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Lourenço Diaféria

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Silvio, que pulou no poço das ariranhas para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói – como o santo – é aquele que vive sua vida até as últimas conseqüências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio poderia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto. E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele:povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento – apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher – salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era

seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que – como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem – não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quando te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancado do fosso das ariranhas – como você tirou o menino de catorze anos – mas queríamos que alguém fizesse o gesto solidário em nosso lugar.

Sempre é assim:o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis – tarde demais.

Anexo IV

O Descobrimento do Brasil: Eu Vi!

Mário Prata

Na próxima semana, chega às livrarias o meu novo livro, Minhas Vidas Passadas (a

limpo), pela Editora Globo, em que conto algumas regressões que fiz. Hoje, mostro para você

um trechinho de quando fui Anhangá, um índio muito tropicalista lá da região onde hoje é a Bahia. Estávamos no dia 22 de abril de 1500 e eu era tupi.

Em tempo: Leonardo, que aparece abaixo, é o doutor Leonardo Ramos, psiquiatra e psicanalista com quem fiz a sessões.

Anhagá – Eu havia saído antes do sol com meu irmão Anhangá e meu primo Ibirapu

para ir até as mandiocas. As mulheres queriam fazer farinha. Fomos pelo caminho da praia. Estava um dia muito bonito, o sol forte. Um vento bom.

Leonardo – Como vocês estavam vestidos?

Anhangá – Como sempre. Nada no corpo. Só pintura. Nus. Leonardo – Como vocês se pintavam?

Anhangá – Com urutum [sic] vermelho. A gente tirava da semente da planta. Bom

para proteger do sol e da picada de insetos e mosquitos. Me deixa continuar.

Estou vendo a cena muito bem. O sol já estava quase inteiro sobre as nossas cabeças, quando eu olhei para o mar e vi. Vi aquilo.

Ahangá – Anhangué, olha aquilo! Ibirapu – O que é aquilo?

Anhangué – Que canoa grande, irmão!

Anhagá – São muitas. Mais de duas mãos inteiras. Ibirapu – Duas mãos e mais um dedo!

Anhangá – De onde é que saiu isso? Será que é coisa que vem de dentro do mar?

Coisa do mau espírito?

Ibirapu – Vamos fugir daqui! Vamos buscar mais gente.

Anhangá – Calma! Estou achando que está para acontecer alguma coisa muito

importante. Vamos ficar atentos.

Anhangá – Foi quando uns deles vieram numa canoa pequena até a praia. A gente se

aproximou. E começamos a rir na cara deles. A gente era três, eles eram uns dez na canoa. E a gente rindo deles. Tinha um, o mais engraçado, com jeito de mulher, que ficava o tempo todo

rabiscando uns risquinhos num papel. Tudom que a gente fazia, ele fazia risquinhos, desenhinhos. Mas parecia mulherzinha. Os outros, toda hora olhando para ele, diziam: anotaperovás!

Leonardo – Como?

Anhangá – Anotaperovás.

Leonardo – Ah... Anota, Pero Vaz.

Anhangá – Isso. E a gente rindo, o Anhangué deitava no chão de tanto rir. Leonardo – Rir? Do quê?

Anhangá – Dos panos que eles usavam em cima do corpo. Tinham o corpo todo

coberto de pano. Aquele sol, eles savam [sic] Brancos. Branco queimado, meio avermelhado. Difuerente [sic]. Falavam coisas que a gente não entendia. E como fediam! Que cheiro horrível aqueles homens brancos tinham! Acho que não tomavam banho havia varias luas.

Leonardo – E vocês se comunicaram como?

Anhangá – O homem branco, que parecia ser o chefe, fez sinal com a mão para a

gente colocar os arcos e as flechas na areia. A gente olhou um para o outro, homem branco fez cara de homem bom. Sorriu. Senti que eles tinham medo de nós. Eu disfarçava, mas também tinha medo. Pensei nas minhas mulheres, nos filhos... Colocaram os arcos e as flechas na areia. Cada um de nós estava com sete flechas. O homem se aproximou, tirou uma coisa da cabeça e falava ‘barrete, barrete, barrete’ e colocou na cabeça do Ibirapu, que ficou muito engraçado. Começamos a rir dele, os homens brancos também.

Ibirapu começou a dançar e a pular feito um menino. Rimos muito. Todos.

Depois de dar um mergulho com o tal de barrete e i barrete se desmanchar todo, Ibirapu tirou um colar de conchinhas e deu para um homem branco. O tal do anotaperovás.

Mal sabia eu, naquele dia, que aquela troca de presente era o começo da extinção de uma população hoje estimada em mais de 8 milhões de índios.

Anhangá – Aí eles fizeram sinal para a gente ir com eles até o barco grande.

A gente ficou com medo.

Anhangá – O que vocês acham?

Anhangué – Acho que não tem perigo, não. Eles são muitos bobos.

Ibirapu – Sei não. Aquele que fica fazendo rabisquinhos me olha de um jeito muito

esquisito. E se a gente for até lá e eles levarem a gente embora? Pra dentro do mar?

Anhangué – E as mandiocas? Vou acabar apanhando das minhas nove mulheres!”

Anexo V