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CORY, T. S. Aquinas on Human Self-Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, pp. xi

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CORY, T. S. Aquinas on Human Self-Knowledge. Cambridge:

Cambridge University Press, 2013, pp. xi + 241.

Rodrigo M. S. Ribeiro*

___________________________________________

O conhecimento que um indivíduo pode ter de si próprio oferece uma tensão singular: ao mesmo tempo em que diz respeito ao que pode haver de mais íntimo e familiar (estados mentais, sentimentos, expectativas), pode parecer profundamente misterioso, opaco, quando é perscrutado demoradamente. Com efeito, ao mesmo tempo em que julgamos não nos haver nada mais íntimo que nós mesmos, confundimos verdadeiras motivações com falsos impulsos, sendo sumamente difícil distinguir em que afinal consiste este ‘eu’, que parece nos estar permanentemente presente.

É frente a esta tensão que Therese Scarpelli Cory se dispõe a apresentar a tentativa de Tomás de Aquino de imprimir alguma ordem e coerência a esta mistura de claridade e opacidade que parece ser própria do autoconhecimento.

Em Aquinas on Human Self-knowledge, sua exposição divide-se em duas grandes partes: na primeira, delineia o status quaestionis, procurando familiarizar o leitor com o contexto intelectual em que Tomás formula e desenvolve suas teses; para tanto, passa pelas abordagens aristotélica, neoplatônica e agostiniana, bem como por elaborações do século XIII, e por mudanças presentes no tratamento que o próprio Tomás dá ao problema. Na segunda parte, volta-se à análise das teses tomistas sobre os modos de autoconhecimento tomados em particular, procurando resolver as obscuridades que vêm a surgir no curso de seu tratamento.

Merece especial louvor a destreza com a qual Cory consegue aliar a preocupação didática ao alto rigor científico, constantemente indicando o peso

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relativo dos conceitos e fazendo digressões que permitem explicitar algumas ideias próprias da metafísica ou da psicologia do Aquinate úteis ao perfeito entendimento de cada questão, sempre coligindo inúmeras passagens de todas as obras de Tomás. Cory também demonstra profundo conhecimento da copiosíssima literatura secundária; cada ponto levantado, se não é acompanhado de rigorosa recensão bibliográfica, ao menos traz consigo em rodapé úteis sugestões de leitura. Ademais, no que diz respeito ao tema do livro em específico, é de se notar que a empreitada de Cory possui algo de original. Como ela própria afirma, o interesse na teoria de Aquino sobre o autoconhecimento foi relativamente pequeno ao longo do século XX. À parte da monografia Le sens

de la réflexion en Thomas d'Aquin (Paris: Vrin, 1991) publicada por François-Xavier

Putallaz, tal teoria tende a ser mencionada apenas de passagem ou mesmo omitida, inclusive em escritos voltados para a psicologia e gnosiologia de Tomás. É, pois, tendo em vista a relativa negligência no tratamento deste assunto que Cory se propõe a analisá-lo com agudez e em um esforço sistemático, sem declinar o enfrentamento de alguns problemas que, embora talvez já estivessem prefigurados nos textos de Tomás, apenas mais tarde viriam a se tornar questões filosóficas de pleno direito.

O livro inicia com algumas considerações sobre o problema do autoconhecimento em geral, seguidas por outras também de caráter introdutório, em que Cory aproveita para expor brevemente a teoria tomista do conhecimento, bem como para alertar para as dificuldades próprias do estudo da filosofia medieval em geral (sobretudo diferenças entre a abordagem, o método e

mesmo o vocabulário da filosofia da Idade Média em relação à contemporânea)1.

A partir desta introdução, Cory passa a delinear como se desdobrou o debate medieval sobre o autoconhecimento até os dias de Tomás. Este é o tema do primeiro capítulo.

1 Convém pontuar que Cory, seguindo Aquino, refere-se ao sujeito e objeto do

autoconhecimento utilizando indiferentemente os termos 'alma', 'intelecto', 'mente', 'homem'. Para explicar este uso, aponta que embora o próprio Tomás afirme que aquele age de fato é o indivíduo humano, por vezes ele prefere se valer de um termo que diga respeito ao princípio interno da referida ação (neste caso, a alma ou uma de suas potências).

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A querela sobre o autoconhecimento teve um percurso semelhante a de outras controvérsias caras à Idade Média: tem por fonte remota teses agostinianas, sofre o influxo do neoplatonismo grego, da filosofia islâmica e, por fim, dá-se o embate com o aristotelismo. Cory inicia a exposição apresentando as máximas tidas pelos medievais do século XIII como ‘agostinianas’ e que serviram de fundamento para boa parte dos debates sobre o autoconhecimento. Formuladas a partir de teses presentes no De Trinitate, afirmam que “a mente sempre conhece[ria] a si própria por si própria (per se ipsam) porque é incorpórea” (isto é, não sendo corpórea, não se conheceria por meios do sentidos, como ocorre com o conhecimento dos entes corpóreos, mas voltando-se a si própria) e, ademais, que “a mente sempre entende a si própria, embora nem sempre pense em si como distinta de outras coisas”. Esta seria a tentativa agostiniana de conciliar as experiências de opacidade e intimidade que temos para com nós mesmos. Cory aponta, no entanto, que como Agostinho não especifica com clareza inequívoca qual é o tipo de autoconhecimento em questão, abre-se espaço para controvérsias.

A segunda tradição textual que desempenhará importante papel no debate tem origem árabe. Tanto o Liber de causis quanto a alegoria do Homem voador, de Avicena, apresentam teses próximas às agostinianas, pois ambas as fontes conceberiam o autoconhecimento como natural à mente. Sendo incorpórea – afirmam – a alma necessariamente conhece a si própria apenas por ser o que é, de modo que nunca estaria ignorante de sua existência e incorporeidade.

O terceiro texto da série provém do De Anima de Aristóteles e oferece uma tese que vai em sentido muito diferente: “o intelecto é inteligível como os outros inteligíveis”. Esta tese aristotélica foi recebida pelos medievais como significando que o intelecto seria inteligível por meio de espécies, ou seja, tendo por base abstrações feitas a partir de dados recebidos pelos sentidos.

Do confronto dessas tradições textuais surge um problema amplamente debatido pelos medievais: o autoconhecimento advém de um conhecimento per

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como se daria este per speciem, se as espécies inteligíveis que recebemos são apenas de objetos externos, algo que o intelecto certamente não é?

Reunidas as fontes e enunciados alguns dos problemas que surgem de sua confrontação, Cory passa a recensear os debates de meados do século XIII, explicando-nos as soluções propostas por João de la Rochelle, Guilherme de Auvergne, Boaventura de Bagnoregio e Alberto Magno. Uma mesma ideia perpassa estas teorias: a alma conheceria a si própria por sua essência, uma vez que a alma é ela própria e deve estar portanto mais presente a si própria do que qualquer outra coisa. Este autoconhecimento é tipicamente concebido, exceto por Boaventura, como autoconhecimento ‘supra-consciente’, isto é, perpetuamente atualizado fora do reino da atenção consciente. Por sua vez, o autoconhecimento ‘dependente’ de espécies, em moldes aristotélicos, é frequentemente rejeitado, ainda que seja timidamente reconhecido por Alberto Magno.

Uma vez delimitado o status quaestionis à época de Tomás, no segundo capítulo Cory passa a tratar das fases de maturação do pensamento de Tomás sobre o problema do autoconhecimento. Distingue três fases, analisando os textos que toma por representativos deste desenvolvimento.

A primeira fase compreende passagens do Comentários às Sentenças de

Pedro Lombardo. A tendência de Tomás nestes textos é defender as teses

albertianas sobre o autoconhecimento. Com efeito, é de se notar que se trata da primeira e única vez que ele defende algum tipo de autoconhecimento que poderia ser dito ‘supraconsciente’. Ainda, nesse mesmo contexto, é feita uma distinção importante que haverá de influenciar os desdobramentos ulteriores das teses tomistas: é preciso diferenciar o conhecimento de que a alma existe (an sit), a autoconsciência; do conhecimento do que a alma é (quid sit), o que Cory chama de autoconhecimento quiditativo.

A segunda fase compreende as exposições presentes no De veritate e na

Summa contra gentiles. No De veritate se encontra o tratamento mais detalhado

que Tomás dá ao autoconhecimento. Ali, além de insistir na distinção anterior entre o conhecimento ‘pré-filosófico’, que pode ser chamado autoconsciência

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(pelo qual percebemos que a alma existe), e o autoconhecimento quiditativo da alma (pelo qual entendemos a definição de alma humana), Tomás aprofunda as subdivisões, chegando a quatro tipos de autoconhecimento, todos dependentes da recepção de inteligíveis abstratos e que corresponderiam aos quatro meios pelos quais a alma conhece a si própria: [1] por seus atos, [2] por sua essência, [3] por uma espécie e, na expressão agostiniana, [4] pela contemplação de uma verdade inviolável (intuendo inviolabilem veritatem). Mais detalhadamente, ao percebemos que sentimos e entendemos, percebemos que há algo que sente e entende, isto é, nestes próprios atos reconhecemos que a alma existe. Este tipo de autoconhecimento é a autoconsciência atual, [1]. Uma vez que a alma, por sua própria essência incorpórea, está presente a si própria, ela tem também em si uma capacidade de conhecer a si própria. Esta disposição natural é chamada

autoconsciência habitual, [2]. Além disso, a apreensão da essência imaterial da alma

se dá a partir de um raciocínio feito sobre a natureza imaterial de uma espécie inteligível apreendida. Trata-se do autoconhecimento quiditativo, [3]. Por fim, o último tipo de autoconhecimento se dá ao se julgar, “contemplando a verdade inviolável”, que a essência da alma foi corretamente apreendida, [4].

A última fase agrega textos do comentário ao De anima e da Summa

theologiae. Cory os une por julgar que foram escritos na mesma época,

descrevendo de modo idêntico a noção de autoconhecimento. No comentário ao De anima, Tomás se confronta com a máxima aristotélica, segundo a qual o ‘intelecto é inteligível como os outros inteligíveis’. A interpretação que Tomás dá é a seguinte: tanto o autoconhecimento quanto o conhecimento dos objetos extramentais dependem da natureza do intelecto possível; ora, o intelecto possível está apenas em potência na ordem dos inteligíveis, ou seja, é apenas quando recebe alguma espécie no ato da intelecção que o intelecto possível ganha atualidade e é somente ganhando atualidade que pode se tornar efetivamente inteligível. Assim, a espécie inteligível não seria apenas aquilo pelo

que o objeto extramental a que diz respeito é conhecido, mas também aquilo

pelo que o próprio intelecto conhecedor se torna conhecido, na medida em que se atualiza. Numa palavra, a expressão ‘o intelecto é inteligível como os outros

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inteligíveis’ não pode ser entendida como se significasse que o intelecto é conhecido por uma espécie inteligível de si próprio. Na verdade, é como se cada espécie inteligível tivesse uma dupla função: tornar inteligível o objeto a que corresponde e tornar inteligível o intelecto que ora, ao conhecer, se atualiza.

No que diz respeito à evolução do pensamento de Tomás sobre este assunto, Cory tem a pretensão de mostrar que a partir da exposição feita no De

veritate a teoria geral de Tomás sobre o autoconhecimento haveria se

cristalizado, embora continuasse se aperfeiçoando e sofisticando. No entanto, algumas discrepâncias na maneira como as teses são apresentadas parecem inviabilizar tal hipótese, pelo que o final do segundo capítulo é dedicado a alguns esclarecimentos. Uma aparente contradição é a que se pode encontrar confrontando excertos em que Tomás afirma que a alma conhece-se a si própria por essência (De Veritate q. 10, a. 8) com outros que o negam (Summa Theologiae, Ia, q. 87, a.1). Cory propõe como solução que aqui se trate de um uso diferenciado para a expressão ‘per essentiam’ somado à ênfase diferente que cada passagem possui. Assim, quando o conhecimento ‘per essentiam’ é afirmado, tratar-se-ia apenas de uma referência ao modo próprio segundo o qual alguns entes (por exemplo, atos mentais, hábitos, virtudes e o próprio intelecto) se fazem atuais no intelecto, isto é, por seu próprio ser, por sua essência. Por sua vez, quando Tomás nega que o autoconhecimento seja per essentiam, ele está discutindo a fonte da inteligibilidade do intelecto. Ora, tal inteligibilidade não está sempre e atualmente presente no intelecto, mas apenas potencialmente, sendo preciso que a recepção de uma espécie inteligível o atualize.

Vencidas estas aparentes contradições, Cory resume o pensamento maduro de Tomás afirmando que todo autoconhecimento depende do conhecimento de inteligíveis extramentais. Disso, podemos, novamente, esquematizar os quatro tipos possíveis de autoconhecimento dividindo-os em dois grupos:

[I] Conhecimento de si próprio enquanto indivíduo (an sit). Trata-se da autoconsciência, que pode ser dividida em [1] autoconsciência habitual (a

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auto-presença essencial da alma) e [2] a autoconsciência atual (conhecimento pré-filosófico sobre o próprio agir);

[II] Conhecimento da alma sob aspecto universal (quid sit). Trata-se do ‘autoconhecimento quiditativo’, divisível em [3] a apreensão da essência da alma, atingida por via argumentativa e [4] o juízo afirmando que a essência apreendida de fato existe na realidade.

Estas considerações finalizam a primeira parte do livro, dedicada ao histórico da querela e ao desdobramento da questão no interior dos próprios escritos do Aquinate. A segunda parte (capítulos três a oito) dedica-se a tratar de atos do autoconhecimento em particular.

O terceiro capítulo trata do conteúdo da autoconsciência. O que se faz manifesto àquele que pensa, no momento em que a consciência de si próprio se faz atual? Após relembrar a noção tomista de autoconsciência, isto é, uma experiência íntima, interna, que alguém tem de si próprio como indivíduo existente, concretamente presente a si próprio em seus atos, Cory passa a examinar se seria o conteúdo da autoconsciência apenas a existência ou se também comportaria algo como um ‘eu’ ou um ‘eu mesmo’. Para ajudar a resolver o impasse, ela propõe uma análise da autoconsciência como ‘percepção indistinta’.

Percepções indistintas seriam aquelas cujos objetos são captados de tal modo que sua essência não pode ser propriamente distinguida das demais coisas. Esta incapacidade adviria de uma incompletude nos dados sensíveis, de uma confusão na imaginação, ou mesmo de uma desorganização do conteúdo intelecto (e.g., da falha ao distinguir entre o conteúdo essencial e o meramente descritivo). Em todo caso, mesmo a percepção mais indistinta perceberá que seu objeto é um ‘ser’. Perceber algo já é tê-lo por real, existente. Conquanto o conceito de um ser não implique por si em um conceito de faticidade, captar este objeto concretamente presente aqui e agora como ‘ser’ já seria considerar que ele existe. Assim, o conteúdo do ato eventualmente percebido dependerá de qual ato é realizado e quão distintamente a alma o percebe, de maneira que

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venha a julgar continuamente que ‘eu, agente, existo’ ou ‘eu, pensador, existo’, a depender do ato percebido (movimentar o próprio corpo, pensar, etc.).

Cory demonstra assim não haver contradição entre o fato de Aquino fazer a autoconsciência preceder o autoconhecimento quiditativo e afirmar como regra geral que o conhecimento da essência de algo é ao menos logicamente anterior ao julgamento de sua existência. O conhecimento de autoconsciência não é puramente de uma existência, mas de um algo existente (ainda que este ‘algo’ seja profundamente vago e indistinto). A diferença entre estes dois conhecimentos consistiria no fato de um ser indistinto quanto à essência, tratando também de afirmar a existência; enquanto o outro daria a conhecer a essência de modo distinto.

Depois de dedicar o capítulo anterior ao conteúdo da autoconsciência, Cory, no quarto capítulo, passa a tratar do modo como ela se daria.

Apesar de não aparentar ser logicamente absurdo ter estabelecido que a autoconsciência se dê como se dá o conhecimento de outras coisas, a princípio não é tão fácil conciliar esta noção com a aparência de acesso privilegiado a si própria que a alma parece gozar. Depender do conhecimento de objetos extramentais não serviria como uma espécie de filtro? Não a faria menos íntima e mais remota que a experiência das outras coisas? Não seria mais adequado, portanto, pensar na autoconsciência atual como uma espécie de ‘intuição’?

O primeiro passo para decidir a questão é esclarecer – retomando o que fora esboçado na primeira parte – que quando Tomás diz que o intelecto conhece a si próprio como conhece outras coisas ele não quer dizer que a autoconsciência seguiria todos os passos do conhecimento quiditativo dos objetos extramentais (construção de fantasmas, abstração de espécie inteligível, etc.). Com efeito, Aquino insiste que a espécie utilizada na autoconsciência é a espécie do objeto extramental (e não portanto a espécie do próprio intelecto). Ora, tendo isto sido estabelecido, Cory julga que o caráter ‘intuitivo’ da autoconsciência possa se auferir avaliando se a autoconsciência possui o caráter direto e imediato que, por exemplo, reconhecemos às percepções sensíveis (estas tidas por arquétipo do ‘intuitivo’).

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Com efeito, segundo Cory, a autoconsciência seria até mais imediata que a sensação (percepção sensível) na medida em que esta precisa que suas espécies desempenhem tanto os papéis perfectivos, como também aquele de fazer presente seus objetos, enquanto que na autoconsciência a espécie desempenha apenas o papel perfectível, tornando o intelecto inteligível ao lhe dar forma. Ao ganhar atualidade, o intelecto ganha inteligibilidade, não havendo mediações discursivas neste processo. Ademais, é de se notar uma possível objeção ao caráter direto do intelecto: se o conteúdo da autoconsciência é indistinto (reduzido quase que apenas a apreensão do objeto enquanto ‘ser’) e vem por meio de outras espécies, de onde adviria o ‘eu’ como possuidor do conhecimento de ‘mim mesmo’? Cory responde mostrando como Tomás relaciona atos e agentes: perceber um ato seria necessariamente perceber o agente; e embora se possa perceber um efeito a partir de uma causa (sendo entes distintos), não se pode perceber um ato à parte de um agente. O intelecto conhece a si próprio como eu existente ou mesmo conhecedor, como sendo o agente por detrás do ato respectivo (que não pode ocorrer sem agente).

Estabelecidos os termos em que se pode falar no caráter intuitivo da autoconsciência, Cory dedica o quinto capítulo ao que chama de autoconsciência habitual.

No De veritate, Aquino escreve que a alma habitualmente veria a si própria

per essentiam uma vez que sua essência está “presente a si própria”. Ora, para

enquadrar esta afirmação de modo consistente com as demais obras maduras de Tomás – que aparentemente negam a possibilidade de um autoconhecimento per

essentiam –, Cory lembra que, sendo a alma intelectual (i.e. aquilo pelo qual o

homem conhece) ontologicamente idêntica a si própria, ela está naturalmente ordenada à autoconsciência atual.

A autoconsciência seria então conatural à alma humana, de modo que a autoconsciência habitual deve ser vista não apenas como um estado cognitivo, mas como uma propriedade ontológica: aquilo que é ser uma alma intelectual inclui estar ordenada à autoconsciência. Ora, sendo esta autoconsciência uma ‘primeira perfeição’, o ato mais natural do intelecto, esclarece-se o mistério da

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sensação de familiaridade que marca os atos de autoconsciência. Estando pré-dispostos essencialmente para a autoconsciência, nunca nos voltamos a nós mesmos como a algo estranho e novo, uma vez que a autoconsciência habitual constitui uma ‘segunda natureza’ da alma.

Deste modo Tomás reconciliaria duas teses tidas por incompatíveis, isto é, que [a] a alma está naturalmente presente a si própria e que [b] todo conhecimento atual de si próprio depende da atualização do intelecto por via de uma espécie. Por natureza, a alma é equipada para a autoconsciência, mas ao mesmo tempo também naturalmente a alma intelectiva carece de disponibilidade enquanto objeto, devido a sua falta de atualização (o intelecto está, por natureza, em potência). É assim que Aquino também evita a referência a algum tipo de autoconhecimento supraconsciente ou independente do conhecimento de entidades extramentais, resguardando de todo modo o que poderia embasar a sensação de familiaridade própria da autoconsciência.

O último tópico sobre a autoconsciência é abordado no capítulo seis. Cory se pergunta se o desempenho de uma atividade intelectual meramente provê a oportunidade para que eu considere a mim mesmo ou se, diferentemente, necessariamente conheço a mim mesmo em todos os meus atos mentais.

Para responder a esta questão, Cory começa por descrever a dualidade que julga haver nos atos intelectuais: parece que todo ato intelectual manifestaria o objeto pensado extramental e o próprio sujeito pensante ao mesmo tempo, um em relação ao outro. Esta seria a base para distinguir a autoconsciência implícita da explícita, noções a partir das quais se poderá responder mais adequadamente o problema levantado.

No que diz respeito à autoconsciência implícita, Cory faz uma precisão, afirmando que não existe operação intelectual implícita. O que pode haver é a inclusão implícita da inteligibilidade atualizada de uma entidade no conteúdo da operação que ora considere outra entidade. Quando o intelecto é atualizado por uma espécie, têm-se cumpridas todas condições para sua inteligiblidade (trata-se de algo imaterial, em ato e presente ao intelecto). A partir desta constatação,

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Cory pode afirmar que em todo conhecimento per speciem há também um conhecimento, implícito, referente ao intelecto que conhece.

Passando à autoconsciência explícita, Cory considera a explicação de Tomás sobre como o intelecto pensa ou direciona a atenção para si próprio enquanto conhecedor de algo. A dificuldade que logo encontra em sustentar a possibilidade de um autoconsciência explícita advém do caráter aparentemente problemático de se diferenciar psicologicamente duas operações distintas (conhecer um objeto extramental e conhecer-se a si próprio enquanto conhecedor) ao mesmo tempo em que se afirma que ambas têm por origem um único e mesmo meio (a espécie do objeto extramental). Para solucioná-la, Cory afirma que a extensão de pensamentos que eu posso ter é delimitada pela espécie que uso, mas aquilo que penso dentro desta extensão é determinado de acordo como eu escolho direcionar minha atenção.

Encerrado assim o tratamento especial que dá aos problemas suscitados pelas teses de Tomás sobre a autoconsciência, Cory no sétimo capítulo passa a discorrer sobre o que chama de autoconhecimento quiditativo, isto é, a alma conhecer a própria natureza.

Foi visto que a autoconsciência pode nos dar vislumbres indistintos da própria alma, mas alcançar um nível de claridade que permita revelar a totalidade de sua natureza parece exigir um outro modo de conhecer.

A solução que Cory propõe baseia-se no intelecto refletindo sobre sua ação enquanto experimentada internamente. Este processo se daria em quatro passos: o primeiro passo consiste em determinar a natureza do objeto do pensamento (i.e. que é ser um objeto do pensamento enquanto tal?), identificando sua natureza universal (oposta, por exemplo, a um particular sensível ou imagem generalizada). O segundo passo é determinar como o ato intelectual deve ser de modo a poder captar tais objetos; se a essência dos entes materiais pode ser conhecida apenas de modo universal (imaterial) então o ato do intelecto também há de ser imaterial. O terceiro passo mostra que se o intelecto produz um ato imaterial então deve ser ele também imaterial (isto é, não opera por meio de um órgão material). O último passo é aquele pelo qual o

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inquiridor conclui a partir da natureza imaterial do intelecto a essência da alma humana. Uma vez que um poder imaterial não poderia estar presente em um ente totalmente corpóreo, a alma intelectual ela mesma deve ser imaterial e, portanto, subsistente.

Assim como o mero fato de pensar sobre um objeto extramental implicitamente manifesta o pensador como um agente-em-ato, também a exploração racional de sobre o que consiste ser um objeto em última instância revela aquilo que o agente-em-ato é.

O processo de atingir o autoconhecimento quiditativo revela-se então como simplesmente o processo de ganhar conhecimento distinto da descrição pré-filosofica indistintamente entendida da alma humana na qual o filósofo começa sua inquirição.

No último capítulo, Cory se volta para a aplicação das teses do Aquinate a três fenômenos relacionados à identidade pessoal que considera importantes: o que chama de ‘ponto-de-vista subjetivo’, o ‘uso da primeira pessoa’ e a ‘unidade diacrônica da consciência’. Cory também ressalta que o próprio Tomás não os separa nem os distingue propriamente, nem tampouco é sua intenção se aprofundar, mas apenas mostrar que há algo de valoroso por se explorar na aplicação das teorias de Aquino sobre o autoconhecimento.

O ‘ponto-de-vista subjetivo’ seria a distinção entre o eu e o outro, e adviria da natureza dúplice do conhecimento intelectual. Como foi visto, Aquino toma a autoconsciência como a percepção de si-próprio-enquanto-agente, não enquanto mero eu. Eu apenas apareço a mim mesmo como aquele que está conhecendo algo e o único modo pelo qual algo conhecido por mim aparece para mim é enquanto algo-conhecido-por-mim. Em suma: sujeito e objeto são necessariamente concebidos como relativos, exigem-se mutuamente.

A questão seguinte seria determinar porque nos percebemos ‘na primeira pessoa , e não como um mero ‘algo’. Como foi dito, para Aquino, quando penso sobre mim mesmo não me vejo como outro, como estando ‘fora’, mas sempre me conheço ‘de dentro’. Este caráter de conhecimento interior seria experimentado como a primeira pessoa, sendo possível apenas em virtude da

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imaterialidade do intelecto. Com efeito, o intelecto tem de se conhecer a partir de uma perspectiva de primeira pessoa, pois não pode sair de si próprio para se conhecer.

Por fim, a unidade da consciência através do tempo, isto é, a experiência de subjetividade, do ‘eu’, como estável diacronicamente, se explicaria pelo concurso de outra noção que subjaz à psicologia tomista: a memória intelectiva. Em suma, a unidade da consciência através no tempo seria fruto de uma espécie de esforço comum entre a autoconsciência implícita e a memória intelectual, por cuja união me lembraria de objetos enquanto tendo sido manifestados a mim ao longo de minha existência.

* * *

Aquinas on human self-knowledge não é uma leitura simples, o frequente uso

de termos técnicos e a natureza abstrata do tema podem torná-la árdua ao leitor que não tenha tido um contato anterior com o Aquinate. Apesar disso, a grande competência de Therese Scarpelli Cory ofusca estas dificuldades e, não fosse o genuíno interesse que o assunto do livro ele próprio desperta, por si só já bastaria para se recomendar a leitura.

Com efeito, se ainda há pouco tempo a preocupação com a questão do autoconhecimento continuava sendo vista como própria da época moderna, estudos como este tornam ainda mais patente que tal problema não era de todo estranho aos medievais. Embora Tomás não trate a questão dando-lhe a importância que alguns filósofos posteriores darão, nem tampouco se preocupe em oferecer um estudo definitivo sobre ela, graças ao trabalho de Cory podemos ver com clareza como Tomás ofereceu respostas contundentes sobre muitos dos problemas que ainda demorariam alguns séculos para se tornarem o centro do debate filosófico. O maior mérito de Therese Scarpelli Cory consiste justamente em seu rigoroso esforço sistematizador, pelo qual antecipam-se as respostas tomistas mesmo para aquelas questões que ainda não haviam sido articuladas formalmente na época do próprio Tomás.

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