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Capítulo 3. Os casos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

3.3. O uso de medicamentos e as terapias

A segunda questão emergente da descrição dos casos de TDAH é o uso de medicamentos e a indicação de terapias como formas de tratamento do transtorno. O TDAH é uma condição presente em toda a vida do indivíduo, já que não tem cura. Seu tratamento

pauta-se, assim, no controle dos sintomas hiperatividade, desatenção e impulsividade, o que fornece ao laudo médico (que afirma a existência do TDAH por meio de um processo diagnóstico específico) e às terapias, sobretudo a medicamentosa, um estatuto especial.

O diagnóstico representa a possibilidade de se explicar e compreender o comportamento infantil definido como problemático, bem como desculpabilizar os indivíduos envolvidos. A imagem da sala de aula dividida em semicírculos, em uma configuração onde os alunos com prováveis disfunções cognitivas encontravam-se próximos à professora, porém segregados dos demais colegas, é ilustrativa. Conquanto não houvesse sido emitido um laudo médico que atestasse a disfunção, a hipótese de sua existência, por si só, permitia distinguir alunos “normais”, “diferentes” e “sem jeito”. Tal distinção autorizava a professora a elaborar estratégias pedagógicas específicas para cada grupo e, assim, amenizar seu sentimento de culpa por não ser capaz de dar atenção aos alunos mais necessitados. Cabe notar que o diagnóstico deixa de ser meramente um procedimento clínico para se transformar em fundamento de condutas cotidianas, seja como parte de uma conversa comum, como fator de gestão dos comportamentos ou ainda como condição de inclusão na cidadania (DUNKER, 2015).

O medicamento, nesse sentido, simboliza a esperança de uma solução ao problema cognitivo-comportamental. A diversidade de hipóteses que orientam os estudos considerados oficiais sobre o TDAH privilegia diferentes técnicas terapêuticas e de tratamento vinculadas ao transtorno. Porém, no Brasil, as mais comuns são o uso de medicamentos psicoestimulantes, a terapia cognitivo-comportamental e a orientação psicopedagógica. Também se encontram aqui terapias alternativas e experimentais que envolvem vertentes da psicanálise, prática de esportes, dietas alimentares, mindfulness, entre outras73

.

Essas diferentes hipóteses articulam-se umas com as outras em diferentes graus. Entretanto, é possível observar em cada uma delas traços das linguagens e discursos adotados por professores para falar sobre o TDAH e para identificar possíveis casos de alunos acometidos pelo transtorno. Ainda que esses profissionais não versem sobre neurotransmissores ou biomarcadores de risco — termos técnicos ainda pouco dominados, ao contrário de “genética” ou “fatores ambientais e de desenvolvimento” —, o privilégio do uso de medicamentos implica a ação das práticas (neuro)científicas na produção do metilfenidato

73 Algumas informações sobre essas terapias ditas alternativas foram encontradas em páginas virtuais, tais como:

<http://www.tdah.org.br/sobre-tdah/tratamento.html>; <http://www.dda-deficitdeatencao.com.br/instituto/index.html;

http://www.foxnews.com/health/2014/09/09/researchers-hope-physical-activity-can-stem-growing-use-adhd- medications/>;<http://well.blogs.nytimes.com/2014/05/12/exercising-the-mind-to-treat-attention-

deficits/?_php=true&_type=blogs&_php=true&_type=blogs&emc=edit_tnt_20140512&nlid=64595674&tntemail0=y &_r=1&>. Acesso em: 13 jul. 2015.

como uma solução simbólica e, ao mesmo tempo, eficiente. O professor Jorge anuncia o poder do remédio: “E quando o pai não vem com um remedinho, nós, já quase doutores, [dizemos] ‘olha, não está na hora de tomar um remedinho, procurar um médico?’ E isso nos parece que é a solução”.

O medicamento compõe-se de três elementos essenciais, de acordo com Fernando Lefèvre (1991). Trata-se de um agente quimioterápico manejado pela biologia, farmacologia e medicina. É um produto materializado em comprimidos ou xaropes que cura, controla sintomas e previne o desenvolvimento de condições patológicas. Circulando pela sociedade, torna-se, enfim, uma mercadoria e um símbolo. O consumo do medicamento excede a intenção inicial da cura e realiza uma promessa de concretização de um estado de saúde e o desejo individual de ser saudável. Nesse sentido, “saúde” e “saudável” são entendidos como uma necessidade. Em última análise, a eficiência do medicamento substancializa o êxito simbólico da ciência, na visão de Lefèvre. No capítulo anterior desta tese, discuti a construção do desejo de intervenção especializada como uma necessidade, o que vai, de algum modo, ao encontro da proposta do autor. O principal ponto comum dessas perspectivas é exatamente a questão da necessidade, seja da intervenção, seja da saúde como tal. E uma necessidade que se constitui de interditos contemporâneos: o sofrimento, a dor e o erro.

Danilo era visto como um bom aluno graças ao laudo e ao medicamento. Na verdade, essa imagem do bom-aluno-bom-medicamento foi enfraquecida duas vezes. Primeiro, quando alguns professores afirmaram que o menino causava problemas na escola mesmo tomando o remédio. Segundo, quando Danilo esclareceu que a Ritalina® é apenas um instrumento por meio do qual ele pode melhorar seu rendimento, sendo que não foi o início de seu uso que motivou sua decisão de se esforçar nas atividades escolares. Ao mesmo tempo, o medicamento liga as duas imagens de si: o aluno que se dedica aos estudos para conseguir o que quer — o que é possível por meio do uso da Ritalina® — e o hiperativo (“Eu sou hiperativo também, por isso que eu tomo remédio”) — evocado quando a conversa chegou aos termos “dificuldades de aprendizagem”.

Se o medicamento é um instrumento (desejado), o desempenho é a engrenagem dessa teia de imagens positivas e negativas, de relações e de acontecimentos. Foi este último que motivou a mudança de comportamento de Danilo — e não a Ritalina® —, uma mudança pautada na busca de referências que dessem sentido à função da escola e aos benefícios do bom desempenho escolar. Também foi o desempenho que levou os professores a reconhecer o menino como um bom aluno. Entretanto, o instrumento é mais visível do que a engrenagem, por isso o medicamento (e o laudo) aparece sempre como um divisor de águas: “Quando eu

não tomava remédio, os professores ignoravam minhas perguntas. Com o remédio eles não ignoram mais”. O que Danilo denuncia a partir desse enunciado é a exclusão dos “sem jeito”. Ele delata, do mesmo modo, a falta de atenção dos professores (e dos pais) ao propor soluções alternativas ao medicamento: “Em alguns casos, os pais poderiam ter um reiozinho. [E] Os professores poderiam dar mais atenção”.

Em outras palavras, o que resguarda o aluno da invisibilidade completa (mesmo no caso de Luan) são a visibilidade e a eficiência do laudo e do medicamento. Um objeto concorre com pessoas na solução e na explicação de um problema, sendo até mesmo capaz de intervir na dimensão das funções e dos papéis, das responsabilidades, das decisões e dos desejos individuais e coletivos, personificar-se e “coisificar” os sujeitos (SEDRONAR, 2008). Danilo só se tornou visível (um bom aluno, ou mesmo um aluno hiperativo ou desatento) quando passou a fazer uso da Ritalina®, embora ela seja apenas um instrumento.

A negatividade do “sem jeito” (invisível enquanto sujeito dentro de um grupo e, ao mesmo tempo, visível como exemplo a não ser seguido) e a positividade do “bom aluno” (afligido, porém, por uma patologia) articulam-se, então, em um jogo de expectativas sociais e objetos em que os últimos predominam por sua potencialidade interventiva. Trata-se de um jogo que visa, em última instância, ao restabelecimento da funcionalidade dos indivíduos (professores e alunos) em uma engrenagem escolar e social. O remédio é adequado e deve ter sua dose aumentada quando sua eficiência é comprometida, conforme o relato de Danilo, porque ele auxilia o indivíduo a chegar a um ponto ideal: o bem-estar e o sucesso escolar. Mesmo para Luan, que denuncia o médico que o “entupia de remédio”, o bem-estar pôde ser alcançado por meio de uma terapia: as sessões com a psicóloga, que o ajudava a não se preocupar excessivamente com a possibilidade da repetência e, consequentemente, do fracasso escolar.

O medicamento também carrega o sentido do controle comportamental. A descoberta de que Vitor havia interrompido o uso da Ritalina® permitiu aos professores especular o motivo pelo qual o comportamento e o rendimento do aluno haviam se modificado. Afinal, conforme o que já foi dito, os professores constroem suas percepções (e ânsias) pautadas na ação do medicamento. A professora Ana confidencia: “Não que não seja bom para nós, professores, o aluno que vem com Ritalina® na cabeça. Mas...”. A reticência de seu relato, uma revelação de um desejo docente de controlar rápida e facilmente os distúrbios de sua aula, é acompanhada de uma reflexão:

Eu dou aula pra criança e às vezes você tem que diferenciar também o que é energia em excesso que eles precisam canalizar, brincar, pular corda, pular amarelinha,

coisas que não existem mais, e tomar remédio. (Ana, professora da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013).

O laudo também representa novas exigências para a família e para a escola. Primeiro, o especialista sugerirá uma reorganização das relações e dos espaços para a adaptação da criança. Ademais, todos esses indivíduos estarão sujeitos aos horários de administração do medicamento (quando for o caso), das consultas com o especialista ou com as sessões de terapia. Segundo, a escola e a família terão de acompanhar o desenvolvimento da criança, o que pode resultar em um conflito entre as instituições. Uma professora citou um exemplo:

Mas com o laudo em mãos, os pais exigem uma outra postura. Ele está sendo medicado, tem o laudo, então agora a escola vai ter que fazer tudo. Sabe? E não é cobrada a responsabilidade do aluno de organizar uma mochila no quinto ano! Então, até onde o remédio vai fazer tudo? (Bruna, professora da rede privada. Entrevista concedida em 10 set. 2013).

Nessas estratégias, o medicamento pode assumir um papel importante na relação entre pais, professores e crianças e, por vezes, atuar como “âncora de salvação”: se o problema é neuroquímico, individual, pais e professores não teriam culpa e nada poderiam fazer senão procurar um especialista e seguir suas recomendações. Talvez esta seja a estratégia mais eficiente de uma naturalização do TDAH e do uso de psicofármacos, pois permite aos adultos retirar-se de um sentimento de culpa constante pelo “fracasso” de seu filho ou de seu aluno, ao mesmo tempo em que fornece às crianças novas formas de se constituir enquanto indivíduo: um indivíduo cujas ações e reações resultam de seu “problema” ou da não administração do medicamento.

A primeira fase é a da negação: a família não aceitava que tinha algum tipo de transtorno, algum tipo de... diferença. [...] A mãe foi aceitando aos poucos que ele tinha esse problema, foi indicado também Ritalina®, que ele tomava, só que aí começaram outros problemas. [...] A família começou a usar o remédio como a âncora de salvação. Aí o que acontece: ele trazia um problema, chamavam a mãe lá, poderia ter muitos testemunhos “olha, realmente foi ele que fez”. Aí a mãe falava assim: “ai, coitadinho, de certo está precisando aumentar a dose do remédio”, [...] “eu acho que ele não tomou o remédio direito de manhã”. Então, o que acontece: ela deixou de cobrar limites e regras dele e colocou a responsabilidade toda no medicamento. [...] E o pai, desde que ele começou a tomar Ritalina®, se afastou da vida [escolar] do moleque. [...] (Amanda, professora da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013).

Mais uma vez surge a questão da culpabilização da família pelo descaso ou descuido de suas funções para com a criança, agora relacionada a um posicionamento do medicamento como uma figura que ocupa, no ponto de vista da professora entrevistada, o lugar dos pais. Algo similar foi indicado no relato de que, com a emissão do laudo médico e o início do tratamento medicamentoso, os pais começam a exigir da escola a vigilância da criança, o que inclui a organização de seu material escolar. Em outros termos, a introdução do

medicamento na relação entre professores, pais e crianças modifica as expectativas colocadas uns sobre os outros, alterando também os princípios que regem o discurso da culpabilização materna: da carência cultural à carência de afeto; da responsabilização do professor pelos fracassos da criança à responsabilização do professor por um novo cuidado com a criança. Vimos no primeiro capítulo que o trânsito entre esses fatores independe da materialização do medicamento, pois se trata de elementos da socialização contemporânea da criança. Entretanto, o medicamento é um novo catalisador de uma socialização infantil adequada.

Finalmente, Luan narra as ações particulares sobre seu corpo, consequentes do uso da Ritalina®. “Ouvir vozes” e “ter tiques” são, para ele, efeitos colaterais do metilfenidato. Efeitos esses controlados por meio do uso de outros medicamentos (cujos nomes não foram citados em entrevista). A combinação de medicamentos é uma estratégia comumente adotada por psiquiatras e neurologistas e visam, por um lado, à eficiência do controle dos sintomas patológicos e, por outro, à administração das reações adversas que um psicofármaco pode desencadear em um corpo. No caso do TDAH, a ação dos psicoestimulantes no córtex-frontal e, consequentemente, nos sintomas do transtorno, orienta as principais hipóteses de sua causa, aquelas descritas por Gonon, Guilé e Cohen (2010) como dopaminérgica e noradrenérgica. A combinação de compostos aponta também um uso quase ilimitado de produtos da indústria farmacêutica, um dos empreendimentos mais lucrativos na contemporaneidade. Desenvolverei a discussão no capítulo subsequente por meio da indústria do mal-estar e do risco. Aqui, contudo, cumpre apresentar alguns dados sobre o consumo de metilfenidato no Brasil.

O metilfenidato, composto químico da Ritalina® e do Concerta®, começou a ser comercializado no Brasil em 1998, com a aprovação da Ritalina® (produzida pela Novartis Biociências, antiga Ciba, que patenteou o metilfenidato sob esse nome em 1954). O Concerta®, medicamento psicotrópico controlado74

, também utilizado no tratamento do TDAH (produzido pela Janssen-Cilag Farmacêutica) foi aprovado no país em 2002. Isso explica, até certo ponto, a profusão de diagnósticos de TDAH no país nos anos 2000.

74 Por serem classificados como psicoestimulantes do sistema nervoso central, a Ritalina®, a Ritalina LA® e o

Concerta® somente podem ser prescritos por profissionais habilitados a assinar a notificação de receita amarela, lista A3, conforme a Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1988 (ANVISA, 2012, p. 2). Em 2013, o medicamento psicoestimulante Venvanse® (dimesilato de lisdexanfetamina), produzido pela Shire, foi aprovado no Brasil para tratamento do TDAH. O Strattera® (atomoxetina), produzido pelo laboratório Eli Lilly, também está autorizado no Brasil para o mesmo fim, porém seu consumo no país não consta nos bancos de dados da ANVISA, já que o medicamento é vendido sem talonário especial (FÓRUM, 2015, p. 6). Não há genéricos para qualquer um desses medicamentos, encontrados nas farmácias conforme uma grande variação de preços (FÓRUM, 2015, p. 4).

A produção e o consumo mundial do composto cresceram significativamente nos anos 1990 (ITABORAHY, 2009). Segundo Domitrovic (2014), a Ritalina® foi aprovada pela Food and Drug Administration (FDA) em 1955 e introduzida no mercado estadunidense em 1956 para outros fins que não o tratamento do TDAH. O estabelecimento da relação entre essa categoria diagnóstica e aquele medicamento foi concretizado com a publicação do DSM- III.

De acordo com Ortega et al. (2010, p. 500), “em 2006, o Brasil fabricava 226 kg de metilfenidato e importava outros 91 kg”. Segundo os dados analisados em nota técnica pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, “o Brasil, apesar de não figurar entre os dez maiores consumidores mundiais per capita75

, apresenta crescente importação do metilfenidato, que passou de 578 kg importados em 2012 para 1820 kg importados em 2013, um aumento de mais de 300%” (FÓRUM, 2015, p. 4). Na nota se afirma que, conforme um relatório de 2015 da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes – JIPE (International Narcotics Control Board – INCB), da Organização das Nações Unidas, o aumento da fabricação do metilfenidato é um fenômeno global. Essa informação tem correspondência com a observação de Conrad e Bergey (2014) de que ocorre há algumas décadas um processo de globalização do TDAH.

Os dados analisados na nota técnica mostram ainda um aumento significativo de vendas de caixas de Ritalina® (cloridrato de metilfenidato), Concerta® (cloridrato de metilfenidato) e Venvanse® (dimesilato de lisdexanfetamina), particularmente do primeiro, nos estados e capitais brasileiros, de acordo com informações fornecidas pelo Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), da ANVISA. Ao passo que 58.719 caixas de Ritalina® foram vendidas em outubro de 2009, a venda do mesmo medicamento subiu para 108.609 caixas ao longo de quatro anos. Não há dados suficientes sobre a prevalência do TDAH no país ou sobre as faixas de idade que consomem o metilfenidato a ser cruzados, mas é possível estabelecer uma hipótese bastante plausível: os maiores consumidores são crianças e adolescentes em fase escolar, uma vez que as oscilações mais marcantes das vendas ocorrem em janeiro e em julho, quando uma baixa é notada nestes meses correspondentes às férias escolares, e no segundo semestre, que tem um aumento de vendas relativo ao período em que já é possível conhecer os alunos em risco de fracasso escolar.

75 Segue em ordem decrescente de consumo per capita, referente a 2013: Islândia, Bélgica, Suécia, Canadá,

Os preços dos psicoestimulantes usados no tratamento do TDAH são, no Brasil, os mais variados. Segundo as informações disponibilizadas pela nota técnica (FÓRUM, 2015, p. 5), a Ritalina®, o medicamento mais popular, custa entre R$ 21,90 (a caixa com 20 comprimidos de 10mg) e R$ 248,66 (30 comprimidos de liberação prolongada, contendo 40mg cada). Os valores pagos pelo Concerta® oscilam entre R$ 322,19 (30 comprimidos de 18mg) e R$ 437,87 (30 comprimidos de 54mg).

Esses dados, ainda que parciais, corroboram a afirmação de que o mercado farmacêutico tem grande importância na economia brasileira, estando o país entre os oito maiores mercados internacionais de fármacos e medicamentos (DOMITROVIC, 2014, p. 22). E vale frisar que as pesquisas do SNGPC agrupam apenas os dados de consumo de metilfenidato vindos de farmácias e drogarias particulares credenciadas ao sistema (estimadas em cerca de 47.000 em 2011, entre as 78.015 cadastradas na ANVISA76

), cujo monitoramento é feito a partir das informações de receitas médicas e notas fiscais emitidas. Isso aponta para a possibilidade de que o consumo desse composto seja ainda maior no Brasil, já que o dispêndio do medicamento também pode ser público, em níveis estaduais e municipais (o Ministério da Saúde não financia a distribuição do metilfenidato pelo SUS) por via administrativa (listas de medicamentos especiais dispensados pelo SUS) e por meio da abertura de processos judiciais pelos usuários para a solicitação de medicamentos não padronizados (CALIMAN; DOMITROVIC, 2013), sem contar as compras feitas no mercado paralelo.

Nas cidades de São Paulo e de Campinas, por exemplo, o metilfenidato é distribuído pelas redes municipais do SUS por meio das farmácias de referência da região, no primeiro caso, e das unidades básicas de saúde, no segundo caso. Entretanto, a prescrição do medicamento segue regras restritas de diagnóstico, acompanhamento e dispensa que devem condizer com as definições e recomendações dos protocolos de uso do metilfenidato de cada secretaria municipal de saúde (CAMPINAS, 2013; SÃO PAULO, 2014). Esses protocolos baseiam-se nas definições do TDAH propostas pelo DSM-IV-TR, pelo DSM-V e/ou pela CID-10, porém priorizam práticas terapêuticas psicossociais (e não cognitivo- comportamentais) e a participação ativa de equipes multiprofissionais, pais e professores. Esse tipo de regulação, exemplificada pela publicação da Portaria nº 986/2014, da secretaria municipal de saúde de São Paulo, desencadeou uma polêmica social, midiática e político- partidária em torno do acesso ao medicamento — e, simbolicamente, a todas as relações e

promessas que ele pressupõe — como uma questão de direito ao diagnóstico e seu tratamento e, em última análise, à inclusão social e escolar da criança com TDAH.

3.4. Intervenção como direito

O acesso à educação formal de crianças com dificuldades e deficiências pressupõe a aplicação de medidas interventivas (diagnóstico, tratamento e estratégias pedagógicas específicas) como direito, o que não é um fenômeno exclusivamente contemporâneo. Édouard Séguin já defendia, no final do século XIX, que as crianças idiotas deveriam ter acesso à educação como qualquer outra criança normal. Contudo, tratava-se de uma educação especial, articulada com instrução, noções de higiene e moral, e voltada às particularidades do desenvolvimento dessas crianças, conforme o que foi apresentado no capítulo anterior.

Atualmente, as ações em torno da inclusão de crianças com TDAH e de compensação de suas dificuldades (agora mais orientadas pelo discurso neurocientífico, que desculpabiliza pais e crianças por seus prejuízos escolares e sociais) têm se apoiado em legislações e projetos de leis como uma eficiente ferramenta de intervenção médica na realidade cotidiana. O acesso ao atendimento especializado é, inclusive, reivindicado como direito por famílias de crianças com TDAH. É o que Cecília, mãe de um menino de doze anos com TDAH acompanhado em um ambulatório universitário de psiquiatria, pleiteava: “eu queria um especialista, ele tinha direito”.

O recorte da presente pesquisa permitiu detectar uma forte atuação de grupos de