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A crise psiquiátrica: da clínica aos biomarcadores e a indústria do mal-estar e do risco

Capítulo 3. Os casos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

4.2. A crise psiquiátrica: da clínica aos biomarcadores e a indústria do mal-estar e do risco

A experiência clínica engendrou-se a partir do olhar empírico médico direcionado ao paciente, aos elementos externos constituintes de seu corpo, bem como a seus órgãos internos, em decorrência da reorganização dos hospitais e do advento das técnicas de autópsia. E desse olhar surgiu a possibilidade de criar um saber e uma linguagem racional — um discurso científico — sobre o indivíduo. Unificando o domínio hospitalar e o pedagógico (o ensino da medicina dentro dos hospitais a partir do século XIX), a clínica tomou o paciente em uma relação de diálogo (interrogação) e de contato (exame) com o médico. Assumiu igualmente a singularidade de um conjunto de acontecimentos patológicos comparáveis entre si de modo sistemático e descritivo e o corpo individual como a fonte primeira da configuração do saber anatomopatológico por meio do olhar clínico ativado durante as visitas hospitalares e as dissecações anatômicas (FOUCAULT, 2008b).

92 Entendo “indústria” por seu sentido amplo de engenho e criação. O mal-estar, destacadamente, representa um

sentimento real de sofrimento individual e coletivo. Portanto, falar de indústria do bem-estar, do mal-estar ou do risco corresponde ao ato de incorporar à realidade do sofrimento e do desejo princípios de necessidade e instrumentos para satisfazê-la.

A clínica então passou por uma série de transformações históricas, econômicas, epistemológicas e institucionais até chegar ao modelo operacional, pragmático e que busca a eficácia técnico-científica, marca essencial da contemporaneidade. Nele, a clínica médico- psiquiátrica — ancorada no diagnóstico de sintomas vivenciados e relatados pelo paciente, na observação clínica de comportamentos e também nas operações interventivas cognitivo- comportamentais e psicofarmacológicas — coexiste com uma proposta de fundamentação da psiquiatria na medicina precisa, modelo segundo o qual os comportamentos são observados e medidos objetivamente, não sendo influenciados pela subjetividade do paciente que relata sua experiência da doença. Nessa perspectiva, o cérebro e seus mecanismos formam a base do conhecimento neurocientífico93

aplicado a uma “nova” clínica e à elucidação dos transtornos mentais (ZORZANELLI; DALGALARRONDO; BANZATO, 2014).

Em outras palavras, essa nova proposta investe em uma desagregação do fator humano-social do processo clínico e diagnóstico (isto é, da possibilidade de incorporar aos procedimentos médicos as experiências subjetivas, a illness de Kleinman ou a capacidade normativa do paciente que define um estado patológico a partir de suas condições de vida biológica e social, conforme o argumento de Canguilhem) em benefício desse mesmo fator. Por meio da construção de categorias e diagnósticos médico-psiquiátricos objetivos, busca elaborar um tratamento eficiente, individualizado e promotor de bem-estar, senão da cura, ao paciente. Tal desagregação é possível uma vez que concebe o cérebro como uma entidade, ou melhor, como uma parte do corpo responsável pelo todo corporal, mental e social. Ela implica igualmente a depreciação da legitimidade de práticas apoiadas na experiência subjetiva (de clínicos e de pacientes), como ocorre com a psiquiatria do DSM.

Um conflito logo se instaura entre essas abordagens frente aos esforços de inserir o manual no campo neurocientífico — ao redefinir a hiperatividade e a desatenção como sintomas de um transtorno do neurodesenvolvimento, por exemplo — e de buscar comprovações concretas acerca da existência de um transtorno mental, apesar das limitações explicitamente declaradas por seus colaboradores (tais como a etiologia ainda hipotética de condições como o TDAH e o reconhecimento de que os sintomas descritos para uma categoria extrapolam, na realidade, as próprias delimitações classificatórias). Lê-se no prefácio do DSM-V (APA, 2013, p. xii) que essa nova edição distingue-se das demais devido,

93 As neurociências — que tomam para si a tarefa de desvendar os mistérios da entidade cerebral — constituem-

se de um conjunto de disciplinas dedicadas ao estudo do sistema nervoso, sua estrutura e suas funções, tanto em funcionamento normal quanto em estado de patologia. Tal conjunto compõe-se de práticas e saberes biológicos, químicos, psicológicos, anatômicos, entre outros (ANDREASEN, 2005), a cuja denominação se acresce, geralmente, o prefixo “neuro”.

entre outros fatores, à integração de descobertas científicas em genética e neuroimagem capazes de orientar a determinação de fatores de risco, de indicadores prognósticos e de possíveis marcadores diagnósticos para as categorias descritas.

O ponto alto da crítica ao manual foi atingido pela afirmação pública e imperativa, feita por Thomas Insel, diretor do National Institute of Mental Health (NIMH) dos Estados Unidos, de que as categorias diagnósticas do DSM-V carecem de validade científica (isto é, de uma inscrição biológica bem definida) por serem baseadas em sintomas clínicos, e não em medidas laboratoriais objetivas. Isso fomenta a “criação” de doenças. Ademais, a psiquiatria do DSM impede, em vista de sua invalidade, o sucesso investigativo acerca dos biomarcadores determinantes dos transtornos mentais.

O NIMH então lançou a proposta do Research Domain Criteria (RDoC), “um projeto para transformar o diagnóstico, por meio da incorporação da genética, neuroimagem, ciência cognitiva, e outros níveis de informação com o fim de estabelecer as bases para um novo sistema classificatório” (INSEL apud ZORZANELLI; DALGALARRONDO; BANZATO, 2014, p. 330), orientado pelos padrões da medicina de precisão e pela pesquisa e elaboração de diagnósticos observáveis (clínicos), objetivos (pautados em informações moleculares) e seguros (capazes de fornecer subsídios para tratamentos individualizados eficientes).

Esse embate declarado evidencia, de acordo com Pereira (2014), a atual “fratura epistemológica” do saber psiquiátrico. A crítica de Insel à abordagem nosológica do DSM coloca em questão a legitimidade da pretensão da psiquiatria de ser reconhecida como uma especialidade médica, o que move seus programas desde os anos 1980, com a publicação do DSM-III, bem como os sentidos dados por seu projeto a certas condições individuais e coletivas. Daí a aplicação de uma noção de crise psiquiátrica interna revelada pela expansão de tal projeto através da tessitura social, configurando um processo de medicalização. Isso significa que o próprio processo de generalização da psiquiatria em direção a diferentes âmbitos da sociedade expõe as fragilidades e rupturas de seus mecanismos. Dele emergem igualmente as possibilidades críticas, sejam aquelas advindas das neurociências, sejam as proclamadas por movimentos sociais e acadêmicos.

Relações conflituosas edificam-se também entre a psicanálise e o positivismo médico, análogo às abordagens neurocientíficas atuais, como se observa na França a partir da década de 1980 (CASTEL, 2011). Vivia-se naquele período uma era pós-psiquiatria e pós- psicanálise, um contexto em que esses saberes e práticas tiveram sua força explicativa diminuída em vista da ascensão de formas recompostas dos dispositivos médico-psicológicos

franceses. Sucintamente, tratava-se da banalização das instituições e técnicas psiquiátricas no interior da medicina geral, resultando na substituição de uma prática particular de cuidado por outra generalizada e especializada. Em um momento histórico em que as fronteiras entre o normal e o patológico se atenuam, a totalidade da existência humana torna-se o objeto das práticas terapêuticas. Estas, por sua vez, passam a desenvolver estratégias e orientações fundamentadas na gestão das diferenças e vulnerabilidades por meio dos perfis abstratos de risco e em uma nova cultura psicológica que visa ao aprimoramento de estados normais, e não à patologia.

O que se depreende dessas diferentes formas de crise psiquiátrica é a formação de um conjunto de relações em torno do cérebro como motor da vida humana, assim como da gestão do mal-estar e do risco. A gestão dos riscos incorpora a busca de biomarcadores e a articulação entre uma categoria diagnóstica e possíveis riscos aos quais o seu portador pode estar predisposto. Nessa ótica, os marcadores biológicos, identificados por técnicas de mapeamento genético e de imagem cerebral, podem auxiliar na previsão do curso de uma doença ou de um transtorno mental. A mesma promessa se faz na direção da previsão do desenvolvimento de certos comportamentos, traços de personalidade e capacidades mentais e emocionais, principalmente em crianças e adolescentes: “os biomarcadores prometem ser a ferramenta psiquiátrica mais poderosa desde a descoberta das drogas antipsicóticas” (SINGH; ROSE, 2009, p. 202).

O desenvolvimento técnico relativo aos biomarcadores extrapola a clínica e alcança espaços como a sala de aula e o tribunal. No caso da educação, há entusiastas de programas educacionais baseados nas neurociências que defendem a aplicação das descobertas neurocientíficas no início da infância a fim de informar como as crianças são ensinadas, como as salas de aula devem ser estruturadas e, sobretudo, assinalar os desafios do desenvolvimento, como a impulsividade e as dificuldades de aprendizagem, que podem ocasionar um transtorno mental futuro. No caso da criminalidade juvenil, os estudos cerebrais prometem identificar biomarcadores ligados à delinquência e a riscos de neurodesenvolvimento, predizendo, assim, os comportamentos antissociais (SINGH; ROSE, 2009, p. 203).

Logo, a psiquiatria contemporânea redefine-se metodologicamente. As novas metas enfocam a probabilidade de desencadeamento de certas condições. Essa probabilidade embasaria o trabalho com perfis de risco, visando a detectar precocemente as ameaças e fornecer aos indivíduos recursos especiais como parte de um programa específico (SINGH; ROSE, 2009, p. 203). Para Castel (2011), a elaboração de perfis de risco populacionais é uma

estratégia governamental de gestão das vulnerabilidades sociais, operada pela associação de determinados perfis a hierarquias particulares. Adotando o ponto de vista de Castel (2011), é possível compreender a interface entre biomarcadores e (perfis de) risco como uma forma de tratamento de correlações estatísticas, e não de atuação direta no indivíduo, tarefa essa delegada às intervenções terapêuticas. É o caso do perfil traçado pelo discurso do DSM (ainda que nele se afirme a inexistência de provas determinantes, no nível de biomarcadores, da causa do TDAH), de Russell Barkley e de pesquisadores brasileiros para as crianças com TDAH com alto potencial ao fracasso escolar, a acidentes de trânsito ou ao aparecimento de comorbidades. O mesmo ocorre com os alunos que, portando um laudo médico para hiperatividade e desatenção, têm suas informações inseridas em um banco de dados estadual a fim de que sejam acompanhados durante toda a sua trajetória escolar. Ou ainda aqueles que têm garantidos, judicialmente, benefícios compensatórios no âmbito educacional.

A nova cultura psicológica, por sua vez, é caracterizada por Castel (2011) como resultante da dinâmica social contemporânea orientada por uma forma de compreensão do mundo segundo a qual tudo pode ser psicologicamente interpretado e transformado. A cultura psicológica atual é, nesse sentido, “uma postura cultural que tende a instalar no âmbito psicológico a realização da vocação do sujeito social”, extrapolando qualquer referência à patologia (CASTEL, 2011, p. 151). Tal postura se constitui em um contexto sociopolítico geral que incentiva (ou melhor, induz por meio da produção da necessidade e do desejo, da mobilização voluntária, conforme a análise feita nos capítulos anteriores) o superinvestimento em práticas relacionais, isto é, na construção de novos espaços de sociabilidade e no cultivo de um eu mais performático.

A produção do mal-estar tem aí seu sentido fundamental. Da criança que não aprende ou o professor incapaz de manter a ordem disciplinar e, ao mesmo tempo, de estabelecer um diálogo com seus alunos, até uma forma generalizada do ser humano (um homem abstrato e sem história), o mal-estar ganha sua materialidade e seus modos distintos de definição. O sofrimento, seu sintoma primordial, passa a ser medido conforme as intensidades de uma suposta patologia (ou incapacidade) que o causa (em grau leve, moderado ou grave) e conforme os prejuízos causados pelas manifestações sintomáticas. Essa configuração do sofrimento já foi abordada aqui em relação à categoria TDAH. E nela o sofrimento é visto como indesejável e insuportável, o símbolo maior da infelicidade e, consequentemente, do fracasso (DUNKER, 2015).

Trata-se ainda de um novo mercado de consumo, sustentado principalmente pela indústria farmacêutica. O fenômeno de aumento da dispensa de Rivotril® a professores

ansiosos, apresentado no segundo capítulo, é um exemplo significativo, assim como a produção e administração da Ritalina® para crianças hiperativas e desatentas. Neste caso, o metilfenidato incorpora tanto um valor eficaz quanto um sentido simbólico. A eficácia do medicamento manifesta-se no controle dos sintomas, sobretudo das manifestações ditas externalizantes — a hiperatividade e a impulsividade. Sua simbologia (também agregada a uma eficácia) encontra-se no fato de que, estando controladas as manifestações sintomáticas, as perturbações se amenizam. O único aluno capaz de desestruturar toda uma sala “acalma- se” e permite ao professor prosseguir com seu cronograma.

Os medicamentos psicotrópicos são benéficos em alguns casos e sobre sua ação se criam significados diversos. A aversão de Luan à Ritalina® é simultânea ao reconhecimento do fármaco, por Danilo, como o meio mais adequado de se alcançar um bom rendimento escolar. Em outras situações, o remédio representa a ameaça de uma punição94

ou mesmo a possibilidade da normalidade (isto é, de comportar-se como as demais crianças). Não se trata, portanto, de pleitear seu banimento ou o das práticas que tomam o medicamento como medida terapêutica básica. Ainda que o fosse, sua difusão social como um instrumento significativo da indústria do mal-estar faz com que ele seja requisitado e reconhecido como legítimo e de direito.

O outro instrumento dessa indústria diz respeito às estratégias interventivas articuladas pela rotulação e pela culpa. É o caso dos professores que recusam o encaminhamento de alunos a especialistas ou a administração do medicamento, ainda que sob orientação médica. Mesmo resistindo, eles classificam seus alunos e culpabilizam sua família. Trata-se de outro discurso medicalizante que, negando a prática biomédica por meio da denúncia da medicalização, adota uma perspectiva psicológica que também implica, a partir de outros pressupostos, uma intervenção no corpo e nas inter-relações cotidianas. A culpa também funciona inversamente, quando professores sentem-se culpados pela impossibilidade de estar atentos a todos os alunos e, assim, demandam alguma forma de auxílio externo, tal como a atuação de especialistas no interior do estabelecimento escolar.

Desse modo, da oscilação entre a susceptibilidade do risco e a cultura psicológica do aprimoramento (CASTEL, 2011; ROSE, 2007), emerge o caráter social, econômico e político das disputas entre saberes e das categorias clínicas definidas por esses saberes com base no ideal de adequação e otimização do corpo individual e da vida social.

94 Refiro-me à observação, feita em um ambulatório universitário de psiquiatria infantil, do uso da administração

do medicamento como ameaça ao comportamento perturbador. Ao correr pelo saguão do ambulatório com outras crianças, um menino portador de TDAH foi advertido por sua mãe: “se você não parar, vou te dar o remédio” (BARBARINI, 2011, p. 112).

Será que isso [o uso de medicamentos para crianças diagnosticadas como hiperativas e desatentas] não é mais ou menos como um atleta que acaba tomando alguns medicamentos para fortalecer alguns desenvolvimentos, um salto maior, como se você estivesse ajudando seu organismo em certos mecanismos, mas que na verdade não são adequados? Eu acho que isso é uma questão de adequação mesmo, não necessidade. “Ah, eu me concentro mais”, mas será que é adequado? Para outras situações você tem essa necessidade? Será que é preciso tomar coisa para isso? (Jussara, professora de um programa de educação não formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).

Embora a professora se refira especificamente ao medicamento, sua reflexão evidencia aquilo que rege a rede relacional dos perfis de risco, do aprimoramento e, inclusive, da noção difusa de transtorno mental: a formulação e intervenção sobre uma “incapacidade” individual de se constituir adequadamente — conforme um projeto de sociedade — enquanto sujeito. Individual, pois subordinada a uma representação de si como possuidor de um cérebro doente, formulada conforme referências científicas específicas (EHRENBERG, 2004a), ou como corpo/mente passível de aperfeiçoamento. E social, sobretudo, uma vez que o desajuste comportamental implica, nessa ótica, prejuízos às relações e desempenhos sociais, pessoais, escolares e profissionais.

Sumariamente, instaura-se a regularidade de uma diversidade de discursos, saberes e práticas, aparentemente contraditórios ou alternativos entre si. Ela é possível e coerente nessa nova rede, dado que seus elementos regem-se por um mesmo modo de conhecer e intervir na realidade social através do corpo, da mente e do sujeito e de uma verdade constituída sobre eles a partir de práticas sociais específicas. Essa regularidade recebe o nome de “medicalização”.

4.3. Medicalização: o modo de funcionamento da sociedade e a socialização infantil