RESENHA•ECONOMIA INDUSTRIAL – FUNDAMENTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS NO BRASIL
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Homenagear Maurício Tragtenberg sempre me parece que é necessário e, ao mesmo tempo, um tributo cujo valor, por maior que seja, tem a pos-sibilidade de ser menor do que deve-ria. Quem teve a oportunidade de conhecê-lo sabe que há sempre mais do que dele se pode dizer. “Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciên-cias Humanas”, organizado por Doris Accioly e Silva e Sonia Alem Marrach é, mais do que uma homenagem, um reconhecimento. Resultado da “Jorna-da Maurício Tragtenberg” realiza“Jorna-da na Unesp /Marilia em agosto de 1999, o livro apresenta um conjunto de 28 de-poimentos /análises sobre a vida e a obra desse que foi, sem dúvida, um dos mais criativos, ousados e profí-cuos intelectuais críticos do Brasil.
Ao ler, com atenção, cada um dos textos que compõem esse oportuno e bem-vindo livro, fui tomado de emo-ção. Cada depoimento /análise pare-ce ser uma interpretação de uma das
O PENSAMENTO CRÍTICO E
CRIATIVO DE MAURÍCIO TRAGTENBERG
Por José Henrique de Faria
Professor Doutor Titular da Universidade Federal do Paraná; Visiting Professor at the University of Michigan.
E-mail: faria@umich.edu
RESENHA•O PENSAMENTO CRÍTICO E CRIATIVO DE MAURÍCIO TRAGTENBERG
facetas de Maurício, mas todos mos-tram um mesmo intelectual, um mes-mo homem. Cada texto foi, para mim, de difícil leitura: em nenhum deles fui capaz de ir do começo ao fim sem ser interrompido por lembranças e por reflexões, nem todas exatamente aca-dêmicas, pois é inevitável que surjam
replays de conversas, exposições,
de-bates. Por isso, mesmo que o livro se apresente em três partes, é impossível separar, em Maurício, o ser humano do intelectual, o pensamento da ação, a generosidade do rigor.
Conheci Maurício Tragtenberg em Porto Alegre, em abril de 1978. Em poucos minutos percebi que ele era o guardião de um tesouro e, assim, coloquei-me nesta aventura, que até hoje vivo, de desvendar os mistérios do que parece ser solidamente dado, de não me contentar com as verda-des teóricas definitivas, de não me deixar apanhar pelo dogmatismo. Maurício tinha uma chave para esse
percurso: colocar para conversar os que a academia tradicional havia se-parado. Ao ler os depoimentos /aná-lises, vejo que minha percepção apa-rece em todos os textos, tal como aconteceu na homenagem prestada a Maurício na FGV-EAESP.
Na primeira parte do livro, encon-tramos Maurício Tragtenberg, como o violinista, no telhado; não apenas o da Rua Catumbi, mas onde habitam seus amigos, alunos, admiradores e críticos. Sonia Marrach, Lélia Abramo, Antônio Cândido, Michael Löwy, Fernando de Carvalho, Evaldo Auraro Vieira, Edgar de Assis Carvalho e An-tonio Valverde falam do Maurício que conheceram, colocando-nos diante do homem. Os depoimentos de Evaldo Vieira e Antonio Valverde são para mim particularmente muito próximos, pois se referem a períodos e observa-ções conhecidas. Todos tratam de si-tuações que revelam a trajetória e as particularidades que o fizeram um
MAURÍCIO TRAGTENBERG: UMA VIDA PARA AS CIÊNCIAS HUMANAS
De Doris Accioly Silva e Sonia Alem Marrach (Orgs.)
ABR/MAIO/JUN/2003 • ©RAE • 127
FRANCISCO ALVES JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
brilhante outsider (Valverde), alguém
que viveu “a honradez com inteligên-cia” (Vieira), que soube “dar o salto” (Abramo), um “servidor da verdade” (Cândido) que “se destacou pela coe-rência política e intelectual” (Löwy), “um espírito crítico e sensível” (F. de Carvalho), que “apostava em um mun-do mais livre e menos recalcamun-do (E. de A. Carvalho).
A segunda parte do livro é dedica-da à análise dedica-das contribuições de Tragtenberg para as Ciências Huma-nas, que compreendem suas concep-ções acerca do socialismo e da auto-gestão, tendo a solidariedade como pano de fundo (Doris Accioly e Sil-va); de sua identificação com Rosa Luxemburgo e sua (injusta) crítica a Herbert Marcuse (Isabel Loureiro); de suas reflexões críticas à burocracia, à administração e à lógica capitalista (Ricardo Antunes); de seu investimen-to contra a “delinqüência acadêmica”, em que, em defesa de suas convicções que incluem o anarquismo, “lança um petardo certeiro na universidade bra-sileira” (Edson Passetti); de seu pen-samento heterodoxo fundamentado em uma prática que escapou dos en-quadramentos burocráticos (Lúcia Bruno); de sua prática literária que não poupava críticas a qualquer forma de autoritarismo (Antonio Ozaí da Silva); do acadêmico diferenciado, fora do percurso de rotina, sem pergaminhos de escola, um judeu sem templo, um militante sem partido, um intelectual sem cátedra (Paulo-Edgar Almeida Resende); do combatente pela edu-cação, cujos compromissos eram as idéias e os princípios (Agueda Bernadete Bittencourt Uhle) que exi-giam a responsabilidade social dos pesquisadores, dos quais Maurício cobrava a finalidade do conhecimen-to, cuja ausência se constitui em fa-tor de delinqüência acadêmica (Ra-quel Pereira Chainho Gandini); do “descolonizador” da história, que
trabalhou com Kantilya e clássicos orientais pouco lidos no Ocidente (Paulo Ribeiro da Cunha); de um so-cialista libertário que buscava no diá-logo de Marx com Weber a crítica da infra-estrutura e da superestrutura do capitalismo (Pedro Roberto Ferreira); do leitor impaciente quanto aos fun-damentos das harmonias administrati-vas entre capital e trabalho (Felipe Luiz Gomes e Silva). Enfim, de uma obra que provoca reflexões sobre a ausên-cia da política no contexto contem-porâneo (Franklin Leopoldo e Silva). A terceira parte do livro trata da-quilo que foi a mais importante ca-racterística de Maurício: a coerência entre teoria e prática, sua práxis re-volucionária. Marinice Fortunato fala do professor interessado nos alunos, da empatia, da humildade e da soli-dariedade social; José Carlos Orsi Monel fala da solidariedade não so-fística de Maurício com os movimen-tos populares de cunho autogestio-nário, de seu engajamento não só teó-rico, mas de sua ação; Iolanda Toshie Ide fala sobre solidariedade de gêne-ro e do compgêne-romisso de Maurício com a luta dos direitos humanos, ten-do em Rosa Luxemburgo o exemplo entre teoria e prática; Liliana Rolfsen Petrilli Seguini fala do amigo, do in-telectual intransigente, da pessoa ge-nerosa e irreverente e do compromis-so ético de manter vivo seu pensamen-to; Célia Aparecida Martins fala da voz não silenciada, que não foi destruída por nenhuma objetivação ou cotidia-nização alienadora; José Carlos Brito fala das lutas autogestionárias, tendo por referência o ABC paulista e, junto com Cleodon Silva, lembra o interes-se e o envolvimento de Maurício na linha de frente do combate em favor das livres e independentes formas de organização.
Ler esse livro de depoimentos e análises sobre Maurício Tragtenberg é ler uma história de vida que parece
rara nos dias de hoje. No momento em que o “centrismo” político toma conta da sociedade, em que o confor-mismo abraça a academia, em que a crítica é tratada como “denuncismo” diante dos “pragmatismos solucionis-tas”, torna-se necessário resgatar a obra de Tragtenberg como exemplo de uma luta que não faz concessões a qualquer tipo de violência, pois, como ensina Hanna Arendt, “quando tudo é permitido, tudo é possível”.
Quando tantos e tão importantes professores se unem para homena-gear um outro professor, em uma rea-lidade que não é dada a esse tipo de reconhecimento e delicadeza entre pares, normalmente voltados a suas autopromoções, é porque o home-nageado é de tal sorte referenciado que transcende à própria lógica do “complô de belas almas”. O livro que resulta dessa homenagem talvez fos-se encarado pelo homenageado como desnecessário ou exagerado, mas para os que conheceram Maurí-cio Tragtenberg e para os que não o conheceram e precisam conhecer, é oportuno e preenche um vazio na qualificação daquele que foi um dos mais importantes intelectuais críticos brasileiros e que pertence para sem-pre à história do pensamento original. O livro é, na verdade, um grande pre-sente que as organizadoras e os auto-res ofereceram para todos os que acre-ditam no pensamento original, críti-co e criativo.