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A condição da criança hiperativa e desatenta : um estudo sobre a intervenção psiquiátrica nas formas contemporâneas de inserção social infantil

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Academic year: 2021

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TATIANA DE ANDRADE BARBARINI

A CONDIÇÃO DA CRIANÇA HIPERATIVA E DESATENTA: UM ESTUDO SOBRE A INTERVENÇÃO PSIQUIÁTRICA NAS FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE INSERÇÃO SOCIAL INFANTIL

CAMPINAS 2016

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Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Barbarini, Tatiana de Andrade,

B232c BarA condição da criança hiperativa e desatenta : um estudo sobre a

intervenção psiquiátrica nas formas contemporâneas de inserção social infantil / Tatiana de Andrade Barbarini. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

BarOrientador: Maria Lygia Quartim de Moraes.

BarTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Bar1. Crianças. 2. Socialização. 3. Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade. 4. Medicalização. I. Moraes, Maria Lygia Quartim de,1943-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The condition of hyperactive-inattentive children : a study on psychiatric intervention in contemporary forms of child social embodiment

Palavras-chave em inglês: Children

Socialization

Attention deficit disorder with hyperactivity Medicalization

Área de concentração: Sociologia Titulação: Doutora em Sociologia Banca examinadora:

Maria Lygia Quartim de Moraes [Orientador] Carlos Roberto Soares Freire de Rivorêdo Eunice Nakamura

Marcos Cezar de Freitas

Gabriela Guarnieri de Campos Tebet Data de defesa: 10-03-2016

Programa de Pós-Graduação: Sociologia

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A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 10 de março de 2016, considerou a candidata Tatiana de Andrade Barbarini aprovada.

Prof.ª Dr.ª Maria Lygia Quartim de Moraes

Prof. Dr. Carlos Roberto Soares Freire de Rivorêdo Prof.ª Dr.ª Eunice Nakamura

Prof. Dr. Marcos Cezar de Freitas

Prof.ª Dr.ª Gabriela Guarnieri de Campos Tebet

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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impossível de ser concretizado sem a colaboração de outras pessoas. Por isso, agradeço: À minha família, Rafa, Eliane, Newton e Leo, pelo apoio e compreensão. A meus amigos pelas conversas, sugestões e incentivo nos momentos difíceis. Especialmente a Paola, Dudu, Lidi e Camila.

Aos professores e às professoras: Maria Lygia Quartim de Moraes, minha orientadora, por permitir reconhecer meus erros e potencialidades; Carlos Rivorêdo, que acompanha meu trabalho há alguns anos e que tanto contribuiu para o avanço de minhas reflexões; Nelson Filice de Barros, pelo contato com a medicina e com as ciências sociais aplicadas à saúde; Eunice Nakamura, Gabriela Guarnieri de Campos Tebet, Marcos Cezar de Freitas, Maria Filomena Gregori, que muito colaboraram com sugestões e orientações valiosas nas bancas examinadoras. Igualmente aos professores suplentes pela disponibilidade e auxílio. Agradeço especialmente ao professor Alain Ehrenberg e a todos os pesquisadores do Cermes3 (Paris, França) pelo acolhimento durante meu estágio de pesquisa, pelo compartilhamento de ideias e de questões e pelas sugestões que tanto contribuíram com meu trabalho.

Aos funcionários da secretaria, aos coordenadores e aos docentes do programa de Pós-graduação em Sociologia e à direção do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas pelas orientações burocráticas, concessões e a oportunidade de desenvolver mais um projeto vinculado ao instituto.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo1

pelo financiamento majoritário do projeto de pesquisa, processo FAPESP nº 2012/20776-0, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela subvenção durante os dez meses iniciais no curso de doutorado.

Aos diretores e diretoras, coordenadoras pedagógicas, professores e professoras dos estabelecimentos de ensino visitados durante a pesquisa de campo. Aos pais e responsáveis legais que colaboraram com o levantamento de dados. E, acima de tudo, às crianças que tanto me ensinaram ao longo desse percurso de amadurecimento intelectual, profissional e pessoal que é a construção da investigação científica e do texto final de tese.

1 As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da

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dependem dos cuidados adultos, delas espera-se o desenvolvimento de uma autonomia relativa, um “desabrochar” próprio que lhes permita percorrer seu caminho rumo à independência e ao exercício da cidadania. A representação social da criança enquanto sujeito de direito, mobilizada e concretizada na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, funda-se na concepção de infância como uma fase de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, vulnerável a riscos os mais diversos. Direitos especiais são-lhe assim concedidos a fim de prezar pela liberdade e dignidade infantil. Ademais, as crianças assumem outros papéis sociais na contemporaneidade, destacadamente o de membro de uma família e o de aluna de uma escola. Instituições essas ditas em crise. Uma crise que se conjuga a um mal-estar que aflige seus membros. Professores julgam-se incapazes de lidar com seu “novo público”. Pais vivem as mudanças sociais e históricas dos arranjos familiares e disputam com profissionais escolares suas responsabilidades em relação aos filhos. Crianças são vulneráveis às mazelas sociais, aos desejos narcísicos dos adultos e, ao mesmo tempo, são incitadas à autonomia em um contexto de crise de autoridade de seus tutores. Tais situações de mal-estar adoecem professores e se manifestam como inquietude nos comportamentos e experiências infantis em sala de aula. Crianças hiperativas, deprimidas e ansiosas surgem então na cena social. A presente tese de doutorado tem como objetivo principal analisar sociologicamente a inserção social da criança brasileira e a intervenção médica naquelas identificadas, no espaço escolar, como hiperativas e desatentas, pois portadoras do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Trata-se de uma condição clinicamente definida como um transtorno do neurodesenvolvimento hipoteticamente oriundo de falhas em neurotransmissores responsáveis pela atenção, concentração e controle individual das emoções e dos comportamentos. Para tanto, procedeu-se a uma pesquisa qualitativa composta pelas técnicas de observação participativa e de entrevistas semiestruturadas. Quatro escolas de ensino fundamental (de primeiro a nono ano), municipais, estaduais e privada de Campinas e Moji Mirim (SP), foram visitadas entre 2013 e 2015, bem como um programa de educação não formal campineiro. Professores, coordenadoras pedagógicas e alunos (entre cinco e treze anos de idade) desses estabelecimentos de ensino compuseram o grupo observado e entrevistado em campo de pesquisa. Acompanharam-se mais atentamente quinzes crianças (doze meninos e três meninas), dentre as quais onze meninos e uma menina foram indicados pelas equipes escolares como portadores de TDAH. As discussões apoiaram-se em um arcabouço teórico de influência foucaultiana e de princípios da Sociologia da Infância. O pressuposto que orienta o desenvolvimento desta proposta é a socialização da criança (com TDAH) como um problema político de constituição de um sujeito adaptado a um determinado projeto de sociedade. Assim, a intervenção técnica-científica na criança hiperativa e desatenta e na escola, uma instituição social básica à sua socialização, visa à execução de tal projeto. O TDAH é seu instrumento. Trata-se igualmente de uma problemática constituída pela possibilidade de, ante ao discurso da criança hiperativa e desatenta, colocar em questão as verdades hegemônicas sobre sua condição.

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care and expected to develop a relative autonomy, in order to follow a proper path into independence and citizenship. Social representation of children as subjects of rights is based on a conception of childhood defined, according to the Brazilian Child and Youth Statute, as a state of physical, mental, moral, spiritual, and social development, susceptible of different risks. Due to this vulnerable condition, special rights aim to guarantee child liberty and dignity. Furthermore, children play other contemporary social roles, such as being a family member or a student at school. But family and school are institutions “in crisis”, where unease circumstances afflict their members. Teachers feel unable to deal with a “new public”. Parents experience social-historical changes in familiar settings and dispute children care responsibilities with school professionals. Children confront social vulnerability, adult narcissistic desires, and, at the same time, they are incited to act like autonomous human beings facing their guardians’ lack of authority. These unease contingencies sicken teachers and disclose restless child experiences and behaviors in the classroom. Therefore, hyperactive, depressed, and anxious children appear on the social scene. This Doctoral Dissertation aims to analyze, through a sociological perspective, Brazilian child social embodiment and medical intervention on children identified in school settings as hyperactive and inattentive students, as Attention Deficit Hyperactive Disorder (ADHD) bearers. It is a clinical condition defined as a neurodevelopmental disorder hypothetically caused by neurotransmitters dysfunctions, responsible for controlling attention, emotions, and behaviors. In order to accomplish the thesis’ proposals, we conducted a qualitative research composed by participant observation and semi-structured-interviews techniques. We visited four municipal, state, and private elementary schools, located in Campinas and Moji Mirim (SP), from 2013 to 2015, as well as a “non-formal” educational program in Campinas. Teachers, pedagogical coordinators, and 5-to-13-years-old students formed the group of participants observed and interviewed in field. We followed closely fifteen children (12 boys and 3 girls), among which eleven boys and one girl were designated by school professionals as ADHD bearers. Discussions and analysis are based on Foucauldian theories and Sociology of Childhood’s perspectives. Child socialization as a political problem of individual adaptation to a societal project is the assumed investigation postulate. Technical-scientific intervention on hyperactive-inattentive children and school, a basic social institution responsible for child socialization, aims to perform that project. ADHD is its tool. The problem is also constituted by the possibility to, dealing with hyperactive-inattentive children’s discourse, distrust hegemonic truths about their condition.

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ABP Associação Brasileira de Psiquiatria ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária

APA Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association) CID Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde CMP Centro médico-psicológico (Centre médico-psychologique)

CMPP Centro médico-psico-pedagógico (Centre médico-psycho-pédagogique) DCM Disfunção Cerebral Mínima

DDA Distúrbio de Déficit de Atenção

DSM Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders)

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

JIPE/INCB Junta Internacional de Fiscalização de Narcóticos/International Narcotics Control Board OMS Organização Mundial da Saúde

ONU Organização das Nações Unidas SMS Secretaria municipal de saúde

SNGPC Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados SUS Sistema Único de Saúde

TDAH/ADHD Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade/Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

UNICEF Children’s Rights & Emergency Relief Organization USP Universidade de São Paulo

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Introdução ... 12

Capítulo 1. A inserção social da criança brasileira: um panorama das condições sociais de seu reconhecimento como membro da sociedade ... 20

1.1. Crianças brasileiras e suas vulnerabilidades ... 21

1.2. Constituindo a nova família contemporânea e sua criança... 26

Mudanças e arranjos ... 27

A culpabilização da família desestruturada ... 29

Entre a criança autônoma e a “não infância”... 36

1.3. A criança-aluno na escola contemporânea brasileira ... 44

A inserção escolar infantil ... 45

É preciso adaptar-se e encaixar-se ... 54

1.4. Considerações sobre a criança hiperativa e desatenta ... 61

Capítulo 2. “Qual é a função da escola?”: uma análise da crise escolar e da intervenção especializada no funcionamento social ... 66

2.1. As condições da crise escolar ... 67

2.2. Uma crise de autoridade? Hierarquias e diálogos entre professores e alunos ... 73

2.3. Conhecimentos pedagógicos e saberes técnico-científicos ... 80

Desenvolvimento, desvio e categorias clínicas ... 81

O vocabulário do TDAH ... 87

Professores desabilitados e a legitimidade do discurso psiquiátrico ... 96

2.4. Demandas escolares por intervenção especializada ... 101

Capítulo 3. Os casos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade ... 107

3.1. Descrição de casos de TDAH ... 107

“Ele tem a inteligência dele, a gente sabe que ele é capaz, mas ele não controla” ... 108

“Ele tem laudo e presta atenção nas aulas” ... 113

“Ele não tem nada, é a mãe que procura um diagnóstico” ... 116

3.2. Procedimentos de encaminhamento e redes de assistência ... 118

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Capítulo 4. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: o mecanismo

sociopolítico da categoria clínica e a condição da criança hiperativa e desatenta ... 144

4.1. O Manual diagnóstico, o TDAH e seus paradigmas ... 145

Entre transtorno mental e diferença desvantajosa tratável ... 146

O cérebro como motor da vida humana ... 155

4.2. A crise psiquiátrica: da clínica aos biomarcadores e a indústria do mal-estar e do risco... 161

4.3. Medicalização: o modo de funcionamento da sociedade e a socialização infantil ... 167

Um termo e uma prática atuais ... 168

O mecanismo do TDAH e sua condição sociopolítica ... 172

A retomada do erro e a condição da criança hiperativa e desatenta ... 180

Considerações finais: a possibilidade de novas políticas da verdade ... 185

Referências bibliográficas ... 195

Apêndices: Apêndice A: Detalhamento metodológico ... 212

Apêndice B: Levantamento de dissertações e teses acerca do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)... 224

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INTRODUÇÃO

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) resulta de uma descoberta científica? O TDAH é definido clinicamente como um transtorno do neurodesenvolvimento infantil oriundo de possíveis falhas em neurotransmissores responsáveis pela atenção, concentração e controle individual das emoções e dos comportamentos. O efeito dessas falhas (chamadas, no campo psiquiátrico, de disfunções), combinado com prejuízos secundários provocados pelo ambiente, é a manifestação dos sintomas disruptivos ditos internalizantes e externalizantes: a desatenção, no primeiro caso, e a hiperatividade e a impulsividade, no segundo2

.

Tais sintomas são identificados e diferenciados de comportamentos normais a partir da verificação de que sua manifestação é intensa, persistente e prejudicial ao funcionamento social, acadêmico e profissional de uma pessoa (APA, 1980; 1987; 2000a; 2000b; 20133

). Sendo abordados conforme uma perspectiva centrada no desenvolvimento cognitivo e neurológico, tratam-se os sintomas do TDAH por meio de terapias diversas de restabelecimento das conexões neuronais normais e de modificação comportamental, dentre as quais o tratamento medicamentoso com cloridrato de metilfenidato (mais conhecido por seus nomes comerciais: Ritalina® e Concerta®) ganha bastante evidência. De acordo com a quinta e mais recente edição do Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais – DSM,

O TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento definido por níveis prejudiciais de desatenção, desorganização e/ou hiperatividade-impulsividade. A desatenção e a desorganização acarretam a impossibilidade de se concentrar em tarefas, o parecer não ouvir e a perda de materiais em níveis incompatíveis com a idade ou com o nível de desenvolvimento. A hiperatividade-impulsividade acarreta agitação, inquietação, impossibilidade de ficar sentado, intromissão nas atividades alheias e incapacidade de esperar — sintomas excessivos para a idade ou para o nível de desenvolvimento. (APA, 2013, p. 32. Grifos nossos. Tradução nossa).

Essa categoria foi descrita pela primeira vez no DSM nos anos 1980, em sua primeira seção dedicada exclusivamente à infância e à adolescência. Entretanto, até meados da década de 1990, o TDAH era pouco conhecido no Brasil. As crianças agitadas, as distraídas e aquelas que não aprendiam os conteúdos transmitidos em sala de aula eram geralmente reconhecidas como “preguiçosas”, “desinteressadas”, “burras”, “estranhas” ou “inquietas”. Já nos anos 2000, o TDAH tornou-se uma das categorias diagnósticas mais evocadas e debatidas em diferentes campos de saber e espaços sociais cotidianos,

2 Para conhecimento dos critérios diagnósticos para o TDAH apresentados no DSM-V, ver o Anexo desta tese. 3 Nas referências bibliográficas apresentadas no corpo do texto, serão informadas as datas das edições

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principalmente o escolar, onde se realiza mais comumente a identificação dos sintomas. A partir de então, difundiram-se pressupostos e critérios científicos4

ditos capazes de distinguir, com o auxílio da experiência clínica de um especialista, o mau desempenho escolar causado por disfunções neurológicas daquele originado por causas sociais (carências familiares, precarização dos sistemas de ensino etc.) ou pelo simples desinteresse individual.

No decorrer dos quarenta anos de vigência do TDAH, sobretudo nos Estados Unidos, observaram-se mudanças em sua definição e difusão, incluindo o aumento progressivo de sua prevalência. Segundo o DSM-V (APA, 2013), 5% das crianças de diferentes culturas são afetadas pelo referido transtorno. No Brasil, a variação é, contudo, maior: entre 5,8 e 17,1% em escolares, de acordo com estudos brasileiros encontrados por Pastura, Mattos e Araújo (2007)5

. A amplitude das taxas de prevalência do TDAH infantil é igualmente registrada em outros países por pesquisas internacionais (POLANCZYK et al., 2007). O prolongamento do tempo de manifestação de seus sintomas (se, no início, o TDAH era um transtorno mental exclusivamente infantil, hoje ele já é caracterizado como uma condição para a vida toda, a lifespan condition, isto é, sem cura) e a adoção de seus critérios diagnósticos por psiquiatras de outros tantos países também são mudanças observadas.

Essa nova configuração — conforme a qual o transtorno pode ser definido como uma condição “universal”, já que entendida como originária de um substrato neurológico comum a todos os corpos humanos — permitiu a Conrad e Bergey (2014) identificar o TDAH como um fenômeno social em expansão global. Ao contrário de Polanczyk e colegas (2007), que rejeitam a hipótese de que o referido transtorno é uma construção cultural, Conrad e Bergey enfatizam a necessidade de assumir o que chamam de “globalização do TDAH” como um objeto de investigação importante à sociologia e aos estudos sobre medicalização no mundo.

Os fenômenos de adoção da categoria TDAH pela psiquiatria brasileira, em sua vertente dominante, e de aumento do número de crianças diagnosticadas e tratadas no país coincidem com um contexto em que as crianças tornam-se sujeitos de direito e indivíduos6

em

4 Utiliza-se o adjetivo “científico” para se referir ao estatuto de ciência pelo qual os saberes e suas práticas são

reconhecidos, mas com a clareza de que não se trata necessariamente de ciências propriamente ditas. A medicina, segundo Canguilhem (2009), é uma técnica ou uma arte constituída na reunião de ciências diversas.

5 Os autores explicam que a prevalência do TDAH modifica-se de acordo com os critérios diagnósticos

utilizados e o tipo de amostra estudada, o que justificaria a discrepância de prevalência do TDAH no país. Polanczyk e colegas (2007) corroboram a hipótese de que diferenças metodológicas aplicadas na identificação dos sintomas e na elaboração do diagnóstico geram variações nas taxas de prevalência do transtorno.

6 Nesta tese, os termos “indivíduo” e “sujeito” aparecerão intercambiavelmente. Há distinções entre eles

(indivíduo pode designar uma forma pronta, modelada e submetida de ser humano, opondo-se e, ao mesmo tempo, articulando-se à noção de sociedade, enquanto sujeito implica também a submissão a um saber ou a um

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desenvolvimento a ser protegidos, em vista de sua vulnerabilidade social, psicológica e biológica. Nesse mesmo contexto, a família e a escola configuram-se como instituições ditas em crise. Uma crise associada ao mal-estar de professores, que se julgam incapazes de lidar com essas novas formas de ser aluno, de ser criança e de ser jovem diante das exigências sociais e familiares de transmissão de conteúdos escolares e preparação dos alunos para a vida às quais esses profissionais têm de responder. De pais, que disputam com a escola as responsabilidades em relação à criança e que vivenciam as mudanças sociais e históricas refletidas na organização da família e de suas funções. E de crianças, que se defrontam com exigências relativas às diferentes representações sociais de si. Um mal-estar que adoenta os adultos e que, no caso infantil, parece se expressar na inquietude dos alunos em sala de aula ou na extrema agitação que marca as interações infantis em espaços mais isentos de limitações, como aqueles dedicados aos recreios escolares. Ou mesmo em outras formas de inquietude, como a depressão e a ansiedade.

Em outras palavras, em um contexto de emergência da criança como centro da cena social, as diferentes representações sociais sustentam práticas que a constituem como um corpo e como uma subjetividade contemporânea, em alguma medida, vulnerável, desde a criança em desenvolvimento a ser protegida, passando pela criança-aluno, até a criança hiperativa e desatenta ou deprimida. Que infância é essa? Ela representaria um sintoma das mudanças e contradições sociais contemporâneas? Que máquina social é essa em que um número significativo de crianças é identificado como corpos cujo neurodesenvolvimento é falho, tornando-as incapazes de executar adequadamente suas atividades sociais, com destaque às escolares?

A presente tese de doutorado tem como objetivo central, portanto, analisar sociologicamente a inserção social da criança brasileira e a intervenção médico-psiquiátrica naquelas que são identificadas, no espaço escolar, como hiperativas e desatentas, possíveis portadoras de TDAH. O pressuposto que orienta o desenvolvimento dessa proposta é a socialização da criança (com TDAH) como um problema político de constituição de um sujeito adaptado a um determinado projeto de sociedade. A escola é uma instituição social básica a essa constituição. Se historicamente sua articulação com a medicina foi essencial à construção e execução de um projeto de sociedade (cf. COSTA, 1999; FOUCAULT, 1991b; 2006a; 2006b; MONARCHA, 2006, entre outros), atualmente a intervenção técnico-científica especializada no espaço escolar, ainda fundamental a tal projeto, é demandada como um

poder, mas diferencia-se por uma noção implícita de ação no processo de formação do ser humano). Entretanto, elas não serão explicitamente discutidas.

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auxílio necessário a uma escola (e uma sociedade) “em crise”7

. O TDAH é um de seus instrumentos.

A concepção de crise adotada é dupla. Em seu sentido positivo, a crise implica uma instabilidade momentânea causada por qualquer tipo de transição. Trata-se de um tempo de adaptação a novos padrões ou ideais, para os quais são elaboradas estratégias específicas. Em seu sentido negativo, a noção denota, sobretudo no senso comum, uma perda de referenciais e modelos, uma desestruturação das relações ou ainda uma valorização nostálgica de valores morais e sociais antepassados em detrimento dos atuais.

“Criança” é igualmente uma noção empregada de modo particular. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o indivíduo é considerado uma criança até doze anos de idade incompletos, e como um adolescente entre treze e dezoito anos. Já a Organização das Nações Unidas considera como criança todos os indivíduos com menos de dezoito anos de idade. Nesta tese, criança (e seus termos correlatos: “menino”, “menina”, “garoto” e “garota”) será entendida como a pessoa entre cinco e treze anos de idade. Essas idades condizem com a divisão etária que organiza os anos do ensino fundamental regular8

. Trata-se, portanto, dos alunos e alunas que compuseram o grupo observado em campo de pesquisa9

, cursando do primeiro ao oitavo ano do ensino fundamental em escolas estaduais, municipais e privadas nas cidades de Campinas (SP) e Moji Mirim (SP) entre 2013 e 2015, bem como, em alguns casos, fazendo parte de um programa de educação não formal10

situado em Campinas (o detalhamento metodológico e as informações pormenorizadas sobre os estabelecimentos de ensino encontram-se no Apêndice A desta tese). Acompanharam-se mais atentamente quinze dessas crianças (doze meninos e três meninas). Dentre elas, onze meninos e uma menina haviam sido indicados pelas equipes escolares como portadores de TDAH, como já tendo passado por avaliação especializada para a confirmação ou exclusão desse diagnóstico ou como consumidores de Ritalina®. Dois meninos concederam entrevistas. As

7 O emprego de noções de crise nesta tese deve-se a seu uso recorrente pelos docentes participantes da pesquisa. 8 A organização do sistema de educação básica brasileiro obedece às normas estabelecidas pela Lei de Diretrizes

e Bases – LDB (BRASIL, 1996). Entre as etapas desse sistema estão: a educação infantil (creches para bebês de zero a 3 anos e pré-escolas para crianças de 4 a 5 anos de idade), o ensino fundamental (dividido em dois ciclos: o primeiro, de cinco anos de ensino, destinado às crianças entre 6 e 10 anos, e o segundo, de quatro anos de duração, para alunos entre 11 e 14 anos de idade) e o ensino médio (três anos de ensino para adolescentes entre 15 e 17 anos).

9 Campo é “o recorte espacial que corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico

correspondente ao objeto de investigação” (MINAYO, 2000, p. 105).

10 Segundo Gohn (2006), a educação não formal caracteriza-se como um dos núcleos básicos da pedagogia

social. Ela articula diferentes dimensões, a saber: a aprendizagem política dos direitos dos cidadãos, o desenvolvimento de habilidades e potencialidades individuais para o trabalho, as práticas organizadas em torno de objetivos e problemas comunitários, a educação apresentada na mídia etc. A existência de modalidades não formais de educação é reconhecida pelo Ministério da Educação brasileiro, mas elas não são reguladas pelas leis e diretrizes que orientam a educação nacional.

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três demais (duas meninas e um menino) foram acompanhadas devido ao fato de manifestarem dificuldades escolares e, sobretudo, por serem enquadradas em classificações escolares.

Vale notar que as crianças entre dez e treze anos vivenciam um processo de transição em que se apresenta uma mescla de traços social, psicológica e biologicamente definidos como característicos da infância e da adolescência. Em termos comportamentais, enquanto as crianças mais novas, encontradas em campo, manifestavam-se de modo agitado, os movimentos das mais velhas, por volta dos treze anos de idade, eram mais enrijecidos pelas normas sociais e escolares de desempenho e conduta. Elas permaneciam mais tempo sentadas mesmo em espaços livres, como aqueles destinados aos recreios, mas não caladas. Ao agregar todas essas diferenças sob o termo “criança”, pretendo desenvolver uma análise que, sem desconsiderar as faixas de idade e o desenvolvimento característico de cada uma delas como fundamentais às classificações escolares e ao desenvolvimento de políticas públicas, reconheça a criança em sua posição cotidiana de sujeito político, inserido ativamente em jogos de forças sociais.

Na perspectiva da nascente Sociologia da Infância, as crianças são, acima de tudo, atores sociais. Criticando a psicologia do desenvolvimento e do comportamento e a sociologia da educação, essa nova abordagem sociológica — nascida em países anglo-saxões e na França no final da década de 1980 e início dos anos 90 — busca recolocar a criança em um espaço social, cultural e político a partir de diferentes marcos teóricos, metodológicos e analíticos (TEBET; ABRAMOWICZ, 2014). Um espaço marcado por relações geracionais nas quais predomina a desigualdade na distribuição de poder e de status (sociologias estruturais da infância), por relações sociais em que a criança atua tanto como um sujeito formado por processos de socialização (adaptação, internalização e reprodução de normas e comportamentos) quanto como sujeito que reinventa, negocia, compartilha e cria (CORSARO, 1997).

É também um ator que desestabiliza as regras e padrões instituídos como normais e que, por isso, promove uma inversão hierárquica discursiva em sua relação com os adultos (ABRAMOWICZ, 2011). Assim, seus pequenos gestos podem ser vistos como resistências — um questionar as formas de submissão que tomam a criança como objeto, ainda que não se concretizem movimentos organizados de resistência —, e não como desvios ou patologias. Proponho, assim, um trânsito constante entre os pontos fixos e as potencialidades que marcam as representações sociais da criança e as experiências individuais e coletivas de infância. Tenho como foco a criança hiperativa e desatenta.

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A experiência implica a questão da subjetividade11

. Para Biehl, Good e Kleinman (2007), a subjetividade articula experiências cotidianas vividas, estratégias individuais de existência, governo dos sujeitos, coletividades, instituições, tecnologias, aspectos psicológicos e linguísticos do eu, enfim, uma multiplicidade de instâncias individuais e coletivas que formam o indivíduo. Embora os modos de subjetivação sejam determinados por hierarquias, intervenções e traumas não resolvidos, os sujeitos encontram brechas para refletir sobre suas condições ou para sentir suas contradições constituintes. Os autores ainda afirmam, entre outras considerações, que em alguns contextos é possível identificar “a desmoralização da experiência cotidiana por meio de categorias científicas como a depressão e o estresse pós-traumático, que refazem as pessoas como objetos de manipulação tecnológica sem permitir a possibilidade do remorso, do pesar, da penitência” (BIEHL; GOOD; KLEINMAN, 2007, p. 14).

Nesse sentido, me apoiarei em noções como “experiência de infância” e “infância”, ora contrapondo-se às representações socialmente instituídas da criança e as expectativas sociais que orientam determinadas formas de socialização, ora agregando-se a elas. A experiência dos professores, professoras e coordenadoras pedagógicas12

dos estabelecimentos de ensino visitados também é fundamental para a análise da problematização proposta. Nesse caso, além da observação participativa13

, realizaram-se entrevistas semiestruturadas14

coletivas (com grupos de cerca de vinte educadores/as durante três reuniões pedagógicas) e individuais, assim como conversas não formais (isto é, que não foram agendadas e gravadas, uma vez que ocorreram ocasionalmente tanto por iniciativa do profissional quanto da pesquisadora)15

. Como contraposição a esses relatos, buscou-se

11 Subjetividades são as formas de ser humano, que se inserem em relações de modulação do corpo, do discurso e

das práticas por um saber socialmente considerado legítimo para acessar e dizer as verdades sobre o mundo. Mas esse sujeito também se integra a relações de luta e resistência a esse saber-poder que o subjuga (FOUCAULT, 1977). Assumindo os pressupostos tomados por Deleuze e Guattari (1997), Gallo (2010) considera que, no campo da educação, subjetivação é o processo de formação de “indivíduos de acordo com padrões definidos socialmente de antemão”.

12 Os profissionais de educação participantes da pesquisa de campo têm formações acadêmicas variadas

(pedagogia/educação infantil, artes, geografia, história, matemática, informática, enfim, as disciplinas que compõem as grades curriculares dos dois ciclos do ensino fundamental). Alguns atuavam em uma única escola, outros em instituições diferentes. Encontram-se em faixas etárias as mais variadas, mas, de modo geral, os professores e professoras trabalham na educação básica há pelo menos dez anos.

13 A observação participativa é uma técnica segundo a qual o pesquisador insere-se em um novo ambiente cujas

relações modificam seu ponto de vista previamente formado (MINAYO, 2000).

14 A entrevista semiestruturada é uma técnica por meio da qual o pesquisador propõe uma conversa com alguns

participantes selecionados a fim de obter informações primárias e secundárias referentes ao seu objeto de pesquisa. Ela se orienta por meio de roteiros flexíveis e compostos por perguntas abertas (MINAYO, 2000).

15 Em todas as atividades de campo, os objetivos da pesquisa foram explicitados aos participantes. Compuseram

a pesquisa somente as pessoas que compreenderam e aceitaram as explicações e que se sentiram confortáveis para fornecer informações e expressar suas reflexões. Quando a equipe diretiva de um estabelecimento não demandava a autorização formal de órgãos superiores, os diretores escolares consentiam a realização das

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apreender argumentos e discursos advindos de outros espaços, como o familiar (por meio de conversas com pais de alunos desses estabelecimentos, ainda que de modo mais restrito) e o midiático (associações de portadores de TDAH e seus familiares, como a Associação Brasileira do Déficit de Atenção — ABDA, e movimentos políticos, como o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade).

Finalmente, adotarei a noção de medicalização como categoria analítica. O termo “medicalização” assume diferentes definições e aplicações de acordo com os campos de saber que dele fazem uso. Entretanto, essas variações designam algo comum: práticas orientadas por um mesmo modo de pensar e agir sobre o corpo, a mente e os indivíduos. Modo esse que conserva determinadas relações de poder-saber e o exercício de um biopoder, segundo a concepção de Michel Foucault (2005; 2006a). Relações de poder referem-se a ações e reações provocadas por indivíduos ou grupos de indivíduos em interação. E, ao mesmo tempo em que esses atos aplicam-se sobre outros, eles agem sobre si mesmos. Portanto, os sujeitos devem ser ativos para integrar as relações de poder (ou as relações sociais). Em outras palavras, eles devem ser reconhecidos como atores sociais individualizados. Suas condutas podem então ser conduzidas e governadas, tanto pelos demais quanto pelo próprio sujeito.

Já o conceito de biopoder designa um plano de atualidade que deve incluir, segundo Rabinow e Rose (2006, p. 29), alguns elementos. Há que se constituir um ou mais discursos de verdade sobre o caráter vital dos seres humanos, bem como um conjunto de autoridades consideradas competentes para proferir aquela verdade. Discursos verdadeiros e autoridades competentes a enunciá-los mobilizam estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte. Finalmente, criam-se modos específicos de subjetivação, através dos quais os indivíduos são levados a atuar sobre si próprios, sob certas formas de autoridade, em relação a discursos de verdade, por meio de práticas do self, em nome da sua própria vida ou saúde, de sua família ou de alguma outra coletividade.

Assim, a medicalização é uma prática técnica e social que, surgida a partir de uma lógica que rege o pensamento médico, tem objetos, meios e fins específicos. Uma prática que não nasceu com o nome de “medicalização”, mas que passou a ser definida e nomeada como tal por outros campos de saber a fim de que sua contradição fosse revelada e para que, finalmente, se pudessem compreender as relações sociais que ela toca. Logo, o uso dessa noção constituiria um instrumento de denúncia. Nesse processo, contudo, a palavra

observações em sala e de entrevistas com professores, coordenadores pedagógicos, alunos e/ou pais. Eles também apontavam os limites que deveriam ser adotados em cada espaço e caso. Dessa forma, esclarece-se que não houve qualquer conflito de interesses e que todos os participantes, informações e dilemas pessoais e institucionais foram tratados com respeito e ética, sobretudo no que toca ao anonimato e à privacidade.

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“medicalização” foi capturada e transformada. Ela se desviou de seu sentido original e fez surgir outros termos mais simplistas, tais como “patologização”16

, mas também novas formas de constituição da subjetividade.

Com essas delimitações, a presente tese divide-se em quatro capítulos principais. No primeiro, descreve-se e problematiza-se a inserção social da criança brasileira. As definições e propostas encontradas no ECA e as vulnerabilidades infantis essenciais às políticas públicas permitem, em um primeiro momento, traçar um panorama acerca da criança enquanto sujeito de direito. Já os dados sobre os novos arranjos e as mudanças na configuração familiar fornecem elementos para a análise da criança enquanto membro de uma família e das novas expectativas acerca da autonomia infantil, isto é, do provimento de instrumentos e competências à criança a fim de que ela “encontre seu próprio caminho”, no presente e no futuro. Essa representação corresponde também ao estatuto da criança-aluna, que adentra uma instituição constituída por normas e expectativas mais rígidas. Finalmente, a criança hiperativa e desatenta emerge da confluência dessas três representações.

No segundo capítulo, a análise volta-se à escola em crise, ao sentimento de crise da autoridade do professor e às demandas de intervenção especializada que de lá se originam, tendo como objetivo a criança em dificuldade ou mesmo o profissional de educação adoecido. A ênfase dada à escola justifica-se pelo fato de que a instituição escolar é responsável pela inserção da criança na esfera pública. Além disso, a entrada do aluno no ensino fundamental é o momento em que aumenta significativamente o número de encaminhamentos psicológicos e psiquiátricos, fundados na hipótese de manifestação do TDAH. Já o terceiro capítulo é dedicado a uma análise aprofundada dos procedimentos de encaminhamento e dos casos de TDAH encontrados em campo de pesquisa.

Por fim, no último capítulo agrega-se ao estudo uma análise do TDAH enquanto categoria clínica conceitualizada em um campo epistemológico que define o cérebro como motor do agir humano no mundo. Sendo o TDAH um instrumento, abordá-lo em suas especificidades explícitas e implícitas — enfim, em seus mecanismos constituintes — permitirá evidenciar o caráter sociopolítico da categoria e da intervenção médico-pedagógica na inserção social infantil, bem como a complexidade da condição da criança hiperativa e desatenta.

16 Ehrenberg e colegas (2005) criticam a ideia de controle social e o uso contemporâneo das noções de

“medicalização”, “patologização”, “psicologização” e afins quando elas simplificam a realidade social ao expressar a ideia de que são processos pelos quais a medicina, a psiquiatria, a biologia ou a neurologia substituem as instituições sociais supostamente dissolvidas.

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CAPÍTULO 1

A inserção social da criança brasileira: um panorama das condições sociais de seu reconhecimento como membro da sociedade

A análise da inserção social da criança17

faz emergir, segundo Rabain (1979), as formas de aprendizagem do código cultural e as regras de conduta que permitem reconhecer o pertencimento dos indivíduos a grupos sociais. Ao buscar responder “o que é ser uma criança em uma determinada sociedade?”, a perspectiva adotada pela autora possibilita, portanto, a interrogação sobre as representações de certo grupo sobre a criança e a infância e, consequentemente, a compreensão das referências, da linguagem, enfim, de um conjunto de elementos e relações que colocam o cotidiano de uma sociedade em movimento.

A socialização — concepção que corresponde à inserção social do indivíduo — define-se por duas etapas fundamentais, de acordo com Berger e Luckmann (1973). A primeira é a incorporação da criança, proporcionada destacadamente pela família, a uma sociedade ou a um setor dela. A socialização secundária, por sua vez, é a introdução do indivíduo a novas regras às quais ele deve corresponder, a novos grupos e, dessa forma, a um mundo social diferente do espaço formado pelas relações familiares. As principais responsáveis por essa etapa são a escola e, segundo perspectivas sociológicas mais recentes, as interações entre pares.

Três representações orientam, atualmente, a inserção da criança brasileira, trazendo-a à cena social como indivíduo reconhecido por suas particularidades. A criança sujeito de direito é aquela que, em desenvolvimento e exposta a vulnerabilidades sociais e psíquicas, deve ter garantidos direitos especiais que protejam sua integridade física e moral. A criança autônoma, por sua vez, recebe investimentos governamentais, escolares e, sobretudo, familiares visando ao fornecimento de ferramentas e ao desenvolvimento de competências que lhe permitam “seguir seu próprio caminho”. Finalmente, a figura da criança corresponde à do aluno, o indivíduo inserido na esfera pública e sujeito às exigências sociais de

17 “Inserção social” e “socialização” são conceitos oriundos de perspectivas sociológicas tradicionais e denotam,

primordialmente, um movimento de imersão da criança nas normas sociais de um determinado grupo e em certo tempo histórico. Os atuais Estudos da Infância, incluindo as Sociologias da Infância, entretanto, propõem a existência de modos diversos de estabelecimento das relações sociais e institucionais das quais as crianças participam. Nessa perspectiva, os mesmos indivíduos que reproduzem as normas sociais vigentes têm a potencialidade de modificá-las. Na presente tese de doutorado, adoto a primeira abordagem a fim de evidenciar as formas pelas quais instituições, como a escola, e práticas, como as psiquiátricas, representam a criança. Já a segunda perspectiva será assumida visando à desconstrução das concepções de criança e infância fixadas externamente às relações infantis cotidianas e relativas ao TDAH.

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comportamento e desempenho. Dessas representações, ou melhor, de seu desvio, emerge a criança hiperativa e desatenta.

1.1. Crianças brasileiras e suas vulnerabilidades

As crianças têm algo em comum: elas dependem de um conjunto de cuidados que devem ser providos pelos adultos visando a minimizar a probabilidade de manifestação de fatores de risco. Crianças formam um grupo vulnerável, ao olhar das políticas públicas, devido ao fato de se viver uma fase da vida cuja característica principal é o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. Estando em um processo de formação, são-lhes concedidos direitos especiais a fim de prezar pela liberdade e dignidade individuais (BRASIL, 1990). Outras vulnerabilidades decorrem de fatores sociais, políticos e econômicos, como a desigualdade na distribuição de renda, as más condições de moradia e alimentação, o acesso precário ao sistema de saúde, a mortalidade infantil, as diferentes formas de violência, entre tantos outros fatores encontrados no Brasil.

Essa concepção orientou a elaboração do primeiro capítulo dedicado exclusivamente à criança e ao adolescente em uma Constituição Federal brasileira: a de 1988, que forneceu os fundamentos para a consolidação, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), bem como para a reformulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), em 1996. É preciso lembrar que o país vivia um período de redemocratização. E nesse contexto a criança e o adolescente foram firmados como indivíduos a ser socialmente protegidos e como sujeitos de direito (PINHEIRO, 2004). Foi também nesse contexto que a criança começou a se constituir como filho ou filha de uma família e como aluno ou aluna de uma escola de um modo diferente de outros tempos.

A população brasileira chegava a 191 milhões de habitantes em 2010, segundo o último Censo Demográfico18

, sendo que 84,4% da população total encontra-se em áreas urbanas. Desse total, cerca de 29 milhões eram crianças de zero a nove anos de idade e 45 milhões de dez a dezenove. O grupo de zero a quatorze anos de idade representava 18,6% da população preta, 20,2% da amarela, 22,5% da branca, 26,8% da parda e 36,2% da indígena.

A análise de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011) revela que a sociedade brasileira vive o fenômeno da redução da fecundidade. Em 2010, havia

18 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 06

nov. 2015. Estima-se que, em 2015, a população brasileira já tenha ultrapassado o número de 204 milhões de habitantes.

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27,5 crianças menores de cinco anos para cada grupo de 100 mulheres entre 15 e 44 anos de idade. Nascem mais meninos do que meninas. Entretanto, a taxa de mortalidade masculina ao longo da vida também é maior do que a feminina, sobretudo entre 15 e 29 anos de idade nos centros urbanos, devido a causas externas ou violentas (tais como homicídios e acidentes de carro).

Entre 1990 e 2012, a taxa de mortalidade de crianças menores de um ano foi reduzida em 68,4%, equivalendo então a 14,9 mortes para cada mil nascidos vivos. Essa é uma das áreas estratégias para o desenvolvimento humano, cujas metas foram traçadas no projeto Objetivo do Milênio e assumidas pelo Brasil em 2000 (UNICEF, 2014a). Em relação à escola, outra área estratégica do programa, o objetivo principal é consolidar um ensino básico efetivamente universal. Três milhões e oitocentas mil crianças e adolescentes entre quatro e dezessete anos (ou 966.305 entre seis e quatorze anos, faixa etária referente ao ensino fundamental) estavam fora da escola em 2010, assim como outros 14,6 milhões apresentavam risco de exclusão (abandono ou evasão) devido ao atraso escolar. Entre a população com idade para cursar o ensino fundamental, o perfil predominante das crianças que não frequentavam a escola, em 2010, era de meninos negros com renda per capita domiciliar de até meio salário mínimo e habitando centros urbanos da região Sudeste do país e a zona rural (UNICEF, 2014b).

Os documentos oficiais — como aqueles produzidos a partir dos dados e indicadores do Censo do IBGE, os censos escolares organizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) ou tantos outros elaborados e publicados pelo UNICEF — fornecem um importante conjunto de informações e agendas visando à garantia dos direitos de proteção das crianças e adolescentes brasileiros. Trata-se de um legado do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “uma das legislações mais avançadas do mundo no que diz respeito à proteção da infância e da adolescência” (UNICEF, 2014a).

Os indicadores relativos à distribuição de renda conforme as faixas etárias, às taxas de mortalidade infantil, às condições de moradia, aos níveis de subnutrição e aos índices escolares (matrículas, aproveitamento, fracasso, exclusão, estrutura escolar) permeiam esses documentos e os estudos que neles se sustentam. As conclusões assemelham-se em diferentes análises: tais indicadores melhoraram no decorrer das duas últimas décadas, mas ainda há muito que se fazer para reduzir as desigualdades regionais e nacionais (ROSEMBERG, 2008, p. 296) e suas variantes, tais como o trabalho infantil, a violência sofrida por jovens, majoritariamente, negros e pobres, a delinquência ou a iniquidade de gênero.

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Além de propor panoramas e perfis das crianças e dos jovens brasileiros visando à elaboração de políticas públicas específicas aos grupos etários, esses documentos exaltam uma determinada representação social. Representação essa em que a vulnerabilidade, causada por diferentes fatores socioeconômicos, é intrínseca ao processo de reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direito, em substituição à noção repressiva de “menor”. Verifica-se, assim, a transformação e o desdobramento das representações sociais da criança. Se no fim do século XIX e, particularmente, no início do XX, após a proclamação da República, construiu-se a imagem da criança como herdeira do novo regime, a qual deveria ser educada a fim de concretizar o então nascente projeto de progresso (MONARCHA, 2006), hoje essa imagem se transforma e se multiplica. Ela representa, em uma ponta, as diferentes formas de vulnerabilidade humana a ser superadas (como expressão de um direito individual de integrar-se à sociedade no gozo pleno do bem-estar) e, em outra, a esperança de realização dos sonhos privados dos adultos (CALLIGARIS, 1994).

Distanciando-se parcialmente das vulnerabilidades sociais tratadas pelas políticas públicas e pelos dados oficiais, há ainda outras formas de “cuidar” da criança que se articulam como um direito em um sistema econômico neoliberal. Segundo Rosemberg (2008), as noções sociais de criança e de infância formadas na contemporaneidade (que não coincidem necessariamente com as experiências de infância que os indivíduos vivenciam cotidianamente) permitem produzir recursos econômicos que dinamizam os mercados de consumo e de trabalho. Neste caso, ainda de acordo com Rosemberg, o reconhecimento da especificidade da infância contemporânea e das necessidades da criança em desenvolvimento possibilita a criação de novas profissões responsáveis pelo cuidado e pela organização e controle das atividades infantis.

A divisão etária vinculada a etapas do desenvolvimento biológico, afetivo e cognitivo é o ponto-chave, conforme a análise de Mollo-Bouvier (2005), para a segmentação do processo de socialização infantil e, consequentemente, para a delimitação das funções e expectativas construídas nas e para as instituições e profissões do cuidado com a criança. A creche depara-se com o desafio de guardar e, concomitantemente, de preparar as crianças pequenas para a entrada na pré-escola. Essa, por sua vez, deve promover o desenvolvimento de habilidades necessárias ao ensino fundamental e assim por diante. Desenvolvimento, idade e formação então se articulam e “toma(m) a dianteira sobre a espontaneidade do vínculo social entre as gerações” (MOLLO-BOUVIER, 2005, p. 394).

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Nesse sentido, cria-se também um sentimento de sobrecarga em professores e professoras que se veem obrigados a assumir as funções familiares de cuidado e educação. Para citar um exemplo, recorro a um relato obtido em pesquisa de campo:

Bom, o que eu falo é que, infelizmente, a família está deixando para a escola educar, passar valores. Porque as crianças ficam, vamos dizer assim, com “famílias terceirizadas”. Tem um pessoalzinho que fica aqui na creche, depois eles vêm para nós aqui na escola, só vão ver os pais à noite e é pouco. Aí, no outro dia, umas cinco horas da manhã eles estão em pé de novo para pegar o ônibus para vir para cá. Então é isso que acontece: [a família] está deixando para nós muita coisa. Até eu falei para as professoras assim: “daqui uns tempos, quem vai educar somos nós, vamos continuar fazendo o papel da família”. (Eva19, professora da rede estadual.

Entrevista concedida em 15 abr. 2013).

De instituição para instituição, de um adulto a outro, a criança encerra-se na esfera do cuidado especializado. A “terceirização da família” na escola é, assim, um reflexo do processo de profissionalização dos modos de guarda da criança e do adolescente. Mollo-Bouvier cita também, ainda que en passant, os profissionais dos lazeres, como os animadores de festas infantis responsáveis por manter as crianças em atividade. Mas uma atividade orientada por adultos. Os “especialistas do cuidado infantil” ascendem, dessa forma, à cena social. Suas atividades compõem-se com os discursos e práticas “do psicólogo, do médico, do jurista, do pedagogo, do assistente social, do sociólogo” (FREITAS, 2006, p. 13) que tomam a criança e a infância como seu objeto. Um objeto reformulado, mas que não é novo (os higienistas dos séculos XIX e XX já as haviam tomado sob seus cuidados).

Essas formas de terceirização, profissionalização e “cientificização” da criança e da infância têm a particularidade de agrupar a questão da vulnerabilidade (investimento social e público como direito individual), da esperança (investimentos materiais e afetivos feitos pelos adultos, pais ou professores) e da escolarização (aquisição de competências e habilidades essenciais à formação continuada e que constituem desempenhos ditos normais, porque esperados). Tratarei dessas duas questões nas seções seguintes. Antes, cabe uma incursão acerca da deficiência e da disfunção de origem biológico-patológica, um tema transversal a esse agrupamento.

O direito ao atendimento especializado às crianças e adolescentes portadores de deficiência20

é garantido pelo ECA (Título II – Dos direitos fundamentais, Capítulo I – Do direito à vida e à saúde), incluindo a educação especial na rede regular de ensino (Capítulo IV – Do direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer). Por educação especial entende-se, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), “a modalidade de educação escolar,

19 Os nomes dos participantes da pesquisa são fictícios.

20 Embora alguns documentos oficiais ainda adotem a expressão “pessoas portadoras de deficiência”, utiliza-se,

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oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais”, isto é, alunos com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Entre os recursos oferecidos estão as salas multifuncionais. Esses estudantes podem também frequentar classes especiais ou instituições exclusivas às suas necessidades.

Trata-se, nas políticas públicas, de um grupo considerado vulnerável. No Censo de 2010, 45,6 milhões de pessoas (23,91% da população total naquele ano) declararam-se deficientes visuais, auditivos, motores, mentais ou intelectuais. Destas, 380.112 crianças (dentro de um total de 484.332 alunos com necessidades especiais) foram matriculadas em classes comuns do ensino regular ou da modalidade de educação de jovens e adultos naquele ano em escolas públicas (municipais ou estaduais)21

. No Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2015, o Ministério da Educação e o INEP ofertaram atendimento especializado a 61.216 candidatos, incluindo os casos de déficit de atenção (7,2 mil inscritos), conforme as informações divulgadas no portal do MEC em junho do mesmo ano.

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), por ser um transtorno mental, não é considerado como uma necessidade especial no âmbito da LDB (embora exista um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, o PL 7798/2014, cujo objetivo é incluir os transtornos mentais no grupo das necessidades escolares especiais). Entretanto, ele é um diagnóstico frequentemente associado à agitação extrema, ao declínio do desempenho escolar de alguns alunos e, em certos casos, à indisciplina. É também um elemento recorrente em solicitações médicas feitas para e por professores referentes à elaboração de relatórios comportamentais e de desempenho de um dado aluno ou ao preenchimento do SNAP-IV22

. Veremos em outros capítulos desta tese que um vocabulário técnico, associado à categoria TDAH, circula pelos espaços escolares. Isso permite que tal condição seja facilmente reconhecida por professores, o que lhes dá elementos para discuti-la e, até mesmo, criticá-la.

21 Disponível em: <

http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-da-conle/tema11/2014_14137.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2015.

22 Trata-se do questionário de Swanson, Nolan e Pelham-IV (SNAP-IV), construído a partir das descrições do

TDAH propostas pelo DSM-IV (APA, 2000b). Ele foi traduzido para o português pelo Grupo de Estudos do Déficit de Atenção da UFRJ - GEDA e pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência da UFRGS (MIRANDA et al., 2011, p. 2) e validado por Mattos et al. (2006). As 18 questões que compõem o formulário podem ser respondidas por pais ou professores e visam a definir os comportamentos que melhor descrevem o aluno por meio dos critérios “nem um pouco”, “só um pouco”, “bastante” e “demais”. O questionário encontra-se disponível para download em: <http://www.tdah.org.br/images/stories/site/pdf/snap-iv.pdf>. Acesso em: 08 set. 2015.

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É válido afirmar que o TDAH assemelha-se à deficiência e à incapacidade pelo fato de todos eles serem problemas crônicos, isto é, sem cura. Transitando entre a patologia e a diferença, diferentes indivíduos podem receber um diagnóstico e desfrutar de um direito especial. Nesse sentido, veem-se proliferar os movimentos em defesa dos direitos das pessoas com deficiências, das crianças com TDAH, dos autistas, entre tantas outras identidades sociais ligadas a disfunções as mais diversas. No caso do déficit de atenção e da hiperatividade, nota-se claramente a fusão das reprenota-sentações da criança sujeito de direito e da criança com TDAH nos movimentos traçados pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA).

Essa discussão ainda será aprofundada. O que cabe reter no momento é que a questão da vulnerabilidade da criança brasileira permeia diferentes âmbitos de sua vida social. Ela é o fundamento de ações externas sobre o sujeito infantil de direito objetivando a sua adequada socialização. Mas ela é também um princípio capturado por interesses diversos, por meio dos quais a criança pobre e miserável é transformada, segundo Rosemberg (2008), em peça publicitária do “espetáculo da compaixão” e da benevolência. O mesmo ocorre com o comportamento delinquente, que passa a corresponder a um desvio moral. Esses são paradoxos que se colam à representação do sujeito de direito. Entre a vítima das perversidades sociais e biológicas (no caso das deficiências e das disfunções) e o desviante das normas, diferentes subjetividades e representações infantis se formam. Duas delas merecem atenção: a criança-filha, inserida nos novos arranjos familiares, e a criança-aluna, personagem de uma escola contemporânea em crise.

1.2. Constituindo a nova família contemporânea e sua criança

“A família não é mais a mesma”, dizem. Não é mais a mesma porque está “desestruturada”, não cumpre sua função de educar os filhos, causando-lhes mais problemas do que os resolvendo. Esse tipo de enunciado foi reproduzido pela maioria dos professores e professoras participantes da pesquisa de campo constituinte desta tese. Mas o que significa, nesses discursos, ser uma família desestruturada e que não cumpre suas funções? Para responder a essa questão, é preciso compreender as novas configurações da família contemporânea e analisar a posição ocupada pela criança nessa trama.

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Mudanças e arranjos

As maneiras de constituir uma família são multifacetadas. Nessa perspectiva, Corrêa (1982) critica os usos uniformes da noção de família na teoria sociológica brasileira. Usos esses que pressupõem a existência de um único modelo familiar que evolui do tradicional ao moderno e deste ao contemporâneo. Usos que também se refletem nas práticas cotidianas, como se observa no fenômeno de intensificação de manifestações conversadoras que buscam determinar uma noção de família restrita à união entre homens e mulheres que gera filhos. Embora possa ser traçado um perfil predominante da família brasileira, ele contradiz essa proposta conservadora e revela a influência das mudanças históricas, sociais e econômicas na constituição familiar e, consequentemente, em sua crise.

Um primeiro aspecto a ser notado é a diminuição do tamanho da família e a multiplicidade de seus arranjos. O relatório do IBGE (2011) aponta o ano de 1970 como o momento-chave em que, pela primeira vez na história do país, o número de habitantes urbanos ultrapassou o da população rural. Esses dados retratam os efeitos do processo de urbanização e de crescimento da população iniciado nas décadas precedentes. Nos anos 1980 e 90, entretanto, a taxa de crescimento demográfico declinou de 2,48% (1970/1980) para 1,93%, fato desencadeado pela queda da taxa de fecundidade e pelo êxodo rural, segundo o relatório. O documento ainda apresenta a pirâmide etária característica daquele decênio: uma base estreita e um pico que se prolonga. Essa configuração representa os efeitos da redução da fecundidade: menos crianças nascem, enquanto a população envelhece gradativamente (e a expectativa de vida se estende). Em comparação a outros anos, o relatório conclui que, sobretudo na área urbana, nasce hoje cerca de 1,8 filho por família (em 1960, a taxa de fecundidade era de cinco filhos).

A década de 80 também foi marcada pela concretização dos direitos das mulheres e, como se viu anteriormente, das crianças e jovens, o que se refletiu significativamente na situação jurídica e social da família. A Constituição de 1988 garantiu, de acordo com Moraes (2014), que o princípio da igualdade entre homens e mulheres orientasse uma união, descrita como base da sociedade, a ser protegida pelo Estado. Tal princípio aplica-se diretamente aos filhos que devem ser cuidados por ambos os cônjuges. Naturais, nascidas fora do casamento (filho ou filha de um dos cônjuges) ou adotadas, todas as crianças sob esses cuidados são juridicamente iguais entre si. Nota-se que, em última análise, em uma família cujo tamanho se reduz (em 2010, encontrava-se nas unidades domésticas uma média de 3,3 moradores), a criança assume uma posição central.

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É preciso ter claro que, a partir dos anos 60, o estatuto social, econômico e simbólico das mulheres começou a ser modificado. Ao mesmo tempo em que o uso dos anticoncepcionais permitiu-lhes controlar sua reprodução (o que, consequentemente, originou uma distinção entre reprodução e sexualidade), as mulheres foram incorporadas ao sistema produtivo capitalista. Ao passo que elas saíam de casa para trabalhar, os arranjos domésticos antes dominantes (a mulher como sinônimo exclusivo de mãe e esposa) entravam em mutação, incluindo a questão da descentralização do cuidado da criança — embora as mulheres ainda sejam vistas como “cuidadoras primárias”, segundo o jargão médico — e, posteriormente, da profissionalização desse cuidado.

Outra contribuição da Constituição de 88 à configuração familiar, apontada por Moraes (2014), é a facilitação (redução de prazos e exigências) do divórcio, acrescida da garantia legal de que qualquer um dos pais e seus descendentes possam constituir uma família. Uma multiplicidade de arranjos torna-se então possível. Da análise do IBGE (2011), destacam-se alguns deles: a residência em uma mesma unidade doméstica (60 mil domicílios em 2010) de um(a) responsável e de seu(sua) cônjuge ou companheiro(a) do mesmo sexo; a coabitação de um casal e de pelo menos um(a) enteado(a); o aumento do número de unidades cujo responsável é a mulher ou onde a responsabilidade domiciliar é compartilhada; a incidência de domicílios unipessoais; e a convivência intergeracional (entre avós e netos, por exemplo). Essas possibilidades coexistem com aspectos mais tradicionais, como a união entre pessoas de sexos diferentes e a convivência com filhos nascidos do casamento do casal.

O segundo ponto a ser tratado é a posição central ocupada pela criança nos arranjos familiares contemporâneos e seus desdobramentos. Ainda segundo Moraes (2014, p. 27), a “nova família” é uma instituição que nasce da “disposição de cuidar de outrem”, e não mais exclusivamente dos laços sanguíneos e de compromissos estabelecidos pelo casamento. Pois “família é quem cuida”. A solidariedade, a dignidade, a responsabilidade e o afeto ganham, assim, dimensão jurídica e realidade cotidiana no seio familiar, bem como o que acontece com a criança.

Presume-se, portanto, que a decisão de gestar e cuidar de uma criança gravita, salvos alguns casos, em torno de uma decisão compartilhada. Pois, no “casal igualitário”, além da divisão equitativa das responsabilidades, há o princípio de que cada cônjuge deve manter sua individualidade e perseguir seus projetos pessoais e profissionais. A família contemporânea “permite a seus membros conciliar o pertencimento comum e a singularidade de cada um” (SINGLY, 2012, p. 8). Nesse contexto, ter um filho hoje significa mais a realização de um desejo do que o simples ato da reprodução. E esse desejo pode relacionar-se

(29)

tanto à ânsia dos pais de encontrar um sentido para suas vidas vazias quanto à esperança de que, investindo na criança, ela possa ter melhores condições de vida. É claro que existem diferentes níveis entre esses dois extremos. O fato é que as crianças constituem-se como membros centrais da família e que todo um conjunto de investimentos é nelas feito. Essa nova posição redimensiona uma tensão particular às representações sociais e às experiências de infância: ainda que seja um ser humano em desenvolvimento, à criança se confere algo como uma autonomia.

Observa-se que a questão da autoridade parental desloca-se para a do investimento familiar na criança. Da relação entre a flexibilização da autoridade adulta e a valorização de uma autonomia infantil, emerge um sentimento de crise da família, que se estende a um sentimento de crise da escola. O uso da palavra “crise” é significativo: se, por um lado, ele implica uma instabilidade momentânea causada por qualquer tipo de transição (um tempo de adaptação a novos padrões ou ideais), por outro, a crise denota, no senso comum — como observado recorrentemente em trabalhos de campo —, uma negatividade pautada na concepção dos novos valores morais e sociais que acompanham a mutação familiar como perdas de referenciais e, em consequência, como desestruturação. Uma concepção que considera as vulnerabilidades que afetam as crianças como decorrências das incapacidades e ingerências familiares.

A culpabilização da família desestruturada

Em A família em desordem, Elisabeth Roudinesco (2003) percorre um caminho histórico das transformações sociais e psicanalíticas da família europeia, da função simbólica da figura do pai e da irrupção feminina e infantil — testemunhadas e analisadas por Freud — para compreender as configurações familiares contemporâneas e o desejo de se constituir, ainda hoje, uma família (desejo esse compartilhado também por casais do mesmo sexo). Dentre as tantas “desordens” da família, três momentos fundamentais são destacados por Roudinesco. O primeiro diz respeito ao declínio de uma composição dita tradicional, fundada na autoridade inquestionável de um Deus-pai, o homem cujo poder soberano correspondia à imagem da divindade religiosa. Isso conferia à figura do pai um estatuto de onipotência familiar e sociopolítica. Citando Balzac, a autora afirma que ao cortar a cabeça do rei (o símbolo máximo dos governos monárquicos) a Revolução francesa derrubou, no final do século XVIII, a cabeça de todos os pais de família.

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