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Batalha das mina: o rap como território de lutas em Florianópolis

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Academic year: 2021

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BATALHA DAS MINA:

O RAP COMO TERRITÓRIO DE LUTAS EM FLORIANÓPOLIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profª. Drª. Kátia Maheirie Coorientadora: Profª. Drª Maria Juracy Filgueiras Toneli

Florianópolis 2017

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Com toda licença pra chegar, agradeço a todas as MCs que participaram desta pesquisa e também àquelas que por diversos motivos não puderam participar, mas que estão aqui presentes da mesma forma. Pelas conversas tão calorosas e inspiradoras, por todas as trocas cheias de afeto e por tudo que eu e outras tantas pessoas aprendemos com vocês. À Batalha das Mina e todas as pessoas que fazem acontecer e dão vida a esse movimento que me envolveu em muitos braços e abraços para muito além deste trabalho e dos muros da universidade. Máximo respeito sempre!

Às professoras orientadoras Katita e Jura,agradeço pela postura questionadora e combativa que nos incitam a traçar roteiros situados e desviantes.Vocês tornam a universidade um espaço mais pulsante e engajado, incansavelmente alertando acerca do compromisso ético-político de nossas trajetórias acadêmicas e também na vida.

À Lia Schucman, pessoa e pesquisadora admirável que me auxiliou imensamente trazendo valiosas contribuições, sempre de maneira muito atenciosa. À Angela Souza, pela solícita aceitação em participar dabanca e pela oportunidade de ter conhecido seu maravilhoso trabalho.

À Jana, minha companheira, agradeço pela parceria nesta entrega persistente do processo de escrita e de todos os sábados de batalha. Neste emaranhado de desafios e dilemas, me encorajou firmemente a não desistir. Amo você!

À minha amada irmã Helen, que sempre amplia o olhar para além do óbvio. Aos meus pais João e Vera, pelos tantos perrengues para que eu pudesse chegar até aqui, agradeço pela amorosidade e paciência. Ao meu irmão, cunhada e sobrinhos queridos!

À Aninha, amiga bafa da infância que eu amo de paixão, me ajudou a segurar essa marimba, em meio às tantas crises da vida. Às gays, às bi, às trava e às sapatão que me trazem força e inspiração: Lari, Maiara, Vulcânica, Carol, Mel, Lyara, Abreu, Alê, Lucas, Maitê, assim como as migas da casinha Fê, Gisah, Barb e Rena. Agradeço muito às amigas e vizinhas Josi e Ana, pelas acolhidas em sua casa e pelo apoio:vocês foram fundamentais neste processo.

Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e à CAPES, que possibilitou a realização dessa pesquisa.

A todas as pessoas que se implicam, cotidianamente, em questionar e transformar o que está posto, buscando no agora – e não num horizonte longínquo e inalcançável – a construção de outro mundo

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silenciam, invisibilizam. Com vocês, onde quer que estiveram, estejam ou estarão, torna-se possível o sentimento humanamente acalentador de que não estamos sós frente a tantas injustiças que se agigantam em tempos conservadores.

Sei que a universidade abarca em si contradições e hipocrisias, produtos de todo um processo histórico. Ao mesmo tempo, também constato que após esta trajetória de pesquisa, não mais serei a mesma. Agradeço por todas as transformações possíveis e o quanto elas têm reverberado nas relações cotidianas e nas escolhas profissionais, levando comigo,a partir de um lugar situado, a responsabilidade e o compromisso de fazer algo diante de tudo que vi, vivi e aprendi na e com a Batalha das Mina.

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Tomando a sua casa e tocando lá no seu radin Se o que eu digo lhe fizer algum sentido É porque o sangue de rainha ginga e ainda corre em mim Simples assim, os meios irão justificar os fins E as manas e minas que colam comigo também tão afim De ter sua voz ouvida e não mais oprimida Equalizada por todos os cafundós e confins Eu fui até o Pelorin pra entender O que já nasci sabendo, mas preciso comprovar pra crer Que todo axé que faz minha pele tremer É a força que me fará transcender pra acender Uma fagulha ou um pavio que transforma em uma revolução Um lacre primaveril É engraçado, mas não é brincadeira, viu? Não toleramos mais o seu xiu Ouça-me, ouça-me, ouça-me Vai, presta atenção Ouça-me, ouça-me, ouça-me Vai, presta atenção Ouça-me, ouça-me, ouça-me Eu tentei falar baixinho, mas ninguém me ouviu Eu tentei com carinho e o sistema me agrediu Então eu grito! Elevo o meu agudo ao infinito Pra mim não tem dilema Se tá difícil eu explico Não têm coragem de reconhecer o próprio erro Não são capazes, pois querem sair e ainda saem ilesos Eu sou a resposta e a pergunta do seu desespero O que eles tem de idiotice meu som tem de peso Meu rap é crespo, melanina nesse rolê Meu rap é bom, o que eu já não faço questão de ser Eu vou ser ruim que é pra você perceber Se não me dão valor, ceis vão pagar muito caro pra ver A revolução será crespa

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Doa a quem doer A revolução será crespa E você pode crer Não podem conter, não podem conter (MC Tássia Reis)

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Esta dissertação tem como foco problematizar as experiências de jovens mulheres MCs e as práticas da Batalha das Mina, batalha de rap que acontece na cidade de Florianópolis – SC. A partir de análise crítica e situada dos enunciados produzidos pelas MCs, buscou-se identificar as tensões de gênero intersectadas com raça e classe existentes nesta cena. Os enfrentamentos às desigualdades vivenciadas em outras batalhas hegemonicamente masculinas e heteronormativas foram ponto de partida para criação de um espaço que priorize o duelo de rimas feito apenas por mulheres rappers. Longe de instaurar homogeneidade e consenso, trata-se de um espaço marcado pela pluralidade de pertencimentos e pela coexistência das diferentes demandas de grupos específicos. A convivência entre jovens mulheres negras e brancas instaura tensionamentos significativos que interrogam construções hegemônicas acerca do termo “mulheres” e de discursos que ignoram ou negam sistemas de dominação como o racismo e a branquitude. Assim, a construção de um “nós” como subjetividade coletiva potencializada pela dimensão estética é uma trama tecida a partir da articulação e negociações das diferenças e marcada pela inerradicabilidade das relações de poder. As práticas na Batalha das Mina possibilitam deslocamentos das posições de sujeitos e subjetividades de modo a criar condições para ações políticas que provoquem fissuras nos modos instituídos de existência, de produção de conhecimentos, dos usos da cidade, de participação política, de ação coletiva e redes de sociabilidade.

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Esta disertación tiene como foco problematizar las experiencias de jóvenes mujeres MCs y las prácticas de la Batalla de las Mina, batalla de rap que ocurre en la ciudad de Florianópolis - SC. A partir de análisis crítico y situado de los enunciados producidos por las MC, se buscó identificar las tensiones de género intersectadas con raza y clase existentes en esta escena. Los enfrentamientos a las desigualdades vivenciadas en otras batallas hegemónicamente masculinas y heteronormativas fueron punto de partida para crear un espacio que priorice el duelo de rimas hecho sólo por mujeres rappers. Lejos de instaurar homogeneidad y consenso, se trata de un espacio marcado por la pluralidad de pertenencias y por la coexistencia de las diferentes demandas de grupos específicos. La convivencia entre jóvenes mujeres negras y blancas instaura tensos significativos que interroga construcciones hegemónicas acerca del término "mujeres" y de discursos que ignoran o niegan sistemas de dominación como el racismo y la branquitud. Así, la construcción de un "nosotros" como subjetividad colectiva potencializada por la dimensión estética es una trama tejida a partir de la articulación y negociaciones de las diferencias y marcada por la inerradabilidad de las relaciones de poder. Las prácticas en la Batalla de las Mina posibilitan desplazamientos de las posiciones de sujetos y subjetividades para crear condiciones para acciones políticas que provoquen fisuras en los modos instituidos de existencia, de producción de conocimientos, de los usos de la ciudad, de participación política, de acción colectiva y redes de sociabilidad.

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This dissertation focuses on problematizing the experiences of young women MCs and the practices of ‘Batalha das Mina’, rap battle that takes place in the city of Florianópolis - SC. Based on a critical analysis of the statements produced by the MCs, it was sought to identify the gender tensions intersected with race and class in this scene. The confrontations with the inequalities experienced in other hegemonically masculine and heteronormative battles were the starting point for creating a space that prioritized the rhyming duel made only by female rappers. Far from establishing homogeneity and consensus, it is a space marked by the plurality of belongings and the coexistence of the different demands of specific groups. The coexistence between young black and white women establishes significant tensions that question hegemonic constructions about the term "women" and discourses that ignore or deny systems of domination such as racism and whiteness. Thus, the construction of a "we" as collective subjectivity enhanced by the aesthetic dimension is a fabric woven from the articulation and negotiation of differences and marked by the ineradicability of power relations. The practices at the ‘Batalha das Mina’ allow displacement of the positions of subjects and subjectivities in order to create conditions for political actions that provoke fissures in the established ways of existence, of knowledge production, of the uses of the city, of political participation, of collective action and networks of sociability.

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Figura 1 Batalha das Mina ... 84

Figura 2 Aniversário da Batalha das Mina ... 89

Figura 3 MC Selva e MC InSeta ... 91

Figura 4 Tem mina, respeita ... 98

Figura 5 MC Ka, no freestyle da campeã ... 101

Figura 6 MC Mooa. ... 138

Figura 7 Mate o branco dentro de você ... 139

Figura 8 A mídia é deles, a rua é nossa. Preta Artista Resista .. 169

Figura 9 Abraço coletivo que encerra a batalha ... 179

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2. Caminhos da Pesquisa ... 26

2.1 Entrevistas, rodas de conversa e participantes ... 29

2.1.1 A devolutiva ... 36

3. Contexto histórico- político de emergência da cultura hip hop . 39 4. “Respeita as mina” – gênero, feminismos e interseccionalidades 48 5. Raça, racismo e branquitude ... 59

5.1 O contexto do sul e de Florianópolis ... 66

6. “Batalha das Mina, quê significa?” ... 70

6.1“Fala memo!” – a criação da Batalha das Mina ... 70

6.1.1 As mana, as mina, as mona, os mano: só colar ... 84

6.2 “É nóis por nóis, tá ligada?” – tensões entre igualdade e diferença 89 7. “Não sou moreninha, nem sou mulata” ... 108

7.1 Tensões entre classe, raça e gênero no contexto da batalha ... 108

7.2 “A fala de cada preta é importante pro branco ouvir” ... 123

8. “Como se fosse a história se reescrevendo” ... 141

8.1 A batalha no contexto do golpe ... 141

8.2 Batalha das Mina como movimento estético-político ... 157

9. Considerações Finais ... 180

Referências ... 184

Discografia ... 198

Anexos... 199

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1. INTRODUÇÃO

Pesquisar implica confrontar-se constantemente com escolhas, exigindo coragem para abrir algumas portas e, por consequência, fechar tantas outras – tarefa desafiadora, sobretudo para aquelas que, assim como eu, sentem-se instigadas a percorrer tantos caminhos diferentes. Imersa no labirinto, este emaranhado de caminhos possíveis, peço licença (e paciência) para compartilhar esta trajetória desviante, na tentativa de traduzi-la em palavras.

A proposta inicial de pesquisa, que abordaria um projeto realizado com as mulheres do Presídio Regional da Grande Florianópolis,tornou-se inviável tendo em vista alguns conflitos institucionais que dificultaram a permanência no campo. Sendo o contexto prisional um território marcado por uma coreografia rígida dos corpos, quaisquer movimentos interpretados como desviantes são rapidamente capturados e banidos - lógica punitiva que opera em toda instituição carcerária.

Tendo me colocado frente a outras possibilidades e depois de certo tempo insistir sem sucesso em temáticas concernentes ao contexto prisional, às criminalidades e à segurança pública – principais interesses sobre os quais me debrucei em produções teóricas anteriores, acabei lançando-me neste deslocamento de “campo” de pesquisa: dos presídios para as ruas e, por que não dizer, das práticas de assujeitamento às práticas de resistência.

Viver/estar/morar em Florianópolis me mobiliza de várias formas e estas afetações foram se transformando e compondo diferentes nuances desde que cheguei à cidade. À medida que meu corpo foi sendo inscrito pelas experiências vividas na cidade e também inscrevendo experiências na mesma, passaram a coexistir aos encantamentos iniciais inúmeras inquietações de diferentes ordens, como o questionamento dos fluxos cotidianos tão homogêneos; as inúmeras dificuldades em me manter financeiramente na “Ilha da Magia1”; o incômodo com a

1 Florianópolis também é conhecida por Ilha da Magia, supostamente por conta da literatura oral que perpassou algumas gerações, em que estórias de pescadores apresentavam em sua narrativa a presença de bruxas e feitiçarias. Atualmente, a expressão “ilha da magia” é um chamariz de marketing turístico que visa exaltar atributos de deslumbre em relação à cidade e denota também o elevado custo de vida que existe principalmente na parte insular do município. Há uma pichação em uma das avenidas na cidade que diz o seguinte: “A magia da ilha depende de quanto cabe no seu bolso”.

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escassez de espaços públicos de cultura, lazer e convivência para além das praias; o asco frente à lógica higienista que afeta inúmeras vidas em prol da manutenção da cidade “cartão-postal” elitizada e embranquecida; e não há como não dizer, na condição de usuária do transporte coletivo, da revolta diária com a (i)mobilidade urbana que dificulta enormemente a possibilidade de transitar pela cidade.

Sendo mulher branca, universitária, cisgênera, atualmente de classe média e lésbica, minhas experiências estão indissociavelmente atravessadas por este lugar, seus privilégios e privações; se eu fosse uma mulher trans, negra, indígena ou ainda um homem, por exemplo, muito provavelmente elencaria outros aspectos da relação com a cidade, os quais posso me aproximar, supor ou até mesmo conhecer, por conta das relações de alteridade tão caras a mim e às minhas escolhas profissionais e acadêmicas. Porém, trata-se de vivências que não marcaram o meu corpo e que não compuseram diretamente minha trajetória.

Considerando a bricolagem destas múltiplas categorias de identidades que me localizam – ainda que estas identidades possam transcender às categorias aqui expostas – e reconhecendo esses lugares e todas as implicações que decorrem de ocupá-los (ou de recusá-los,quando e se possível), é que se estabelece o ponto inevitável de onde posso partir– “começar assim não por um continente, um país ou uma casa, mas pela geografia mais próxima – o corpo” (Adrienne Rich, 2002, p.17).

Atenta às formas de transgressão dos fluxos consensuais dos corpos no espaço urbano, fui capturada pelos encontros da batalha de rap da Batalha da Alfândega, que acontece todas as quintas-feiras à noite no centro da cidade, na região do Largo da Alfândega - local de intensa circulação durante o dia e à noite de convívio e moradia para pessoas em situação de rua. Em Florianópolis e grande Florianópolis, há batalhas de rap em vários locais, havendo pelo menos uma para cada dia da semana: batalha das Mina, batalha da Central,batalha da Costeira, do Norte, da Bêra, batalha da Palhoça. Ada Alfândega foi a primeira com a qual tive contato, sendo a princípio, a batalha mais conhecida e freqüentada da ilha, constituindo-se como um espaço bastante heterogêneo que reúne tanto jovens moradores (as) de bairros periféricos em Florianópolis2, bem como também jovens de classe média e universitários.

2 Em Florianópolis, muitos bairros pobres estão distribuídos difusamente no

espaço geográfico da cidade, sem se localizarem necessariamente nas extremidades, diferindo, por exemplo, dos bairros na parte continental. Neste

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O rap é uma produção cultural urbana notoriamente das periferias das grandes cidades – o que não quer dizer uma exclusividade das mesmas – e através dele que muitos jovens constituem espaços de sociabilidades, criando circuitos de trânsito a partir deste gênero musical, como acontece com as batalhas (Souza, 2009). Portanto, a questão do espaço urbano embora não seja foco, é pano de fundo deste estudo, haja vista a geografia urbana tornar-se palco onde se desenrola a cena das batalhas como forma de ocupação do espaço público que por sua vez,produz disputas concretas e simbólicas, bem como versa sobre o pertencimento territorial destas e destes jovens (Sawaia, 1995).

As batalhas de rap, batalhas de freestyle ou batalhas de MC´s são eventos que existem de norte ao sul do país, cada qual com suas especificidades conforme os contextos nos quais se inserem, mas com um formato semelhante. Em geral, as batalhas consistem em uma sequência de duelos de rimas improvisadas em um flow que pode ser à capella ou acompanhado de beat box3. As batalhas podem ser divididas em dois momentos: a batalha de conhecimento e a batalha de sangue; há lugares, porém, em que não há a primeira e em outros não há a segunda. Antes de tudo começar, alguém passa com uma lista e pergunta quem quer participar da batalha – para “montar a chave”, que é o esquema das sequências de quem irá duelar com quem.

Na batalha de conhecimento, a sugestão de temas pelo público que assiste pode ser feita antes ou durante a batalha, antes do momento de iniciarem as rimas. No centro da roda, os (as) MCs tiram “par ou ímpar” para ver quem irá começar e o tempo da rima é cronometrado por alguém – entre trinta e cinco a quarenta segundos. A cada duelo é feita a votação e a contagem dos votos conforme os gritos e palmas ou

sentido, a noção de periferia não se mantém em seu sentido estritamente geográfico, aludindo à condições de vulnerabilidades e subalternidades produzidas em territórios que são espacialmente segregados, marcados pelo estigma do perigo e da violência, e mantidos à margem das possibilidades de acesso e benefícios a serem providos pelo Estado, em contraposição ao extremo controle penal sobre os mesmos (ver discussão no tópico 7.1).

3Beat box, a partir do inglês é caixa de batida da própria cavidade bucal, é a

percussão vocal do hip hop. À capella é apenas o vocal sem o acompanhamento do beat ou eletrônico, mas ainda assim com numa cadência rítmica específica do rap. Flow que em inglês significa fluxo, corrente é também chamado de levada, que é maneira como a pessoa que está rimando encaixa seus versos na batida (que pode ser feita com o beat box ou som eletrônico), que varia de pessoa para pessoa.

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então as mãos levantadas. São dois “rounds” de duelo, porém caso haja empate nestes dois tempos, irão improvisar num terceiro “round”. Quem for ganhando mais votos, duelará no final da batalha para ficar apenas um (a) ganhador (a).

A batalha de sangue não tem tema definido, o duelo é livre, mas o esquema de competição é o mesmo da batalha de conhecimento. Na batalha de sangue, o papo é reto, os (as) MCs disparam ataques verbais entre e resumidamente, “leva” a batalha de sangue quem “esculacha” melhor. Teperman (2011) afirma que no Brasil, há diversas manifestações que também são compostas de desafios cantados, como o repente, o cururu, a embolada e o partido-alto. Da mesma forma como acontece nas batalhas de sangue – mais comuns que as batalhas de conhecimento – a proposta destas manifestações, em geral, é a troca de injúrias com uma relação jocosa, que agita o público provocando riso, estreitando o vínculo entre humor e violência.

Quando passei a frequentar as batalhas em dezembro de 2015, já com a pretensão de realizar a pesquisa neste campo-tema, considerava como possibilidade de pesquisa analisar as narrativas sobre as intervenções policiais realizadas nas batalhas de rap, por saber de antemão, sobre a tentativa constante de coreopoliciamento4 destes corpos (Lepecki, 2011). Por não haver conseguido extinguir a existência da batalha da Alfândega – diferentemente, por exemplo, do que aconteceu com a capoeira e o reggae, as instituições de segurança da cidade passaram a tentar “empurrar” o local da batalha para lugares de menor circulação e proibiram o uso da caixa de som e microfone.

Todavia, no decorrer das minhas participações, percebi que o que estava emergindo muito fortemente no momento era uma batalha dentro da própria batalha, a qual eu, na condição de pesquisadora, não poderia ignorar: a batalha das “minas” pelo seu espaço dentro do movimento, criando tensões e disputas significativas.

Em uma das batalhas em que estive presente, após alguns duelos nos quais apenas uma mina participou rimando, duas jovens foram até o centro da roda e apontaram fatos que expressavam desigualdades, tal como a contagem dos votos ser diferente quando havia uma “mina” rimando. Disseram ainda que, por mais que a maioria delas não

4O conceito de coreopoliciamento de Lepecki (2011) refere-se à uma fusão da

ideia de coreografia com o policiamento dos corpos na cena do espaço público, de modo que a circulação imposta a determinados grupos e que prevê a coação e a desmobilização política é reificada como natural, determinando a forma como seus corpos deveriam ou não mover-se na cena urbana.

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estivesse ali fazendo rima, elas não iam pra batalha para “paquerar” ou namorar e que elas queriam ouvir rap assim como todo mundo, participar da batalha. Nisso, outras duas jovens também ocuparam o centro da roda e disseram que elas eram constantemente desrespeitadas ali e que dava vontade de nem vir mais. Essas duas cenas geraram um alvoroço, risadas, alguns questionando a atitude das garotas, minimizando ou ridicularizando suas atitudes; outros, porém, concordavam.

São cenas que aqui servem para ilustrar o contexto com o qual me deparei logo nas primeiras vezes em que compareci à batalha já com a intenção da pesquisa. Embora o rap, assim como o movimento hip hop, seja marcadamente reconhecido pelo seu posicionamento de engajamento e pelas posturas de contestação, de fortalecimento da identidade racial e da denúncia de problemas sociais, dentro do movimento há também forte manutenção e reprodução das desigualdades de gênero.Tais questões são corroboradas por trabalhos como de Maria Natália Rodrigues (2013), que discute em sua dissertação a vivência de jovens mulheres rappers em Recife, entre outros (Matsunaga, 2008; Said, 2007, Tavares, 2012).

Em Florianópolis, houve alguns desdobramentos interessantes neste sentido e que ocorreram após o mapeamento e escolha do “campo-tema” (Spink, 2008) desta pesquisa: em janeiro de 2016, algumas mulheres que participavam de outras batalhas da cidade, sobretudo da Alfândega, criaram outro movimento chamado Batalha das Mina, que passou a acontecer aos sábados, de forma a criar um espaço para as mulheres interessadas em improvisar, rimar e ouvir rap. Homens podem participar na roda final de freestyle, em que há livre improviso, fazer beat box, votar, porém, a prioridade do duelo de rimas na batalha de conhecimento é das MCs mulheres (cis ou trans) –e na Batalha das Minas não há batalha de sangue.

Se, na Batalha da Alfândega geralmente participam em torno de duas ou três MC´s mulheres – às vezes nenhuma – na Batalha das Mina houve até dezesseis MC´s mulheres duelando, incluindo-se mulheres trans5, no período em que estive acompanhando como pesquisadora.

5O termo mulheres trans inclui travestis, transexuais e transgêneras e é uma

abreviatura referente à transgeneridade (trans) que diz respeito às identidades de gênero que não correspondem ao gênero compulsoriamente designado ao nascer, como é o caso das pessoas cisgêneras em que há essa correspondência normativamente esperada.

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Criou-se um território que contribui para que mais mulheres rappers sintam-se à vontade para duelar, para se expressarem mais abertamente sem se sentirem coagidas, desqualificadas ou ridicularizadas. Pode-se supor que a segregação como forma de proteção entre “semelhantes”–a partir de uma dada categoria, que neste caso seriam mulheres rappers ou que se interessam por rap, cria uma territorialidade que instaura maiores possibilidades de consenso, de receptividade e acolhimento, ao mesmo tempo em que teve que ser produzida a partir da exclusão e da desqualificação social de determinadas diferenças (Perucchi, 2008).

Discorrendo sobre os enfrentamentos vividos pelas mulheres em suas inserções no rap, MC Bárbara Sweet, rapper mineira que frequenta batalhas no Brasil inteiro e que foi protagonista de um vídeo que “viralizou” nas redes sociais em que responde na rima a insultos machistas na Batalha de Santa Cruz– SP6, afirma em entrevista que as

batalhas são espaços sexistas e segregadores e, segundo ela, “todas as mulheres do rap tem histórias de machismo pra contar” (Arraes, 2015, s/p). Basta conhecer algumas letras de raps nacionais para identificar como as representações de gênero majoritariamente constituem-se de maneira misógina e sexista em relação às mulheres – havendo exceções sobretudo quando as “mulheres” representadas façam referência às próprias mães ou à maternidade (Tavares, 2012).

Todavia, antes de prosseguir, é fundamental destacar que o sexismo, machismo e a misoginia7 são aspectos estruturantes de nossa

sociedade, de modo que a transformação das diferenças biológicas em desigualdades de gênero permeia diversos grupos sociais do mundo

6 Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=Gl5JRbih_Ac

7 Embora não tenha encontrado na literatura científica a diferenciação entre os

termos machismo e sexismo, sendo o primeiro atribuído às feministas latino-americanas e o segundo as feministas estadunidenses, é possível compreender que ambos versam sobre sistemas de significações que conferem valores hegemônicos e superiores às masculinidades, estruturando as relações de gênero a partir de pressupostos que legitimam lugares sociais diferenciados, discriminação, coerção, abusos sexuais, estupro, desqualificação, violências e mortes sobre grupos que apresentam identidades de gênero não correspondentes aos padrões hegemônicos masculinos. A misoginia especificamente é caracterizada pela repulsa, ódio ou desprezo pelas mulheres, por serem mulheres, amparando-se, portanto no machismo e no sexismo como sistema de normas regulatórias que fomentam crenças a respeito de como uma mulher deve ser, como deve se comportar, como deve se vestir, quando e o que deve falar e assim por diante.

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inteiro, há tempos remotos. Sendo assim, no que se refere à produção musical brasileira, é um imenso equívoco atribuir, exclusivamente, a criação e exposição de letras machistas ao rap e principalmente ao funk, como é costumeiro.

A rotulação de papéis considerados “femininos” ou “masculinos”, a desqualificação, a objetificação das mulheres, a dominação masculina, são elementos que podem estar presentes no rap e no funk assim como também nas letras dos sertanejos universitários, do rock, do samba, da música popular brasileira, entre outros. Porém, os jogos de visibilidades e/ou invisibilidades sobre tais questões nos diversos gêneros musicais operam de formas diferentes, tendo como efeito a localização estigmatizante e depreciativa sobre determinados grupos, mesmo que tais discursos circulem e sejam produzidos – sutil ou explicitamente – por toda a sociedade. No rap e no funk, atravessamentos de classe e raça projetam estes dois gêneros musicais para a fogueira das críticas.

Embora o desgosto generalizado relativo a gêneros musicais como o rap e o funk – muitas vezes excluídos, inclusive, da atribuição da categoria “música” – possa ser comumente justificado pelo desapreço ao ritmo, letra, harmonia/melodia, ou seja, características estéticas constitutivas da atividade musical, é imprescindível discutir que tais gêneros estão também atrelados aos grupos sociais que os produzem.Sendo a música uma atividade cultural produzida e compartilhada socialmente, como afirma Kátia Maheirie (2003), gosto e desgosto musical tratam-se também de construções e aprendizados atravessados por questões morais e éticas, configurando-se, sobretudo, como indicadores de diferenças – como de classe, gênero e raça.

Oliveira (2008) que em sua tese propôs estudar como diferentes grupos de ouvintes e músicos entendem, usam e falam sobre música, afirma que conforme seu estudo, mesmo quando havia uma tendência ao ecletismo por parte dos participantes da pesquisa, os gêneros musicais mais preteridos foram os que são considerados como de origem negra marcadamente produzidos por grupos minoritários, como o rap, funk e pagode, diferentemente do samba, jazz, blues e soul que podem ser considerados mais “sofisticados” e/ou de “elaboração mais complexa”. Segundo o autor,

os desgostos funcionaram como um meio essencial para se acessar questões relativas a relações raciais e inter-étnicas, indicando possíveis processos de desvalorização dos produtos culturais dos grupos com menor poder

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social e da assimilação destes por parte dos grupos dominantes (Oliveira, 2008, p. 171).

Embora este trabalho esteja necessariamente enviesado pela questão das relações de poder no que tange à hegemonia masculina – assim como a heternormatividade que demarca os espaços do rap assim como em todo movimento hip hop, interessa aqui debruçar sobre o fato de que tais circunstâncias não são vivenciadas sem resistências. Cada vez mais mulheres têm produzido visibilidades na construção político cultural do movimento em seus mais diferentes gêneros artísticos. Dentro do rap, por exemplo, compor letras, fazer mixagem, beat box, rimar, falar no microfone, ocupar o centro da roda, duelar – são posições que contestam o lugar a elas comumente atribuído e desafiam a hegemonia masculina do movimento. Essas possibilidades de inserção, portanto, não ocorrem sem enfrentamentos.

Tricia Rose (1994), em seu estudo sobre rappers negras norte-americanas aponta para a postura desafiadora das mesmas, de modo que as performances consideradas “agressivas” – além de serem construtos estigmatizantes a respeito das mulheres negras, constituem-se como estratégias de luta perante os discursos de raça e gênero perante ao código estético hierárquico que as reconhece como objetos sexuais. A autora, no entanto, problematiza o fato de que as rappers mulheres não marcam presença apenas para se contrapor ao discurso machista, sexista e misógino que existe no movimento. Este reducionismo ignora que o modo de se expressar através do rap, além de ser uma atividade considerada prazerosa e fundamental para suas existências, exige a necessidade do domínio de códigos importantes e específicos que possibilitam a produção artística, além de ser uma forma construírem coletivamente conhecimentos contra-hegemônicos.

A formação de grupos exclusivos de mulheres dentro do movimento hip hop é aspecto também relatado na pesquisa coordenada pela professora Jaileila de Araújo Menezes (2010), intitulada “Juventude e Gênero no contexto do Movimento Hip hop”. No entanto, o que se evidencia é que, longe de instaurar uma homogeneidade e consenso, estes espaços são heterogêneos, marcados pela pluralidade de pertencimentos e pela coexistência das diferentes demandas de grupos específicos.

A convivência entre jovens mulheres negras e brancas instaura tensionamentos significativos que interrogam tanto o termo “mulheres” como categoria unívoca bem como acerca da legitimidade do movimento considerado como uma cultura negra, atentando para o

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racismo e branquitude como elementos que podem constituir este espaço.Assim,a construção de um “nós” como subjetividade coletiva potencializada pela dimensão estética é uma trama tecida por conflitos e diferenças que não suprime as relações de poder existentes.

A multiplicidade de reivindicações em nome das diferenças – raciais, étnicas, de gênero, de classe, entre outras – expressa a necessidade das lutas por reconhecimento (Fraser, 2006) que caracterizam a natureza antagônica da política (Mouffe, 1996). Este antagonismo instaura rupturas na possibilidade de articulações consensuais, haja vista a inevitabilidade das contradições e conflitos que compõem as fronteiras instáveis do contemporâneo e que embaraçam a lógica racionalista do projeto democrático.

Tendo isto, orientei-me por alguns questionamentos: Quais estratégias de enfrentamentos são acionadas pelas mulheres rappers de Florianópolis para produzir e disputar seu espaço e quais os efeitos destas disputas? Sendo um espaço marcadamente heterogêneo, como se articulam e negociam as diferenças raciais e de classe? Quais lutas, portanto, são possíveis de serem mobilizadas na Batalha das Mina? A partir destas interrogações, busco problematizar as experiências de jovens mulheres que participam de batalhas de rap na cidade de Florianópolis e que contribuem para a existência da Batalha das Mina.

Por meio da análise dos enunciados8 produzidos pelas rappers, me propus a identificar os enfrentamentos vivenciados a partir das tensões de gênero interseccionadas com raça e classe existentes neste espaço, bem como compreender como a mesma se constitui enquanto movimento estético político, diante dos posicionamentos das jovens mulheres e de como se configura o próprio movimento.

Problematizar as experiências alia-se ao pressuposto de que nenhuma experiência traz em si a comprovação de uma verdade ou evidência que poderá legitimar determinadas categorias de sujeitos e naturalizar as diferenças. Joan Scott (1998) traz contribuições fundamentais neste sentido, ao criticar o projeto de tornar experiências

8 Em termos gerais, a partir das proposições foucaultianas, os enunciados não

devem ser considerados apenas como frases ou proposições. O enunciado possui um caráter de função a partir de sua historicidade, ou seja, inscreve-se como resultado de processos históricos. Portanto, sua materialidade é constitutiva e se inscreve em uma dada temporalidade. Além disso, os enunciados não são unidades independentes: vinculam-se também a outros enunciados, que dentro de uma injunção histórica, constituem os discursos (Giacomoni e Vargas, 2010).

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visíveis sem posicioná-las em seu caráter histórico, discursivo e constitutivo. Como propõe a autora, não se tratam de indivíduos que têm experiência, mas sim de sujeitos constituídos pelas experiências. Compreender a experiência como acontecimento discursivo não significa, segundo a autora, privar ou negar a agência dos sujeitos, mas considerar que há condições de existência: “essas condições permitem escolhas, muito embora elas não sejam ilimitadas” (Scott, 1998, p. 320).

A organização do trabalho está dividida em quatro capítulos iniciais que abordam questões conceituais importantes com as quais dialogarei: percursos metodológicos, condições histórico-políticas de possibilidades de emergência do movimento hip hop; a historicidade de conceitos como gênero, feminismos e interseccionalidades; contextualização dos termos raça, racismo e seus diferentes arranjos históricos, trazendo também as particularidades do contexto de Florianópolis.

Posteriormente, seguem os capítulos dedicados à análise:

No capítulo “Batalha das Mina, que significa?”apresentarei a trajetória que impulsionou a criação da Batalha das Mina, as estratégias de enfrentamentos às desigualdades que compuseram tal percurso,tensionando questões acerca das identidades e da relação imbricada entre igualdade e diferença.

No capítulo “Não sou moreninha, nem sou mulata” abordarei as especificidades interseccionais das tensões de gênero e raça no contexto da batalha e como se articulam as diferenças perante tentativas de construção da luta feminista e antirracista.

No último capítulo “Como se fosse a história se reescrevendo” busco elucidar a Batalha das Mina como movimento estético-político, visando compreender a relação estabelecida pelas MCs com o contexto macropolítico para posteriormente ampliar as concepções acerca da política e do político. Problematizarei como a dimensão estética engendra-se como elemento crucial nas estratégias de luta, que envolvem a articulação das diferenças e as potencialidades dos conflitos.

É importante apontar que embora haja um leque ampliado de pesquisas sobre o rap e movimento hip hop – que cada vez mais têm se proliferado, Vivian Weller (2005) aponta que há uma lacuna significativa no que diz respeito à presença feminina nas “subculturas juvenis” 9. Em estudos sobre manifestações culturais juvenis como o

9 A autora argumenta acerca de sua escolha por esse termo, segundo ela bastante

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movimento hip hop ou outros movimentos estético-musicais de galeras e/ou gangues, a invisibilidade das jovens mulheres apenas é rompida quando relacionadas às temáticas concernentes à afetividade, sexualidade ou maternidade, ou ainda estando majoritariamente vinculadas às figuras masculinas (Weller, 2005).

Entre o estudo da autora e a pesquisa atual já se passou mais de uma década, todavia, em busca realizada na base de dados BVS-Psi e Portal CAPES alternando os caracteres “mulheres”, “rap”, “hip hop”, “meninas”, foram encontradas no total sete pesquisas com este recorte temático10 contrapondo-se à extensa produção sobre o movimento hip hop (que incluindo teses e dissertações somam mais de cem trabalhos), corroborando com a lacuna sinalizada por Weller (2005). Tal lacuna não se evidencia apenas nas pesquisas científicas como também em outras formas de produção de conhecimento mais acessíveis, como documentários, matérias jornalísticas e televisivas ou outros relatos sobre as culturas juvenis. Embora Teperman (2011) tenha dedicado um capítulo de seu trabalho à participação de mulheres MCs em sua análise etnográfica da batalha de Santa Cruz em São Paulo, este não foi seu foco de estudo. Até o momento, portanto, não foram encontradas pesquisas que abordem a construção de uma batalha de rap feita por jovens mulheres.

produções culturais geralmente relegadas ou excluídas e sinaliza a existência uma hierarquia valorativa destas produções.

10Segue um breve panorama das pesquisas encontradas com o recorte

“mulheres” e “rap”: a dissertação de Mariana Lima (2005) discute a inserção das mulheres no rap, abordando a participação indireta das mulheres no papel de mães, irmãs e namoradas dos homens rappers, dando especial ênfase à figura materna; Priscila Matsunaga (2006) analisa as representações sociais da mulher construídas pelo movimento hip hop nas cidades de Piracicaba e São Paulo; Patrícia Souza (2006) discute a participação de mulheres no hip hop a partir de um grupo de mulheres no Rio de Janeiro; a tese de Lila Luz (2007) realizou sua pesquisa com grupos de rap em Teresina – PI; Camila Said (2007), no campo da Educação, busca compreender os significados que os grupos de rap assumem para as jovens mulheres da cidade de Belo Horizonte; Andressa Silva (2013) analisa e discute a representação das personagens femininas negras na literatura brasileira, nos gêneros de romance e rap, a partir das relações afetivas vivenciadas por elas; e por fim, Maria Natália Matias-Rodrigues (2013) discute a vivência das jovens mulheres rappers na cidade de Recife – PE.

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2. CAMINHOS DA PESQUISA

A partir de novembro de 2015 passei a frequentar duas batalhas – da Alfândega e das Mina (que iniciou em fevereiro de 2016) – e no decorrer do trabalho, fui me dedicando muito mais à segunda,sendo que além de diminuir progressivamente meu comparecimento à batalha da Alfândega, percebi em um dado momento que estava completamente implicada com o movimento da batalha das Mina. Como afirma Tânia Fonseca et al (2006, p.656): “a pesquisa não nasce, ela irrompe e nos mergulha em seu magma”.

Embora tenha havido a tentativa de manter a proposta anterior da pesquisa, quando me dei conta estava fazendo mil “corres” junto com elas, comparecendo às reuniões nas casas das rappers para definir diversos assuntos, indo atrás de equipamentos, ajudando em eventos de rap para arrecadar dinheiro, entre outras atividades. De diversas formas estive presente de modo a contribuir para que o movimento pudesse acontecer, sendo reconhecida por elas e me reconhecendo também como parte desta história – que prossegue em fluxo contínuo.

Toda uma reconfiguração do trabalho foi se desenrolando a partir desta entrega, suscitando outras questões e borrando de maneira intencional a cisão clássica entre sujeito e objeto da pesquisa, resquícios daquela “tal” objetividade científica, descorporificada, produzida supostamente por um sujeito “neutro”. Sendo assim, vivenciei, até onde foi possível e com as limitações existentes, o que Spink (2008, p.72) denomina como “duplo desafio”:

Primeiro de aprender a prestar atenção na nossa própria cotidianidade, reconhecendo que é nela que são produzidos e negociados os sentidos, e, segundo, de aprender a fazer isso como parte ordinária do próprio cotidiano, não como um pesquisador participante e muito menos como um observador distante, mas simplesmente como parte. Se o primeiro já é difícil, o segundo desafio requer a disposição de repensar muito daquilo que é presumido como central à ‘boa pesquisa científica’

Este mesmo autor acima citado traz o conceito de “campo-tema” para sinalizar a noção de que o “campo” não existe a partir da presença do pesquisador em um dado espaço, nomeando como campo a partir do

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lugar em que ele se insere. A noção de “campo-tema”é de que o próprio tema é o campo, estando em diversos micro-lugares do cotidiano e não em um lugar específico, apartado e fixo,“o lugar onde o tema pode ser visto – como se fosse um animal no zoológico” (Spink, 2008, p.36).

Considerando o “campo-tema” como um conjunto caótico de eventos fragmentados, de encontros casuais e conversas triviais que caracterizam os micro-lugares do cotidiano, a batalha das Mina, assim como as entrevistas e rodas de conversa se constituem apenas como parte destes micro-lugares que aconteceram em diferentes territórios. As participações em eventos de rap, conversas sobre rap, sobre a batalha, festas, roles, desabafos, resolução de conflitos, enfrentamentos em situações de abuso e assédio, idas ao hospital, ajudas coletivas em situação de extremas dificuldades, caronas, elaboração de projetos e parcerias artísticas foram situações que geraram encontros e vínculos afetivos que embora não sejam descritos na pesquisa, tornaram-se parte do meu contexto cotidiano, fortalecendo redes de apoio e gerando aprendizados que fortalecem a convicção perante a necessidade de seguir lutando contra desigualdades sociais, de gênero e de raça que produzem efeitos cotidianos e materiais sobre as vidas das pessoas.

A partir desta perspectiva, a figura do pesquisador torna-se apenas mais um ator inserido neste contexto, sendo parte de uma ecologia de saberes no qual pode vir a contribuir horizontalmente: “horizontalmente, porque não há nenhuma grande verdade mantendo quentes as nossas costas, nenhum instrumento de inquisição que podemos mostrar para garantir obediência às nossas ideias” (Spink, 2008, p. 76). Afinal, como afirma Dona Haraway (1995, p.10), o que é essa “ciência” concebida como suposta fonte produtora de verdades senão uma feitura retórica, “um texto contestável e um campo de poder” enredado em uma prática de convicções legitimadoras?

Esses modos “outros” de fazer ciência – outros porque subvertem a perspectiva do modelo clássico de ciência cartesiana – ainda necessitam disputar espaço para angariar o status de produção de saberes legítimos (Spink, 2008). Trata-se de um embate constante, de modo que recusar o modelo clássico de ciência psicológica significa também recusar o lugar ao qual a psicologia, ainda hoje, é reiteradamente convocada a ocupar no âmbito teórico e prático: como saber disciplinar que separa, classifica, identifica, compara, individualiza. Este saber que, aliado à tecnologia de produção de indivíduos na sociedade moderna, conquistou seu lugar menos como ciência e mais como disciplina da norma (Prado Filho, 2005).

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Optei, nesta pesquisa, por descrever os procedimentos realizados sem, no entanto, enquadrá-los em uma categoria metodológica específica, posto que isso implica muitas vezes adequar-se a construtos teóricos estabelecidos a priori, engessando as possibilidades de trânsito e experimentação. Para isso inspiro-me nas teorias feministas empenhadas em construir saberes localizados e politicamente implicados e é a partir desta perspectiva que busco ancorar meu compromisso ético na pesquisa:

O feminismo ama outra ciência: a ciência e a política da interpretação, da tradução, do gaguejar e do parcialmente compreendido. O feminismo tem a ver com as ciências dos sujeitos múltiplos com (pelo menos) visão dupla. O feminismo tem a ver com uma visão crítica, conseqüente e com um posicionamento crítico num espaço social não homogêneo e marcado pelo gênero. A tradução é sempre interpretativa, crítica e parcial (Haraway, 1995,p.31).

Busquei adotar uma postura responsiva, reflexiva e crítica acerca da pesquisa e do meu próprio pesquisar, acerca das práticas de dominação, opressão ou privilégios produzidos ou vivenciados por mim e pelos outros, bem como das posições desiguais que são ocupadas no contexto de uma pesquisa – o que contradiz sobre a possibilidade de estabelecer total horizontalidade,beirando ingenuidade ou hipocrisia. Tal postura de contestação proposta por este conhecimento situado, ao mesmo tempo em que produziu inúmeros dilemas muitas vezes paralisantes, me fez compreender sobre a possibilidade de estabelecer conexões parciais (Haraway, 1995), reverberando inúmeros aprendizados resultantes das trocas neste contínuo processo de reconhecimento de si e dos outros.

Considerando estas questões, o trabalho é construído a partir de um diálogo interdisciplinar de modo que, conforme as discussões trazidas a partir do campo, diferentes autoras e autores são acionados. Busco provocar, na medida do possível, a interlocução entre produções de saber que possam conciliar e contribuir para produção da análise.Tendo em vista que as teorias contemporâneas não são mais as grandes narrativas da modernidade, monolíticas, racionais e anunciadoras da “verdade”, inseridas em uma escola de pensamento

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perante a qual se deve fidelidade, as produções teóricas vêm assumindo este caráter fluido, desconexo e híbrido na tessitura das escritas.

No entanto, nesta bricolagem de escritos há também pressupostos convergentes no que tange à concepção de sujeito e eles residem na localização do caráter histórico das experiências, trazendo para a análise a concepção de sujeitos produzidos discursivamente, corpos marcados pela história, atravessados pela linguagem e em processo de construção frente às relações de poder – embora não sejam totalmente determinados por elas, sempre havendo possibilidades de resistências ante os processos de subjetivação. De todo modo, se isto se inclui no âmbito das teorias pós-estruturalistas, há inúmeras divergências entre as formas como as mesmas se posicionam frente a concepções de sujeito, poder e política, por exemplo.

Além disso, trazendo as teorias feministas para o corpo deste trabalho, é importante salientar que se os feminismos pós-estruturalistas buscam rejeitar noções de identidade essenciais de gênero que fazem do corpo-sexo matéria fixa a partir do pensamento binário e heteronormativo11, bem como versam sobre o descentramento do sujeito

universal masculino, os feminismos interseccionais e negros acrescentam que este sujeito universal é branco e que os sujeitos do feminismo hegemônico são as mulheres brancas e suas demandas específicas.

2.1 ENTREVISTAS, RODAS DE CONVERSA E PARTICIPANTES As entrevistas individuais e as rodas de conversa que realizei a partir de um roteiro semiestruturado com nove rappers integrantes do movimento (ver Apêndice), além das rimas feitas nas batalhas, conversas informais e observações diretas compõem-se como parte das

11A heteronormatividade ou heterossexualidade compulsória, palavras que irão

aparecer outras vezes neste trabalho, diz respeito à heterossexualidade como norma regulatória constantemente reiterada, a qual define os parâmetros de normalidade/anormalidade a partir de uma cadeia discursiva produzida tais como pelos discursos biomédicos, jurídicos e religiosos. Assim, as matrizes de inteligibilidades sobre os corpos e condutas sexuais são fundamentadas pelo binarismo (feminino/masculino) como modelo supostamente natural, normatizando as expressões da masculinidade e da feminilidade. O caráter compulsório da heterossexualidade estrutura-se na correspondência fundante e essencial entre sexo, gênero e desejo (Butler, 2003).

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informações que formam o corpo desta pesquisa. Assim, foram realizadas quatro entrevistas individuais, uma roda de conversa com três integrantes e outra com duas integrantes, totalizando nove MCs que consentiram formalmente com a participação na pesquisa, optando por manter seus codinomes artísticos.

As participantes da pesquisa são jovens mulheres de 18 a 24 anos, em sua maioria residem em territórios marginalizados12 da cidade; a

maioria trabalha em serviços informais diversos sem vínculo empregatício; três delas possuem filhos, duas são universitárias e três delas tiveram que abandonar a universidade; cinco delas identificam-se como negras, três como brancas e uma não definiu sua identidade racial. As mesmas se reconhecem como MCs e já participaram e/ou participam de outras batalhas de rap em diferentes locais e contribuem para a construção da Batalha das Mina em Florianópolis, sendo estes os critérios para participar da pesquisa.

Durante as batalhas registrei com o celular vídeos e fotografias mediante autorização de uso de imagem (Anexo B) no intuito de instaurar outros modos de ver já que, como problematiza Leny Sato (2009), a pesquisa em si pode ser compreendida como uma construção de visibilidades. A proposta dos materiais produzidos com os registros audiovisuais foi transformá-los em um vídeo-documentário sobre a Batalha das Mina em uma produção coletiva em andamento, como forma de publicizar as experiências para além do âmbito acadêmico. Isto porque, como afirma Spink (2003, p. 39):

Precisamos estar preparados para abrir mão da estrutura e estilos convencionais das dissertações, teses, artigos e apresentações quando estes não ajudam a construir um diálogo inicial entre o campo-tema e as demais pessoas direta ou indiretamente presentes – incluindo os não-presentes-mas-presentes-nas-narrativas.Podemos olhar para outras disciplinas para ver outras soluções possíveis, não somente as Ciências Humanas e Sociais, mas também nos meios artísticos e literários.

12 A caracterização como territórios marginalizados refere-se aos morros,

favelas e periferias da cidade, contextos marcados pelo descaso do Estado através da escassez de serviços públicos básicos em contraposição à intervenção repressiva do mesmo nestes territórios, produzindo inúmeras formas de vulnerabilidades nestes espaços.

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Propus-me também a construir um diário de campo. Porém, as anotações que fazia após o comparecimento nas batalhas (nunca durante as mesmas) me serviram como um espaço de relatos sobre dilemas acerca de determinadas situações vivenciadas e impasses que me ocorriam, não tanto como um registro extensivo e descritivo das situações presenciadas. A ferramenta do diário de campo refere-se ao registro e descrição de acontecimentos factuais assim como também das experiências da (o) pesquisadora (o) na sua relação com o campo, trazendo inclusive informações pessoais (Medrado, Spink e Mello, 2014). Mesmo com caráter mais intimista que reflexivo-descritivo, este esboço de diário de campo me auxiliou a compor um conjunto de narrativas implicadas que contribuíram na produção da análise.

Transcrevi todas as entrevistas consentidas verbalmente e com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE (AnexoA), tendo sido realizadas nas casas das rappers ou no centro da cidade, conforme disponibilidade das participantes. Após a transcrição, reli várias vezes os materiais produzidos a partir das entrevistas, rodas de conversa e o diário de campo. Assisti novamente aos vídeos gravados nas batalhas, e selecionei algumas rimas para transcrevê-las.Neste mosaico ampliado de materiais, elenquei o que teria que priorizar para a pesquisa teórica, de acordo com a proposta e objetivos da mesma.

A organização do material exigiu escolhas importantes, haja vista que tanto as entrevistas quanto as rodas de conversa renderam muitos debates que excediam a proposta do trabalho. A roda de conversa, por exemplo, durou três horas e suscitou temáticas variadas como o papel das igrejas evangélicas nas favelas e periferias, drogas, polícia, tráfico, questões pessoais das MCs, desabafos, entre outros. Mergulhei nas conversas e foram poucos os momentos em que freei para não sairmos do script, até porque suas falas são muito críticas, posicionadas, enriquecedoras e isso, obviamente, me captura e produz admiração.

A roda de conversa como instrumento de pesquisa não exclui o caráter de cientificidade da mesma, constituindo-se como uma abordagem em que o sujeito pesquisador se insere como participante da conversa, ao mesmo tempo em que dispara questionamentos para discussão a partir de determinados eixos temáticos (Moura e Lima, 2014). Assim, o roteiro da entrevista semiestruturada utilizado nas entrevistas individuais foi também norteador da roda de conversa, dividida em três momentos: suas experiências nas batalhas de rap da cidade; experiências na Batalha das Mina e a discussão sobre o

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momento político atual. Assim, à medida que um assunto disparava outro, não se fazia necessário o formato pergunta-resposta, apenas quando alguma questão importante não havia sido contemplada.

A reunião das MCs na roda de conversa possibilitou a partilha de experiências em comum e o desenvolvimento de reflexões coletivas acerca das práticas desenvolvidas na batalha a partir de uma perspectiva diferenciada das entrevistas individuais. O rememorar de situações vividas e expectativas acerca da batalha puderam ser compartilhadas, criando também a escuta de diferentes narrativas entre pares.

A ideia inicial era realizar rodas de conversa com todas juntas, porém isto não foi possível por conta de horários de trabalho e compromissos das integrantes que não permitiram este encontro. Além disto, foi necessário um tempo bastante estendido para estabelecer uma relação de confiança e de espera para que algumas integrantes que se mostraram abertas e que reiteravam o interesse em participar da pesquisa de fato comparecessem. Houve ainda MCs que expressaram o desejo em participar, mas não se concretizou a possibilidade do encontro.

Esse movimento de marcar entrevistas e roda de conversas foi atravessado por um perfil mais tímido e introspectivo na forma de abordar as pessoas – logo no início me apresentei como pesquisadora e expliquei a proposta da pesquisa, mas nos primeiros seis meses que compareci às batalhas, fiquei bem “na minha”, conversando casualmente com uma ou outra pessoa. Acredito que este posicionamento possa ter sido um entrave que contribuiu para prolongar o tempo da pesquisa em termos de prazos institucionais.

No período em que realizei a pesquisa, à medida que a batalha ganhava visibilidade, foi recebendo cada vez mais pessoas querendo fazer trabalhos para disciplinas da faculdade, TCCs, vídeos, reportagens. Inúmeras situações fizeram com que as integrantes repensassem a postura delas a respeito dessa questão, pois apontavam o fato de sentirem-se “objetos de estudo”, portanto usadas e invadidas, de as pessoas fazerem trabalhos para o seu benefício próprio e sequer apresentarem uma devolutiva.

Em uma destas circunstâncias, certo grupo de estudantes que fizeram uma pesquisa para universidade sobre a batalha, passou a criticá-las publicamente nas redes sociais alegando que elas eram radicais, que excluíam os homens, que o que elas faziam não era rap e sim segregação. Depois desta grave postura antiética, os critérios para aceitar ou não passaram a ser a participação presencial nas batalhas,

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acompanhado do pedido de um retorno do trabalho realizado, priorizando pessoas que possam de fato contribuir com o movimento.

Há neste espaço das batalhas uma recusa bastante pertinente e compreensível por parte de algumas integrantes em relação à academia, questionando enfaticamente sobre o papel da pesquisa e da universidade, bem como dos privilégios de raça/cor e classe social que permeiam a possibilidade de acesso, inserção e permanência nesses espaços.Recebi como respostas perante o convite para participar da pesquisa interpelações importantes a respeito dos efeitos da pesquisa como, por exemplo, interrogações sobre o que o trabalho mudaria em suas vidas, ou ainda, que apesar de me considerarem como alguém que está somando no movimento, isso não excluiria a manutenção das hierarquias e de privilégios provenientes dos grupos aos quais pertenço:

Ó, vou te falar a real, pensei mais de dez vezes antes de a gente ter essa conversa, só tô fazendo mesmo porque você teve uma atitude de respeito,é gente boa, pá; mas cê sabe, cê é mais uma branca dentro da universidade vindo aqui falar de nós pretos,mas e aí, pra nós não muda nada, é mais um IBGE da vida, você vai lá, se forma, consegue trabalho e nós tudo na mesma, eu vou continuar vendendo pastel na rua e nós passando fome e sendo estupradas (MC participante da pesquisa).

Estas e outras interpelações a mim dirigidas produziram inúmeros afetos imobilizadores, não por me surpreenderem, mas por reforçarem questionamentos já existentes que seguidamente geravam o ímpeto da desistência. No entanto, considerando o fato de que a própria pesquisa e os encontros produzidos a partir dela também nos constituem subjetivamente, passei a me interrogar ainda mais acerca de como transformar estas circunstâncias para além de um silêncio paralisante e autoreflexivo em potência de ação. Sendo pertencente ao grupo dominante, romper com o histórico silêncio e a negação do racismo produzidos pelo pacto narcísico entre os brancos, como fala Maria Aparecida Bento (2002), demanda revisitar a construção da branquitude e do racismo em sua própria história, mas sobretudo atentar às formas de como, cotidianamente,é possível descontruí-los.

Reconheço-me na fala de Lia Schucman (2012) quando relata que o racismo na qual foi criada não apresentava formas explícitas ou atitudes e discursos de ódio, mas principalmente através depena, de dó,

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relações de poder sutilmente racistas e opressoras. Embora eu tenha crescido numa família religiosa da igreja católica, mãe catequista e professora de religião, seguíamos a “teologia da libertação”, doutrina latino-americana que prega a função social da igreja através de atitudes e não da fé adoradora, combatendo valores de uma igreja acumuladora de riquezas. Assim, como também não éramos abastados, a ideia era de ajuda mútua entre os pobres, dividir o que se tem com quem tem menos, embora sustentando um discurso cristão, moralista e salvacionista. Sendo assim, pessoas negras, mais pobres que nós, ocupavam o lugar deste “outro necessitado”.

O primeiro livro que li quando criança foi “Minha doce Manuela”, de Júlio José Chiavenato, que conta a história de uma menina negra e órfã que, apesar de muitas dificuldades é retratada como uma menina corajosa e vitoriosa.Se a imagem da capa é de uma criança triste,a história mostra uma menina que tem que ser forte para dar conta da vida e lutar para não desistir de estudarem uma escola pública numa turma de crianças brancas e burguesas em que era a única pessoa negra e pobre da sala. Várias questões poderiam ser postas em questão, a começar que tal concepção de força que se atribui às mulheres negras constitui-se como uma justificativa para negligências e violências racistas. Mas, isto é o que consigo perceber hoje. Na época,o livro e outras influências sociais e culturais foram importantes para provocar rupturas que me fizeram compreender muito cedo que havia vivências que produziam diferenças em função do racismo, enfrentamentos os quais eu não vivia, trazendo o que Schucman (2012, p.106) nomeia como um dilema da raça: “sabe-se do outro, mas não se é o outro”.

O que essas considerações têm a ver, afinal, com o percurso metodológico?De uma perspectiva tecnicista, objetivista e neutra, talvez nada. Porém, a forma como elegi construir esta pesquisa de caráter qualitativo pressupõe que as relações interpessoais liquefazem quaisquer tentativas de distanciamento e são estas relações que, sobretudo, conduzem o processo do pesquisar para além do script. Essas desestabilizações produziram, como chama Claudia Neves (2004) uma “pausa tensa”, como forma de atualizar os acontecimentos frente às escolhas ético-políticas de nossas existências. Portanto, são questões que interpelaram a relação com as pessoas que compuseram e possibilitaram essa pesquisa provocando inúmeros aprendizados, deslocamentos e desvios de percursos.

Diante disto tudo, passou a ecoar fortemente a pergunta: para que(m) serve o conhecimento? De que formas as universidades podem se tornar espaços catalisadores de transformações sociais? Quem são as

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pessoas que majoritariamente ocupam os espaços da universidade na condição de produtoras do saber? Os modos de produzir conhecimentos, sobretudo nas instituições universitárias em que os saberes são legitimados, estão enredados pelas relações de saber/poder (Foucault, 2012). Sabe-se que o ensino superior esteve designado às elites brancas desde o seu surgimento e nem a democratização do ensino superior – através de políticas de ações afirmativas e políticas públicas que timidamente buscam facilitar o acesso à universidade, têm conseguido ser “suficientemente fortes para derrubar a muralha da diferença de [raça/cor e] classe social” (Prestes, Jezine e Scoguglia, 2012).

Além de problemas na implementação de tais políticas públicas, há uma pressão muito grande atuando dentro das universidades em prol da preservação do elitismo acadêmico e da manutenção das desigualdades raciais e sociais sob pretextos dos mais diversos, sobretudo meritocráticos. Ernane José Xavier Costa, pesquisador da USP afirma em entrevista que,durante toda sua trajetória acadêmica, não recorda de ter tido professores negros e raríssimos foram os pesquisadores negros em sua área. Segundo ele,“é preciso que as instituições admitam que a ciência e a tecnologia no Brasil têm cor. E é branca, feita por brancos e para brancos” (Oliveira, 2010, s/p).

Dadas as circunstâncias até este momento, resta criar brechas,rupturas,situar nossas trajetórias,mas, sobretudo, rasgar o chão que nos sustenta.Neste sentido, afirma Foucault (2012, p.70) em conversa com Deleuze que as teorias são elas mesmas a própria prática e não a tradução da mesma em escritos; assim, o papel do intelectual como parte deste sistema de poder, seria, antes de tudo, “o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento”.

Seja para desestabilizar, transformar ou conservar o status quo, toda ação está implicada, todo discurso produz efeitos. Tomar a pesquisa como acontecimento significa arriscar uma posição ética e teórico-política de questionamento e desnaturalização, já que as práticas sociais, como afirma Fonseca et al (2006, p.658)“podem ser olhadas como as marcas dos dentes do tempo no corpo da história”.

Partindo da perspectiva de que a pesquisa constitui-se como acontecimento e prática, a definição da estrutura da pesquisa foi delineada a partir da relação com o “campo-tema”, ou seja,embora houvesse uma temática central estabelecida a priori, que é as experiências das mulheres MCs na Batalha das Mina, o desenvolvimento do trabalho foi se construindo a partir dos encontros, do que pude presenciar na batalha e das conversas informais, entrevistas

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