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Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS) Mestrado em Museologia e Patrimônio

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH

Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS) Mestrado em Museologia e Patrimônio

P P P R RO R O OT T TE E EÇ Ç Ç Ã Ã Ã O O O A A A O O O P P P A A A T T T R R R II I M M M Ô Ô Ô N NI N II O O O C CU C U U L LT L T TU U UR R RA A A L L L B B B R R R A A A S S S II I L LE L E EI II R R R O O O :: :

A A A n n n á á á ll l ii i ss s ee e d d d a a a a a a rr r tt t ii i cc c u u u ll l a a a çç ç ã ã ã o o o ee e n n n tt t rr r ee e T T T o o o m m m b b b a a a m m m ee e n n n tt t o o o ee e R R R ee e g g g ii i ss s tt t rr r o o o

Mário Ferreira de Pragmácio Telles

UNIRIO/MAST, Rio de Janeiro, fevereiro de 2010

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MÁRIO FERREIRA DE PRAGMÁCIO TELLES

PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO:

ANÁLISE DA ARTICULAÇÃO ENTRE TOMBAMENTO E REGISTRO

UNIRIO/MAST 2010

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FOLHA DE APROVAÇÃO

P P P R R R O O O T T T E E E Ç Ç Ç Ã Ã Ã O O O A A A O O O P P P A A A T T T R R R II I M M M Ô Ô Ô N N N IIO I O O C C C U U U L L L T T T U U U R R R A A A L L L B B B R R R A A A S S S II I L L L E E E IIR I R R O O O :: :

A AN A N Á Á L LI L II S SE S E E D DA D A A A A A R RT R T TI II C CU C U UL L L A A A Ç ÇÃ Ç Ã ÃO O O E E E N N N T T T R R R E E E T TO T O OM M M B B B A A A M M M E E E N NT N T TO O O E E E R R R E E E G G G II I S S S T T T R R R O O O

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO e Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Museologia e Patrimônio.

Aprovada por:

Prof. ______________________________________________

Marcio D‟ Olne Campos

Prof. ______________________________________________

Mário se Souza Chagas

Profª. ______________________________________________

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Rio de Janeiro, 2010

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PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO:

ANÁLISE DA ARTICULAÇÃO ENTRE TOMBAMENTO E REGISTRO

por

Mário Ferreira de PragmácioTelles Aluno do Curso de Mestrado em Museologia e Patrimônio Linha 02 – Museologia, Patrimônio e Desenvolvimento.

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.

Orientador: Professor Doutor Marcio D‟Olne Campos.

UNIRIO/MAST, RJ, fevereiro de 2010.

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Ao Câmera man, ao Rei da Embaixada, ao Homem- aranha, ao Chifrudo, ao Índio e a todos os outros

Quixotes da geral.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à minha família, em especial ao Professor Paulo Telles e à Edméa Costa por terem me acolhido no Rio de Janeiro como se eu fosse um de seus filhos.

Peço a benção ao meu pai, Eduardo Pragmácio, pelo apoio incondicional aos caminhos que decidi seguir na vida acadêmica; isso só aumenta a minha confiança de que tenho algo a dizer. A sua benção minha mãe, Cristina Costa, pelo amor dedicado e, também, pelos doces, castanhas, queijos coalhos, feijão verde, nata, sapoti, cachaças, gomas de tapioca e por todas as velas que acendeu por mim. Ao meu irmão, Pragmácio Filho, agradeço pela confiança em mim depositada e, sobretudo, por ter me trazido todas as iguarias listadas acima, fazendo com que eu matasse a fome e as saudades de casa.

Agradeço à Clarice e à família Mühlbauer por terem me ajudado a me estabelecer confortavelmente no Rio de Janeiro. Aos meus amigos do convívio diário, agradeço imensamente o apoio logístico e emocional, tão necessários para os momentos difíceis da escrita. Obrigado aos integrantes da República: Michel Platini, Leonardo Napp, Gustavo Damasceno, Lilian Suescun e Marcelo Londoño. Três vivas à República!

Aos meus amigos Naudiney de Castro Gonçalves, Carolina Trindade, Tatiana da Costa Sena, Ana Amélia e Ana Luiza Schuster fico agradecido pelo incentivo e companheirismo mútuos. Virgínia Pinho, muito obrigado pela cajuína e pelas meiotas de cachaça: eu não me esqueci.

Foram importantes inspirações para a escrita desta dissertação os meus amigos e parceiros, sempre presentes, Humberto Cunha e Rodrigo Vieira. No mesmo sentido, o foi Helena Mendes dos Santos, que teve ainda papel fundamental na origem e revisão das primeiras idéias aqui expostas. Muito obrigado.

Agradeço, por fim, ao meu orientador, Marcio Campos, pela paciência e dedicação com que me suleou nesta dissertação.

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D. Quixote perguntou a Sancho por que motivo lhe ocorrera chamar-lhe

“Cavaleiro da Triste Figura”, naquela ocasião precisamente.

- Eu lhe digo – respondeu Sancho – é porque o estive considerando um pouco à luz da tocha que vai na mão do mal andante cavaleiro, e deveras reconheci em Vossa Mercê, de pouco para cá, a mais má figura que nunca vi;

do que deve ter sido causa ou cansaço deste combate, ou talvez a falta dos dentes queixais.

Miguel de Cervantes – Dom Quixote

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RESUMO

TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio. Proteção ao patrimônio cultural brasileiro: análise da articulação entre tombamento e registro. 2010. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós- Graduação em Museologia e Patrimônio, UNIRIO/MAST, Rio de Janeiro, 2010. 115f.

Orientador: Prof. Dr. Marcio D‟Olne Campos. UNIRIO/MAST. 2008. Dissertação

O presente trabalho tem o escopo de investigar, a partir da ótica dos Direitos Culturais, a relação entre as duas principais normas que formam a base do sistema de proteção ao patrimônio cultural brasileiro: tombamento e registro. Para auxiliar a presente reflexão, será efetuado um estudo de caso concernente às conseqüências jurídico-antropológicas da retirada do setor da geral do estádio Maracanã, a fim de averiguar as principais questões referentes à tutela deste bem cultural pelo Estado. Partindo-se, inicialmente, da hipótese de que inexiste, do ponto de vista teórico, a dicotomia entre patrimônio cultural material e patrimônio cultural imaterial, o presente trabalho investiga, como objetivo geral, de que maneira tombamento e registro podem se (re)articular em prol de uma proteção mais eficaz aos bens culturais alçados à categoria de patrimônio cultural, sugerindo-se, ao final, alternativas à implementação de políticas públicas integradoras para esta seara.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Tombamento. Registro. Maracanã.

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ABSTRACT

TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio. Brazilian Cultural Heritage Protection: analysis of the articulation between tombamento and registry. 2010. Master Dissertation – Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, UNIRIO/MAST, Rio de Janeiro, 2010. 115l.

Supervisor: Doc. Marcio D‟Olne Campos. UNIRIO/MAST.

This master dissertation investigates from a Cultural Rights view the relation between the most important laws of the Brazilian cultural heritage protection system: tombamento and registry. To assist that investigation this research presents a case study that shows the legal- antropologycal consequences of the withdrawal of the geral sector of the Maracanã stadium, and inquire the main referring questions to the state guardianship of this cultural heritage.

From this study and from the hypothesis that inexists, on a theoretical point of view, the dichotomy between material cultural heritage and intangible cultural heritage, this dissertation investigates how tombamento and registry can be articulated for a more efficient protection of the cultural heritage, suggesting on the conclusions the alternatives to the implementation of public politics integrators for this area.

.

Keywords: Cultural Heritage. Tombamento. Registry. Maracanã Stadium.

(10)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 PATRIMÔNIO CULTURAL: INTERRELAÇÕES E DESARTICULAÇÕES ... 13

1.1. É igual a coração de mãe? Reflexões sobre a amplitude do conceito de patrimônio cultural ... 13

1.2. Separadamente juntos: a dicotomia entre patrimônio cultural material e patrimônio cultural imaterial. ... 24

2 O INSTRUMENTO JURÍDICO QUE É QUASE UM PATRIMÔNIO: DECRETO-LEI 25/37 E A CRIAÇÃO DO TOMBAMENTO ... 32

2.1. Os antecedentes do Decreto-lei nº 25/37 ... 33

2.1.1. O anteprojeto de Luis Cedro: uma primeira contribuição ... 33

2.1.2. O anteprojeto de Jair Lins: grande passo em defesa do interesse da coletividade em matéria de patrimônio ... 35

2.1.3. O anteprojeto de Wanderley Pinho: condensação e aprofundamento ... 38

2.1.4. Os óculos de Mário e a visão além do alcance ... 39

2.2. Decreto-lei 25/37 e a criação do tombamento ... 44

2.2.1. Autoritário de nascença? ... 44

2.2.2. Etimologia do tombamento ... 47

2.2.3. Conceitos e definições de tombamento ... 50

2.2.4. Efeitos do tombamento ... 53

2.2.5. Finalidade do tombamento ... 55

2.2.6. Normas que complementam o Decreto-lei 25/37 ... 55

3 A PRESERVAÇÃO DO IMATERIAL: O DECRETO 3.551/00 E A CRIAÇÃO DO REGISTRO DE BENS DE NATUREZA IMATERIAL ... 57

3.1. Breve histórico da criação do registro... 57

3.2. Terminologia do registro ... 59

3.3. Conceitos e definições de registro ... 61

3.4. Efeitos do registro ... 62

3.5. Finalidades do registro ... 64

3.6. Princípios aplicáveis ao registro ... 65

3.7. Continuidade histórica e relevância nacional... 67

3.8. Livros de Registro ... 69

4 INTERFACES E CONEXÕES ENTRE TOMBAMENTO E REGISTRO: O CASO DA RETIRADA DA GERAL DO MARACANÃ ... 74

4.1. A categoria lugares e a incidência do tombamento e do registro ... 75

4.2. Entrando em campo: o Maracanã como lugar de disputas ... 79

4.3. Geraldinos e Arquibaldos: o caso da retirada da geral do Maracanã ... 85

4.4. Aprendendo a jogar: em busca de movimentos de articulação entre tombamento e registro ... 94

CONCLUSÃO ... 105

REFERÊNCIAS ... 108

(11)

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o escopo de auferir reflexões sobre as políticas públicas de preservação ao patrimônio cultural brasileiro, através da investigação de seus principais mecanismos de preservação. Tal estudo consiste na análise da aplicação dos mais importantes instrumentos de proteção existentes em nível federal, a saber, tombamento e registro.

Entende-se que, nas atuais políticas públicas federais de preservação, há uma utilização apartada e desarticulada entre tombamento e registro, sendo este voltado exclusivamente aos bens de natureza imaterial e aquele aos bens de natureza material.

Nesse raciocínio, partindo-se da hipótese de que inexiste, do ponto de vista teórico, a dicotomia entre patrimônio cultural material (PCM) e patrimônio cultural imaterial (PCI), investiga-se, nesta dissertação, como tombamento e registro podem se (re)articular em prol de uma proteção mais eficaz aos bens culturais alçados à categoria de patrimônio cultural.

É, portanto, uma investigação que possui dupla faceta. Trata-se de um estudo jurídico e, por outro lado, é uma investigação voltada à análise das políticas públicas de preservação.

Diz-se jurídico, pois a dissertação pretende apresentar ao leitor os dois principais instrumentos (jurídicos) de proteção ao patrimônio cultural brasileiro – tombamento e registro – a partir de um olhar conferido pela Ciência Jurídica, mais especificamente pelos Direitos Culturais. Diz- se, também, dedicado à análise de políticas públicas, uma vez que estuda as formas pelas quais estes dois instrumentos citados são aplicados pelo órgão federal responsável pela tutela e preservação do patrimônio cultural, a saber, o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

O trabalho está dividido em quatro capítulos, mas pode ser facilmente compreendido através de três eixos temáticos: o primeiro deles é de cunho teórico-conceitual; o segundo eixo, estritamente jurídico, apresenta as principais características do tombamento e do registro; o terceiro eixo, por sua vez, traz um estudo de caso, numa perspectiva mais antropológica, a fim de verificar as discussões levantadas nos eixos anteriores e problematizá- las.

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O primeiro capítulo, portanto, consiste numa incursão teórica sobre o conceito de patrimônio cultural. Nele são discutidos temas fundamentais para a compreensão do presente trabalho e pretende refletir, sobretudo, duas questões cruciais: qual o limite do conceito de patrimônio cultural? Há dicotomia entre patrimônio cultural material e patrimônio cultural imaterial?

O segundo e terceiro capítulos são semelhantes tanto no que se refere às suas estruturas, quanto no que diz respeito às intenções pretendidas. Buscam apresentar, de forma simples e didática, os dois referidos instrumentos que formam a base do sistema de proteção ao patrimônio cultural brasileiro, ou seja, tombamento e registro. Com relação à forma escolhida para estes capítulos, aqui cabe uma ressalva: pretendeu-se dividi-los em partes autônomas, bem definidas, a fim de criar algo semelhante a um manual em que os leitores possam consultar-lhes, a qualquer momento, para sanar dúvidas com relação à configuração, alcance e elementos medulares destes instrumentos. Com isso, deixaram-se as problematizações, interligações e questionamentos sobre estes instrumentos para o estudo de caso do capítulo seguinte.

O quarto capítulo consiste, como já mencionado, num estudo de caso: o da retirada do setor da geral do Maracanã. Através de uma investigação jurídico-antropológica, pretende-se responder as indagações levantadas ao longo da dissertação, mormente, a de como tombamento e registro podem se articular em prol de uma efetiva proteção aos bens culturais alçados à categoria de patrimônio cultural.

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1 PATRIMÔNIO CULTURAL: INTERRELAÇÕES E DESARTICULAÇÕES

Este capítulo introdutório pretende analisar, sob a luz da teoria do patrimônio, a dicotomia existente entre patrimônio cultural material e patrimônio cultural imaterial, a qual, apesar de rechaçada teoricamente, é verificada em duas situações: tanto do ponto de vista prático, através das políticas públicas de preservação ao patrimônio cultural, quanto do ponto de vista jurídico, através dos instrumentos legais de proteção criados e direcionados a uma dessas duas dimensões do patrimônio cultural.

O presente capítulo está divido em duas partes. A primeira busca compreender o que se entende por patrimônio cultural, considerando as diversas formulações enunciadas no multidisciplinar campo do patrimônio, e a segunda investiga o problema concernente à dicotomia do patrimônio cultural e sua repercussão no campo jurídico e político, a fim de compreender o porquê da desarticulação entre tombamento e registro.

1.1. É igual a coração de mãe? Reflexões sobre a amplitude do conceito de patrimônio cultural

Esta primeira parte é, em grande parte, instigada por uma indagação formulada por José Reginaldo Santos Gonçalves, na ocasião de uma palestra na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, em agosto de 2008. Ao expor a grande dificuldade de se estabelecer um conceito claro do que é patrimônio cultural, bem como delimitar sua extensão e capacidade, o referido antropólogo lançou a seguinte questão: “quantos patrimônios cabem no patrimônio cultural?”1

1 Debate similar é encontrado no artigo “os limites do patrimônio”, deste mesmo autor. Cf. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Os limites do patrimônio. In: Antropologia e Patrimônio Cultural: diálogos e desafios contemporâneos. LIMA FILHO, Manuel Ferreira; ECKERT, Cornélia; BELTRÃO, Jane. (Orgs). Florianópolis:

Nova Letra/ABA, 2007.

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A resposta a essa questão é de fundamental importância, pelo menos, para dois segmentos: primeiro, para a academia, uma vez que serve à solidificação do incipiente campo do patrimônio, que está à míngua de formulações teóricas sobre o assunto; segundo, para o poder público, pois esta reflexão pode contribuir às ações e políticas públicas culturais voltadas à preservação do patrimônio cultural.

Com a chamada inflação patrimonial (CHOAY, 2006), é cada vez mais comum se ouvir falar - além dos já consagrados patrimônios históricos e artísticos - em patrimônio arqueológico, científico, museológico, geológico, natural, etnográfico, paleontológico, bibliográfico, arquivístico, ecológico, etc.

Diante do afloramento de tantos patrimônios, parte-se da indagação inicialmente feita pelo antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves para se formular outra questão que se percebe preliminar e crucial: o que se entende por patrimônio cultural?

Essa é a questão norteadora do presente item e será investigada a partir de um ponto de vista jurídico, sem desprezar, é claro, outros enfoques que permeiam esta pesquisa. Pretende- se, portanto, identificar elementos que permitam, minimamente, clarear e delimitar um conceito de patrimônio cultural, tornando-o, dessa forma, operacional, não tendo, entretanto, a pretensão de esgotar o assunto nesta seção.

Sabe-se que o campo do patrimônio é multidisciplinar2. Nesse contexto, é cada vez mais comum a utilização do termo patrimônio cultural, sobretudo nas áreas envolvidas com o campo do patrimônio, mormente nas ciências humanas. Percebe-se, contudo, uma indefinição, e até impropriedades, no manejo deste conceito, o que dá margem às diversas searas formularem-no livre e convenientemente ao seu lugar de fala. Não obstante a riqueza plural dos diversos enfoques, isto pode ocasionar uma imprecisão ou até gerar entendimentos antagônicos, contraditórios ou conflituosos.

Isso não quer dizer que deverá existir, necessariamente, um conceito único de patrimônio cultural, exarado exclusivamente por um ramo do conhecimento. Muito pelo contrário. Tal atitude seria abusiva diante das autonomias investigativas daqueles que estudam o patrimônio cultural. O que se defende aqui é um mínimo de entendimento dos limites e alcance do patrimônio cultural, para que não haja contradição entre os diversos olhares sobre o patrimônio cultural, o que não significa dizer, é claro, que não possa haver adaptações do referido conceito às diversas áreas do conhecimento; isso é até recomendável.

2 Há quem o denomine de MIT (multi, inter, trans) disciplinar.

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Em sentido contrário, é possível argumentar que esse esforço empreendido na possível conceituação de patrimônio cultural é inócuo, visto que diferentes sujeitos percebem esse fenômeno por distintas maneiras. Isso tornaria a presente reflexão desnecessária, pois a compreensão do que seja, ou do que se constitui o patrimônio cultural, varia de acordo com o sistema social e cultural a que está inserida uma sociedade, sendo, assim, segundo essa argumentação, completamente supérfluo predefiní-lo.3

Neste trabalho se reconhece tal fato, porém entende-se que isso não torna a conceituação de patrimônio cultural inócua. O Estado, para poder dialogar com as comunidades diretamente envolvidas com um bem cultural, deve ter claramente definido, pelo menos, seu conceito ou seu entendimento do que vem a ser patrimônio cultural. A partir disso, e levando-se em consideração a compreensão deste fenômeno, há uma negociação entre o Poder Público e comunidade(s) para se chegar a um acordo sobre como a Administração Pública pode atuar, intervir, à preservação dos bens culturais desses grupos sociais.

Isso tornaria o Poder Público parceiro dessa diversidade de conceitos de patrimônio cultural e propagador da diversidade cultural, princípio cultural que rege todo o setor da cultura. Tal atitude já vem sendo implantada, no âmbito das políticas públicas do patrimônio cultural imaterial, através da utilização do conceito de referência cultural (FONSECA, 2005), o qual condiciona a atuação do Poder Público a atuar junto daqueles bens escolhidos pelas comunidades. Nas palavras de Cavalcanti:

Este conceito está na base da nova visão da preservação e da gestão dos bens culturais brasileiros expressa pelas políticas atuais do patrimônio cultural imaterial.

Ao mesmo tempo, sua adoção significou assumir que a atribuição de valor patrimonial a objetos e ações não é prerrogativa exclusiva do Estado e de seus representantes. Os sujeitos que mantêm e produzem os bens culturais, antes disso, são vistos como atores fundamentais nesse processo. (CAVALCANI; FONSECA, 2008, p. 20)

Mesmo assim, para haver esse diálogo inicial, o Estado tem que apresentar, minimamente delineado, o que ele entende por patrimônio cultural, o que não significa dizer que tal entendimento prevalecerá.

Portanto, além da necessidade de entendimento entre as diversas áreas que atuam no campo oficial do patrimônio cultural, acredita-se que esta reflexão se faz imperiosa em virtude da necessária solidificação e fortalecimento do conceito de patrimônio cultural.

Afirma-se isso, tendo em vista a crescente tendência de considerar tudo patrimônio cultural,

3 Um exemplo claro disso é o entendimento dos orientais, principalmente japoneses, com relação ao patrimônio construído. Segundo Regina Abreu (2003, p. 83), “nesses países, a concepção de preservação e de construção do patrimônio cultural é bem diferente da encontrada em países ocidentais, valorizando-se sobretudo o „saber- fazer‟, os procedimentos, as técnicas, as formas de organização do trabalho e da produção, não apenas o resultado material (em pedra e cal) ou mesmo imaterial (as „perfomances‟) desses processos.”

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ou seja, o fenômeno que permite que o conceito de patrimônio cultural abarque quantos patrimônios existirem.

Pensa-se que esta abertura demasiada pode gerar o transbordamento do conceito de patrimônio cultural, ou seja, chegará um momento em que ele não comportará tal amplitude que, após chegar ao limite plausível de operacionalidade, ocasionará o próprio esvaziamento semântico. José Reginaldo Santos Gonçalves, em artigo intitulado “os limites do patrimônio”, reflete exatamente sobre isso:

Os chamados patrimônios culturais tornaram-se objeto de uma obsessão coletiva. As reflexões que desenvolvo neste artigo são suscitadas pela percepção de um progressivo e ininterrupto inflacionamento dessa categoria, sobretudo depois de sua ilimitada expansão semântica expressa pela noção de “patrimônios intangíveis”. Daí talvez a pertinência de trazermos a noção de “limites”, pois nesse inflacionamento há o risco de trivializarmos o potencial descritivo e analítico que possa ter a categoria, além dos riscos propriamente políticos e que consistem na eliminação da força dessa categoria como instrumento de luta pelo reconhecimento público de grupos e indivíduos. (2007, p. 239)

É, portanto, com essas premissas que esta reflexão se embasará para iniciar os debates pela necessidade de conhecimento e identificação dos limites do conceito de patrimônio cultural, sob o ponto de vista oficial, ou seja, aquele prisma utilizado pelo Estado nas ações de preservação de bens culturais.

Antes de se adentrar ao tema proposto inicialmente, é necessário conhecer o conceito de bem e patrimônio, originários da teoria civilista do Direito, os quais, por sua vez, são estribados no conceito de coisa. É a partir dessa clássica teoria que serão formuladas as reflexões para o conceito de patrimônio cultural. Além disso, vale destacar a importância destes estudos, inclusive, para se conhecer a origem dos termos e de alguns conceitos empregados no campo do patrimônio, muitos dos quais, assim como adverte Diana Farjalla Correia Lima (2006), são oriundos do Direito.

Na linguagem coloquial, coisa quer dizer tudo; aliás, pode ser tudo. Há até quem o utilize como verbo que designe alguma ação: “Eu coiso, tu coisas, ele coisa...”. Numa perspectiva filosófica, coisa tem duas acepções; uma mais restrita e outra mais abrangente. A restrita diz respeito àquilo que possui um corpo, uma dimensão corpórea, enquanto que a abrangente se refere a tudo que pode ser apreendido ou conhecido pelo pensamento humano, quer real ou imaginário (HEIDEGGER, 1987).

O Direito Civil se estriba nesta visão mais alargada para operacionalizar o conceito de coisa, ou seja, coisa é algo que pode ser tanto o que é material, quanto o que é imaterial (REISEWITZ, 2004). Tanto é verdade que, na Ciência Jurídica, coisa é um instituto jurídico,

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merecendo, inclusive, um ramo autônomo para o seu estudo: o Direito das Coisas, que, por sua vez, integra o Direito Civil.

Daí a importância de se conhecer a coisa ou, pelo menos, compreender os elementos que compõem a coisa (HEIDEGGER, 1987), visto que será ela que embasará todo o processo de patrimonialização de bens, como será visto mais adiante, inclusive esclarecendo a origem da dicotomia entre a dimensão material e imaterial do patrimônio, por muitos utilizada. A coisa, portanto, é o ponto de partida para se compreender o bem e, por conseguinte, o patrimônio.

Lúcia Reisewitz faz uma importante distinção entre coisa, valor e bem. Para esta jusambientalista4, “as coisas em si, materiais ou imateriais, ainda não são bens. Para que algo passe de coisa para bem é preciso que receba um valor” (2004, p. 52, grifo do original). De forma esquemática, pode-se representar esta sentença da seguinte forma:

(a) Coisa + Valor = Bem

Portanto, a atribuição de valor - seja econômico, afetivo, estético, científico etc – sobre uma coisa é o que a torna um bem. Todo bem é necessariamente uma coisa, mas nem toda coisa é um bem. Esta, portanto, seria a definição clássica de bem.

E o que é patrimônio? Segundo Francisco Luciano Lima Rodrigues, a teoria jurídica clássica de patrimônio5, encabeçada por Aubry e Rau, assim conceituava patrimônio:

Deve muito a teoria da construção jurídica do significado de patrimônio aos juristas franceses Charles Aubry e Frèderic-Charles Rau que defendem ser o patrimônio um conjunto de bens de uma pessoa, entendido como uma universalidade, ou seja, uma massa heterogênea unificada a partir do sujeito. (2008, p. 42, grifo nosso)

Há, contudo, uma visão mais moderna de patrimônio, a qual não possui uma definição estática e pode ser entendida, segundo Paulo Cunha, citado por Francisco Luciano Lima Rodrigues, da seguinte forma:

Não existe uma relação central entre as noções de patrimônio e de personalidade;

embora raramente, pode haver pessoas sem patrimônios; não pode haver patrimônio sem qualquer conteúdo: trata-se duma noção quantitativa que, a não haver conteúdo, ficaria sem base alguma; o patrimônio não compreenderia nem os chamados bens inatos, nem bens futuros. (2008, p. 45)

De forma bem sucinta e simplificada, pode-se afirmar que, para o Direito Civil, o conceito clássico de patrimônio é o somatório de bens, assim representado:

4 Diz-se jusambentalista o jurista que se dedica ao estudo do Direito Ambiental.

5 Note-se que essa definição clássica de patrimônio se aplica às pessoas – pessoa física ou jurídica – e não aos grupos sociais ou coletividades.

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(b) Patrimônio = ∑ bens6

Portanto, dentro da teoria civilista do Direito, que é a seara que estuda o patrimônio (não-cultural), principalmente voltada à questão da propriedade, o critério de constituição de patrimônio ainda é puramente quantitativo, não obstante haja críticas a esse respeito, ou seja, a soma dos bens de uma pessoa é que constitui seu patrimônio; não há qualquer atribuição de valor, tal como ocorre na transição de coisa para bem descrita em (a).

É a partir desta idéia inicial da clássica doutrina civilista que se pode entender a necessidade de se pensar numa teoria jurídica do patrimônio cultural que, apesar de ser diretamente influenciada por aquela, investigará a atribuição de valor estatal efetuada na transição de bens culturais aos patrimônios ditos culturais.

É necessário saber o que é um bem cultural. Há, no Direito, uma teoria do bem cultural7, inaugurada pelo jurista italiano Massimo Severo Giannini (1976), que, inclusive, influenciou a utilização do termo bem cultural nas diversas Cartas Internacionais sobre o tema. Segundo Rodrigues, foi a partir da Comissão Franceschini que Giannini cunhou o termo bem cultural:

Na Itália, a comissão encarregada de efetuar o levantamento das condições exigidas para a proteção e valorização dos objetos de valor cultural, denominada Commissione Franceschini, instituída em 1966, elaborou uma definição de bem cultural que inovava profundamente a tradicional categoria cose, immobili e mobili, para acrescentar as perspectivas histórica, artística, paisagística e etnográfica. (2008, p. 39, grifo nosso)

Rodrigues resume o pensamento de Giannini, criador da teoria do bem cultural, a partir do clássico texto I benni culturalli (1976), feito a partir das conclusões da referida Comissão Franceschini, da qual Giannini foi o principal participante:

Há uma distinção entre „coisa‟ e „bem em sentido jurídico‟, considerando que no bem cultural coexistem dois direitos: um direito da coletividade à fruição do bem e um direito do proprietário de gozá-lo dentro dos limites consentidos pela lei; a segunda, resultado do entendimento do Tribunal Constitucional Italiano, é traduzida pela existência de uma categoria de bens de interesse público, na qual estariam os bens culturais, que orbitam entre os bens de propriedade privada e bens de propriedade pública. (2008, p. 55)

Apesar da teoria dos bens culturais não ser utilizada diretamente neste trabalho, compreende-se, tal como Francisco Luciano Lima Rodrigues, baseando-se nos estudos de

6 Neste somatório de bens, frise-se, não há atribuição de valor.

7 Sobre o assunto, vide: Rolla (1989), Häberle (1998), Caballeria (2005) e Rodrigues (2007; 2008).

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Rolla8, a importância que tal pensamento proporciona ao entendimento atual de patrimônio cultural:

A definição de bens culturais não pode perder de vista que o elemento indispensável a sua construção é a compreensão de que o valor da coisa como forma de traduzir a memória de um povo é o seu ponto de diferenciação para com as demais classificações referentes a bens e, ainda, que o objeto da tutela relativa aos bens culturais reside muito mais no valor que o bem expressa do que o objeto material que lhe serve de suporte, como refere Giancarlo Rolla. (2008, p. 46, grifo do original)

Portanto, consoante alerta Rolla, o valor é fundamental na compreensão do bem cultural, logo, do patrimônio cultural.

Retomando: utiliza-se o esquema elaborado em (a) [Coisa + valor = bem], oriundo da teoria civilista, para compreender o que vem a ser um bem cultural para o presente trabalho.

Quando a valoração descrita em (a) se dá sob um enfoque cultural, tem-se, então, um bem cultural. Logo, pode-se inferir que:

(c) Coisa + Valor Cultural = Bem cultural

Ora, o que tornaria a situação (a) diferente de (c)? O que significa esse plus cultural que diferencia um bem qualquer (sem valor cultural) de um bem cultural? Pensa-se que o grande desafio encontrado aqui é identificar em (c) o que vem a ser, na essência, esse valor cultural, uma vez que toda atribuição de valor é necessariamente cultural. Falar, portanto, em bem cultural não seria redundante? Nessa concepção, todo bem não seria cultural?

Defronta-se, novamente, com o infindável debate acerca da polissemia da palavra cultura. Contudo, para o Direito, esta questão é crucial. Por uma necessidade técnica, a Ciência Jurídica não pode trabalhar com o conceito antropológico de cultura9, sob pena de incluir o próprio Direito em sua alçada, o que, certamente, é inviável e impraticável aos juristas, pois objeto de estudo e ciência se confundiriam. É necessário, portanto, criar um conceito de cultura para o Direito ou, pelo menos, delimitá-lo.

O jurisculturalista10 português Vasco Pereira da Silva afirma que não se pode, nem se deve, definir cultura:

8 Rolla faz um contraponto à teoria gianniniana. Para esta discussão acerca da(s) teoria(s) do bem(ns) cultural(is): Cf. RODRIGUES, Francisco Luciano Lima. A propriedade dos bens culturais no estado democrático de direito. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008.

9 Talvez seja equivocado falar em conceito antropológico de cultura, mas, sim, conceitos antropológicos de cultura. No entanto, quer-se dizer do conceito difundido, pioneiramente, por Tylor, no qual define cultura, resumidamente, como tudo o que é produzido pelo homem. Sobre o desenvolvimento do conceito de cultura, Cf.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 17. ed. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2004.

10 Diz-se jusculturalista o jurista que se dedica ao estudo do Direito da Cultura ou dos Direitos Culturais.

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Encontrar uma noção de cultura, tendo em conta a multiplicidade e a diversidade de concepções do mundo e da vida que ela pressupõe e implica, tanto em termos históricos como na actualidade, afigura-se constituir uma tarefa vã. (2007, p. 8)

Mesmo assim, Vasco Pereira da Silva admite – e propõe - a necessidade de delimitar de forma “aberta” o conceito de cultura11.

Dessa forma, no intuito de operacionalizar o conceito jurídico de bens culturais, para fins de proteção estatal – e o Direito é mais afeito a trabalhar com estes bens – aplica-se a Teoria dos Direitos Culturais formulada por Francisco Humberto Cunha Filho, a qual atende a essa necessidade delimitadora12.

Para o precursor dos Direitos Culturais no Brasil, “cultura para o mundo jurídico é a produção humana juridicamente protegida relacionada às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, e vinculada ao ideal de aprimoramento, visando à dignidade da espécie como um todo, e de cada um dos indivíduos”. (CUNHA FILHO, 2004, p. 49)

Portanto, a delimitação aqui proposta refere-se à tríade arte, memória e repasse de saberes, ou seja, cultura – no caso, valor cultural - para a presente reflexão, seria formada por este tripé. Dessa forma, seguindo a proposição anterior (c), no intuito de tentar identificar o que é esse plus cultural do bem cultural, pode-se representar a seguinte equação:

(d) Coisa + Valor (arte, memória, repasse de saberes) = Bem cultural

Descrito o que aqui se entende por bem cultural, indaga-se: dentro de uma teoria jurídica do patrimônio cultural, o Estado deve preservar todos os bens culturais ou esta atitude se deve apenas àqueles bens culturais alçados à categoria de patrimônio cultural? Volta-se, então, a pergunta fundadora deste item: o que é patrimônio cultural, ou melhor, como um bem cultural se torna um patrimônio cultural?

Coisa, bem cultural e patrimônio cultural são categorias distintas. Foi apresentado o processo que transforma a coisa em um bem cultural. Agora é necessário tentar explicar como se dá a passagem do bem cultural para o patrimônio cultural.

11 São três as delimitações propostas por Vasco Pereira: I – uma acepção mais restrita, que entende a cultura como uma realidade intelectual e artística; II- uma acepção intermédia, que não compreende apenas o domínio da criação e da fruição intelectual e artística, mas que procede também ao respectivo relacionamento com outros

„direitos espirituais, nomeadamente os respeitantes à ciência, ao ensino e à formulação; III – Uma acepção mais ampla, que identifica a cultura como uma realidade complexa, enraizada em grupo sociais, agregados populacionais ou comunidades políticas, que conjuga nomeadamente elementos de ordem histórica, filosófica, antropológica, sociológica ou mesmo psicológica [...].

12 Apesar de Humberto Cunha conceituar cultura para o Direito, se utilizará aqui tal conceito apenas como uma delimitação aberta, tal como propõe Vasco Pereira da Silva. Noutras palavras, não se conceituará cultura para o Direito, mas se delimitarão seus contornos.

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Vale lembrar que, dentro da teoria civilista, como já foi mencionado no início destas reflexões, mais especificamente no esquema (b), essa pergunta seria respondida pelo simples critério numérico, ou seja, patrimônio (cultural) corresponde ao somatório de bens (culturais).

Contudo, entende-se que a constituição de patrimônios culturais obedece a critérios de valoração qualitativa e não apenas quantitativa, ou seja, há uma necessária atribuição de valor, por parte do Estado, aos bens culturais para que estes se tornem, desta feita, patrimônio cultural (do ponto de vista “oficial”).

Se for estruturada uma matriz que identifique o processo de patrimonialização - desde o seu nascedouro com atribuição de valor à coisa, constituindo-se, então, o bem cultural, até se chegar ao patrimônio cultural através de uma segunda valoração – pode-se visualizar este fenômeno da seguinte forma:

Patrimônio cultural

↑ ← valor (2) Bem cultural

↑ ← valor (1) Coisa

Essa matriz (coisa-bem-patrimônio) tanto serve para visualizar o fenômeno individual de patrimonialização – aquele em que um indivíduo ou um grupo social constitui seus patrimônios culturais – quanto para uma escala macro13, na qual o Estado elege ou reconhece os patrimônios culturais “oficiais”. Vale ressaltar que é, sobretudo, sobre o último fenômeno, o dito oficial, que o Direito (e este trabalho) se concentrará, uma vez que o Estado se vale da legalidade para auferir a atribuição de valor, em obediência ao princípio da legalidade14 - através do tombamento e do registro, por exemplo - sendo mais adequadas para a investigação dos fenômenos de patrimonialização em escala individual ou comunitária15 as outras ciências que não a jurídica.

13 “Macro” se refere à escala de observação utilizada por esta pesquisa, que privilegia a análise macroscópia dos processos de patrimonialização, a partir do ponto de vista Estatal ou “oficial”. Sobre o assunto, Cf. LE PETIT, Bernard. Arquitetura, geografia, história: uso da escala. In: SALGUEIRO, Heliana Angotti. Por uma nova história urbana. São Paulo: EDUSP, 2001.

14 Segundo Hely Lopes Meirelles,“A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput) significa que o administrador público está, em sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar [...]. A eficácia de todo ato administrativo está condicionada ao atendimento da lei. Na administração pública não há liberdade nem vontade pessoal”. (1995, p. 82)

15 Cf. REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jacques (org). Jogos de Escala. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 14-38.

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Esses esquemas, é bom ressaltar, não possuem a pretensão de explicar a complexidade inerente aos processos de patrimonialização, mas são estribos que facilitam o início de uma discussão que merece ser mais aprofundada. Aceitar esses gráficos como verdade única significa assumir um processo de patrimonialização homogêneo e universal, independente da constituição de patrimônios locais e regionais. Dessa forma, vale lembrar que este trabalho se concentra nos processos “oficiais” de constituição de patrimônios, conforme já explicado noutra oportunidade, o que facilita a sua pormenorização.

Retomando: é principalmente a atribuição de valor (2), transcrita no esquema acima, que este item pretende investigar. É nessa passagem de bem cultural para patrimônio cultural que os órgãos de preservação do patrimônio cultural se concentram, fulcrados principalmente em critérios científicos/técnicos de atribuição – ou reconhecimento – de valor.

Interessante observar a utilização da Ciência, ou do discurso científico, como aproximação do discurso de verdade, uma vez que é extremamente complexo se trabalhar com critérios afetivos em âmbito “oficial”, o que, por outro lado, é perfeitamente aplicável numa escala menor, ou seja, no âmbito individual ou até comunitário. Há, contudo, os que pregam a necessidade de utilização da afetividade como critério de atribuição de valor cultural pelo Estado16, sob pena de não haver ressonância (GONÇALVES, 2005) do bem cultural erigido como patrimônio cultural pelo Estado e os sujeitos/comunidades diretamente envolvidos com o bem cultural.

Pensa-se que patrimônio cultural não é uma evolução terminológica ou conceitual de bem cultural. São, na verdade, duas categorias diferentes. É que pode se argumentar que se trata apenas de uma atualização de nomenclatura, ou seja, o que era outrora designado de bem cultural, hoje é chamado de patrimônio cultural. Não! Nestas reflexões, entende-se que bem cultural e patrimônio cultural, como já bem observou Maria Cecília Londres Fonseca, são categorias distintas e coexistentes (2005, p. 42).

Dito isso, do ponto de vista oficial, que é de onde se emanam as reflexões deste trabalho, pode-se formular a seguinte sentença: todo patrimônio cultural é bem cultural, mas nem todo bem cultural é patrimônio cultural. O conceito de patrimônio cultural, portanto, contém o de bem cultural.

Após essa discussão teórica inicial, retoma-se ao disposto no art. 216 da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de

16 Tal como defendeu o arquiteto José Aguilera, em palestra proferida na Oficina de Preservação do Patrimônio, promovida pela 6º Superintendência Regional do IPHAN, sobre a instrução do processo de tombamento da Casa de Chico Mendes, em setembro de 2008.

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natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto [...]”. Vale dizer que esta descrição exposta no retromencionado artigo não é autoexplicativa nem dá conta da complexidade do tema.

É imperiosa essa ressalva, uma vez que há a tendência, entre os próprios pensadores do Direito, de que o art. 216 da CF/88 é um conceito constitucional indiscutível e constitui um objeto dado17. Contudo, ele, o disposto no art. 216 da CF, não é o fim da presente reflexão, mas o ponto de partida na busca pela solidificação do conceito de patrimônio cultural, uma vez que as idéias aqui expostas não se esgotam na (para) Ciência Jurídica, mas pretendem compor uma reflexão teórica sobre o campo do patrimônio, a partir de um olhar jurídico.

O constitucionalista José Afonso da Silva, analisando o conteúdo do art. 216 da CF/88, defende que nem todo bem (cultural) material ou imaterial integra o patrimônio cultural brasileiro, mas só aquele ou aqueles que portem referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (2001, p.114), conforme determina o caput do referido art. 216 da Constituição Cultural18.

Portanto, a referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira é condição sine qua non para um bem cultural ser considerado patrimônio cultural brasileiro.

Portanto, não é porque um bem cultural possui valores históricos, arquitetônicos ou etnográficos, por exemplo, que este bem é um patrimônio cultural brasileiro, mas pode vir a ser, tão somente, se portar referência à identidade, à ação e à memória (de cada um) dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

Diante disso, resta indagar: Como avaliar essa condicionante para que um bem cultural se torne patrimônio cultural?

Pensa-se que esta, sim, é a parte aberta do conceito de patrimônio cultural aqui estudado, ou seja, buscar compreender o que o legislador originário – o constituinte – quis dizer ao se referir à identidade, ação, memória e grupos formadores da sociedade brasileira e, sobretudo, o que se quer hoje dizer com estas condicionantes. Que identidade é essa, que ação é essa, que memória é essa e que grupos são esses que formam a sociedade brasileira são perguntas que estão em disputa na luta pelo Direito.

Assim é o entendimento do jurista Francisco Luciano Lima Rodrigues:

17 Indagados sobre o conceito de patrimônio cultural, o jurista comumente indica, tão somente, a leitura do art.

216 da CF/88.

18 Francisco Humberto Cunha Filho assim denomina a Constituição Federal que, para este doutrinador, não se trata apenas de uma Carta Cidadã.

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A ausência de conceito constitucional de patrimônio cultural, apesar da exposição de aspectos que devem compor a sua definição, tais como identidade cultural, memória, dentre outros, fortalece o entendimento de que tal conceituação não é tarefa exclusiva e autônoma da lei, mas, ao contrário, é atividade que se utiliza de conceitos da antropologia e da sociologia. [...] Fator que fortalece o entendimento que a idéia de que o conceito de patrimônio cultural não pode ser concebido como uma definição puramente legal, desprezando aspectos que exigem uma visão interdisciplinar. (2007, p. 53)

Cabe aos intérpretes, dentre os quais se inclui a própria sociedade e não só aos juristas (HÄBERLE, 1997), tais formulações e, sobretudo, às ciências humanas que lidam direta e tradicionalmente com tais conceitos - tais como a sociologia, antropologia, história, psicologia, museologia etc - esta proposição.

Assim, admite-se que o Direito não consegue, única e exclusivamente, dar conta do conceito de patrimônio cultural. É necessário, sem sombra de dúvida, o auxílio de outras áreas para se fechar tal conceito.

A conceituação de patrimônio cultural não é das tarefas mais fáceis. Contudo sua investigação mais aprofundada, na tentativa de superá-lo como um conceito dado, óbvio, é imperiosa. A busca por uma definição que torne, pelo menos, visíveis os critérios de classificação e constituição dos mais variados patrimônios em patrimônios culturais é necessária e essencial para a própria existência do conceito – seja aberto ou não – de patrimônio cultural.

1.2. Separadamente juntos: a dicotomia entre patrimônio cultural material e patrimônio cultural imaterial.

Apresentada anteriormente a dificuldade de se conceituar ou de se conceber uma definição operacional de patrimônio cultural, parte-se, agora, a enfrentar outra questão fundamental para o presente trabalho. Trata-se de compreender como se processa a dicotomia invocada na aplicação do conceito de patrimônio cultural e sua repercussão na efetiva proteção de bens culturais.

Em síntese, as questões norteadoras que se pretende responder no presente item são as seguintes: há uma divisão do patrimônio cultural em patrimônio cultural material (PCM) e patrimônio cultural imaterial (PCI)? Essa dicotomia existe ou constitui-se numa falácia? Isso se reflete na aplicação dos instrumentos de proteção ao patrimônio cultural brasileiro?

Antes, cabe uma reflexão sobre essa terminologia apontada e comumente utilizada, não só nas políticas públicas de preservação do patrimônio cultural, como também nos trabalhos acadêmicos sobre o tema. Nesta pesquisa, baseada nas reflexões teóricas aqui

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apresentadas entende-se não ser apropriada a utilização dos termos patrimônio cultural material e patrimônio cultural imaterial.

Explica-se: como se verá mais adiante, a categoria do patrimônio cultural é indivisível, não obstante possuir as dimensões materiais e imateriais que são inerentes aos bens (culturais) e às coisas, conforme estudado no item anterior. Os bens culturais, por sua vez, podem ter essa classificação dicotômica. Na verdade, há bens de natureza material e bens de natureza imaterial que, depois de reconhecidos e valorados pelos instrumentos legais de proteção – tombamento e registro – alçam à categoria oficial de patrimônio cultural brasileiro.

Noutras palavras, os bens de natureza material e os bens de natureza imaterial, quando reconhecidos oficialmente pelo Estado, tornam-se patrimônio cultural brasileiro, sem haver, entretanto, após essa tutela (atribuição de valor) estatal, qualquer distinção ou divisão terminológica concernente a sua dimensão, separando os patrimônios culturais materiais dos patrimônios culturais imateriais.

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, dissertando sobre a escolha do termo patrimônio cultural imaterial nas políticas públicas brasileiras, alerta para a falsa dicotomia presente na terminologia da Constituição Federal de 1988:

O Ministério da Cultura e o IPHAN optaram pela expressão patrimônio cultural imaterial, tendo por fundamento o art. 216 da Constituição Federal de 1988, alertando, entretanto, para a falsa dicotomia sugerida por esta expressão entre as dimensões materiais e imateriais do patrimônio. (CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p. 13)

Essa terminologia – PCM e PCI – foi incorporada, principalmente, pelas recentes políticas públicas federais voltadas à preservação de bens de natureza imaterial, notadamente a partir do ano 2000, com a criação, em âmbito federal, do decreto presidencial do registro19. Tais termos vão além do sentido que lhes são inerentes. Determinam um marco diferencial entre as antigas políticas públicas que privilegiavam em seu primórdio a preservação de bens materiais, ou seja, os chamados patrimônios “pedra e cal”20, e as políticas que se pretendiam elaborar dali em diante.

Na verdade, essa terminologia não foi só incorporada pelas recentes políticas públicas brasileiras, mas, de certo modo, criada pelas políticas públicas federais de preservação que se estabeleciam a partir de 2000, a fim de rubricar a atuação de um novo grupo que iniciava uma série de ações no âmbito do Poder Público federal, leia-se IPHAN.

19 O Decreto 3.551/00 utiliza, acertadamente, a expressão “registro de bens de natureza imaterial”.

20 Um grande exemplo dessa demarcação de uma nova visão de patrimônio pode ser encontrada no texto “Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio” de Cecília Londres Fonseca (2003), cujo título já denota a idéia de um rompimento com as políticas anteriores.

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Sem dúvida, termos e conceitos próprios são fundamentais para se estabelecer uma nova prática ou uma nova noção de patrimônio cultural que, então, se buscava. Não só isso. A criação de instrumentos jurídicos, corpo de funcionários, departamentos próprios, bem como metodologias novas fazem parte de um projeto de impacto renovador e, sobretudo, evidenciam a demarcação de espaço institucional de um grupo que se estabelecia no âmbito do Poder Público federal, a partir de então.

É importante fazer aqui uma ressalva. O pensamento antropológico pode ser considerado a grande influência teórica dessa inovação, colaborando decisivamente ao alargamento conceitual do patrimônio cultural, inclusive pela avançada previsão dos bens imateriais na Carta Magna. Por outro lado, por se tratar de uma recente seara que está buscando uma solidificação em termos de políticas públicas, acredita-se que o dito patrimônio cultural imaterial, conceito este dotado de forte viés antropológico (CAVALCANTI;

FONSECA, 2008, p. 12), está ocasionando, para sua implementação, um distanciamento e estranhamento das já consolidadas políticas públicas voltadas aos bens de natureza material, uma vez que, de certa forma, propõe, como já mencionado, uma nova visão de patrimônio cultural.

Essa constatação, de certa forma, motiva a presente investigação. Através desse fato, sente-se a necessidade de traçar estratégias que diminuam este estranhamento ocasionado pela chegada de uma nova práxis, que traz consigo, não se pode negar, conceitos inovadores e contestadores, fazendo com que tais políticas públicas – internas, não raro antagônicas! - reaproximem-se e convirjam em prol da preservação do patrimônio cultural, independente de que dimensão do bem - material ou imaterial - se quer privilegiar.

Como alguns teóricos do chamado patrimônio cultural imaterial fizeram parte da concepção dessa nova frente, no âmbito das políticas públicas federais de patrimônio, é natural que sejam levadas à academia tais formulações advindas do campo prático, visto que, como se sabe, a “academia IPHAN” (SANTOS, 1996) ainda influencia os campi universitários em matéria de patrimônio cultural.

Entretanto, vale destacar que, sob o ponto de vista jurídico, a terminologia empregada continua prevendo, acertadamente, o termo bens culturais – seja material ou imaterial - e não a divisão recém-formulada entre patrimônio cultural material (PCM) e patrimônio cultural imaterial (PCI).

Portanto, quando este trabalho utilizar, doravante, a terminologia PCM e PCI, o fará, principalmente, na ocasião da análise das práticas institucionais e políticas públicas brasileiras

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voltadas aos bens culturais, uma vez que, apesar da crítica aqui exposta, tal terminologia está se solidificando e prevalecendo no campo do patrimônio. Fica, entretanto, a ressalva.

Retomando a questão norteadora: a dicotomia entre patrimônio cultural material e patrimônio cultural imaterial, em tese, é utilizada – e só assim deve ser - como recurso didático, uma vez que não se pode conceber o dito patrimônio cultural material sem o significado que este carrega (que é imaterial), tampouco se pode verificar o patrimônio cultural imaterial sem pelo menos fazer referência, ou repercutir, a um suporte físico (que é material). Ambas dimensões, portanto, coexistem num mesmo bem cultural. No mesmo sentido, assevera Maria Cecília Londres Fonseca:

Quando se fala em patrimônio imaterial ou intangível, não se está referindo, propriamente, a meras abstrações, em contraposição a bens materiais, mesmo porque, para que haja qualquer tipo de comunicação, é imprescindível suporte físico.

Todo signo (e não apenas os bens culturais) tem dimensão material (o canal físico de comunicação) e simbólica (o sentido, ou melhor, os sentidos) – como duas faces de uma moeda. (2001, p. 191)

Mário Chagas, em artigo intitulado “Diabruras do Saci: museu, memória, educação e patrimônio” (2004), tece análise de curioso fato ocorrido no Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro, no qual, “segundo alguns depoimentos, cuja veracidade não é comprovada, existiria ali uma ficha catalográfica que daria conta do registro museográfico de uma Perna do Saci”. Assim problematiza o referido autor:

Assim admitida a suposição anteriormente indicada, é possível avançar um pouco mais. Algumas questões podem, então, ser levantadas: aquela “Perna” seria a

“Perna” (ou a representação da “Perna”) que o Saci tem ou a “Perna” (ou a representação da “Perna”) que ele não tem? Caso aquela fosse a “Perna” (ou a representação da “Perna”) que o Saci não tem, estaria ali um indício de que o Saci poderia ter tido duas pernas; caso fosse a “Perna” (ou a representação da “Perna”) que o Saci tem, estaria ali o sinal de sua morte, no papel de moleque que vive pulando. A musealização da “Perna do moleque Saci” propõe, portanto, um aparente paradoxo: ou o Saci teve duas pernas ou não tem mais nenhuma e, em ambos os casos, o que está em questão é a existência mesma do Saci. (2004, p. 137-138)

A partir desse exemplo, Chagas chama a atenção para a “corporificação do mito”, ou seja, o dado de que há uma perna do Saci no museu interfere diretamente na concepção do próprio mito. O vetor físico – a perna ou a representação da perna do Saci – é fundamental para se entender o próprio Saci. Chagas problematiza mais ainda, alertando para o fato de que, dependendo de que perna se trata, o Saci pode estar morto ou com duas pernas (o que

“mataria”, de certa forma, o personagem).

Esse exemplo trazido por Chagas auxilia a presente reflexão para demonstrar que a categoria do patrimônio cultural possui sua dimensão material e imaterial intimamente conectada, imbricada, sendo decisiva, inclusive, no resultado final de como se o percebe ou de

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como ele se configura. O antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves entende haver não necessariamente uma dicotomia, mas uma ambigüidade na categoria patrimônio:

Mas o que é importante considerar é que se trata de uma categoria ambígua e que na verdade transita entre o material e o imaterial, reunindo em si as duas dimensões. O material e o imaterial aparecem de modo indistinto nos limites dessa categoria.

(2005, p. 17)

Essa ambigüidade pode ser vista no exemplo do Saci, ou seja, ele poderia ter duas pernas ou poderia estar morto. Não há limites estanques entre as duas dimensões. Elas se interrelacionam e se (des)articulam a todo tempo, sendo inócuo apartá-las em categorias fixas.

Por isso, entende-se que a ambigüidade está muito mais presente na noção de patrimônio cultural que a pretensa dicotomia.

À luz das discussões teóricas sobre patrimônio, pode-se afirmar, portanto, que a divisão entre PCM e PCI constitui-se numa falsa dicotomia. No plano prático, entretanto, ela é mais do que evidente, é recorrente. Diante disso, o que se investigará, no decorrer deste trabalho, é como se articulam – ou deveriam se articular – tombamento e registro, considerando que o patrimônio cultural é, como pressupõem a Carta da República e a teoria do patrimônio aqui apresentada, constituído por bens de natureza material e imaterial, complementarmente.

Essa dupla faceta, além de se verificar no plano didático-teórico (aquele usado para fins didáticos, sem contradizer a teoria), se reflete, ainda, em duas outras searas. A primeira se evidencia no próprio campo do Direito, através das normas que criam instrumentos jurídicos que visam à proteção do patrimônio cultural. Há uma clara divisão de instrumentos de proteção ao patrimônio cultural, em âmbito federal21.

É o que ocorre, por exemplo, com o tombamento22 – destinado aos bens de natureza material – e com o registro23 – direcionado aos bens de natureza imaterial. No ordenamento jurídico brasileiro, portanto, é comum e recorrente a criação de instrumentos jurídicos de acordo com a dimensão a que se quer proteger, não se convergindo os instrumentos, na ocasião de sua aplicação, nem os utilizando articulada e complementarmente às dimensões do patrimônio cultural. Noutras palavras, utilizando os termos aventados pelo Poder Público Federal, tombamento é usado para o patrimônio cultural material e registro para o patrimônio cultural imaterial.

21 Uma exceção a isso é a recém-criada chancela da paisagem cultural, que busca reverter esta deletéria dicotomia. Segundo Inês Virgínia Prado Soares, por meio da Portaria IPHAN 127/2009, criou-se tal instrumento específico “com o fim de complementar e integrar os instrumentos já existentes para proteção da paisagem como bem cultural”. (2009, p. 358, grifo nosso)

22 Criado pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Esse tema será aprofundado no segundo capítulo.

23 Criado pelo Decreto nº 3551, de 4 de agosto de 2000. Tal instrumento será pormenorizado no terceiro capítulo.

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A segunda seara, em muito decorrente da primeira, é vislumbrada no campo prático de atuação das políticas públicas de preservação, mormente através do manejo desses mecanismos de proteção, bem como através da solidificação de setores específicos, dentro da estrutura do Estado, para lidar com a política de preservação do patrimônio cultural imaterial (PCI) brasileiro24.

Não raro, essa divisão é, equivocadamente, estribada na Constituição Federal de 1988 que prescreveu, no caput do art. 216, que:

Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro, os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: [...].(grifo nosso)

Vale ressaltar, porém, que a Carta Cidadã, de forma alguma, trouxe uma cisão ao conceito de patrimônio cultural, mas, ao contrário, reafirmou a sua integridade – reconhecendo expressamente a dimensão imaterial do bem - ao trazer consigo o chamado alargamento constitucional do conceito de patrimônio cultural brasileiro. Assim entende a ambientalista Lúcia Reisewitz:

Com a Constituição Federal de 1988, o conceito de patrimônio cultural sofreu sua mais significativa ampliação no que diz respeito à materialidade ou imaterialidade dos bens culturais tutelados, indo de encontro à própria concepção atual que se tem de cultura e ao contrário do Decreto-lei n. 25/1937 e da Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Cultural e Natural Mundial, que prestigiaram apenas os bens materiais. (2004, p. 98)

Tal alargamento previu expressamente a inclusão de bens imateriais na categoria de patrimônio cultural, conforme já salientou José Reginaldo Santos Gonçalves no item 1.1. Isso não significa dizer que se criou uma categoria nova - patrimônio cultural imaterial – mas a possibilidade de se reconhecer os bens imateriais como integrantes de uma categoria indivisível denominada patrimônio cultural brasileiro.

O que se vê na prática, principalmente através das políticas federais de preservação ao patrimônio cultural, é, invocando-se a falsa dicotomia aqui apresentada, a utilização desarticulada ou desarmoniosa de tais mecanismos de proteção, de acordo com a dimensão – material ou imaterial - a que se destinam prioritariamente. Noutras palavras, ao invés de serem utilizadas complementarmente, no intuito de conferir uma proteção mais eficaz e abrangente, são aplicadas, muitas vezes, de forma excludente: ou um ou outro; ou se tomba ou se registra.

24 Como por exemplo, a criação do Departamento de Patrimônio Imaterial – DPI, no IPHAN, pelo Decreto 5.040, de 06 de abril de 2004, departamento este que foi mantido pelo reestruturação trazida pelo novo regimento interno do Instituto, criado pelo Decreto 6.844, de 7 de maio de 2009. Disponível em:

<www.planalto.gov.br> Acessado em: 29 jan. 2010.

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