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DO MANIQUEÍSMO À TIPOLOGIA: OBSERVAÇÕES SOBRE ATITUDES METODOLÓGICAS E IDEOLÓGICAS NO PENSAMENTO SOCIAL MODERNO

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Do Maniqueísmo à Tipologia

Observações sobre Atitudes Metodológicas e

Ideológicas no Pensamento Social Moderno

NELSON SALDANHA Professor da Universidade Federal

de Pernambuco

«Tudo se cumprirá segundo as leis que foram dadas ao mundo conform e a regra de ação mais correta, para o malvado como para o justo em razão das m aidades do primeiro, e da correção do segundo». (Zend — Avesta, Gathas do Yaçna, X X X III, 1. Conform e a tradução de De H arlez).

«A tendência à diferenciação não tem idêntica força sempre nas distintas épocas históricas. Averiguar o grau de sua eficácia é missão da história concreta, que não pode ser substituída pela construção histórica». (E. Spranger, Formas de Vida, parte IV, cap. 2 ).

1 . Arquétipos, trajetória e alcances. C o loq ue m os com o

p o n to de p a rtid a o fa to de e x is tir a noção da diversidade. Ela existe, pa relha à noção da sem elhança, com o um com ponente e le m e n ta r na elaboração das idéias; e deve te r s id o fu n d a m e n ta l

nas o rig e n s do pensa m ento hu m ano em q u a lq u e r qu ad rante . C oloquem os, tam bé m , o fa to de que, com o p ro g re sso das idéias, no cam p o re lig io s o e no ético , no ló gico e no c ie n tífic o , e m esm o ao nível das rep resentações m en ta is m ais ru d im e n ta re s , e m ais

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prosaicas, surgiu a necessidade de tra n s fo rm a r a diversidade em antagonismo. A noção do « d ifere nte» tra n s ito u para a do «oposto» ou para a do «não com patível», e daí vieram , em alguns casos, as noções extrem adam ente antagônicas: na lógica,

na ética, na religião (possivelm ente o antagonism o no plano

norm ativo terá surgido antes das antinom ias teóricas, mas isso hão entra no tema por enquanto).

Em um sentido m uito geral, podemos dizer que toda

divergência se situa ora de um modo radical, excludente, ora de um modo relativizante e flexível. Esta é uma form a de colocar desde logo as noções do dogm atism o e do relativism o ; e de propor que, enquanto o dogm atism o é em potencial m aniqueísta, o relativism o em con tra pa rtida se vincula às tip o lo g ia s . Mas o entendim ento do problema requer que se considere uma visão «dogm ática» das coisas, e outra oposta, tom ada com o heterodoxa;

ou ainda, uma verdade o fic ia l, a que se opõem dissensões, o que nem sempre ocorre de modo característico.

O problem a, porém, é m uito mais com plexo, inclusive se o tentam os equacionar e ap rofun da r sobre um panoram a histórico. Existem sem dúvida numerosos arquétipos que revelam no esp írito hum ano uma tendência arcana aos dualism os: o dentro e o fora,

o acima e o abaixo, o grande e o pequeno, o to rto e o certo,

o m orto e o vivo, o belo e o fe io — e daí sairia uma lista

interm inável. Destes dualism os fundam entais, alguns são puras indicações tópicas, outros envolvem valoração. Dos que envolvem

valoração caberia d is tin g u ir os estéticos (belo, feio ) dos éticos (bom, mau), e na linha destes encontrar-se-ão du alism os arque- típ ico s m uito curiosos, certam ente ligados a m om entos concretos da experiência cultural. Por exem plo o dualism o direito-esquerdo, ou «dextro» e «canhestro» (nas palavras clássicas se encontra um dado valorativo ainda hoje usado: o esquerdo com o gaúche,

maladroit, desviado de linha e de retitud e). A mão d ire ita de

Deus como mão preferencial; tam bém estar na mão, no trâ n s ito m oderno é estar à direita.

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Na m itolog ia grega o branco e o preto chegaram a ser con tra po sto s com o v a lo r e desvalor.1 Eco possível da velhíssim a oposição en tre luz e treva, presente no caso m ais exem plar de

d u alism o polêm ico: o m azdeísm o persa.

Representações m eram ente tem po rais têm -se con vertid o em contraposições valorativas. Assim a concepção do passado como « b om » (e do presente com o «m a u» ), que se encontra em épocas tra d ic io n a lis ta s — certas fases da Idade M édia por exem plo — , aplicando-se às institu içõ es, aos usos, às condutas. Esta concepção, levada às plenas conseqüências e posta em plano m ítico, expres-sou-se na antiga imagem das Idades da histó ria , entendidas em sucessiva degradação m etálica: a do ouro, a do cobre, a do bronze, a do fe rro . Idades que seriam etapas de uma perda gradativa de valor.2

Esta im agem , po r sua vez, corresponde com o se sabe a uma espécie de utopia: a utopia passadista (as utopias fu tu ris ta s seriam no caso as de tim b re revolucionário). U topias: sem pre aparentadas com as heresias e com as profecias. E de ntro do pensam ento ocidental m oderno, já tendente à tip o lo g ia , as utopias perm anecem — cabe a n o ta r desde logo — com o uma remanes-

cência do m aniqueísm o.

A pro pó sito de arq ué tipos: na teologia de tip o m aniqueísta (poderá uma teologia m ilita n te escapar ao m aniqueísm o?) os prin c íp io s basilares do bem e do mal se acham sem pre pensados

1 . Cf. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, trad. J. L. Borges, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1972, p. 62. Sobre os dualismos no pensamento grego, CHARLES SELTMAN, Riot in Ephesus. Writings on the heritage of Greece, ed. Max Parrihs, Londres, 1958, págs. 97-98. Vale lem brar que NIETZSCHE, com seu instinto de filólogo, vinculou o latim malus (m au) ao grego méllas (negro, escuro). Há ainda, como tradição mítica de remotíssima origem, a crença segundo a qual as coisas da natureza se apresentam dotadas de sexo e como tal divididas numa dualidade fundamental (MIRCEA ELIADE, Ferreiros e alquimistas, trad. R. C. Lacerda, ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1979, capítulo III).

2 . ELIADE, Mircea. Mito y Realidad, trad. Lufs Gil, 2a. edição, Ed. Guadarrama, Madrid, 1973 (cap. IV, pp 76 ss.) Cf. também JERZY SZACHI, As Utopias, trad. R. C. Fernandes, Rio, ed. Paz e Terra, 1972, cap. 4.

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como seres providos de entidades m ilita n te s , que os expressam e defendem. Mas, ao p rin c íp io do bem se a trib u e essencial

positividade (o mal é «negativo»), e com isso se lhe a trib u e

uma superioridade natural e intrínseca (os m essianism os em geral tam bém se consideram «invencíveis»). No m ito grego de Hércules se acha o arquétipo da união entre a força absoluta e a absoluta bondade (p o r p rin c íp io e por suposto o herói se volta para o bem); com isso se deseja evidentem ente g a ra n tir uma dada ordem, confirm ando os dois lados dela: o conteúdo ético e a estabilidade form al. E no pensam ento racion alista do próprio século XVII as «entidades» m íticas desaparecem (Com te apreenderia m uito bem a coisa), mas a pretensão de id e n tific a r o bem com a força prossegue, já como ideal ju ríd ic o -p o lític o a fu n d ir o d ireito com o poder, já como ideal filo s ó fic o a entender o homem com o ser perfectível e sua evolução com o

inexora-velm ente progressiva. Utopias talvez, mas sem pre recorrentes.

* * *

Passemos às tra je tó ria s. Ê evidente que a a titu d e religiosa e o pensar teológico são passíveis de variações, e estas corres-pondem a contextos e épocas: religiões cam pestres, cosm ogonias

p rim itiva s e arcaicas, politeísm os evoluídos, m onoteísm os de espécies distintas. A religião de Zoroastro, na antiga Pérsia, ficou como p ro tó tipo d e fin itiv o do dualism o provido de m ilitâ n c ia ética; e este dualism o reapareceu, entre os fin s do m undo a n tigo e os inícios do ocidente (inícios da Idade M édia), em heresias carac-terísticas, entre as quais a de Mani, ou Manés.3

3 . Cf. a tradução de J. Darmesteter, The Zend Avesta (coleção «Sacred books of the cast», dirigida por Max Muller), Oxford, Clarendon Press, 1895. Cf. também a tradução de C. de Harlez, Avesta — livre sacré du zoroastrisme (2a. edição, Maisonneuve, Paris, 1881). Consultamos

também os artigos «Zoroaster» e «Manichaeism» na Encyclopaedia Bri- tannica (ed. 1954), volumes 20 e 14. Para as heresias medievais, ERNST TROELTSCH, Le dottrinne sociali delle chiese e dei gruppi cristiani, trad. G. Sanna, vol. I (único editado), 2a. edição, Nuova Italia, Florença, 1949; S. E. HERRICK, Some heretics of yesterday, ed. Houghton, Boston 1885. V. também PAUL TILLICH, The protestant era, trad. J. L. Adams, ed.

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Apesar de ser um abuso verbal fa la r numa «Idade M édia» com o algo un ifo rm e e in alterável (po rqu anto durou m ais de mil anos, conheceu m utações e conheceu diversidades regionais m arcantes), apesar disso puderam se fix a r alguns rasgos fu n d a -m entais do padrão socio cu ltu ra l e da -m entalidade que basica-m ente v ig ora ra m no O cidente m edieval: cosm ovisão estática, com um

sistem a m etafísico de «lugares naturais» que incluía o m undo social; predom ínio do prism a teológico e ético -religioso, com crença no bem e no m al, no céu e no inferno, na verdade e no erro. A Igreja, estabelecendo um pensam ento o fic ia l com respeito ao c ris tia n is m o e aos problem as da fé, pro piciou o surgim ento de alte rn a tiva s e c o n flito s entre ortodoxia e heterodoxia. De resto, o p ró p rio tip o de cosm ovisão vigente, em term os gerais, favorecia o aparecim ento das opções de cunho m aniqueísta: esta opção fo i, desde o século V, expressa para o O cidente em term os m onum entais na vasta obra de Santo Agostinho, De Civitate

Dei.4 Favorecia tam bém a pro life ra ção de grupos e seitas, como

aliás vem de novo ocorrendo nos séculos m odernos; com a diferença de e xistir, no m edievo, uma instância religiosa suprem a, capaz de d e fin ir os grupos com o heréticos ou não, condenáveis ou não, em nível inapelável sobre um determ in ado plano.

Apesar, porém , de e x is tir então uma inapelável instância cen tra l e «universal» abarcando o m undo cristão ou a respública

cristiana com o totalida de , as ferm entações d o u trin á ria s m edievais

pro du ziram heresias que se arrogavam por seu tu rn o o caráter de «certas» e infalíveis. Já naqueles tem pos oco rria o que sem pre acontece quando um poder central assume posição de

dono-da-Nisbet & Co., 1955, págs. 2 3 ss. Para as heresias v. ainda MARIO MARTINS, Correntes da filosofia religiosa em Braga nos séculos IV a VII, ed. T. Martins, Porto, 1950. Especiais interpretações em J. M. ANGERBERT, The occult and the Third Reich, The Mystical origins of nazism and the search for the holy Grail (trad. L. Sumberg ed. Mac Graw-Hill, 1975). Outros aspectos em JOACHIM WACH, Sociology of Religion, ed. Kegan Paul, Londres, 1947, passim.

4 . Obras de SAN AGUSTIN, tomo XVI: La ciudad de Dios (ed. Bilingüe, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 19 58) Cf. GUSTAVE

COMBÈS, La doctrine politique de Saint Agustin, ed. Plon, Paris, 1927 (sobre as «fontes maniqueístas» da obra, ver págs. 3 5 e seguintes).

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verdade: as divergências em face dele tendem a ser radicais, e o circulo vicioso que se estabelece fom enta novos radicalism os

e reedita o maniqueísmo.

O antagonismo, já posto pelos profetas hebreus, en tre ricos e pobres,6 foi retomado por algum as das heresias m edievais.

Entre estas, a pretensão de pureza (cátaros, por exem plo) eqüivalia a uma pretensão de superioridade ética e de rejeição a toda outra posição.

Enquanto isso, será talvez pe rtinente notar que o sistem a indú de castas não propiciou opções como aquela entre «ortodoxia» e «heterodoxia», já pelo estaticism o (im o b ilism o ) social extrem o que lhe correspondeu como contexto, já pela acentuada e disper- sadora pluralidade dos rangs presentes na hierarquia: a estática das castas correspondeu a um m undo de com plem entaridades e de superposições consentidas. O medievo europeu teve tam bém pluralidade e dispersividade no plano dos idiom as e das etnias, mas a circulação de idéias pôde apesar de tud o increm entai insatisfações e contestações. De certa form a caberá adiantar, por ou tro lado, que a opção entre heresia e ortodoxia não seria

propiciada, tam pouco, ao menos em princípio pela sociedade moderna, burguesa, «m óvel», secularizada: seria então de pensar-se que a alternativa heresia-ortodoxia supõe um determ inado tip o

de contexto social, ou m elhor, sóciopolítico. Seria possivelm ente isto: os contextos rurais, «arcaicos», favorecem a m entalidade m aniqueísta, enquanto os contextos urbanos, «evoluídos», incen-tivam o relativism o: mas talvez este esquema seja dem asiado s im p lifica n te .

Vale anotar, ainda, que nos relatos utópicos, isto é, nas utopias lite rária s clássicas, a ordem social tam bém não pe rm itia uma opção entre bem e m al. E aí está o tra ç o de absorvência e a u to rita ris m o basicam ente presente naquela ordem : nela, o bem e o mal são levados em conta, mas os homens não optam entre eles, antes são com pelidos a e n tra r num regim e em que o bem

5. LOEB, Isidore. La littérature des pauvres dans Ia Bible (avec préface de Th. Reinach), ed. Leopold Cerf, Paris, 1982.

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está dado, de cim a para baixo (no m undo m oderno, «burguês», a opção nem sem pre existe porque o bem e o mal no sentido clássico pra ticam e nte já não existem ).

As lutas religiosas, que agitaram a Europa no século XVII, não puderam tam pouco fo rm a r um novo contexto m aniqueísta. Em Bossuet talvez se encontrem traços m aniqueístas, mas como resíduos.6 E ntretanto, a conversão de categorias religiosas em categorias políticas, que Carl S chm itt observou com o algo pró prio do processo de secularização c u ltu ra l no O cidente contem porâneo,7 p e rm itiu , na passagem ao século vinte, novos du alism os e novos c o n flito s de crenças. Por ou tro lado, a visão m arxista das lutas de classes — indo neste ponto além da dialé tica hegeliana e dos conceitos dos socialistas franceses — recolocou em term os realm ente confrontativos todos os dados referentes aos problem as sociais básicos: saber, poder, ação, estrutu ras. Negando talvez a vocação do p ró p rio contexto sociocu ltural em que surgia, e

sup la ntan do outros elem entos mais relativista s incluídos no pensam ento do pró prio M arx.

* * *

A a titu d e m aniqueísta corresponde, portanto, de ntro dos processos m ais cara cte rísticos e mais inte lig íveis da evolução c u ltu ra l, a estágios arcaicos e de certa form a p rim itiv o s . Corres-ponde aos absolutism os m on olítico s e à idéia da veritas una: desta verdade única decorrendo uma só ética, uma só política, um só padrão social, senão mesmo um index e alguns textos sagrados. A a titu d e rela tiv is ta -tip o lo g is ta eqüivale de modo geral

6 . Discours sur 1’histoire universelle, par BOSSUET, ed. Firmin-Didot, Paris, 1876.

7 . SCHMITT, Carl. Politische Theologia, vier Kapitel zur Lehre von der Souverãnitãt, ed. Duncker & Humblot, 1934, capítulo III (p. 49). Releva registrar que já em 18 70 TOBIAS BARRETO havia afirmado existir «no fundo das teorias correntes, relativas ao supremo poder do Estado, um sedimento de ortodoxia, uma dose de fé católica nos milagres da constituição e na superioridade moral da reaieza» («A questão do poder moderador», em Questões Vigentes, vol. IX das Obras Completas, ed. do Estado de Sergipe, 1926, p. 172).

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a estágios mais evoluídos e m ais com plexos, à diversifica ção liberal de posições, ao plura lism o c u ltu ra l e psicológico, à tolerância, à noção relativista de verdade. Desta noção decorrem a flexibilização da antiga ética — em nossos dias sub stituída pela biotipologia e pelas relações públicas — , a varia b ilid a d e dos sistemas políticos e ju ríd ico s. Ao relativism o e à secularização do poder corresponde ainda (ou correspondeu) a dem ocracia parlam entar, como aliás fo i visto por Hans Kelsen. A cada a titu d e corresponde um pendor m etodológico (m étodo exprim e sem pre concepção do m undo), e tam bém uma pedagogia: im p ositiva e a priorista, num caso, noutro caso e m p iric is ta e aproxim ativa, liberai, relativizante e flexível.

Esta transição de estrutu ras dom inantem ente teo crá ticas para estruturas laicas, tanto no plano sociopolítico quanto no das representações culturais, pode ser tom ada com o um corre lato daquilo a que alude a frase perturbadora de P iettre: «as socie-dades nascem na religião e m orrem na burocracia». Os dualism os

religiosos evoluem em contextos sociais estáticos, e a passagem à burocracia exacerba os com ponentes racionais (e «prosaicos») das grandes organizações. As révanches do m aniqueísm o hoje seriam, talvez, obra de algum a «astúcia da razão», cujo alcance entretanto não é fácil perceber.

2 . Maniqueísmos políticos e ciência social nos séculos

XIX e XX. A ciência social m oderna nasceu sob o signo da

secu-larização da cultura, em oposição aos teologism os m edievais: o ilum in ism o do século XVIII teve plena consciência disso, e a «Lei dos três Estados» de Cornte expressou esta consciência em form a sistem ática, em bora em term os só pa rcia lm en te acei-táveis. A vocação dos saberes dos séculos XVIII e XIX era o

racionalism o leigo, tendente ao c ritic is m o e ao re la tiv is m o ,8 desprendido de com prom issos teológicos e volta do para uma visão objetiva e «com preensiva» da realidade, ou das realidades.

8 . SALDANHA, Nélson. «Os relativismos do século XX e os movi-mentos comparatistas em Direito e em Economia», em Temas de História e Política, ed. UFPE, Recife, 1969.

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E contudo o im pacto de certos problem as reais alterou ta is propósitos teó ricos; e o pensar dualista, latentem ente m aniqueísta, continuou de q u alque r modo a existir. O lib e ra lism o radical, du ra n te a Revolução Francesa, ensejou a u tilizaçã o política das noções de esquerda e direita, e no pensam ento de Rousseau latejava um certo pendor à in tolerância e à excessiva a firm a tiv i- dade. Com os tra d ic io n a lis ta s franceses retom ou-se o cunho teo lóg ico na filo s o fia social, com o ocorreria tam bém na Espanha com Donoso Cortés.9

A vocação dos saberes sociais do O cidente contem porâneo, correspondente po r certo ao saber leigo e ao racion alism o burguês, desenvolveu-se e n tre tanto com o um c ritic is m o e um relativism o. O saber que Foucault cham ou « c la s s ific a tó rio » se encam inhou para a idéia objetiva dos tip o s. A sociologia um ta n to filo só fica da segunda m etade do oitocentos produziu as tipologias de Gierke, de Bachofen e de Toennies, tendentes a representar esquem aticam ente o con ju nto da experiência h istó rica do homem. P roduziu tam bém , com a obra de D urkheim (já na virada para o século v in te ), uma visão « s o lid a ris ta » e de certa form a c o n c ilia -tó ria do m undo social, alicerçada sobre uma ou duas tip ifica çõ e s fun dam e ntais. Nos inícios do século vinte, Max W eber seria o cria d o r do m étodo dos « tip o s ideais» e de uma das princip ais aplicações do mesmo, no esquema das form as de dom inação. A sociologia do conhecim ento, elaborado nos anos vin te por Scheler e M annheim , se m ontaria (em parte ao m enos) sobre distinções tip o ló g ica s — m ais ou menos contem porâneas das tip o lo g ia s de Dilthey, de Jung, de Spranger. A antropologia tra ria outras, depois, in clusive com Ruth Benedict e Kroeber.10

9 . Cf. Obras Completas de DONOSO CORTÊS, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid 1970, 2 volumes. Sobre o Tradicionalismo,

particular-mente sobre De Bonald, R. SPAEMANN, Der Ursprung der Soziologie aus dem Geist der Restauration, ed. Kosel, Munique, 1959. Sobre Joseph de Maistre, LIANA TRINDADE, As Raizes ideológicas das teorias sociais, São Paulo, ed. Ática, 1978.

10. Mannheim, conforme destaca o sempre profundo PAUL RICOEUR, pretendeu passar de uma teoria social combatente a uma sociologia pacífica e objetiva (Interpretação e ideologias, trad. e apresen-tação por Hilton Japiassu, ed. Francisco Alves, Rio 1977, pág. 88).

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Entretanto, a teoria das classes sociais, que vinha de esque-mas trip a rtite s oriundos de Platão, assum iu com os socialism os do meado do século XIX um esquema d u alista. Em vez de a lu d ir às classes alta, m édia e baixa, a teo ria agora colocava uma contraposição. Em certos pensadores rom ânticos, S aint-Sim on por exemplo, a idéia era a de uma distinção e n tre p ro le tá rio s e

proprietários, indicados segundo c rité rio s que incluíam traços históricos. Em Marx esboçaram-se certos com ponentes tip o ló g ico s, mas em contrapartida o antagonism o hegeliano entre senhor e

escravo se transform ou em luta entre classes, entendida com o p rim um movens da própria realidade histórica. Tam bém a teo ria das form as de governo, que na Revolução Francesa passou a ser usada norm ativam ente («é preciso» que os povos sejam livres, constituídos, republicanos), continuou no século XIX com o um cam po polêmico. Entretanto, Comte tendeu em grande m edida à tipologia, chegando a em pregar a expressão « tip o id ea l».11

Pode-se dizer, na verdade, que a sociologia sem pre fo i vista com desconfiança — ela e suas tipo lo gia s — por parte dos radicalism os da esquerda (que a consideram uma autodefesa da burguesia) e da direita (que a entendem com o uma tem atização latentem ente socialista, uma teo ria dos c o n flito s de classe e da dinâm ica social). Com isso se vincula a idéia, veiculada por alguns críticos, segundo a qual a burguesia «não se in titu la » de burguesia nem se assume com o classe. Descartada a petição- de-princípio que lateja nessa idéia — seria preciso p a rtir do suposto de que a burguesia «deve» assum ir-se com o classe — , há ali uma verdade. O m odo burguês de ser te n d o realm ente à racionalidade e à pretensão da universalidade, ten de à análise e ao relativism o, donde o desdobram ento da pesquisa no saber

11. COMTE, Augusto. Sociologia, organização e introdução do pro-fessor Evaristo de Moraes Filho (ed. Atica, São Paulo, 19 7 8 ), pág. 27 da Introdução.

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social contem porâneo: da pesquisa, do com p ara tivism o e da c rítica .

* * *

Num sentido de sucessão cronológica, desdobrado tam bém com o alte rn a tiva tem ática , fic a m então indicadas duas linhas no pensam ento social contem porâneo: um saber social du alista e

com batente, latentem ente m aniqueísta, e o u tro re la tivista , analítico, ten den te à tip o lo g ia . Sem q u a lq u e r intenção de jogo de palavras, cabe le m b ra r que a indicação destas duas linhas, aqui, tem por sua vez se n tid o tipo ló gico .

Talvez se possa dizer, tam bém , que estas duas tendências fu n d a m e n ta is 12 radicam , para o caso da experiência ocidental m oderna, nas lutas d o u trin á ria s que m arcaram a tra je tó ria do p ró p rio lib e ra lism o . O lib e ra lis m o surgiu, enquanto modo de pensar a vida e a sociedade (não apenas a titu d e po lítica), com um m arcado sentido de laicidade e racionalism o: um pensar desvinculado de m atrizes religiosas ou tra d ic io n a is . S urgiu com um sentido de re la tiv is m o em face dos dogm atism os contidos naquelas m atrizes. A teo ria do poder, antes tra ta d a em term os teológicos e du alísticos, evoluiu, dentro do padrão libera l de pensam ento, para term os sociológicos, plu ra lista s, relativistas, tip o ló g ico s.

E videntem ente este «esvaziam ento» racional da teo ria do poder (com o do pensam ento social em geral), em aras de uma tra ta ç ã o c rític a e livre do problem a, trouxe seus preços e suas co n tra p a rtid a s, in clusive a quebra de certas im agens «estáveis» que existiam no pensar ortod oxo ou religioso: entre a crítica e a dúvida as fro n te ira s sem pre foram pouco perceptíveis, e o rela-tiv is m o generalizado se apresenta freqü en te m en te sob a form a de s u b je tiv is m o e de c e tic is m o .13 Mas o saldo é p o sitivo , e não

1 2 . Estas tendências se distinguem do contraste estabelecido entre Maquiavelismo e Utopismo, por GERNARD RITTER em II volto demoníaco dei potere, trad. de Enzo Melandri, terceira edição, II Mulino, Bolonha, 1971.

1 3 . Cf. as observações de HANNAH ARENDT sobre as relações entre a «crise da autoridade» e a crise da religião, nos tempos modernos (Entre o passado e o futuro, ed. Perspectiva São Paulo, 1972, págs. 127 ss).

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se poderia pretender um recuo, um regresso aos estágios pré-secu- larizados de pensar, por conta destes preços. E as oscilações contem porâneas ainda são o diálogo do racionalism o e do c riti- cism o com as resistências do pensar teológico (acho inclusive curioso que certos pensadores m arxistas, com o Georg Lucaks, escrevam extensos livros contra «o ataque à razão» por parte do «irracio na lism o » contem porâneo, que são porém livros mani-

queístas, onde o «certo» e o «errado» se contrapõem a rb itra ria -mente a p a rtir de um esquema preestabelecido).

* * *

Sobre a relação entre os dogm atism os e as form as políticas, cabe c ita r o ensaio interessantíssim o de Hans Kelsen, sobre um tema em que pôs de lado o ascético fo rm a lism o m etodológico que o celebrizou. Para Kelsen, a correlação seria entre, de um lado, o dogm atism o e o dualism o, de outro o absolutism o político; ou então entre o m onism o e o c ritic is m o de um lado, e de outro o relativism o político, isto é, a dem ocracia p lu rip a rtid á ria e o parlam entarism o. E ntretanto, as idéias de Kelsen sobre o cunho «ideológico» dos dualism os na teoria do D ireito e do Estado não me parecem in te ira m e nte convincentes, no sentido em que os monism os resultariam não-ideológicos, o que permanece discutível.14

3 . Dogm atism o e relativism o . Repassemos ainda os

con-ceitos e as im plicações. A a titu d e fixa e plena de afirm ação corresponde sem pre a uma ênfase sobre o «ce rto ». Ela se encontra nas grandes cultu ras com o expressão religiosa e política: nas m onarquias clássicas e nas igrejas do m inantes. Esta atitu de se revela dogm ática. Revela-se ta l, sobretudo, quando vista em confronto com uma divergência, uma crítica, uma indagação. E esta indagação, crítica ou divergente, costum a apresentar-se

14. Cf. KELSEN, Hans. Esencia y valor de Ia democracia, trad. L. Tapia e Legaz y Lacambra (no mesmo volume, Forma de Estado e

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DO m a n i q u e í s m o a t i p o l o g i a

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com o relativista, po rqu anto supõe que não existem verdades absolutas, ao menos ao nível das afirm ações socialm ente viáveis e d a q u ilo que parece necessário discutir-se.

O do gm a tism o que podemos cham ar clássico — antigo e m edieval — fo i exem plarm ente ontológico e substancialista, fundando-se sobre a velha correlação entre o ser, a verdade e o

bem. O mal e a m en tira (ou o «e rro» ) corresponderiam ao não-ser, seriam negativos. Os relativism os m odernos se vinculam a o u tro e s tilo de concepções do m undo e do conhecim ento: concepções relacionistas, critic a s , penetradas de resíduos céticos e e q u ilib ra d a s por um racionalísm o preocupado com o m étodo e com a análise; po r ou tro lado, vinculam -se (sobretudo em nosso século) ao pensam ento de padrão h isto ricista .

Os «sistem as» que correspondem ao modo dogm ático de pensar (com o o to m is m o e o m arxism o) oferecem sem dúvida aos seus adeptos uma discip lin a çã o bastante segura: todos os problem as se resolvem de ntro de coordenadas previstas, qu alque r

desvio se condena (ou se «explica», conform e o caso), e é

com um as pessoas se instalarem neles sem terem passado antes por o u tra s posições. Em c o n tra pa rtida , as posições de tip o re la tiv iz a n te obrigam os adeptos a constantes reexames. O rela- tiv is m o extrem o, que seria corrosivo e in sta biliza nte, aparece

com o um caso lim ite : o de que se fala aqui é o relativism o de base c ritic is ta (ou h is to ric is ta ).15

A evolução do dogm atism o ao relativism o pode considerar-se paralela, grosso modo, às fases de am adurecim ento (e talvez « e nve lhe cim e nto» ) c u ltu ra l: aquela sensação de ceticism o que os pensadores gregos tivera m , com o lem brou Dilthey, diante da m u ltip lic id a d e de idéias e de costum es que em certa época se lhes revelou. 16 No sentido spengleriano, corresponderia à

1 5 . ROMERO, Francisco. «Escepticismo y relativismo», em Filosofia de ayer y de hoy, ed. Argos, Buenos Aires 1947, págs. 70 ss.

16 . DILTHEY, Wilhelm. Theórie des conceptions du monde, essai d'une philosophie de la philosophie, trad. L. Sauzin, ed. PUF, Paris, 1946, página 1. Sobre a laicização da cultura na Grécia antiga, MARCEL DETIENNE, Les Maltres de verité dans la Grèce archáique, Paris, ed Maspero, 1969, cap. 5.

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passagem da «cultura» à «civilização»; poderia ser, tam bém , correlato de «crises» gerais em certas épocas — crise do esp írito grego no século V A. C., crise do «Ocidente» em nosso século. Com o advento do relativism o, a idéia de verdade perde o solene aprum o que possue no dogm atism o: foi o que ocorreu na Grécia ao tem po dos sofistas. No pensam ento ocidental contem porâneo, enquanto os tom istas continuaram falando em term os de «certo» e de «errado», os histo ricista s — Croce por exem plo — pro cu-raram evitar ou superar o uso destes term os, provenientes do eticism o substancialista clássico e incom patível com a perspectiva histó rica .17

4 . Relativism o e tipo lo gia . Foi visto, linhas atrás, que as

prim eiras décadas do século vinte tra ria m consigo algum as tip o -logias marcadas pela tendência a superar os m on olítico s dogma- tism os que vinham do pensam ento clássico. Nas obras de D ilthey (particularm ente na «Teoria das Concepções do M undo»), se estadeou um inconfundível enfoque relativista, in con fo rm ado com as filo sofia s do tip o rígido e ortodoxo, e desejoso de m ed itar justam ente sobre a variab ilidad e de form as assum idas pela sistem atização filosófica. Com a «Teoria» de Dilthey, o re la tivism o histo ricista produziu uma tip o lo g ia que não repetia o esquema eclético e «conciliatório» de Cousin, mas que realm ente retom ava o problem a que este havia enfrentado cerca de duas gerações antes.

Este estilo de enfoque teve suas influências sobre as ciências sociais. O método fenom enológico, ú til para deslindes conceituais e para distinções objetivas, era um convite às pretensões de «objetividade», enquanto o penchant c u ltu ra lis ta e histo riza nte dos pensadores néo-kantianos (com o Rickert, D ilthey, Sim m el, W indelband, Cassirer) propunha revisões novas. Disto tu d o

resul-17. Aproveito para insistir sobre ponto onde já tenho tocado, em outros trabalhos: o quanto Karl Popper se acha afastado do verdadeiro entendimento do historicismo, quando, em sua aceitável preocupação em defender a open society, confunde o historicismo com totalitarismos e ortodoxias de toda sorte.

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DO MANIQUEÍSMO a t i p o l o g i a

23

tou a tendência tipo ló gica , m ontada sobre pretensões objetivistas e ao m esm o tem po sobre interesses tem ático s c u ltu ra lis ta s e histó rico s.

Nem fa lta ra m à montée do pensar do cunho tip o ló g ic o , essen-cia lm en te re la tivista , conexões com o processo de

«democrati-zação da cultura» ,18 com sua entranhada am bigüidade: superação

dos dogm atism os, que se haviam ligado aos ab solutism os clássicos, mas tam bé m diluição de certas form as (aludim os a isto linhas

acim a) e de certos esquem as clássicos. Por ou tro lado, a c o n fir-mação e a expansão da sociologia com o ciência apresentava — ao menos sob certo aspecto — uma corroboração de tud o isto. A sociologia (e Comte, com o dissem os, tin h a razão em grande parte) vinha a ser agora a fun dam e ntal explicação das coisas hum anas, com o o fora um dia a teologia (deixem os a m etafísica po r enquanto): o esp írito ilu m in is ta , em inentem ente com parador e c rític o , fundam entou o ím peto racionalista e c ie n tific is ta que os novos padrões in te le ctu ais iria m assum ir, levando-se às plenas conseqüências o processo de «secularização do saber» iniciado ainda nos séculos XIV ou XV, e reform ulando-se a p ró p ria im agem do hom em .

Encaradas as coisas po r um panoram a ba stante am plo, poderíam os fa la r aqui de «prosaização» da cu ltu ra , com vistas a Vico, ou ao menos a lu d ir (de novo) ao processo da «se culari-zação» c u ltu ra l que, no caso do Ocidente, se esboçou nos fin s do m edievo e culm ino u nos c ie n tific is m o s do século XIX. O apego às ciências e ao em p irism o , bem com o ao racionalism o e às análises críticas, gerou (e im p lic o u ) um re la tivism o essencial, que con sistiu em recusar as verdades aceitas e antigas, ou abso-lutas e uniform es, em prol do perm anente indagar e do questionar, da com paração entre experiências c u ltu ra is e da «com preensão». Aqui não nos detem os sobre a d istinçã o — realm ente aceitável — en tre com preender e exp lica r, posta pelos néo-kantianos:

detemo-1 8 . SALDANHA, Nélson. Temas de História e Política, cit., cap. 13 («A mentalidade democrática e o pensamento social moderno»). Idem,

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nos antes sobre o fato de que psicologia, sociologia, h is to rio g ra fia , antropologia, eruditam ente explicam e com preendem ; situam c ir-cunstâncias, medem e descontam , reduzem (com o que prosaica e «burguesam ente») as experiências humanas aos seus com po-nentes empíricos, acessíveis à explicação causai ou vulneráveis à compreensão conceituai. Enquanto isso, dentro de um esquema evolucional, a época das verdades absolutas fic a lá atrás, co n fu n -dida com a experiência das éticas ortodoxas e aristo crática s, do trágico, do grandioso, das coisas «invulgares» e válidas por si mesmas. O trágico não se compadece com o pensar analítico nem com os descontos em piristas e u tilita ris ta s . (E ntretanto, não

compete ju n ta r o trágico com o maniqueísm o: in clusive porque a noção do trágico é sobretudo criação grega, proto-ocidental, enquanto o maniqueísmo é obra do espírito persa enxertado em solo sírio e depois judaico-cristão).

* * *

Contudo a sociologia, assum indo desde cedo pendores tipo- logistas, não deixou de revelar com ponentes ideológicos, nem conseguiu tornar-se isenta e «neutra» no sentido axiológico. Com isso aludo a um debate que ainda hoje rola: o debate entre os pa rtidá rios da ciência social com prom etida ou «engajada» e os da ciência social neutra. Na verdade o relativism o não é bem um neutralism o embora este pressuponha àquele. A pretensão de uma ciência social im perm eável a in filtra çõ e s axiológicas me parece vã e im pertinente (e o próprio Max W eber não se exim iu de ta is infiltrações), como me parece im p ertine nte o propósito de uma sociologia totalm ente com prom etida, onde os vínculos p a rti-dários ou ideológicos pesem e contem mais do que os parâm etros da seriedade intelectual. O problem a da neutralidade pode e deve ser valorizado como um modo de evitar os m aniqueísm os pequenos e grandes que se inserem nas explanações (ou, com o alguns diriam , no «discurso») das teorias sociais. Mas a verdade é que se instala, então, sobre o campo das opções m etodológicas, este

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o u tro m aniqueísm o: de um lado o sadio « n eu tra lism o », de outro a inconveniente «ciência p a rtid á ria » .19

* * *

Como ligeira digressão, uma nota sobre a alte rna tiva entre sociologism o e filo s o fis m o no O cidente m oderno. Desde o seu s urg im en to, a sociologia se apresentou sem pre com o uma espécie de realism o, com o uma aceitação do real, em bora jam ais in te ira -m ente «n e u tra » : por o u tro lado tro u x e desde logo a tendência (que o p ró p rio Com te representou) a ser uma ciência de tip o s e de explicações que, situa nd o as coisas, as relativiza m . Enquanto isso a filo s o fia , que em outros m om entos pôde ser m ais analítica, pareceu tender, ao menos em certos casos, a a s s u m ir um fe itio de exigência. Exigência crítica , desaceitação de um as coisas e opção nítida po r outras, queixa contra algo, com o no filo s o fa r de Nietzsche — de liberadam ente não-analítico, não-escolástico e não-socrático — , com sua referência não re la tiv is ta aos valores. Há em N ietzsche tip o lo g ia s (dionísico-apolíneo, m oral de escra- vos-m oral de senhores) mas elas não são re lativista s, o que lhes dá um cunho específico e não redutível a categorias sociológicas. Caberia talvez procurar, na linha filo s ó fic a que corresponde à

m aneira de Nietzsche, tra ç o s teológicos latentem ente m aniqueístas (m aniqueísm o como forma de atuação do pensar).

Em D estutt de T racy a alusão às ideologias fo i m eram ente d e scritiva ; em M arx fo i polêm ica e latentem ente m aniqueísta; em M annheim fo i tip o ló g ica .

19 . Uma das colocações mais sérias do tema se acha nos capítulos 6 e 7 de HANS MORGENTHAU, Scientific man vs. Power Politics (Univ. of. Chicago Press, 3a. edição, 1957). Dois dos textos de MAX WEBER sobre o problema foram divulgados em português, sob o abrangente título Sobre a Teoria das Ciências Sociais (trad. C. G. Babo), pela Editorial Presença, Lisboa, 1974. Veja-se um balanço crítico global em UBIRATAN DE MACEDO, «Ciências Humanas e Valor», em Metamorfoses da Liberdade, ed. Ibrasa, Rio de Janeiro, 1978. — No Brasil, um dos principais cruzados do neutralismo em ciências sociais foi MACHADO NETO (Proble-mas filosóficos das ciências humanas, ed. Univ. Brasília, 1966, princ. caps. III e V).

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No marxismo, como pensamento em grande parte radicali- zante, existe um desejo recôndito de extinção do histórico. Ao considerar a história como história das lutas de classes, e ao tom ar como meta a chegada a uma sociedade sem classes, a conclusão corresponde a um esvaziamento da noção de história. Sabe-se que em Marx havia «outra» noção de história, a que nascerá quando os homens, desvencilhados da contingência eco-nômica e das alienações, entrarem no «reino da liberdade»; mas a explicação histórica desta noção depende sempre da prim eira. Por outro lado, a dialética marxista apresenta com sentido sempre negativo os traços da história: traços «injustos» a com bater e traços «provisórios» a superar. Na verdade o marxismo não é um relativismo, o que corresponde ao fato de não ser propria-mente um historicism o. Sua visão da história depende da de um dado «fator», enquanto nos verdadeiros historicism os qualquer fator, qualquer componente da realidade humana tem seu sentido dependente dos quadros históricos e dos contextos culturais.20

5. Alusão à política e à teoria dos regimes políticos. Todas as tendências fundam entais da chamada «secularização» da c u

l-tura (ocidental moderna) corresponderam, e isto já foi mencionado linhas acima, a uma «racionalização»: tal é, ao menos, o enten-dim ento básico dos pensadores e historiadores da cultura em geral. Essa racionalização se manifesta, segundo me parece, como um relativism o em potencial, na medida em que um padrão

crítico e leigo se substitui aos compromissos teológicos e dogmá-ticos que foram dominantes no medievo. Com os séculos ditos

modernos e contemporâneos o relativism o se acentuou. Mas no século XX — e sobre isto têm surgido numerosos estudos — o

20 . No esforço por integrar de qualquer maneira as frases de Marx em novos contextos, os marxistas e marxólogos têm virado e revirado textos, inclusive refazendo e relativizando conceitos como «ma-téria», «produção», «verdade» etc. Vejam-se por exemplo as expressões de Adorno e Marcuse em torno da idéia hegeliana de que a verdade corresponde ao todo, colocando o problema de saber se é o todo que é a verdade ou a verdade é que é o todo (Cf. PHIL SLATER, Origem e signi-ficado da Escola de Frankfurt, trad. A. Oliva, ed. Zahar, Rio 1978, pág. 70).

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relativism o vem sendo desm entido e atropelado por conta de novos radicalism os, ortodoxias e movimentos quiliásticos.

O pendor tipológico tinh a surgido dentro dos relativism os (antropológicos, éticos, epistem ológicos), e com os ecletismos do século XIX ele se acentuou. Consin fez uma hábil tipologia

de sistem as filosóficos, arrum ados em seqüência cíclica. A superação dos radicalism os rom ânticos de índole conservadora, como o de De Bonald e outros, e a preparação de uma geração inteira de cientistas políticos e de constitucionalistas — como na França Hauriou, Esmein e Duguit — , coube em fo rte medida ao ecletism o francês. Inclusive o ecletism o dos chamados «dou-trin á rio s » (geração de Thiers, Guizot, Taine, Jules Simon), dos quais entretanto, por parte de esquerdas e direitas, se tornou hoje moda fa la r mal.

* * *

A ludim os, linhas acima, ao fato bastante sabido de que vivem os (e isto se refere um tan to vagamente aos dois últim os séculos) num tem po sem épica, sem tragédia, sem m isticism o e sem o senso das coisas «veneráveis». Somente a história

perm ite, então (a história como reencontro do passado: histo rio-gra fia e historiopatia), retom ar a experiência destas coisas, tal com o ela ficou conservada em determinadas expressões. Cabe anotar que nisto vai em parte a idéia hegeliana do objecktives

Geist, mas não propriam ente a de uma «volta reacionária ao

passado»; aqui o tema é o de um passado «disponível» através do conhecim ento.

O prosaísmo, ou o «não-tragicism o» de nossa época se m anifestaria inclusive nos «relativism os» ocorrentes em outros planos do viver, que não o da ciência e da teoria, nem o das do utrin as e das estruturas: tam bém na vida cotidiana e na moral sexual (no caso do homossexualismo, por exemplo, o antigo

anátema maniqueísta cedendo vez à compreensão clínica e ao tipo lo gism o das ciências-do-com portam ento). Na sociedade massi- ficada das últim as décadas, tem-se caracterizado porém uma

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vigentes: o «hippie» com o m odelo de c on testação passiva e o «executivo» com o sub pro duto da b u rocra cia, da te c n o c ra c ia e do organizacionism o.21

* * *

No século vinte, têm oco rrid o diversas fo rm a s de ressurgência dos radicalism os e das a titu des p o líticas pa ssio nais; a m uita s

delas se tem atrib uído origem no rom antism o, in te rp re ta d o com o crise dos valores do racionalism o clássico.22 G randes m ovim ento s políticos, com o o com unism o e o nazism o, tê m ap rese ntad o traços escatológicos;23 e nos regim es d ita to ria is m o n o p a rtid á rio s

se pode d e sco b rir uma espécie de m aniqueísm o qu e con siste em con sid erar a posição o fic ia l com o verdadeira e m erecedora de perm anência, sendo toda oposição errônea, m a lé fic a e necessi-tada de repúdio.

Quando, ainda na década de 20, Carl S c h m itt p u blicou seu ensaio sobre o conceito do político, estabeleceu um du alism o fu n d a m e n ta l. Para S chm itt, a relação p o lítica é sem pre e

concre-2 1 . Sobre o «não-tragicismo» de nossa época cabem evidentemente ressalvas. Veja-se inclusive El retorno de Io Trágico, de JEAN-MARIE DOMENACH, Ed. Península, Barcelona, 1969. Sobre o organizacionismo ver William H. WHITE JR., The organization Man, ed. Anchor Book Nova Iorque, 1956.

22 TROELTSCH Ernst, escrevendo sobre os perigos do romantismo (e do germanismo) no pensamento moderno, encontra nele uma contra-posição em relação ao jusnaturalismo e ao racionalismo clássicos: «The ideas of natural law and the theory of society, 15 00-1 800 (Beacon Press, Boston, 1957). Essa sempre falada «crise» da razão, que tem sido encarada por uns como crise da burguesia, por outros como crise da filosofia mesma, se relaciona em nosso século com os processos de massificação, que vêm determinando no Ocidente profundas alterações institucionais e intelectuais. Relaciona-se tam bém , a meu ver (m as este é um tem a desagradável que aqui não dá para desenvolver), com o perigoso aumento de população — e de populações — que vem ocorrendo em todo o mundo, com efeitos sobre todos os planos e aspectos da vida humana.

2 3 . Cf. ELIADE, Mircea. Mito y Realidad, cit., pp. 8 3 e ss: «apesar de estar secularizados en apariencia, el nazismo y el comunismo están carzados de elementos escatológicos, anuncian el fin de este mundo y el principio de una era de abundância y beatitud».

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DO M AN IQ U EÍSM O A TIPOLOGIA

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ta m e n te um a relação e n tre amigos ou e n tre inimigos. O in im ig o é a presença que rea lm en te m otiva a ação p o lític a , que é essen-cia lm e n te fo rm a d a de decisões v ita is . Anote-se que nestes c on-ceito s, S c h m itt, tã o lú c id o con he ced or dos dados h is tó ric o s e tã o agudo c rític o de idéias, ace ntua com ra d ic a lid a d e um dos com p o-nentes da exp eriência p o lític a , com o fim de c o n fig u ra r um a

im agem quase m an iq ueísta da p o lític a ; se bem que seja, c u rio s a -m ente, u-m -m an iq ueís-m o co-m algo de re la tiv is -m o , pois a v itó ria sob re o « in im ig o » consagrará p o litic a m e n te q u a lq u e r posição, com seus valore s e seus p rin c íp io s (ou seus in te resse s).24

De q u a lq u e r sorte, com o o re la tiv is m o c on tem po rân eo cresceu em lig a çã o com o lib e ra lis m o , é im p o rta n te n o ta r que a noção po lê m ica de p o lític a , em S c h m itt, corre spo nde u a um a c rític a do lib e ra lis m o , o qual segundo ele te ria « d e s p o litiz a d o » (e não só de s e s ta tiz a d o ) a vida m od ern a, esvaziando os atos p o lític o s da qu ele s co n teúd os d ra s tic a m e n te de cisó rio s que sem pre tiv e ra m .

D e sace itar com o « fa ls a » a p o lític a lib e ra l, em nom e de um c o n c e ito a n tilib e ra l de p o lític a : esta fo i a m anobra co n ce itu a i de S c h m itt.25 V aleria e n tre ta n to c o m p a ra r estas noções com o re la tiv is m o de um Laski, p o r exem plo, ou com o de H e lle r, que aliá s não fo ra m p ro p ria m e n te lib e ra is : re la tiv is m o baseado sobre a in te n ç ã o de c o n c ilia r a com preensão rea lista (in c lu s iv e econô- m ic o s o c ia l) dos processos p o lític o s e das tra n s fo rm a ç õ e s e s tru

-2 4 . SCHM ITT, Carl. «El concepto de Ia política», em Estúdios Políticos, ed. Doncel, trad. F. J. Conde, Madrid 1975. Schm itt se mostra dualista tam bém em um ensaio menos conhecido: Tierra y m ar. Consi- deraciones sobre Ia hiotoria universal, Trad. R. Fernandez-Quintanilla, ed. IEP, Madrid, 1952. Entretanto, no conhecido ensaio sobre legitimidade, ele propôs uma classificação dos tipos de Estado que é complexamente tipológica (Legalidade y Legitimidad, ed. Aguilar, Madrid 1 9 7 1 ).

2 5 . MARTINEZ, José Caam afio. El pensamiento juridico-político de Cari Schm itt, Ed. Porto, Santiago de Compostella, 1950, pág. 119 ss. Cf. JORGE VANOSSI, Teoria Constitucional, vol. I, ed. Depalm a, B. Aires 1975, p. 4 5 (n ota). — Aqui se evocam as observações de ORTEGA sobre a «elegância» do liberalismo, tão difícil de sustentar, em face das tendências radicalizadoras, um de cujos aspectos consiste exatam ente em não re-conhecer meios termos.

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tu ra is trazidas pelo século vinte, com a estim ação dos valores juríd ico -co nstitucion ais, da dem ocracia parlam entar e das lib e r-dades.

* * *

Toda uma tem ática de «re to rno ao m ito» tem aparecido em nosso século, na antropologia, na lite ra tu ra , na filo so fia , na teo ria política. Como tantas outras coisas, isso tem um lado negativo e o u tro positivo. O excesso de c ie n tific is m o e de inte- lectualism o torno u necessários o in tu icio n ism o e o vita lism o . 0

mito tem sido recentem ente revalorizado como opção diante da

tecnocracia, do m undo cap italista, dos to ta lita ris m o s planificantes; não apenas como ingrediente « irra c io n a l» da reação e dos regimes de direita . E ntretanto, com o as reversões histó rica s são sem pre difíceis, as alusões ao hom em m ítico — como ante ou a n tih is -tó ric o — tropeçam ju sta m en te sobre dados h is-tó rico s. E a idéia de uma época « p ós-h istórica » (com o a que se m enciona em certas interpretações do m arxism o) con s titu i, além de uma noção com pletam ente equívoca, um com ponente ideológico que fa c il-m ente resvala para o plano utópico.

6 . O pensamento social contemporâneo — O pensam ento

fu n d a d o sobre a dicotom ia «certo -erra do» provém , ressalvadas o u tra s antecipações mais rem otas e até arquetípicas, da tradição inte le ctu alística grega.36 Naquela tradição , a ordem «correta» do pensar correspondia à ordem das próprias coisas (Spinoza ainda herdaria esta idéia), e o conceito de verdade — ta n to na fase arcaica quanto depois dos sofistas — se centrava sobre

uma im agem racionalista-geom etrizante do conhecim ento. Por

2 6 . Pode-se dizer que a idéia dos «caracteres», um relativismo fundado inclusive em cogitações fisiológicas, foi idéia tardia entre os gregos, sucedendo aos dualismos trágicos. No próprio Fedro de Platão (266-A e B) se encontram ainda alusões à esquerda e à direita: o amor do lado direito como preferível ao amor «sinistro» (Diálogos, trad. de Carlos Alberto Nunes, ed. Univ. Federal do Pará, 1975, p. 8 1 ). __ ' Cf

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o u tro lado, com o a verdade e o bem se consideravam solidários (P latão m esm o situou m etafisicam ente a noção de uma idéia suprem a que seria a um te m p o a verdade e o bem ), a diferença entre o certo e o errado, ou entre a verdade e o erro, corre spo n-deria à oposição entre bem e m al. Como corresponn-deriam , ambas, à oposição entre ser e não ser, dado que o mal e o erro se caracterizavam antes de tu d o com o noções negativas. A escolás- tica, sob retud o po r via a risto té lica , consagrou d o u trin á ria e

m etodologicam ente este modo exem plar de pensam ento, que encontrou apoio óbvio no cham ado «senso com um » e que ajuda sensivelm ente a c o n s tru ir em sen tido d idá tico q u a lq u e r sistem a de idéias. O ceticism o an tigo e os relativism os m odernos colocaram suas agudas desconfianças d ian te dos «dogm atism os», mas não abalaram m aiorm ente o v a lo r lógico da diferença en tre certo e errado, nem destruíram a crença na existência (teórica ou p rá tica ) do certo e do errado.

Nas ciências sociais contem porâneas a velha preocupação com o «certo» se com binou espontaneam ente com a noção do «recom endável», dentro da mesma idéia de uma solidariedade

intrínseca entre o pensar e o ag ir; ou antes, dentro da idéia

(assum ida pelo ilu m in is m o ) de que o saber certo in flu iria e

« ilu m in a ria » de modo certo a realidade social. O m ito do progresso, su b stitu in d o -se à antiga im agem da providência divina ,27

corres-pondeu certam ente aos ideais leigos da burguesia progressista e favoreceu as d iretiva s prá ticas do saber ilu m in is ta . Mas no meio a pesquisa em pírica — conduzida inclusive po r M ontesquieu — ten dia ao relativism o , pelo lado h istó rico e com parativo. Tal

re la tiv is m o não prejudicou o tom libera l de um M ill (aliás, dos

dois M ill) ou de um Spencer, e de ntro de seu desenvolvim ento sobrevieram , como foi visto, as tipo lo gia s.

Os socialism os oito cen tista s oscilaram entre o relativism o, inerente ao saber social provindo do ilu m in is m o (e expressado no p ró p rio Saint-S im on), e o m essianism o, que vinha das

ante-2 7 . Ver BECKER, Carl. La ciudad de Dios dei Siglo XVIII, trad. José Carner, ed. FCE, México 1943. Algo sobre o tema com enfoque diferente, em ET1ENNE GILSON, Evolução da Cidade de Deus, trad. João Camilo de O. Torres, ed. Herder, S. Paulo 1965, capítulos 8 e 9.

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cipações mais antigas e que conduzia consigo um maniqueísmo latente, pulsante nas pretensões revolucionárias e utópicas im p li-cadas. O m arxism o tam bém oscilou assim. Ocorre, porém, que com as retrações históricas sofridas pela doutrina, os componentes possivelm ente tipológicos e relativistas do m arxism o foram sendo — conform e mencionamos acima — suplantados pelos

compo-nentes radicalizantes, messiânicos e m aniqueístas.38 Com seu repúdio vago mas intransigente ao «ecletism o», o m arxism o se apresenta com o doutrina crescentem ente ortodoxa e escatológica. Uma do utrin a forçosa e necessariamente partidária, cujos adeptos têm de estar com a classe proletária e contra a classe burguesa, pois todas as coordenadas teóricas se pautam sobre este dado

prático. No Brasil de hoje o m arxismo vem seduzindo largos

setores da juventude por conta da fo rte motivação «contestadora» que traz, e do esquem ático reducionism o que lhe serve de base. E pouquíssim o campo sobra em nosso país para os estudos puram ente teóricos: os requerim entos são todos no sentido do

* * #

2 8 . Lemos em HERMANN STRASSER, dentro de uma explanação onde a simpatia para com o pensamento de Marx é inegável, que «no sentido marxista, o comunismo é «a verdade», a etapa final do desdobrar do homem na história, ou seja, a materialização de sua essência». O texto demonstra, a seguir, o sentido messiânico do «holismo positivo» em que se transmuda a «dialética negativa» utilizada por Marx nos setores críticos da sua obra (A estrutura normativa da sociologia, trad. G. Silveira, ed. Zahar, Rio de Janeiro 1978, págs. 158 e segs.). Com mais ênfase DON MARTINDALE: «The uniqueness of marxism does not lie — as its proponents have maintained — in the fact that it is the «only scientific form of socialism». Its claims to scientific standing are based on the use of the dialectic and on the thoroughness with which al phenomena in society are explained economically. The dialectic, which treats scientific method, logic, life growth, physical change and inumerable other things as if they were identical, is outright mysticism. Similarly, the claim to be scientific because every phenomenon conceivable is reduced to economics can only be put down to a complete failure to distinguish between metaphysics and scientific theory. The proposition is not treated as a hypothesis to be tested, but as a foregone conclusion to be ilustrated» (The nature and tipes of sociological Theory, Boston, The Riverside Press

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DO MANIQUEÍSMO A TIPOLOGIA

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que possua interesse p o lític o im ediato e filia ç ã o p a rtid á ria d ire ta .29

Será talvez de colocar-se aqui o problem a do com portam ento do intelectual em face da a lte rn a tiv a entre relativism o s e ortodoxias. Falo sob retud o do in te le ctu al interessado nas cham adas «h um

a-nidades» e nas ciências denom inadas hum anas.

De certo modo, a passagem das form as m aniqueístas de pensam ento às form as racionais e tip o ló g ica s corresponde — com o processo h is tó ric o -c u ltu ra l — a uma alteração na posição

ou no papel do in te le ctu al. No padrão m aniqueísta, o in te le ctu al era (ou é) o profeta, o sacerdote, possivelm ente o p a n fle tá rio de facção, o d o u trin a d o r p a rtid á rio , ou ainda o poeta celebrador de reis. No padrão re la tiv is ta o in telectual é o «ensaísta»,30 o e s c rito r lib e ra l, o professor, o jo rn a lis ta , o acadêm ico. Num sentido ideal, o inte le ctu al contem porâneo se interessa em

de-senvolver ao m áxim o sua capacidade crítica, e em ver as coisas do modo m ais objetivo: não em a firm a r as coisas em c ará te r radical e dogm ático, mas em u tiliz a r perspectivas que m ais p ro fu n d a -m ente in te rp re te -m as coisas. Evidente-m ente outras épocas conhe-ceram a exigência crítica , a to le râ n cia e o re la tivism o heterodoxo: estas épocas con stituem antecipações, ou «correspondências» (em se n tid o spengleriano) em relação ao racion alism o e ao re la tiv is m o m odernos. Na Idade Média, que geralm ente se con si-dera com o período cu ltu ra lm e n te «ingênuo», e de certa m aneira

m aniqueísta, houve tam bém po r certo com ponentes c rítico s e in con fo rm istas. A fig u ra do tru ã o das cortes m edievais ilu s tra ria

2 9 . Ao dar um balanço na literatura política brasileira mais recente, WANDERLEY GUILHERME (após uma lista inteiramente pessoal e subjetiva de «obras representativas») faz uma certa confusão entre dicotomias e maniqueismos, tomando toda dicotomia como maniqueísta (quando na verdade uma dicotomia pode ser tipológica ou maniqueísta). Cf. Ordem burguesa e liberalismo político, São Paulo, ed. Duas Cidades 1978. Tudo por causa da «necessidade» de adotar um ponto de partida anti-burguês. E estas confusões são especialmente perigosas num país como o Brasil, onde a ausência de classe média impõe refrações nos conceitos gerais difundidos pela ciência européia.

3 0 . Muito material histórico em LEWIS COSER, Men of Ideas — a sociologisfs view, New York, Free Press, 1965.

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inclusive, segundo certos autores, o caso do indivíduo sem inserção social definida: um crítico, que, não sem nobre nem clé rigo nem propriam ente plebeu, não possuía «posição» certa (nem papel, acrescentaria Ralf D ahrendorf) e que por isso mesmo podia exercer seu sarcasmo e sua ironia contra todas as categorias sociais. É claro que a im agem do intelectual dos séculos «con-tem porâneos» não se reduz a esta possível e parcial analogia com o bobo dos tem pos do Roman de la Rose, mas vale destacar

um aspecto da analogia: a sensação de «despertencim ento» do intelectual como ta l, não pertencente propriam ente a nenhuma das camadas em que se divide a estrutura social. E na medida em que o intelectual de hoje — professor, jorna lista, escrito r — abandona a liberdade crítica, que corresponde à heterodoxia e ao relativism o, e adere deliberadam ente a uma posição ortodoxa, ele perde um grande pedaço de sua condição. A d e rir a uma posição ortodoxa — partido radical, ideologia messiânica ou ao menos dogm ática — significa a d e rir a um com ponente social definido (classe, por exemplo) ou a um com prom isso maniqueísta, que pode te r sua beleza sentim ental e seu sig nifica do como cruzada, mas certam ente destrói a lucidez crítica e elim ina a independência intelectual. E portanto a perm eabilidade para as nuances da dinâm ica histórica e para a com preensão das varia-bilidades sociais.

Nos contextos nacionais e internacionais de hoje, a em er-gência de maniqueísmos vem com prom eter e am eaçar todo um p a trim ôn io de c riticism o e de m aturação c u ltu ra l longam ente elaborado dentro dos parâm etros racionalistas. Todos os esquemas políticos montados sobre a idéia da liberdade crítica e sobre

valores como tolerância e coexistência são desestim ados (a «segu-rança nacional» tam bém tem conotação m aniqueísta). Os esquemas radicais persistem como pregação e como tática , enquanto algumas form ulações m uito professorais procuram aqui e ali «renovar» a chamada análise política (tam bém a econôm ica e a social). A preocupação com problem as «sociais» (e mesmo com as lib e r-dades) parece coisa de esquerda aos radicais de d ire ita . Aos radicais de esquerda, tod o socialism o não extrem ista (e não- m arxista) parece ideologia «burguesa» e esquema «idealista».

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DO MANIQUEÍSMO a t i p o l o g i a

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Am bos os casos são recusas óbvias ao p lu ra lis m o e ao re la ti-vism o.31 Mas presentem ente, no m undo cham ado ocidental, o

ostensivo fracasso das organizações fascistas e o crescim ento das denúncias con tra o c a p ita lis m o têm consolidado a am pliação das posições de esquerda. Dentro destas, o m arxism o como versão teó rica (correspondendo a um extrem ism o prá tico ) vem tra n s fo rm a n d o em c rité rio ab soluto e infranqueável de de finição de posições a ligação entre o conceito de classe (torna do absoluto) e a vida in te le ctu a l. Há nisso m u ito m ais de estratégia (e de paixão) p o lítica do que de en tendim ento objetivo. Salvo engano.

3 1 . Cf. MIGUEL REALE, Pluralismo e Liberdade, São Paulo, ed. Saraiva, 1963, págs. 24 ss («O ocidente e a concepção plural da Cultura»),

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