PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Flávia Lorena Peixoto Holanda Brumatti
As Imunidades Tributárias e a Livre Concorrência
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Flávia Lorena Peixoto Holanda Brumatti
As Imunidades Tributárias e a Livre Concorrência
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito do Estado, área de concentração Direito Tributário, sob a orientação do Professor Emérito Paulo de Barros Carvalho.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
_______________________________________
Agradecimentos
À minha família: minha mãe, Eliane, meu pai, Holanda, minha irmã, Daniela, e
meu irmão, Neto, pela confiança e amor incondicional.
Ao meu marido e amigo, Maikel, pelo amor, compreensão e paciência.
Ao meu avô José Holanda da Silva (Zuzu) pelo exemplo de amor à vida e vontade
de ser “grande”.
Ao Professor Paulo de Barros Carvalho, mestre e orientador, pela confiança no
meu trabalho e pelo incentivo acadêmico renovado dia após dia. Atribuo ao meu mestre a
minha paixão pelo direito tributário, pelo rigor científico e pela leveza dos seus ensinamentos
que a mim são muito caros.
Ao Professor Rodrigo Dalla Pria, pela generosidade e apoio durante toda esta
caminhada acadêmica que se iniciou ainda no curso de especialização em direito tributário na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP/Cogeae.
Ao querido amigo, Mantovanni Colares, pela sinceridade, incentivo e pelo tempo
As Imunidades Tributárias e a Livre Concorrência
Flávia Lorena Peixoto Holanda Brumatti
RESUMO: Trata-se de delimitar os campos jurídico-normativos próprios do sistema tributário e do sistema econômico, com o objetivo principal de estudar a decisiva interdependência entre
os referidos sistemas a partir da identificação de alguns dos elementos que tornam possível este
entrelaçamento sistêmico. Delimitadas as premissas epistemologias que orientam este estudo,
define-se a abrangência semântica das imunidades tributárias, especialmente as imunidades
recíprocas e os efeitos da concessão desses incentivos perante a o princípio constitucional da
livre concorrência.
Tax immunities and Free Trading
Flávia Lorena Peixoto Holanda Brumatti
ABSTRACT: This paper aims to delimitate the legal-normative range fitting to the tax system and the economic system in order to investigate the critical interdependence between these
systems by identifying some of the elements that make possible this systemic entanglement.
Delimited the epistemologies assumptions that guide this study, we define the semantic scope
of tax immunities, especially the reciprocal immunity, and the grant of such incentives before
the constitutional principle of free competition.
Sumário
Introdução ... 10
PRIMEIRA PARTE: UM CONCEITO DE SISTEMA E A INTERAÇÃO ENTRE O SISTEMA JURÍDICO E O SISTEMA ECONÔMICO Capítulo I – Para um conceito de sistema: pressupostos teóricos ... 22
1.1. Como pensar um sistema? ... 22
1.2. O sistema: delimitação do conceito ... 29
Capítulo II – O Sistema Jurídico ... 34
2.1. Sistema Jurídico: o direito ... 34
2.2. O fechamento operativo do Sistema Jurídico ... 35
2.2.1. A linguagem jurídica ... 36
2.2.2. Estrutura sintática das normas jurídicas ... 39
2.3. A abertura semântico-pragmática do Sistema Jurídico ... 43
2.4. Sistema Jurídico Tributário: processo de diferenciação funcional ... 46
2.5. Sistema Jurídico Econômico: a ordem econômica constitucional ... 49
2.6. Anotações sobre uma interação entre os subsistemas jurídicos: tributário e econômico .. 58
SEGUNDA PARTE: AS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS E O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA Capítulo III – Competência Tributária: aptidão para instituir e exonerar tributos ... 68
3.1. Sobre o conceito de competência ... 68
3.1.1.1. A ontologia das normas ... 76
3.1.1.2. As normas jurídicas ônticas ... 79
3.2. Competência Tributária e a Constituição Federal de 1988... 84
Capítulo IV – As Imunidades Tributárias do Art. 150, VI, da Carta Magna de 1988 .... 94
4.1. A definição do conceito de imunidade tributária... 94
4.2. As Imunidades tributárias do Art. 150, VI da CF/88 ... 107
4.2.1. A Imunidade Recíproca ... 107
4.2.1.1. A Imunidade Recíproca e os casos de repercussão geral em Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal ... 113
4.2.1.1.1. Imunidade Recíproca – IPTU – imóvel de propriedade de ente público explorado economicamente por concessionária – empresa privada ... 114
4.2.1.1.2. Imunidade Recíproca – Sociedade de Economia Mista – prestação de serviço de saúde ... 118
4.2.1.1.3. Imunidade Recíproca – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – serviços em regime de concorrência ... 125
4.2.2. Imunidade dos tempos de qualquer culto. ... 131
4.2.3. Imunidade dos partidos políticos e das instituições educacionais ou assistenciais ... 133
4.2.2. Imunidade dos livros, periódicos e do papel destinado à sua impressão ... 136
Capítulo V – Análise do princípio da livre concorrência e da tributação ... 139
5.1. As normas jurídicas econômicas ... 139
5.2. O princípio da livre concorrência e a Lei nº 8.884/94 ... 144
5.2.1. CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica: algumas anotações ... 147
5.3. O princípio da livre concorrência e o art. 146-A da Constituição Federal de 1988 ... 149
TERCEIRA PARTE: CONCLUSÕES ... 154
Introdução
Selecionar um tema desta magnitude como objeto de estudo requer um
esforço teórico preciso e imensamente cauteloso, uma vez que a ausência de rigor no trato de
cada termo da equação imunidades tributárias e livre concorrência pode gerar complicações epistemológicas ainda maiores.
A preferência pela análise do direito e dos inúmeros vínculos existentes
entre suas estruturas sistêmicas, é uma tentativa de retorno a uma questão ontológica, que
posiciona o sistema jurídico tributário de um lado e o sistema jurídico econômico do outro.
Contexto que fomenta tensões tão antigas quanto contemporâneas, na medida em que os
efeitos jurídicos e econômicos se entrelaçam simultaneamente no compasso evolutivo1 do
sistema social, compondo, sob diversos aspectos, o cerne do sistema jurídico autopoiético, cujo instrumento que se pretende estabilizador dessas relações é o direito positivo.
Neste ponto introdutório, destacarmos que a terminologia “sistema social
auto-reprodutivo ou autopoiético”, adotada por Niklas Luhmann, teve inspiração nas ciências biológicas, especificamente no modelo biológico desenvolvido por Maturana e Varela. O
termo autopoiesis, por sua vez, obteve repercussão no campo da sociologia somente quando
1 “A evolução dos sistemas é o resultado de um processo de variação, seleção e estabilização. Evidentemente,
Niklas Luhmann o inseriu como premissa epistemológica para o estudo da sociedade
enquanto um sistema comunicacional operativamente fechado.
Celso F. Campilongo Luhmann assevera que:
“O neologismo, tão esotérico quanto as ideias de Luhmann, transporta para os sistemas sociais o conceito de autopoiesis desenvolvido por Maturana e Varela para o exame dos sistemas biológicos. Esses sistemas seriam auto-referencias, isto é, organizados e reproduzidos por meio de circulação interna de elementos inerentes ao próprio sistema. Maturana e Varela, a partir de um livro publicado em 1973, no Chile (De maquinas y seres vivos), desenvolvem a tese de que os sistemas celulares possuem, internamente, todos os elementos necessários para o desempenho de suas funções fundamentais, inclusive auto-reprodução. Lidam, portanto, com um conceito de sistema fechado, auto-referencial, ou, conforme a terminologia depois consagrada, um sistema autopoiético.”2
Evidente que “a concepção luhmanniana de autopoiesis afasta-se do modelo biológico de Maturana, na medida em que nela se distinguem os sistemas constituintes de
sentido (psíquicos e sociais) dos sistemas não constituintes de sentido (orgânicos e
neurofisiológicos)” 3. Ou seja, há uma diferença de paradigmas entre as teorias de Maturana e
Varela e de Luhmann, isso por que as ciências biológicas lidam com objetos orgânicos,
neurológicos, fisiológicos, dentre outros, enquanto as ciências sociais estruturam seus estudos
a partir de objetos constituintes de sentido – psíquicos e sociais.
2
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. 2ª Ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p.73
3
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 61.
Obviamente que a sociologia, antes mesmo da adoção desta terminologia
tão consagrada, já tinha a consciência da auto-referencialidade e da auto-reprodução do
sistema social, entretanto, foi Niklas Luhmann que, em feliz e arrojada pesquisa, conseguiu
oferecer à sociologia um termo completo, capaz de registrar a identidade do sistema social a
partir da ideia de autopoiesis, ideia de auto-referência, fechamento e auto-reprodução. Pois foi exatamente a noção de organização e reprodução através de meios de circulação interna de
elementos inerentes ao próprio sistema, que trouxe que despertou a conexão entre sistema
social e autopoiesis para a pesquisa luhmanniana.
Ainda que desprovidos, nesta fase preliminar, de uma delimitação específica
para o conceito de sistema social, antecipamos a contundente assertiva de que a sociedade é
um sistema comunicacional4 em constante evolução. Comunicação que toma a consistência
intersubjetiva de mecanismo de transmissão de mensagens, cujo conteúdo reflete, a cada
tempo, expectativas evolutivas que se renovam.
Ao tomarmos a sociedade como um sistema de comunicação inserido no
trânsito progressivo dos eventos sociais, teremos sempre à vista um conjunto de novos fatos
relevantes para os perfis parciais de cada subsistema, todos verificados a partir do elevado
número de relações consolidadas e do destaque para as inúmeras possibilidades de ação
viabilizadas pelo aumento das complexidades inerentes ao macrossistema social.
Neste contexto, o termo “complexidade” não deve ser entendido como dificuldade, empecilho ou qualquer outro modo de manifestação que obstaculize o mecanismo
evolutivo, mas como o simples resultado do aumento de possibilidades, de expectativas, de
necessidades ocasionadas pelo crescimento do sistema social (fatos e relações).
Deste modo, a cada contexto histórico estaticamente demarcado, é possível
visualizarmos diversas situações novas inaugurando diferentes necessidades; circunstâncias
essas que exigem novos mecanismos de harmonização das relações intra-sistêmicas e
intersubsistêmicas5, assumindo a função de reduzir as complexidades e administrar a
contingência do mundo, tudo por intermédio do mais alto grau de diferenciação comunicativa.
A contingência assume um importante papel na teoria do conhecimento
científico de Luhmann. Trata-se de uma expressão da lógica formal utilizada para demonstrar
a existência de um universo fático de absoluta diversidade, onde o futuro é imprevisível e
incontrolável, e que a qualquer tempo as possibilidades poderão se tornar impossibilidades ou
vice-versa. Portanto, a contingência destaca um universo do possível, em que são admitidas e
variáveis as verdades e as falsidades, o “sim” e o “não”. 6
5
Leia-se: relações entre os diversos subsistemas sociais.
6
Cf. ECHAVE, Delia Tereza; URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo. Lógica proposición y norma, Buenos Aires, Astrea, 1991. “Hay uma infinidad de fórmulas que resultan verdaderas para algunas combinaciones, y falsas para otras: son las fórmulas contingentes. Para decirlo com mayor rigor, uma fórmula es contingente si sólo si resulta verdadera por lo menos em uno de sus casos posibles u falsa por lo menos em outro. (...) Toda fórmula que no sea tautológica (siempre verdadera) ni contraditória (siempre falsa) es contingente.” p. 71/73.
Cf. DE GIORGI, Raffaele. Ciencia del Derecho e la Legitimación.1ª Ed. México: Universidad Iberoamericana.1998. “No contigente es la norma que surge por necesidad interna de determinadas premisas, las cuales, provistas del carácter de verdad, no son falsificables: entonces la norma no es variable; queda fuera de los procesos de decisión y adquiere así una validez que surge de la identificación del proceso cognoscitivo com el
Sob esse ângulo, a comunicação segue o mesmo compasso evolutivo. Ou
seja, na medida em que a sociedade evolui, novos meios e técnicas de comunicação se fazem
imprescindíveis para viabilizar a continuidade do fenômeno de transmissão e recepção de
mensagens, ou mesmo, a interatividade entredos partícipes-institucionais do sistema social.
Logo, é pela comunicação que se torna possível situar o processo histórico
no tempo, para que, de um ponto de vista estático, possamos apresentar as estruturas criadas e
transformadas para prestar serviços à humanidade e às necessidades de um ambiente
complexo em ininterrupta reprodução, a saber, elementos concretos de desenvolvimento do
entorno social, aparelhamento do ente estatal para sofisticação das funções públicas, a
intervenção no domínio econômico para o alcance do bem-estar da sociedade, etc.
Vale assinalar que a sociedade moderna é formada por um conjunto plural
de esquemas comunicativos autônomos. Sistema social complexo que consegue desenvolver
meios capazes de permitir vínculos de aprendizado e reciprocidade de influências entre as
inúmeras estruturas esquemáticas chamadas subsistemas.
Sobre o tema, Marcelo Neves inicia a descrição de seus pressupostos
teóricos afirmando que é imprescindível que haja vínculos estruturais que possibilitem a
interinfluência entre os diversos âmbitos autônomos da comunicação. Relações pontuais e
momentâneas no plano das operações do sistema que construam os mecanismos chamados de
acoplamentos operativos7.
7
Para o presente estudo, conferimos relevância aos subsistemas jurídicos –
tributário e econômico – enquanto duas das esferas tidas como subsistemas parciais
autônomos; verdadeiras classes comunicativas, onde cada uma opera com um código binário8 específico, unidade formal seletora de influências para as transformações estruturais do
sistema. Ou seja, separadamente, os subsistemas realizam suas próprias aprendizagens e
constroem procedimentos com aptidão para instigar reciprocamente os demais sistemas, numa
espécie de numa independência e interdependência mútua.
Ora, independência e interdependência mútua? Como isso é possível? Os “paradoxos” são uma prática usual da epistemologia luhmanniana. Acontece que colocamos o
termo entre aspas exatamente para destacar que, se observado do ponto de vista da teoria dos
sistemas, não há que se falar em paradoxo9.
A teoria dos sistemas trabalha com um conceito abstrato de sistema social,
sistema esse que se encontra repleto de subsistemas autônomos e diferentes entre si. Neste
formato, as diferenças são estabelecidas a partir da existência de um código binário único para
cada subsistema, ou seja, códigos com características específicas que garantem o fechamento
operativo pela diferença.
8 A binariedade é uma característica dos códigos que compõem os sistemas, que são as unidades elementares de
cada esfera, uma vez que estabelecem um critério único para seleção e redução de complexidades, ou, analogamente, um critério de inclusão de classes ou de pertinencialidade a determinado subsistemas. O sistema jurídico tem como código binário direito/não – direito que garante o fechamento operativo por meio dessa diferença. Portanto, se a comunicação não se formalizar neste código, não pertencerá ao sistema jurídico. Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 77.
9 Paradoxo: palavra que vem do latim paradoxon; derivado do grego parádoxos, que significa “conceito que é ou
No entanto, mesmo autônomo-independentes, os arquétipos comunicativos
do sistema social precisam realizar vínculos entre si (contatos), a fim de recepcionar
internamente as mudanças do entorno. Para isso precisam elaborar mecanismos internos que
garantam a efetiva continuidade da comunicação, e é nesse sentido que cogitamos a real
possibilidade de interdependência cognoscitiva e independência operativa dos sistemas
parciais.10
Por certo, partindo de um viés didático, o sistema jurídico, especialmente o
tributário, em que pese o seu fechamento sintático, apresenta uma abertura
semântico-pragmática que assimila as diversas determinações do ambiente e as insere no sistema sempre
que seus próprios critérios atribuem-lhes forma11.
Por essa razão é que o sistema jurídico tributário, conjunto normativo
instituído como principal forma de custeio da sociedade, exerce seu poder interventivo
perante o domínio econômico, uma vez que seus elementos são capazes de prescrever a
demarcação de limitações à atuação do Estado, tais como: a necessidade de atentar para o
princípio da livre concorrência, para a neutralidade concorrencial do Estado e para a própria
igualdade tributária.
Como insiste em afirmar Alfredo Augusto Becker:
10
A separação entre os subsistemas não pode ser parcial; com isso não queremos dizer que não haja relações inter-sistêmicas: essas são fundamentais para a autopoiese dos subsistemas, como já vimos. Entretanto, a autonomia dos subsistemas requer que a auto-reprodução de seus elementos siga os critérios ditados pelo próprio sistema e não por outros. Cf. CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico. São Paulo: Quartier Latin. 2005. p. 248.
11
“a principal finalidade de muitos tributos (que continuarão a surgir em volume e variedade sempre maiores pela progressiva transfiguração dos tributos de finalismo clássico ou tradicional) não será a de um instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das despesas públicas, mas a de um instrumento e intervenção estatal no meio social e na economia privada. Na construção de cada tributo não mais será ignorado o finalismo extrafiscal, nem será esquecido o fiscal. Ambos coexistirão, agora de um modo consciente e desejado (...).” 12
Assim, dispondo de uma estrutura de valores jurídicos positivados, o
sistema jurídico tributário, ao regular as condutas intersubjetivas, consegue intervir na
espontaneidade dos fatos sociais, econômicos, políticos, e dos demais, constituindo realidade
juridicamente regulada.
As normas tributárias, unidades elementares do sistema jurídico tributário,
são instrumentos hipotético-condicionais de natureza prescritiva que atuam como arsenal
interventivo do Estado na economia, ajustando o funcionamento do sistema jurídico
econômico a partir do respeito às garantias fundamentais dos contribuintes e aos efetivos
limites da tributação nas linhas de atuação estatal.
Isso por que as normas jurídicas não são instituídas para confirmar
fenômenos sócio-econômicos, mas para modificar o curso natural dos fatos, impondo uma
imperatividade artificial às condutas intersubjetivas, prevendo a estrutura e a direção dos
12
comportamentos, disciplinando-os para construção de uma ordem econômica e social
estabilizada que atenda ao bem comum13.
Neste curso, o Estado, no exercício de seus três poderes: executivo,
legislativo e judiciário e munido de competência para aplicar normas jurídicas indutoras de
comportamentos, pode atuar desestimulando ou incentivando a ocorrência de fatos sociais, a
partir da incidência de regras jurídicas que façam as vezes de comandos diretos ou indiretos
de determinadas condutas. Existe, portanto, a força estatal apta a proporcionar o ajuste das
relações sociais a partir da criação e condução de normas jurídicas disciplinadoras.
Com isso, de uma perspectiva funcional do direito, o que se observa é uma
acentuada e contínua intersecção entre os subsistemas sociais. No específico caso dos
subsistemas jurídicos: tributário e concorrencial/econômico, a situação não é diferente.
O direito tributário é o instrumento legitimador de políticas fiscais, é o
instrumento normativo à disposição do Estado para a intervenção no domínio econômico e
concretização de direitos sociais. Nessa esteira, é através das formas de tributação que é
possível evitar distorções econômicas (concorrenciais), tendo em vista que qualquer atividade
fiscal afeta direta ou indiretamente as relações econômicas, bem como todas as demais
relações sociais, tais como impactos financeiros em orçamentos de entes tributantes e na
própria coletividade de cidadãos que têm serviços públicos custeados pela tributação, etc.
13 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4ª edição. São Paulo: Noeses. 2007. p.
A interferência da tributação na economia é inevitável. Independente da
função extrafiscal, parafiscal ou predominantemente fiscal, a instituição de tributos mais
onerosos para um determinado setor da economia e menos onerosos para outro, consecução
de práticas de oneração e exoneração tributária pelo Estado, tanto pode conviver
tranquilamente no ordenamento jurídico posto, como pode acarretar desequilíbrios
concorrenciais gravosos ao mercado e ao sistema social como um todo.
Destarte, a política fiscal caminha na dinâmica dos acontecimentos sociais,
evoluindo e redefinindo complexidades para atender aos interesses dos indivíduos em
constante mudança. É a ação do Estado que impulsiona o aperfeiçoamento das regras jurídicas
e otimiza o ajuste de interesses públicos e privados.
Por essa configuração, utilizando-nos das palavras de Alfredo Augusto
Becker, o direito tributário tem natureza instrumental e seu “objetivo próprio” (razão de existir) é ser instrumento a serviço de uma política. Esta (a política) é que tem os seus
próprios e específicos objetivos econômico-sociais14. Logo, o sistema jurídico constroi suas
próprias regras, que aplicadas, atingem os mais diversos subsistemas sociais,
sensibilizando-os.
Firmes nestas premissas, a proposta deste estudo é identificar os pontos de
contato entre os sistemas jurídicos: tributário e econômico-concorrencial, perquirindo a
interinfluência das normas constitucionais tributárias promocionais, chamadas de imunidades
14
tributárias, especialmente no que se refere à imunidade recíproca, e seus respectivos efeitos
sobre a livre-concorrência.
O sistema tributário15, pela evolução funcional de seus mecanismos, passou
a ser o mais importante meio de intervenção do Estado na economia e na sociedade, e não por
outro motivo, analisar o impacto da administração tributária sobre a prática da livre
concorrência contextualiza, em absoluto, é a finalidade deste estudo.
Para colocarmos em prática esses objetivos, dividiremos este trabalho em
duas partes. Inicialmente, adotando alguns dos elementos da teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann, percorreremos as noções de sistema, oferecendo uma definição que servirá de
estalão para o estudo da sociedade como um sistema social. Em seguida, passaremos pelos
conceitos de sistema jurídico tributário e sistema jurídico econômico, bem como por todos os
elementos que entendemos imprescindíveis para a identificação dos acoplamentos estruturais
entre ambos os sistemas.
Diante desse corpo conceptual, trataremos de mergulhar no instituto
denominado imunidade tributária, especialmente a imunidade recíproca, a chamada prática
constitucional exonerativa fiscal que incentiva a economia através da não tributação de
determinados fatos. Nesse momento, dispostos os referidos meandros, cuidaremos de
estabelecer as influências das imunidades tributárias na manutenção da livre-concorrência.
Para encerrar, pretenderemos nos ocupar das estruturas que viabilizam os
vínculos entre o sistema jurídico tributário, neste caso representado pela figura das
imunidades tributárias do art. 150, VI, “a” da Constituição Federal de 1988, e em particular as
matérias que dizem respeito à tributação em relação aos aspectos disciplinados pelo direito
econômico quando posto à prova o princípio da livre concorrência.
Por fim, de posse desse conjunto de referências paradigmáticas, supomos
que será possível verificar os enlaces sistêmicos pretendidos, detalhando as principais
implicações e repercussões-problema inerentes ao enfoque relacional entre tributação e livre
PRIMEIRA PARTE: UM CONCEITO DE SISTEMA E A INTERAÇÃO ENTRE O
SISTEMA JURÍDICO TRIBUTÁRIO E O SISTEMA ECONÔMICO
Capítulo I – Para um conceito de Sistema: pressupostos teóricos
1.1. Como pensar um sistema?16
Esta é a primeira e grande indagação que nos vem à mente no momento em
que optamos por iniciar os estudos a partir do conceito de sistema. Tendo em vista que o
termo é tão vago quanto ambíguo, seja do ponto de vista denotativo como conotativo,
respectivamente, consideramos prudente não correr o risco da omissão no que se refere ao
mecanismo intelectivo de enquadramento do conteúdo semântico à forma do sistema.
Dessarte, essa abordagem, que de certa maneira revelará o engatinhar inicial para se atingir
passos largos nas conceituações, parece-nos frutífera, na medida em que buscará apresentar
que tipo de abstração é possível realizar para se começar a compreender a ideia de sistema.
16
A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann exclui de sua abordagem a discussão acerca dos aspectos psicológicos e antropológicos, uma vez que opta em estabelecer como premissa epistemológica: a sociedade como um sistema que se apresenta de modo concreto enquanto um universo de comunicações habituais. Portanto, não se preocupa com a indagação que inaugura o primeiro capítulo do nosso trabalho - “como pensar um sistema?”.
Bom, conforme suso antecipado, supomos que o tratamento do sistema deve ficar atento à delimitação sintática, à especificação do contorno formal, ou seja, este estudo
deverá se preocupar em estabelecer dentro de qual moldura sistêmica será possível inserir
qualquer conteúdo semântico. Mas, para se aferir tais resultados, uma segunda indagação
insiste em nos instigar, a saber, como é possível alcançar a delimitação sintático-formal do
sistema? Numa palavra, a resposta seria: intuição.
A intuição que, para a fenomenologia de Edmund Husserl, é o princípio dos
princípios, uma vez que “toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do
conhecimento, tudoque nos é oferecido originariamente na “intuição” deve ser simplesmente
tomado tal como se dá, mas também apenas nos limites dentro dos quais ele se dá “17. Nesse
sentido, o que caracteriza a intuição é a própria visão de essência, que costuma designar
aquilo que se encontra no “ser” do indivíduo, o que ele “é”, posto em ideia. Assim, a intuição pode ser convertida em visão de essência (ideação).18
Ora, indo no encalço do raciocínio, o que é apreendido intuitivamente é a
essência de modo originário, a forma como o sujeito apreende a parcela da coisa com a qual tem proximidade, pois esse contato pode repercutir vários dos lados de um específico referente, sem jamais conseguir cogitar intuitivamente a sua totalidade 19.
17 Cf. HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 2ª Ed.
São Paulo: ideias & letras, 2006. p. 69. (grifos originais)
18 Cf. HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 2ª Ed.
São Paulo: ideias & letras, 2006. p. 35. (grifos originais)
Lados que são as possibilidades ou as circunstâncias empíricas das mais
variáveis; essas que quando observadas representam somente uma das faces das inúmeras
faces cogitáveis. Cumpre salientar que cada ser intuitivo somente é capaz de absorver uma
parcela do ambiente que o envolve, uma vez que a inteireza das dimensões do universo jamais
poderão ser codificadas e catalogadas em todas as perspectivas possíveis, por quem quer que
seja, aonde quer que esteja, sob nenhuma hipótese.
E quando nos referimos à totalidade, mencionamos o aspecto da impossibilidade do absoluto, uma vez que toda manifestação lingüístico-comunicacional é produto de atos de valoração subjetivos e, portanto, resultado da atividade ininterrupta da
consciência
O mais instigante ao tratarmos do fenômeno individual e intuitivo é perceber
que a recepção natural de mensagens pela mente humana é uma verdadeira fonte de
legitimação do conhecimento20, i. e, trata-se de uma forma consciente de lidar com a
existência (fatos) ou com as essências (eidos).
Admitamos, portanto, que o relevante fica a cargo da consciência21, que por
seu próprio repertório poderá ou não construir um correspondente cognitivo para as
20 Conhecimento interpretado como todo material apreendido pela sensibilidade, emoção e intelecção com
sentido.
21 A consciência e a comunicação são tratadas como sistemas distintos que se acoplam estruturalmente através da
manifestações que se materializam na mente, em parâmetros singulares de percepção
intuitiva.
Não por outro motivo, Edmund Hursserl afirma que:
“A essência pura pode exemplificar-se intuitivamente em dados de experiência, tais como percepção, recordação etc., mas igualmente também em meros dados da imaginação. Por conseguinte, para apreender intuitivamente uma essência ela mesma e de modo originário, podemos partir das intuições empíricas correspondentes, mas igualmente também de intuições não-empíricas, que não apreendem um existente ou, melhor ainda, de intuições meramente imaginárias.” 22
Bom, e onde entra o conceito de sistema em toda esta apreensão intuitiva?
O sistema é uma construção intelectiva, o mais alto grau de sofisticação do
pensamento humano. Sistema é um conceito que não se concretiza como um dado empírico,
pois o que há no universo da existência (fatos) é um conjunto desarticulado de dados/mensagens que necessitam de organização23 para terem sentido. O que implica dizer
que para assimilar cognitivamente o mundo é preciso colocá-lo em ordem, essa que exclui a
possibilidade do caos – de um mundo incompreensível. Pois, se houvesse caos, ou se fosse concebida a possibilidade de desordem e imprevisibilidade das relações do mundo, seria
impossível articular um plano racional da realidade, seja ela socioeconômica, sociopolítica,
22 HURSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 2ª Ed. São
Paulo: ideias & letras, 2006. p. 38.
23 Niklas Luhmann tomou muito cuidado ao usar o termo organização, pois considerava que, em sociologia, a
sociojurídica. E é precisamente nesse contexto que Lourival Vilanova deposita nas relações de
causalidade a possibilidade de ordenação objetiva no curso dos fatos econômicos, políticos e
jurídicos.
É a construção de uma ordem, inicialmente intuitiva, capaz de articular a
ideia de um sistema, que viabiliza o mapeamento da realidade, o fornecimento de mecanismos
de intervenção nos planos racionalmente dispostos e a elaboração de uma arquitetura de
relações compatíveis com a concretização de um sistema sociocultural.24 Mas, realizar essa
estrutura requer um esforço intelectivo, ou seja, fugir do caos e planejar um universo em
ordem requer uma ação, ou em termos dinâmicos25, um procedimento intuitivo formador do
nosso conceito.
Destarte, para criar uma estrutura ordenada, Vilém Flusser26 sugere que
primeiramente sejam analisadas e catalogadas as aparências, numa espécie de esquema geral,
cuja finalidade precípua seria a criação de um sistema de referência universal. Complexo sistêmico capaz de permitir a identificação – fixação – das aparências circundantes no
ambiente (estruturas estáticas) e articular as inevitáveis relações existentes entre elas
(estruturas dinâmicas).
Dessa maneira, o primeiro esforço seria fixar aparências, catalogando-as, e,
em seguida, realizar um segundo esforço: concatenar as relações em coordenação numa tarefa
típica de hierarquização do mundo. Somente assim, por um processo de pura disposição ou
24
Cf. Causalidade e Relação no Direito. 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 51.
25
codificação, seria possível transformar o caos em cosmos. Cosmos, cuja estrutura é a língua; essência que forma e governa o pensamento humano.
Deve-se observar, portanto, que é pelo mecanismo intuitivo (sensibilidade,
emoção e intelecção) que se realizará a fixação e catalogação das aparências parciais do
ambiente/mundo e que se construirá abstratamente uma categoria provida de altíssima
sofisticação – verdadeiras construções intelectivas elaboradas a partir da coleta de elementos
empíricos – e que chamaremos de sistema.
Assim, cogitado o sistema, seguiremos na consecução do processo de
concretização do pensamento até alcançar a elaboração e verbalização por intermédio de atos
de fala. Faz parte, certamente, deste procedimento de percepção, interpretação,
compreensão/construção e verbalização, a ideia de circularidade que supõe o mecanismo de
aferição da realidade (dado e texto), e na efetiva sistematização em categorias abstratas, ou
mesmo, da propriedade de as categorias abstratas garantirem, sempre que possível, uma
construção cognitiva sistêmica verbalizável.
Bom, é nesta faixa cognitiva de compreensão do conceito de sistema, a partir
da coleta empírica de dados e necessária ordenação em categorias, que poderemos vislumbrar
a sociedade como um sistema, e todas as demais categorias existentes insertas como
subsistemas sociais, separados estruturalmente em virtude de funções e linguagens distintas.
Muito embora as diferenças sejam inúmeras, é o dado da comunicação que confere a
Argumentos esses que permitem a afirmação de que o sistema social
verbalizado em texto é resultado da interpretação, e é a partir da manifestação do sistema por
ato de fala que se torna possível identificar as diferenças linguísticas, instrumentais e
contextuais (códigos binários, formais, etc.) capazes de subdividir a sociedade em diversos
planos ordenados e autônomos.
Como sugere Vilém Flusser, “a ciência é a tentativa de catalogar e
classificar aparências, e a cada página do catálogo e a cada classe de aparências corresponde
uma ciência especializada” 27. Isso por que a visualização das diferenças e a subdivisão em
planos ordenados e autônomos ficam a cargo de uma atitude científica, que através de um
método coleta parcelas do universo contínuo a fim de, pela descontinuidade, catalogar as
aparências e compor relações de coordenação capazes de hierarquizar o mundo circundante.
A separação das ciências é o resultado inevitável da atitude científica de
identificação das diferenças e eleição dos objetos de estudo. Cada ciência se dedica a um
objeto, ou pelo menos a uma das perspectivas desse objeto, e sobre ele deposita todas as
expectativas cognoscitivas, com o propósito de atender à necessidade de desvendar as suas
complexidades e formar juízos de valor acerca do referido objeto.
Logo, o argumento de que a separação das ciências tem configuração
didática procede, uma vez que a palavra didática é substantivo feminino que significa a própria ciência ou arte de ensinar28, ou mesmo um conjunto organizado de instruções. É a
27 FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 3ª edição. São Paulo: 2007. p. 35.
28 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro:
organização das ciências pela diferença que faz com que seja imprescindível uma autonomia
didática, cuja finalidade única é a viabilização das pesquisas. Somente dessa forma é possível
definir os elementos pertencentes à ciência social, à jurídica, à econômica, à biológica, às
ciências exatas, etc.
Salientamos, contudo, que a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann não se
detém à questão: “Como pensar o sistema?”. Não se preocupa com as entidades intuitivas de
elaboração dos atos de fala, ou ainda, com o procedimento de passagem do status de
não-comunicação para não-comunicação. Em verdade, pela corrente teórica luhmanniana, falar em
sistema é fazer referência à efetiva comunicação, sem a necessidade de atentar para os
mecanismos cognitivos de apreensão intelectiva do sistema. Ainda assim, em que pese o corte metodológico da corrente alemã, entendemos por oportuna a demarcação simbólica do
sistema psíquico, uma vez que o consideramos um partícipe importante na estimulação e
concretização dos conceitos propostos.
1.2. O Sistema: delimitação do conceito
O sistema tal como ensaiamos anteriormente é uma estrutura de
elevadíssima abstração29. Trata-se de uma construção intelectiva que elege uma das
perspectivas do ambiente, cujo resultado seria a identificação e reunião de elementos que se
29
encontram interligados por um código universal: a comunicação (operação genuinamente
social) 30. A sociologia de Niklas Luhmann chama este conjunto de elementos – em que o
critério de inclusão é o fato comunicacional – de sistema social. Sistema que em nada se confunde com a inesgotável dimensão do ambiente, tendo em vista tratar-se, tão somente, de
uma das dimensões daquilo que tomamos como mundo/realidade.
No compasso destes nexos, Edmund Husserl enfatiza que:
“(...) a forma espacial de uma coisa física só pode ser dada, por princípio, em meros perfis unilaterais; de que toda qualidade física nos enreda nas infinidades da experiência, mesmo fazendo abstração dessa inadequação, que se mantém constante apesar de todo o ganho e qualquer que seja o avanço que se faça em intuições contínuas; e que de toda multiplicidade empírica, por mais abrangente que seja, ainda deixa em aberto determinações mais precisas e novas das coisas, e assim in infinitum.”31 (destacamos)
Do exposto, é possível verificar a existência de pelo menos dois pontos
decisivos capazes de oferecer a definição de sistema social pela negativa, melhor dizendo, pontos que deverão ser excluídos quando da compreensão do modelo conceptual ao qual nos
filiamos, quais seriam: i) o sistema social não é o ambiente/meio e ii) O sistema social não é o
homem, nem com ele se confunde.
“Toda teoria está baseada, então, em um preceito sobre a diferença: o ponto de partida deve derivar da disparidade entre sistema e meio, caso se queira conservar a razão social da Teoria dos Sistemas.
30 “A comunicação é uma operação genuinamente social (e a única, enquanto tal), porque pressupõe o concurso
de um grande número de sistemas de consciência, mas que, exatamente por isso, como unidade, não pode ser atribuída a nenhuma consciência isolada.”Cf. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 91.
31 HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 2ª Ed. São
Quando se escolhe outra diferença inicial, obtém-se então como resultado outro corpo teórico. Assim, a Teoria dos Sistemas não começa sua fundamentação com uma unidade, ou com uma cosmologia que represente essa unidade, ou ainda com a categoria do ser, mas sim com a diferença.” 32
Ora, isso implica dizer que o ambiente é, indubitavelmente, mais complexo
que o sistema, com dimensões infinitamente mais amplas, e que o homem é um elemento
atuante no sistema33, não um dado comunicacional, mas deve ser tratado como um agente
viabilizador da comunicação. Por esta razão Tácio Lacerda Gama afirma que o sistema é um conjunto formado por elementos que se relacionam segundo certos padrões de
racionalidade34, pois é o homem que viabiliza sua formação.
Trabalhar com este conceito de sistema exige uma intensa atividade
operativa de abstração, realizando um corte tipicamente metodológico no
entorno/ambiente/realidade a fim de realizar o enquadramento da porção de expectativas
comunicacionais em um sistema que chamamos de sociedade. Entretanto, para realizar esta operação de enquadramento, o primeiro grande passo é identificar a diferença35, ou seja,
32 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 81.
33 “Luhmann coloca o homem como ambiente da sociedade.”Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 68.
34 Cf. Competência Tributária. São Paulo: Noeses. 2008. p. 120.
35 “Pode-se dizer que, do ponto de vista da análise da forma, o sistema é uma diferença que se produz
perceber analiticamente quais os elementos linguísticos que seriam capazes de diferençar a
estrutura do sistema social do arquétipo do ambiente36.
“É evidente que não se pode iniciar um processo de linguagem sem ao menos ter em conta que existe algo exterior que deve ser designado como realidade; contudo, para o processo posterior da comunicação, a diferença contida na própria estrutura da linguagem é decisiva. Tal diferença está intimamente ligada ao problema da referência, ou seja, àquilo sobre o qual se pretende falar.”
Observando o ambiente como um continuum heterogêneo37 desordenado que reúne uma infinidade de dados e fatos complexos, pensar em sistema é visualizar neste todo
estruturas que se entrelaçam por ao menos um aspecto comum, aspecto que Niklas Luhmann
identificou como a comunicação. Portanto, do ponto de vista sociológico, a sociedade seria
um macrossistema comunicacional. E sistema seria um conceito abstrato universal
caracterizado pela reunião de diversos elementos em torno de um critério comum capaz de
formar uma ordem compreensível e articulável.
36 “LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 82. (grifo nosso).
37 Termo trazido por Heinrich RICKERT em sua obra Ciencia cultural y ciencia natural, Madri, 1922. p. 32 e ss.
Seguindo na consecução do raciocínio, trago uma passagem da obra Fundamentos Jurídicos da Incidência de Paulo de Barros Carvalho que analogamente descreve com excelência o processo abstrato de construção de sistema, vejamos: “Para isolar o direito, farei um primeiro corte no continuum heterogêneo a que alude Rickert, como a realidade que recobre todo o espaço da vida social, provocando o aparecimento do descontinuum
Uma vez visualizado o conceito de sistema e observado do ponto de vista
externo, i. e, na direção: ambiente Æ sistema, no item seguinte propomos a análise do
processo de diferenciação a partir de uma perspectiva interna, sugerindo a identificação da
dinâmica de construção dos subsistemas sociais, orientada pelo seguinte percurso: sistema
social (sociedade) Æ subsistemas sociais (jurídico, econômico, etc.). Desta feita, passemos ao
Capítulo II – O Sistema Jurídico38
2.1. Sistema Jurídico: o direito
O sistema jurídico é um subsistema social. E enquanto subsistema assume todos os perfis conceptuais adrede descritos no que concerne à noção de sistema, inclusive, o
aspecto comunicacional, o fechamento operativo-sintático e o mecanismo autônomo e
ininterrupto de autopoiesis.
O subsistema jurídico é instrumento de equilíbrio do sistema social, pois
como assevera Lourival Vilanova, o direito é um dos sistemas, interiormente compondo-se de relações, e exteriormente funcionando como sistemas relacionador do sistema social em seu todo. Um dos subsistemas que interliga os demais subsistemas do sistema social global é o
subsistema do direito39.
Assim, os elementos cuidadosamente eleitos como caracterizadores da ideia
de sistema (aspecto comunicacional, o fechamento operativo-sintático e o mecanismo
autônomo e ininterrupto de autopoiesis) passam a ser critérios exigidos para inclusão dos
38 Tomamos a sociologia de Niklas Luhmann como paradigma-descritivo do conceito de sistema aplicado neste
trabalho, entretanto, muito embora a teoria dos sistemas seja o alicerce preponderante de nossas considerações, ressaltamos que alguns dos pontos que serão apresentados não seguirão os padrões teóricos advogados pela linha sociológica luhmanniana. Mesmo assim, compreendemos que esta opção de análise interna do sistema jurídico não implica um discurso contraditório, mas absolutamente complementar.
39
subsistemas na classe40 (conjunto41) do macrossistema social, surgindo, portanto, uma relação
lógica de pertinência42.
2.2. O fechamento operativo do Sistema Jurídico
Admitir o fechamento operativo do sistema jurídico é aderir à noção
complexa de análise do sistema enquanto articulador e produtor de suas próprias
necessidades, ratificando o paradoxo da autonomia interna versus dependência inter-sistêmica (caracterizada pela necessidade de contextualização frente às transformações do
próprio sistema social e do ambiente/meio).
Do ponto de vista interno43 ao sistema jurídico, algumas entidades hão de ser
consideradas a fim de destacar o grau de diferenciação do direito diante dos demais
40 “Classe é construção linguístico-intelectiva; é entidade lógica; é conjunto; é domínio. É conceito de extensão
ou aplicabilidade que surge a partir do estudo dos predicados que compõem os enunciados lógico-proposicionais. Noutras palavras, classe é elaboração de pensamento que busca reunir um ou mais termos capazes de serem aplicados a um conceito, ou que tenham os atributos atinentes ao conceito determinado. Por esta forma, classe é conotação, é nome geral que coleciona um número indefinido de coisas, cujos elementos sejam susceptíveis à aplicação”. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008: item 2.6, Capítulo II, Primeira Parte.
41 “Os conjuntos são coleções de objetos. Os objetos que formam os conjuntos são chamados de elementos. Para
indicar que um objeto é elemento de um conjunto será usado o símbolo ϵ, portanto se “F” representa o conjunto dos filósofos e “s” denota Sócrates, temos que s ϵ F. Desformalizando: Sócrates é filósofo. Como representar o conjunto dos estudantes de filosofia da UFSC? Descrição: {x | x é um estudante de filosofia da UFSC}. A
descrição é usada para os casos em que há muitos elementos. Enumeração: {Paulo, Pedro, Maria, Antônio}. A
enumeração é usada nos casos em que é possível listar os elementos ou prever a sua continuidade. Há uma relação muito estreita entre ter certa propriedade e pertencer a certo conjunto. Entretanto não se exige as propriedades sejam comuns, de modo que um conjunto pode ser composto por diversos objetos de naturezas diferentes, pois o que vai importar é o critério adotado para realizar a coleção e construir um conjunto dela”. Cf. MORTARI, Cezar. Introdução à lógica. São Paulo: UNESP, 2001: Capítulo IV.
42 A pertinência informa relações entre elementos e classes. Nesta perspectiva, todo “y” que satisfizer as
características sugeridas por uma classe será pertencente a ela, ou seja, sempre que os atributos de “y” forem aplicados ao conceito da classe, haverá uma relação de pertinência.
43
subsistemas, e ainda, os níveis operativos que garantem o fechamento sintático do sistema
jurídico. E é a delimitação conceptual de tais entidades que trataremos de demonstrar nos
pontos que seguem.
2.2.1. A linguagem jurídica
O termo linguagem, aqui disposto, deve ser entendido genericamente como instrumento da comunicação, ou seja, como qualquer palavra que designa o conjunto de
línguas44 – idiomas – formas de manifestação: gestual, falada, escrita ou em quaisquer atos
que impliquem significação. Esta definição é inspirada nas teses nominalistas que se utilizavam de termos genéricos somente para denominar e não para encontrar essências. A
linguagem, a que nos referimos, é o instrumento da comunicação; é toda manifestação capaz
de realizar acoplamentos entre as estruturas sistêmicas; é mensagem com sentido.
do Direito tomam do dado-de-fato (coisa do mundo, conduta, relação social) e regressam logo ao sistema para verificar se o dado-de-fato foi previsto normativamente. Se não o foi, nem por norma expressa, nem por norma que o próprio ordenamento contém implicitamente, ou diz quem deve preencher o vazio normativo, então o dado-de-fato não existe juridicamente. Será uma questão de Política do Direito a de fazer regra nova para contemplar o fato juridicamente inexistente, trazendo-o para dentro do ordenamento jurídico”. Cf. VILANOVA, Lourival. “Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento” in Escritos Jurídicos e Filosóficos. Volume 02. São Paulo: Axis Mundi: IBET. 2003. p. 463. (grifos originais).
44
A semiótica é ciência que estuda os signos e os fenômenos da representação
- atos ou palavras45. Signo46 é entidade relacional que interliga um objeto ao seu significado,
e desse modo elabora significações. Analisada sob esta perspectiva, a linguagem é um
conjunto de signos, que verbalizados ou vertidos em palavras, implicam significação e viabilizam a comunicação. Na medida em que se discorre sobre os conceitos de
comunicação, linguagem e interpretação; passa-se a questionar acerca da função pragmática
desempenhada por estas noções, ou seja, de que maneira elas interferem, descrevem,
constituem ou criam a realidade.
As discussões ao redor deste tema são intermináveis, todavia, a proposta é
apresentar um breve perfil pragmático da linguagem frente à realidade. Esta realidade que se apresenta como dimensão linguística, aquela captada pelo homem através de seus
mecanismos redutores de complexidades. Tanto sim que a linguagem cria uma realidade;
realidade que é a perspectiva parcial de mundo apreendida por cada indivíduo. A ideia é
demonstrar que o real ingressa no sistema comunicacional enquanto um dado linguístico, já que a transmissão de informações ou a emissão de relatos acerca de um evento somente pode
ser feita por linguagem e é por ela que se podem constituiras versões dos acontecimentos.
Partindo do princípio de que linguagem jurídica (texto) é a estrutura sintática
prevista pelo ordenamento - necessária moldura formal - que reúne critérios competentes para
45
ARAÚJO, Clarice Von Oertzen de. “Fato e evento tributário – uma análise semiótica”. Curso de especialização em direito tributário, coord. Eurico Marcos Diniz de Santi. Rio de Janeiro: Forense. 2007. p. 335. 46 “Estudar signo, em suma, quer dizer procurar um nível extremamente simples, quase abstrato do sentido. Seja
na situação de comunicação, seja na de significação, é fácil encontrar esta célula fundamental: um objeto de duas faces, ou antes, uma relação que liga um significante a um significado”.Cf.VOLLI, Ugo.Manual de semiótica.
construir um ordenamento jurídico válido; e que a realidade jurídica é o resultado da
articulação de tais enunciados, pode-se afirmar que a linguagem jurídica é forma de
constituição da realidade jurídica. Assim, a linguagem é o instrumento do direito, quiçá, o
próprio direito como um sistema de comunicação.
Na consecução do raciocínio, é possível afirmar que toda forma de
manifestação humana implica linguagem, que verbalizada em palavras, formam enunciados
com sentido. Portanto, os textos jurídicos (conjunto de palavras) devem se mostrar escritos, uma vez que é requisito essencial à legitimidade das construções linguísticas, i. é, um dos
critérios de inclusão na classe do ordenamento jurídico. E a pergunta que nos vem à mente é:
e por que as palavras alcançam tamanha importância, por que direito como texto? Ora, parafraseando Vilém Flusser, as palavras são apreendidas e compreendidas como símbolos,
isto é, como tendo significado; e como os dados “brutos” alcançam o intelecto
propriamente dito em forma de palavras, podemos ainda dizer que a realidade consiste de
palavras.47
Com estes prolegômenos linguísticos, pretendemos consolidar os aspectos
conceptuais que justificarão nossa posição quanto à relação direta entre o tipo de linguagem e
o fechamento operativo do sistema jurídico. O que ingressa no universo do direito tem
natureza jurídica porque assume a forma exigida pelo próprio universo jurídico; o direito
prescrevendo direito, do direito ditando as regras e os critérios de inclusão na grande classe
que tomamos a iniciativa de chamar de ordenamento jurídico. Neste contexto, a forma
estabelecida é aquela que se mostra em linguagem competente, ingressando no sistema a
partir de um procedimento legítimo. Desta feita, o fechamento operativo do sistema jurídico,
nos termos linguísticos do plano sintático, se dá pelo fato de existir uma estrutura exclusiva
para o sistema jurídico. Então qual seria ela?
2.2.2. Estrutura sintática das normas jurídicas
Isolado o ordenamento jurídico – os textos jurídicos – percebemos que há
uma estrutura lógica que se formaliza a cada construção intelectiva, ou seja, sempre que
observados os enunciados jurídicos, cogitamos a existência de um esquema formal composto
por três elementos: 1) Hipótese fática, 2) implicação (modal deôntico: dever-ser) e, 3) Consequência jurídica. Esquema sintático que denominamos de norma jurídica, em termos kelsenianos.
Ilustração 01: Hipótese fática (H) Æ Consequência jurídica (C)
Desse modo, se isolarmos as unidades elementares do ordenamento jurídico
teremos um conjunto de normas jurídicas, que estarão sempre dispostas em construções
lógico-formais predominantemente homogêneas, muito embora sejam absolutamente
Quando lidamos com a sintaxe das normas, realizamos um estudo lógico, ou seja, elaboramos fórmulas fixas e sintaticamente homogêneas, compostas por variáveis
(categoremas)48 e constantes (sincategoremas)49 capazes de representar o nosso objeto.
Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, afirma que a norma funciona
como um esquema de interpretação.50 Norma jurídica que deve ser entendida como uma
construção hermenêutica realizada pelos órgãos credenciados pelo sistema (direito posto),
para prescrever comandos, permissões e atribuições de poder ou competência. Por outro lado,
as proposições jurídicas seriam juízos descritivos hipotéticos que tratam de cogitar o sentido,
as condições e os pressupostos da ordem jurídica.
A Ciência do Direito, para Kelsen, constroi proposições jurídicas, cuja
função descritiva busca aferir valores de verdade ou falsidade. Enquanto que as normas jurídicas seriam o resultado da atividade interpretativa dos sujeitos competentes e aptos para
aplicar o direito. E nesta perspectiva, os valores almejados pela prescritividade normativa
seriam de validade ou invalidade.
O direito, para Kelsen, é um sistema de normas que procura regular
condutas empregando o verbo “dever-ser”, no seu sentido amplo, para que possa alcançar obrigações, permissões e proibições. Observou, portanto, a norma jurídica como o resultado
de atos de vontade dos órgãos competentes, e o direito como um conjunto de normas
jurídicas.
48VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas do sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses. 2007. p.286
49 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas do sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses. 2007. p.286
A concepção homogênea, pelo exposto, compreende o ordenamento como
um sistema de normas jurídicas, cuja estrutura lógico-formal obedece ao perfil sintático de
uma hipótese implicando uma consequência (H Æ C), cujo elemento de conexão é um modal
deôntico51 - um “dever-ser”. Desta feita, haveria homogeneidade sintática no plano da estrutura formal da norma jurídica.
51
Entendemos que o dever-ser é entidade sintática, cuja expressão carece de significado per se. Tal como as unidades relacionais se apresentam, o dever-ser é unidade lógico-jurídica que pode ser vista sob a égide de duas perspectivas: neutra e deôntica. O dever-ser neutro é aquele que rege uma relação interproposicional, portanto, aquele que realiza o vínculo entre a proposição hipótese (antecedente) e a proposição-tese (consequente) da norma, enunciado por ato volitivo de autoridade competente. Neutralidade que se deve ao atributo de ser peça meramente relacional - necessária condição/conexão posta pelo fenômeno da implicação. É o fenômeno implicacional que provoca a causalidade jurídica, enquanto inequívoco elo concreto entre as causas fáticas e os efeitos jurídicos. Assim, é possível usar esta assertiva para corroborar com toda a tese de que a incidência51 se opera sobre os fatos da realidade (subsunção – inclusão de classes) e implica numa consequência jurídica, onde serão ponentes deveres e direitos aos sujeitos. Assim, a imputação se opera como etapa final do processo de
incidência jurídica, sendo capaz de concretizar as relações jurídicas previstas nos consequentes abstratos das normas gerais e hipotéticas elaboradas a partir da leitura, interpretação e compreensão dos textos positivados. O
dever-ser neutro vincula termos proposicionais sem jamais se mostrar modalizado. E esta negativa se consolida por conferir ao símbolo “modalizado” o caráter operacional, orientado pela Lógica deôntica, de impor os vetores proibido (V), permitido (P) e obrigatório (O) às condutas intersubjetivas. Assim, esta modalização não é cabível ao dever-ser de natureza neutra.
Na esteira classificatória, o dever-serdeôntico nãosegue a consecução do raciocínio adrede exposto em termos de fenômeno implicacional, pois não é o responsável pela implicação – competência exclusiva do dever-ser neutro, mas estabelece um vínculo que agora acontecerá entre pessoas e terá como efeito imediato a imposição de um dever jurídico para o sujeito S’ e de um direito subjetivo para o sujeito S’’. Por esta forma, tal relação jurídica somente será percebida na proposição-tese da norma (consequente) e, assim, será chamada de intraproposicional.
Convém registrar que a postura positivista pretendeu construir uma teoria
pura do direito, uma ciência jurídica autônoma capaz de se diferençar das demais ciências. E
Kelsen, para viabilizar esta pureza, realizou um corte metodológico que isolou o direito do
mundo externo, a partir da identificação de uma forma sintática propriamente jurídica. Entretanto, o corte sintático de tal concepção não negou a existência do conteúdo semântico
dos enunciados prescritivos, apenas o desconsiderou no instante em que se propôs a construir
uma teoria pura.
Os valores atribuídos ao sistema normativo seriam o resultado do processo
interpretativo, e, portanto, uma perspectiva que não interessaria à parte da teoria que buscou
identificar a forma pura do direito. Vista por este enfoque, é possível se chegar à conclusão de que a teoria do direito, para os positivistas, teria como objeto de preocupação a teoria da norma jurídica, como unidade sintática elementar do ordenamento.
função. Função que passou a ser tratada pelo professor alemão como um caso especial de relação (relação aqui definida como o conjunto de pares ordenados, onde cada elemento pertence a um dos conjuntos relacionados). Assim, na álgebra, o conceito de functor assumiu a face de elemento relacional, i. é, de ponte formal que tem preservada sua estrutura (homomorfismo – homomorphisms - R. SCHREIBER, Logik des Rechts, chama de isomorfismo – estruturas formais de mesma composição) a fim de unir categorias. Transpondo o conceito matemático para a filosofia, RUDOLF CARNAP utilizou o termo functor para denominar o ente relacional que há entre predicados ou entre propriedades. Assim, functor foi adotado, pela seara filosófica, como um item linguístico, uma forma especial de função, cuja natureza é meramente estrutural.
Desta maneira, retornando às acepções de GEORGES KALINOWSKI, é absolutamente pertinente a analogia feita do termo functor à lógica jurídica. Pois, se o dever-ser é o ente que relaciona as proposições da forma normativa, ele poderá ser chamado, sem demasiada restrição, de functor. Nesta perspectiva, ao observar a forma normativa e a posição ocupada pelos functores – dever-ser, GEORGES KALINOWSKI identificou como
functor deôntico aquele ente que integra a relação intraproposicional/ (Æ S’ R S’’). E, ainda seguindo o raciocínio adrede destacado, assumindo a postura propriamente matemática de iniciar a resolução das equações pelas operações internas às formulas e seguir pelos termos marginais até alcançar o resultado correto, inferiu-se que: se o dever-ser modalizado da proposição-tese é chamado de functor deôntico¸ então o dever-ser neutro,
enquanto relação da relação, será chamado de functor-de-functor. Com toda esta exposição, concluímos que o
dever-ser é qualificação jurídica para uma função relacional – functor. E, nesta medida, assume um papel estrutural inafastável para análise lógica da forma sintático-normativa. E, em sendo qualificação, é entidade que apresenta carga valorativa tanto enquanto functor-de-functor como enquanto functor deôntico.
2.3. Abertura semântico-pragmática do Sistema Jurídico
O sistema jurídico enquanto subsistema social está inserido num contexto
complexo e ininterrupto de fatos. Fatos sociais que exigem regulação e inclusão num
contexto capaz de orientar as condutas intersubjetivas. Dentro de uma sociedade em
desenvolvimento gradual, diversos valores devem ser mobilizados e contemplados por
previsões normativas, aptas a viabilizar a harmonização do convívio social e oferecer os
meios suficientemente válidos para solucionar os eventuais conflitos e sanar as expectativas
frustradas pelo litígio.
Sobre isso, convém ressaltar que quando o sistema jurídico assume para si a
função de elaborar um repertório geral e abstrato de hipóteses fáticas capazes de implicar
consequências jurídicas, está incluindo o quantum do ambiente/meio na sua forma própria e exclusiva, i. e, conectando as referências externas a partir de operações internas52.
Significa dizer que o direito passa a regular, a partir de uma estrutura formal
homogênea, a heterogeneidade dos fatos sociais através de atos que seguem específicos
procedimentos e definidas competências.
Entretanto, ao disciplinar as condutas intersubjetivas, o sistema jurídico não
traz para dentro de si fatos econômicos, sociais, político, ou toda heterogeneidade do
52 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad.
ambiente; dentro do sistema jurídico só há fatos jurídicos, e os fatos em jurídicos se
transformam quando relatados em linguagem jurídica competente, positivada.
Portanto, vislumbra-se uma abertura semântica e pragmática do sistema
jurídico à realidade, desde que encontre respaldo no padrão formal do ordenamento jurídico –
frame of reference – para o fechamento operativo do sistema.
Na linha de consecução desse raciocínio, Cristiano Carvalho assegura que o quantum de abertura cognitiva do sistema normativo ao ambiente é que dará a medida de sua capacidade homoestática, i. e, quanto mais o sistema normativo for capaz de perceber as
expectativas do meio social, melhor será capaz de adaptar-se a ele53. Dessa forma, teremos o
sistema social sensibilizando o sistema jurídico e este criando mecanismos internos capazes
de construir programas que atendam às necessidades do universo contínuo e cambiável - o
meio.
Como observa Lourival Vilanova, as novas situações (sociais) encontram
solução normativa dentro dos quadros gerais do ordenamento: regras legisladas, os
regulamentos editados, as decisões judiciais vão, cada uma em sua esfera própria, criando
um direito novo, sem quebra dos lineamentos e contornos do ordenamento jurídico total.54
O ordenamento jurídico e todas as entidades que o compõe – leis, decisões
judiciais, jurisprudências – se assenta num substrato social e se volta para ele a fim de dar
53
Teoria do Sistema Jurídico. São Paulo: Quartier Latin. 2005. p. 245.
54