetas dos países hispano-americanos. O presidente Getúlio Vargas, contrariando a expectativa de setores mais democráticos da sociedade brasileira, decretou o dia 10 de setembro como o dia nacional da imprensa no Brasil, com base na primeira publicação dessa gazeta.

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Analisando o jornal que passou a representar o dia da imprensa no Brasil vemos que Correio Braziliense era uma publicação mensal, política, mas com grande cobertura científica, econômica e social, que teve sua importância na formação do país. Entretanto o Brasil trocava seis por meia dúzia, pois o novo referente da data célebre não teria tido todos esses ideais. Hipólito José da Costa Pereira não teria sido assim um exemplo de jornalista combativo e imparcial. Sua biografia é controvérsia. Ao mesmo tempo em que se exilou em Londres para fugir da Inquisição, e da “lei da mordaça” que proibia a impressão de livros e jornais no Brasil, editava um jornal que vinha nos porões dos navios, recebia apoio financeiro e diplomático dos nobres da corte. Estudos apontam que o próprio rei Dom João VI era um dos leitores assíduos do Correio Brasilienze. Depois da partida do rei para Portugal, Dom Pedro I passou a ajudar financeiramente Hipólito Pereira na Europa. Estranho caso é o da mentalidade portuguesa que caminha por via de mão dupla. Ao mesmo tempo que se proíbe a impressão de qualquer jornal sob pena de prisão ou até de morte para quem desobedecer, lê e financia um jornal clandestino.

Hipólito Pereira teve um longo convívio com as autoridades portuguesas. Começou seus estudos em Porto Alegre e terminou em Lisboa. Formou-se em Leis, Filosofia e Matemática, em Coimbra, 1798. Recém-formado, foi enviado como diplomata pela Coroa portuguesa aos Estados Unidos e ao México, para onde partiu em 16 de outubro do mesmo ano de 1798, com a missão de conhecer a economia desses dois países e as técnicas industriais aplicadas pelos Estados Unidos. Voltou ao Brasil, e em 1802 foi enviado a Londres com uma nova tarefa: o objetivo declarado de adquirir obras para a Real Biblioteca e maquinário para a Imprensa Régia. Ao que tudo indica, nessa missão ele travou contato com impressores e se familiarizou com a edição de jornal. Em sua biografia consta que ele havia feito um acordo secreto com a Coroa portuguesa, no qual essa se comprometia a adquirir certo número do seu jornal, além de uma quantia em dinheiro para a sua pessoa, em troca de moderação nas críticas feitas à Monarquia. Maçom declarado e perseguido,chegou a ser preso pela Inquisição, mas conseguiu evadir-se das celas do Santo Oficio para a Espanha, disfarçado de criado, com o auxilio dos irmãos maçons. De lá, diz a sua biografia na Wikepédia, “passou para a Grã-Bretanha, onde se exilou sob a proteção do príncipe Augusto Frederico, duque de Sussex, o sexto filho de Jorge III do Reino Unido e grão-mestre da maçonaria inglesa”.8

Tal foi a vida do nosso primeiro impressor oficial, que morreu em 1823, sem chegar a saber que havia sido nomeado Cônsul do Império do Brasil em Londres, digna de um

8 HIPÓLITO DA COSTA. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hip%C3%

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personagem de folhetim de Eugène Sue, Ponson du Terrail, José de Alencar ou Machado de Assis.

O pioneirismo do jornalismo brasileiro é muito discutível e discutido. O político alagoano e pioneiro nos estudos da comunicação no pais, Costa Rego, defende que antes de frei Tibúrcio e Hipólito da Costa Pereira tivemos Tavares Bastos (MELO, 2010).9 Já o jornalista Carlos Alves Müller acredita que muitos outros fizeram jornalismo bem antes desses três já citados. Müller chama a atenção para Antônio Isidoro da Fonseca, quem considera o primeiro tipógrafo a imprimir no Brasil (1746). Lembra também o nome de João Soares Lisboa, editor do Correio do Rio de Janeiro, que teria reagido duramente contra uma lei de D. Pedro I que censurava a imprensa. João Soares defendia a convocação de uma constituinte brasileira. Assunto que vai provocar a desgraça de muitos defensores da imprensa. Frei Caneca, por exemplo, um dos lideres da Revolução Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador, foi fuzilado. Tornou-se, segundo Müller e alguns outros, “o primeiro mártir da imprensa brasileira. E não é demais lembrar que a Revolução Pernambucana de 1817, também conhecida como “Guerra dos Padres”, além dos anseios de se independentizar do jugo econômico da Corte estabelecida no Rio de Janeiro, estava movida pelas ideias liberais que entravam no Brasil junto com os viajantes estrangeiros e por meio de livros e de outras pulicações. E Müller não nos deixa esquecer a figura do médico italiano Libero Badaró, editor do Observador Constitucional, guerreiro defensor da liberdade de imprensa, assassinado em novembro de 1830 (MÜLLER, 1999).

Já começamos a desenhar os contornos do ambiente que vai receber o primeiro folhetim publicado no Brasil, segundo os levantamentos de Marlyse Meyer, nove anos depois da morte de Libero Badaró. É o que veremos no tópico seguinte. Agora é hora de voltar às considerações sobre a imprensa na Argentina, para explicar a fixação da data oficial.

No começo do século XVIII a Companhia de Jesus introduziu a imprensa no território que compreendia o Vice Reino do Prata para produzir livros de catecismo aos indígenas, como já vimos. Alguns estudiosos indagam se deveriam incluir na história da imprensa argentina a chamada “Prensa Guarántica”, atualmente reivindicada pela historiografia do Paraguai. Não é incomum também encontrar artigos da área de comunicação na Argentina que colocam em xeque a existência dessa imprensa. O senso mais comum nos trabalhos historiográficos sobre a instalação da imprensa na Argentina é o de que os Jesuítas a instalaram em Córdoba, em 1758.

9 Ver também Por José Cristian Góes. Disponível em: <cristiangoes.blogspot.com>. Acesso em: 10

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