UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE DOUTORADO
PESQUISA E CLÍNICA EM PSICANÁLISE
No litoral da Casa e do Serviço
A Psicanálise no Serviço Residencial
Terapêutico
Ana Paola Frare
Tese de Doutorado
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No litoral da Casa e do Serviço
A Psicanálise no Serviço Residencial Terapêutico
Por: Ana Paola Frare
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do Título de Doutor em Psicanálise.
Orientador: Dra. Ana Cristina Costa de Figueiredo
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No litoral da Casa e do Serviço
A Psicanálise no Serviço Residencial Terapêutico
Autora: Ana Paola Frare
Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do Título de Doutor em Psicanálise.
Banca Examinadora:
___________________________________________________________ Drª. Ana Cristina Figueiredo (Orientador)
Programa de Pós Graduação em Psicanálise da UERJ
___________________________________________________________ Dr. Luciano Elia
Programa de Pós Graduação em Psicanálise da UERJ
___________________________________________________________ Drª. Andréa Máris Campos Guerra
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
___________________________________________________________ Drª. Maria Tavares Cavalcante
Universidade Federal do rio de Janeiro – IPUB/UFRJ
___________________________________________________________ Drª. Dóris Rinaldi
Universidade do Estado do Rio da Janeiro – UERJ
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5 “Eu queria ser um anarquiteto de desengenharias.”
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Resumo
No litoral da Casa e do Serviço
A Psicanálise no Serviço Residencial Terapêutico
A presente tese apresenta os Serviços Residenciais Terapêuticos como dispositivos essenciais à consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil, e propõe uma abordagem clínica a partir da psicanálise. Dentre as funções do psicanalista estão a avaliação e a transmissão aos cuidadores de um modo de lidar com moradores nas situações cotidianas na casa e na cidade não reproduzindo a postura tutelar característica da lógica manicomial. As principais indicações são sustentar um ‘saber-não-saber’como estratégia clínica e fazer valer os recursos subjetivos dos moradores como meios de manejar a convivência.
Palavras-chave: Serviços Residenciais Terapêuticos, psicanálise, reforma
psiquiátrica, sujeito.
Abstract
In the littoral form House and Service
The Psychoanalysis on Therapeutic Residential Service
This thesis describes therapeutic residential services as essential practices for consolidating the psychiatric reform carried out in Brazil and puts forward a clinical approach based on psychoanalysis. From this point of view, the psychoanalyst’s main function is to evaluate and to provide caregivers with ways of dealing with patients in everyday situations, either at home or outside, without reproducing the patronizing attitude typical of mental institutions. The main proposals are to sustain a certain unknowing knowledge as a clinical strategy and the use of the patients’ subjective resources as ways of managing the experience of living together.
Key words: Therapeutic Residencial Services, psychoanalysis, psychiatric
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Sumário
Introdução 10
Capítulo 1 - Localizando o território 19
1.1 – O Serviço Residencial Terapêutico 31
1.2 – A Psicanálise e as Instituições 38
Capítulo 2 - Endereço: a avaliação 43
2.1 – Uma casa que é um serviço que é uma casa 46
2.2 – O processo 54
2.3 – Os quatro mais um elemento da avaliação 58
2.3.1 – Territorialidade 65 2.3.2 - Atividade de Vida Diária 70
2.3.3 - Autonomia 75
2.3.4 – Psicodiagnóstico 80
2.4 – O “mais um” elemento da avaliação 87
Capítulo 3 – O trabalho do cuidador 104
3.1 – O cuidador leigo 109
3.2 – A reunião de equipe 116
3.3 – Transmissão 142
Considerações finais 161
10 “Defrontar-nos-emos, então,com a
tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições”. S. Freud.
INTRODUÇÃO
A loucura como metáfora do “não sentido” sempre revela as
contradições dos discursos que pretendem aprisionar sua plasticidade com
soluções rápidas e eficazes, lançando desafios e convocando as estratégias de
saúde a se repensarem.
Notoriamente influenciado pelo modelo italiano da psiquiatria
democrática, o processo de Reforma Psiquiátrica, em curso há algumas
décadas no Brasil, conta com avanços importantes no tocante à assistência e
ao cumprimento da agenda de desinstitucionalização no país. Com a proposta
explícita de lançar novos pressupostos para o manejo da loucura com a quebra
do paradigma do modelo hospitalocêntrico, dispositivos diversos têm sido
construídos para dar sustentabilidade ao novo projeto de atenção ao chamado
‘portador de transtorno mental’, com base na concepção da reabilitação
psicossocial, recuperação da autonomia e da contratualidade social.
Por mais que não possamos ser precisos no recorte de uma
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(Resende, 1987), podemos cernir alguns elementos e configurar o cenário no
qual o tratamento psiquiátrico no Brasil deveria ser repensado: por um lado,
uma política que favorecia o crescimento da internação em grandes hospitais
(que em alguns casos, por serem privados, obtinham grande parte de sua
renda da contratação de leitos pelo poder público) e por outro lado, o
fundamento do hospital como principal estratégia de tratamento. Os hospitais,
cada vez mais inchados, declinavam da vocação de tratar, passando a figurar
como instituições asilares. Sem expressiva quantidade de alta, ou mesmo uma
rede consolidada para encaminhamento dos casos, a cronicidade dos
pacientes indicava um caminho sem volta no aumento de leitos para
internação. Com os hospitais inchados, as condições de tratamento ficavam
mais precarizadas, e denúncias de toda ordem de maus tratos eram disparadas
contra a forma de organização da assistência e seus equipamentos.
Com a abertura política a Reforma Psiquiátrica Brasileira se consolida
contemporaneamente à reconstrução democrática que impulsionou o
movimento de luta antimanicomial. A ação dos trabalhadores de saúde mental
e diversas entidades ligadas à saúde fundamentaram a possibilidade de uma
nova forma de tratamento para a loucura, em grande parte fruto do trabalho de
Franco Basaglia. (Amarante, 1995).
As tentativas de humanização e democratização dos espaços
hospitalares que ocorreram na Europa e nos Estados Unidos no contexto do
pós-guerra, bem como a criação de centros de atendimento extra-hospitalares
contemporâneos a esse movimento, são um exemplo de como vêm se
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experiência da loucura sem ter como foco somente a hospitalização de longa
permanência. Como já apontamos a Itália indubitavelmente é um marco nesse
processo de reconstrução da forma e concepção de tratamento. Tendo como
foco a desconstrução do aparato manicomial e a crítica ao aprisionamento da
doença mental como objeto da psiquiatria, a desinstitucionalização evidencia
uma estratégia de superação do modelo asilar ao mesmo tempo em que
propõe um rompimento com a prerrogativa médica sobre a loucura.
Ancorados nesses pressupostos, os chamados “novos dispositivos”
fomentam um novo arranjo de saberes e práticas, tais como: Os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), Hospitais-Dia, Centros de Convivência, Serviços
Residenciais Terapêuticos entre outros, se apresentam como estratégia política
para desmonte do aparato manicomial, oferecendo uma alternativa tanto ao
acolhimento social que impelia pacientes à permanência hospitalar, como ao
acolhimento clínico de casos que, em geral, não necessitam estar em espaços
restritivos para serem tratados.
O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) é reconhecidamente uma das
maiores apostas estratégicas da Reforma Psiquiátrica. De acordo com Santos
(2006, p.163), esse serviço além de oferecer uma resposta à cronificação e à
exclusão social, também se constitui como “dispositivo de cuidado que aborda
a parte mais difícil da Reforma Psiquiátrica, uma vez que enfrenta
problemáticas do ‘estar em’ e do ‘habitar’ não somente uma casa, mas também
a cidade daqueles que tiveram intensificada sua condição de ‘sofrimento
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Atualmente com mais de 3.000 beneficiários, o SRT é um serviço que
gera debates de todas as ordens. A criação deste dispositivo traz em sua
gênese o legado deixado pelos anos em que o modelo hospitalocêntrico
imperou, já que em sua maioria, os usuários que são encaminhados para esse
dispositivo têm em sua história a marca do abandono familiar e perda de
vínculos durante os anos de internação. Por outro lado, pode ser pensado
como uma resposta à questão do acolhimento desses pacientes que não
sustentam uma moradia sem assistência, e que até então eram conduzidos a
leitos hospitalares e lá permaneciam, em grande parte por sua condição social.
(Delgado, 2006).
Apesar de inúmeras experiências terem sido levadas a cabo desde a
década 80 somente a partir do ano 2000 que a denominação “serviço
residencial terapêutico” ganha os contornos que impulsionaram sua função
junto a desinstitucionalização. Dentre os marcadores deste dispositivo estão a
ênfase na função de modalidade substitutiva de internação psiquiátrica, sua
localização exclusivamente alijada do espaço das unidades hospitalares e
inseridas dentro da comunidade. Se por um lado a concepção desse serviço
prioriza a instituição de uma casa, afastando-se da lógica hospitalar que
pressupõe atitudes prescritivas e o controle da subjetividade, por outro lado dá
suporte a uma série de questões que requerem uma organização institucional,
que contemplam, por exemplo, um técnico de referência, cuidadores,
supervisão, entre outros. Assim, entre a ‘casa’ e o ‘dispositivo’, vai sendo
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No cotidiano do serviço, as soluções advêm a partir de determinados
atos. Acontecem coisas o tempo todo: os vizinhos reclamam de algo que o
morador disse, fez ou disse que iria fazer; o cuidador tem que apartar um litígio
que foi ‘às vias de fato’; uma crise é desencadeada a partir de uma recusa
qualquer; alguém reclama de ter que avisar quando sai em função de todas as
vezes que se perdeu na cidade e não encontrou o caminho de casa.
Refletir sobre todos esses movimentos e principalmente dividir essa
responsabilidade com os cuidadores e com os próprios moradores é o grande
desafio dos técnicos de referência.
A transformação da realidade objetiva é por certo essencial, mas não
suficiente. “A ausência de opressão, a inclusão e o resgate da cidadania
perdida devem estar intrinsecamente ligados a uma dimensão clínica
permanentemente presente na relação de cada morador com os cuidadores, a
fim de que haja, efetivamente, uma cidadania a ser promovida” (Santos, 2006,
p.165).
Nesse fôlego de desinstitucionalizar, criar aparatos para receber os
pacientes, e ainda lançar um outro entendimento ao fenômeno da loucura, a
reflexão sobre a prática clínica se faz mister. Primeiro porque há que se
localizar qual o papel dessa prática e suas implicações, para que os
fundamentos da psicanálise sejam colocados a serviço de sua ética, não
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serviço de uma “psicanálise falsa1”. Segundo, porque não podemos abdicar de
nosso ofício de acolher os sujeitos que deixam o manicômio e realmente
precisam de assistência.
E quando o local onde somos convocados a trabalhar deveria ser o lugar
próprio do morar? Como bem recorta Santos (2006, p.165): “Mas o que faz a
clínica em uma moradia? Seu local de exercício não é um dispositivo de
tratamento? O que está sendo nomeado como clínico não equivale ao que o
campo da Reforma Psiquiátrica chama de cuidado?”. A autora responde a essa
questão afirmando que no SRT há uma dimensão clínica que não se afirma
como tratamento, e destaca a psicanálise como o alicerce dessa tarefa.
Desse modo, ao convocar a psicanálise para um espaço que pressupõe
que o terapêutico de viver na cidade é esse encontro em si, que preconiza que
a autonomia e a contratualidade sejam tomadas como axioma da subjetividade;
torna-se necessário pensar em termos de ‘como’ é possível que os operadores
da psicanálise possam se constituir como política de tratamento, dando um
desenho para o dispositivo que não o descaracterize em sua concepção, mas
que ganhe contornos em que a emergência de um sujeito seja possível. E mais
do que isso, convocar a psicanálise é responsabilizar-se por esse fazer, para
não recair em uma prática que se afasta dos seus princípios e
consequentemente de sua ética.
1 Lacan traça a distinção entre a psicanálise verdadeira e a falsa, alertando que uma tentativa de
psicanálise, que se afasta dos princípios da mesma pode ser “um bem que leva ao pior”. (Outros escritos, 2003)
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A psicanálise entra em cena com um modo próprio de operar na clinica
que justamente por não ser antagônico aos anseios da reforma, pode contribuir
com os debates que, ora atravessam, ora sustentam as mudanças ocorridas
nas ultimas décadas.
A insistente pergunta “o que faz uma clínica em espaço de morar?”
passa a ser respondida a partir dessa convocação através de intervenções,
estratégias, invenções em que um tratamento do gozo é operado,
possibilitando ao sujeito uma certa ordenação simbólica que favoreça a própria
convivência. É nesse sentido que o “terapêutico” que nomeia a residência se
encontra dentro e fora dela, na cidade, pois o encontro com os outros, com as
regras de convivência, com os contratos sociais, são os disparadores de uma
necessidade de organização subjetiva, que muitas vezes precisa de suporte
para ser precipitada.
Tendo a psicanálise como orientação, a presente tese nasce de
questões cunhadas a partir de minha vivência como técnica desses serviços.
Surge da necessidade de pensar a função dos psicanalistas (e da psicanálise)
dentro dos SRT, usando para tanto o cotejamento de duas imersões em
serviços dessa natureza. São eles: O Serviço Residencial Terapêutico da
cidade de Paracambi (RJ); e o serviço similar do Instituto Municipal de
Assistência a Saúde (IMAS) Juliano Moreira na cidade do Rio de Janeiro (RJ).
As diferenças entre os serviços são extensivas a todos os Programas de
Serviço Residencial Terapêutico, uma vez que a história da montagem de cada
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cada município. Esse é um aspecto bastante relevante do SRT, e que será
destacado ao longo do trabalho. Aqui uma indicação: algumas questões são
pertinentes a cada serviço, e por isso, em alguns momentos são identificados.
Outras questões parecem ser mais específicas do SRT, por isso podemos
prescindir da indicação do local em que ocorreram.
Deste modo, os serviços acima descritos servem de base para este
estudo, e todos os casos aqui apresentados foram recolhidos dos mesmos.
No primeiro capítulo apresentaremos as questões relativas aos serviços;
sua constituição e implicações dentro da rede de serviços. As implicações do
SRT desde sua montagem, bem como os debates que animam seu cotidiano
são trazidos à cena, localizando as decorrências das apostas feitas nesse e por
esse serviço.
Já no segundo capítulo falaremos então da avaliação e encaminhamento
de pacientes para o SRT, fato ainda necessário dentro do contexto da reforma.
Os operadores mais comuns, encontrados no campo, bem como minha
inserção na Intervenção da Casa de Saúde Dr. Eiras são postas em diálogo
com a psicanálise, permitindo assim uma indicação das consequências e
possibilidades desse trabalho.
No último capítulo apresentaremos a função da equipe e, em especial o
papel dos cuidadores e técnicos dentro desse serviço. Através de vinhetas
clínicas, esboçaremos como se dá o trabalho no cotidiano do SRT e como a
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As considerações finais são algumas conclusões, recolhidas do texto
produzido, bem como algumas indicações de como estão atualmente os
19 Recusamo-nos (...) a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos próprios ideais”.
S. Freud
CAPÍTULO I - LOCALIZANDO O TERRITÓRIO
Em 04 de novembro de 1971, Lacan fazia uma conferência para
residentes em psiquiatria no Hospital Saint Anne em Paris, mesmo hospital em
que havia iniciado, em 1927, seus estudos em psiquiatria. Nessa época, alguns
de seus alunos, provavelmente inspirados pela leitura de Bataille, levantavam a
bandeira do ‘saber não saber’ e muito possivelmente, por isso Lacan iniciou
sua conferência falando sobre o saber do psicanalista e as consequências do
saber na psiquiatria. (Miller, 2011). Nesse dia, faz uma afirmação aos futuros
psiquiatras: “o psiquiatra tem, com efeito, um serviço social”. Ainda que sem
intencionar, Lacan localizava alguns pontos fundamentais do exercício da
psiquiatria: a primeira de que a demanda para a psiquiatria parte, e modo geral,
do tecido social. A família, a comunidade, ou o Estado demandam a
intervenção na loucura, já amalgamada como doença. A psiquiatria, através do
psiquiatra, responde de algum modo a essa demanda, e, ao interessar-se em
dar atenção àquilo que ‘está fora da ordem’, faz um serviço para o social.
Outro aspecto possível é tomar a psiquiatria como um serviço que
atende ao social, quando coloca a angustia, fobias e toda a ordem de sintomas
em um ‘para todos’ que pode ser traduzido em síndromes e patologias
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uma resposta para o sofrimento ‘de cada um’ traduzindo sinais e sintomas
específicos, em uma generalização em que é possível reconhecer-se. Talvez
por isso os diagnósticos contemporâneos, cada vez mais afinados à
terapêutica psicofarmacológica, tais como ‘síndrome do pânico’ ou ‘transtorno
de déficit de atenção’ tenham tanta adesão, já que quem sofre consegue
identificar-se em uma categoria universal. A generalização alcança então o
ponto de que é possível reconhecer-se numa série de sintomas, mas subtrai o
valor próprio da psiquiatria: cada patologia, cada angústia, cada forma de
enlouquecer é única, já que vai se arranjar de uma forma particular em cada
um.
Se a psiquiatria tem como efeito um serviço social, isso a localiza como
parte da estrutura social na qual se funda, e seu desenvolvimento não escapa
dessa determinação. Citando Foucault, Lacan conclui que o psiquiatra é a
criação de uma virada histórica e que processos de reestruturação e
redimensionamentos da psiquiatria “não estão nem perto de aliviar esse fardo
ou de reduzir seu lugar”. (2011 [1971], p. 15).
De acordo com Cavalcanti (1999) o encontro da medicina com a loucura
é fruto de um modo de organização social e política que instituiu os asilos e
que motiva, desde então, a formas de assistência psiquiátrica. Quando ocorrem
transformações sociais, a assistência psiquiátrica também se modifica. Não
como imposição, mas como decorrência da constituição de um novo modo de
entender a loucura e o seu lugar no tecido social.
Assim, em 1971, Lacan indicava que as reformas empenhadas na
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não dariam respostas definitivas à loucura e muito menos aliviariam o fardo da
psiquiatria responder e atualizar a demanda social.
Nessa mesma época no Rio de Janeiro, a Colônia Juliano Moreira dava
os primeiros passos para mais uma de suas reformas. Fundada muitos anos
antes, em 1924 a Colônia foi pensada como um modelo de tratamento pelo
trabalho e assistência hetero familiar (Fonseca, 2005) tendo na praxiterapia
uma aposta certa para o desenvolvimento de seu projeto terapêutico. Sendo
um hospital público desde sua criação, a Colônia Juliano Moreira refez seu
projeto terapêutico e questionou suas formas de tratamento algumas vezes,
tendo nas suas escolhas técnicas (inclusive na escolha do local) uma
necessidade de atender a demanda de tratamento psiquiátrico da população e
desenvolver métodos de atendimento eficazes.
No começo da década de 70, depois de um grande número de
internações ocorridas nas décadas anteriores, funcionários do hospital fazem
algumas denúncias de maus tratos e desassistência, que culminam, no fim da
década, na supressão das celas fortes e na proibição da aplicação de
eletrochoque. Interessante notar que a proibição divide a opinião dos
funcionários, já que alguns temiam pela perda de controle dos internos.
(Fonseca, 2005). Porém, ao justificarem que o controle não se dava apenas
através dos instrumentos proibidos no novo projeto institucional, foi possível
pensar em uma nova forma de assistência. Repensando as formas de
tratamento, a praxiterapia ganha novos contornos (como o incentivo ao
trabalho agrícola, por exemplo) e a prática de permitir a construção de
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indicada pelo próprio Juliano Moreira em seu primeiro projeto terapêutico para
o hospital). Com isso, o hospital ganha a porosidade que o marca até hoje:
entre pavilhões e unidades de tratamento há uma cidade dentro da Colônia.
Contando com mais de 2.500 pacientes, a Colônia Juliano Moreira entra na
década de 80 como um hospital de referência.
Em Paracambi, município que fica a 90km da capital fluminense, a Casa
de Saúde Dr. Eiras (CSDE), sendo também um hospital de referência em
desenvolvimento de técnicas de tratamento, emerge na década de 70 como um
dos principais hospitais destinados à crônicos do país, contando com pouco
mais de 500 leitos. Inaugurada em 1962 como uma filial para internação de
crônicos da Casa de Saúde Dr. Eiras Botafogo, inicia sua expansão ainda no
final da década de 60, chegando, no final da década de 80 a mais de 2500
leitos. A ampliação, segundo documento da instituição, foi pensada em função
da grande demanda de internação de doentes de Paracambi e do entorno.
Essa ampliação é contemporânea à passagem de seu diretor geral pelo
Ministério da Saúde, bem como à consolidação do modelo hospitalocêntrico de
assistência psiquiátrica. Através da ampla contratação de leitos da rede privada
ocorrida após o golpe militar, a rede hospitalar se consolidou, e os serviços
hospitalares computavam praticamente todo orçamento destinado à saúde
mental. (Resende, 1987). Os funcionários da CSDE, na grande maioria,
habitantes locais, têm no hospital um grande celeiro de empregos, já que a
cidade passava por tempos difíceis depois do fechamento de algumas
indústrias em meados da década de 70. “Os trabalhadores que antes
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internação, do benefício-doença, como solução para resolver seus conflitos
sociais e existenciais. O desemprego de muitos alimentava o lucro de poucos e
se formaliza na cidade a cultura hegemônica do hospitalismo”. (Guljor et al,
1997 p.583).
Com a abertura política, e as primeiras discussões sobre a Reforma
Psiquiátrica Brasileira começando a tomar corpo, a Colônia Juliano Moreira
refaz seu projeto técnico, e, a partir das denúncias ocorridas na década
anterior, mostra seu interesse em executar mudanças significativas, permitindo
o acesso da imprensa ao local. (Fonseca, 2005). A partir da ‘comoção pública’
gerada pela imprensa, bem como das discussões sustentadas por seus
trabalhadores, grandes mudanças ocorrem dentro da instituição, nas quais
podemos destacar: o fechamento para novas internações; a execução de uma
pesquisa na clientela internada para pensar os determinantes da internação
prolongada; e a criação do CRIS (Centro de Reabilitação e Integração Social).
O CRIS, unidade terapêutica diferenciada dentro do hospital, acolhia aos
pacientes que não apresentavam mais questões psiquiátricas que justificassem
a internação, tendo em seu projeto a premissa de que a exclusão do louco do
convívio social se dava “menos pela presença de uma psicopatologia produtiva
ou um desvio de conduta do que pela deterioração de sua força de trabalho”
(Fonseca, 2005, p.18). Desta forma uma das missões do CRIS era investir na
capacidade laborativa dos pacientes, reeditando uma concepção fundadora da
própria Colônia.
Na Casa de Saúde Dr. Eiras a ampliação de leitos seguia com a
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chamados, eram pensados de modo que a arquitetura servisse aos propósitos
de controle e observação ininterrupta dos doentes. Banheiros coletivos com
descargas que só podiam ser acionadas pelo lado de fora, por um funcionário,
evitavam uma possível utilização do sanitário para afogamento; instalação de
camas de ladrilho que já contavam com sistema de ganchos para contensão
física; quartos abertos e totalmente visíveis do posto de enfermagem. Tudo era
pensado para que nenhum paciente pudesse se ferir propositalmente ou até
ferir outras pessoas. As unidades ainda contavam com pátios internos, além de
toda a extensão da fazenda que era utilizada para atividades terapêuticas. As
atividades do Centro de Estudos eram registradas em revistas de psiquiatria e,
de acordo com documentos institucionais, tinham grande circulação, inclusive
internacional. Assim, a CSDE – Paracambi se afirmava como um hospital de
grande relevância, e contando com mais de 2000 internos e com um
ambulatório de egressos, se afirmava também como um dos maiores hospitais
privados da América Latina.
É possível notar que ambos os hospitais, além da grande extensão de
seus terrenos, o expressivo número de leitos, e as denúncias de violação de
direitos humanos, tinham pouco em comum nas estratégias terapêuticas e
assistenciais. A Colônia, um hospital público, já estava ‘afetada’ pelos ideários
do que viria a ser chamada de “Reforma Psiquiátrica Brasileira” pensando seu
projeto para além de seus muros: a integração pelo trabalho. Já a CSDE,
instituição privada administrada por seus proprietários, caminhava no sentido
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reafirmando o modelo hospitalocêntrico de assistência e garantindo a
estabilidade econômica de seus funcionários.
Talvez por isso, na década de 90, com a municipalização da Colônia
Juliano Moreira, que passa a se chamar Instituto Municipal de Assistência a
Saúde – Juliano Moreira (IMAS JM); o hospital dá um passo definitivo em seu
desenho institucional, assumindo uma direção cada vez mais voltada para a
inserção dos pacientes na cidade e a possibilidade da superação do modelo
asilar. A luta antimanicomial já era bastante expressiva, e a influência do
modelo italiano bastante presente. Nessa época, foram criadas “bolsas de
ressocialização” de vários tipos, incentivos financeiros que variavam de acordo
com a possibilidade laborativa do paciente. Quanto mais elaborada a tarefa que
o interno pudesse desenvolver, maior seria o valor da bolsa. A concessão
dessas bolsas dividia a equipe, já que alguns acreditavam que isso só
reforçaria a aceitação dos internos à condição de “paciente psiquiátrico” como
meio de sobrevivência (Fonseca, 2005).
Outra mudança importante foi a reestruturação do CRIS, que agora
passava a funcionar como ponte para ressocialização, sendo responsável pelo
Programa Residencial Terapêutico (PRT) inaugurado ainda na década de 90. O
projeto do CRIS passa a ser o de criar uma demanda institucional, acolhendo
pacientes que seriam posteriormente encaminhados para o PRT. O trabalho de
ressocialização começaria nos núcleos, como são chamadas as unidades de
tratamento, e esses também deveriam ter um desenho mais próximo de uma
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Duas formas de assistência se desenhavam dentro do IMASJM: o lares
assistidos, que funcionavam em casas dentro da Colônia; e os lares de acolhimento que seriam as unidades reformadas. Importante destacar que
mesmo com a fundação do Programa Residencial Terapêutico e o
acompanhamento de Residências Terapêuticas fora dos limites da Colônia, as
bolsas de ressocialização e o uso de moradias internas, como, por exemplo, o
uso do que foi um dia a “casa do diretor” ainda fazem parte do modelo atual de
assistência dentro do IMASJM.
Assim como no IMASJM, também foi através de denúncias de
trabalhadores que questões de maus tratos e desassistência foram associadas
à CSDE. Depois de uma reportagem não autorizada veiculada na mídia
impressa e televisiva, uma auditoria do Ministério da Saúde em 2000- portanto
antes da lei 10.216 que consolida a Reforma Psiquiátrica Brasileira-
descredencia o hospital para novas internações e traça uma estratégia de
intervenção. Dispositivos extra-hospitalares começam a ser inaugurados em
Paracambi, e uma Comissão de Apoio Técnico (CAT) formada por profissionais
do Estado começa a fazer uma espécie de ‘senso’ dos mais de 1500 internos e
a acompanhar os esforços para desinstitucionalização.
Em 2004 é decretada a Intervenção articulada entre as três instâncias do
SUS (município, estado e federação), transferindo a administração do hospital
para o poder público. Nos anos seguintes, os 953 pacientes serão reorientados
para o Serviço Residencial Terapêutico de Paracambi (SRT) e para as Casas
de Passagem, uma vila que, pensada para abrigar famílias que haviam perdido
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enquanto aguardavam a construção de Residências Terapêuticas em seus
municípios de origem. Mesmo com 21 (vinte e uma) casas no total (10 Casas
de Passagem e 11 RTs), muitos pacientes seguiam internados dentro da
CSDE, e, a exemplo do que ocorreu no IMASJM, a casa que antes abrigava
pessoas que se dedicavam a assistência dos doentes internados, foi
transformada em uma pousada. Esforços para humanização dos espaços de
internação também aconteceram, mas as possibilidades de melhoria eram tão
pequenas, que o trabalho era centrado na retirada dos pacientes, o mais breve
e individualizada possível.
A intervenção na Casa de Saúde Dr. Eiras foi sem dúvida um marco na
Reforma Psiquiátrica Brasileira. O seu inevitável fechamento, decretado pelo
Ministério Público, forçou muitos municípios, inclusive o de Paracambi, a
organizarem suas redes de assistência e montarem SRTs. Porém a população
de Paracambi se mostrou refratária a essa ideia, e o fechamento do
manicômio, que a essa altura já não era o principal empregador do município,
mas ainda tinha grande importância na dinâmica local, não era uma boa
notícia. Segundo podíamos ouvir da população (inclusive aos que se
candidatavam aos trabalhos na rede substitutiva) o fechamento da CSDE
poderia ser evitado se houvesse investimento público, pois se os doentes não
estavam sendo bem tratados, não faltariam candidatos para trabalhar direito. A
ideia da ‘loucura na cidade’ também assustava, mas não era o principal, já que
a cidade estava acostumada, de um jeito ou de outro, a conviver com a
loucura. O que mais assustava não eram os loucos que andavam pelas ruas,
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deveria ter gente ali que nunca teria condição de viver em sociedade e o
desconhecido se apresentava como assustador.
Uma pequena história reflete esse momento: no dia da luta
antimanicomial, depois de alguns anos da Intervenção já instalada e do SRT
em pleno funcionamento, a Rede de Saúde mental resolve transformar a
quebra de um muro da CSDE em um evento público. O muro, que seria
substituído por um portão, daria acesso Centro de Convivência, que seria
desmembrado do hospital. Acontece que o muro ficava no fim de uma rua, e a
população que ali residia não aceitava a ideia de terem ‘malucos indo e vindo’ o
tempo todo. Ao conversarmos com a população, descobrimos que as crianças
tinham muito medo de um paciente que viam através de um buraco no muro.
Era Damião2. Um paciente conhecido por suas atitudes pueris e por suas
insistentes perguntas sobre datas. “Já é natal? Tem brinquedo?”. Essas eram
as perguntas que amedrontavam as crianças. Ficamos ouvindo as histórias das
crianças, que temiam que seus pais entregassem seus brinquedos para
Damião caso fizessem algo de errado. No dia da quebra do muro, quando de
dentro do hospital já víamos a rua, as crianças pularam para dentro e
encontraram Damião. O estranhamento foi mútuo, e ele ficou com muito medo
das crianças. Ofereceu um brinquedo e todos, crianças e Damião, começaram
a brincar a delimitar até onde poderiam compartilhar brincadeiras.
A cena deixava claro que ‘quebrar aquele muro’ seria uma tarefa muito
difícil e cotidiana. Não só pelo saudosismo do tempo em que Paracambi era
referenciada pelo seu grande hospital ou pela garantia dada pelos empregos.
29
Mas principalmente porque a forma de convivência mudaria. E o trabalho do
SRT tinha que incluir isso. A mudança da assistência psiquiátrica naquela
cidade mudaria a própria cidade, e cada lado do muro sofreria os efeitos
sociais do seu serviço.
A cada mudança de modelo, a cada reformulação de política
assistencial, podemos ver as marcas de uma forma de entender a loucura, seu
tratamento e suas consequências. Se no IMASJM a inauguração do Programa
Residencial Terapêutico não foi de grande conflito na época, hoje contando
com mais de 30 casas, tem como maior desafio à sua expansão o aluguel de
casas na redondeza. E a razão principal não é o fato de que ali irão residir
egressos de internações psiquiátricas, (isso também existe) mas
principalmente pela especulação imobiliária do local. Antes uma fazenda
afastada, a Colônia hoje é um bairro, muito em função da direção técnica dada
em sua fundação.
As reformas da psiquiatria a sua assistência podem ser uma forma de
contar histórias de cidades e pessoas, bem como uma forma de entender o
papel da saúde pública nesses cenários. Ou outra forma de contar a mesma
história, como resumiu um paciente do IMASJM que acompanhou uma boa
parte das reformas aqui descritas, ao ser perguntado sobre o que achava de
morar uma RT: “No começo tinha o hospital e a praxiterapia. Depois veio o
eletrochoque e as injeções. Agora tem cuidador, referência e residência
terapêutica. Tudo muda... só os loucos permanecem. E agora também se
30
A ideia de que os “os loucos permanecem” expressa pelo então morador
do SRT do IMASJM, dá o limite possível ao desenho da assistência em
psiquiatria. Por mais que possa e deva ser constantemente revista, melhorada
e aperfeiçoada, há no centro de tudo, a loucura e a convocação para que se dê
um tratamento a ela. E é somente na loucura de cada um que qualquer modelo
assistencial pode intervir de forma mais eficaz.
Lacan, na já citada conferência de 1971, faz uma referência a um artigo
falando sobre antipsiquiatria, afirmando: “A questão dos doentes mentais, ou,
melhor dizendo, das psicoses, de modo algum é resolvida pela antipsiquiatria,
sejam quais forem as ilusões alimentadas a esse respeito por algumas
iniciativas locais. A antipsiquiatria é um movimento cujo sentido é a libertação
do psiquiatra, se assim ouso me expressar. E não resta dúvida de que, para
chegar a isso, não tem seguido o melhor caminho. Não é o melhor caminho
porque há uma característica que, de qualquer modo não se deve esquecer
nas chamadas revoluções: é que essa palavra é admiravelmente escolhida, por
querer dizer retorno ao ponto de partida”. (2011[1971] p.15). O ponto de partida
é a loucura, e essa é a razão da psiquiatria e de suas formas de assistência.
Ou seja, a questão da loucura ser produto de uma leitura social ou de
uma determinação social tal como a psiquiatria o é, não elimina que há alguém
que sofre por problemas ‘mentais’. E se o psiquiatra, ou demais profissionais
da saúde mental não podem abandonar o fardo de que seu trabalho tem como
efeito um serviço social, é necessário então pensar em como o tratamento
pode operar, pois os efeitos de suas intervenções no tecido social são
31
Partindo então da premissa de que a loucura não exclui as razões das
instituições existirem, concordamos com Viganò (2000, p 43) quando afirma
que “qualquer reforma no campo da saúde mental será tal se somente vier a
tocar o real da doença mental, estabelecido como limite da subversão
subjetiva”.
Podemos discutir o modo como o cuidado é feito, quais suas
consequência e implicações, e através de que política de Estado pretendemos
articulá-lo. É possível particularizar o cuidado, partindo de uma política de
assistência. Essa é uma das apostas do SRT: um modelo de moradia dentro de
uma rede de cuidados que funcione de acordo com cada morador.
1.1 - SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPEUTICO
As denominações “Moradias Assistidas”, “lares abrigados” ou mais
recentemente “Serviços Residenciais Terapêuticos” fazem parte do acervo de
todos os que de algum modo são atravessados pelos rumos que a Reforma
Psiquiátrica tomou no Brasil. Vale lembrar que somente a partir da portaria 106
de 2000 a Residências Terapêuticas foram regulamentadas como serviço, mas,
como pudemos demonstrar as iniciativas em direção a esse formato precedem
a portaria. Desta feita, em muitos municípios brasileiros encontramos diferentes
nomeações para os Serviços Residenciais que mantiveram suas
denominações originais. Faremos, portanto, uma distinção entre os termos, a
partir dos serviços aqui cotejados, para poder localizar melhor as diferenças
32
Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) ou Programa Residencial
Terapêutico (PRT) podem ser traduzidos como a estrutura organizacional dos
Programas de Moradia. Em alguns municípios o SRT é parte dos CAPS, como
em Paracambi, por exemplo. Apesar de o SRT possuir coordenação e
supervisão próprias, tudo que era relativo SRT ficava no CAPS, e lá eram
realizadas reuniões, supervisões e troca entre as referências do CAPS e do
SRT. As “Casas de Passagem” também possuíam coordenação própria, e por
mais que compartilhassem a supervisão e algumas outras atividades, não
estavam submetidas ao SRT. Ambas as organizações foram fundadas
contando com cuidador 24 horas e algumas vezes com acompanhantes
terapêuticos para moradores específicos. Dentro do CAPS também havia um
profissional dedicado as Moradias Assistidas de Paracambi, que respondia
pelos pacientes que lá residiam e outros dentro do CAPS.
Em outros municípios o SRT se caracteriza por ser um programa
responsável por todas as formas de moradia do município. Na cidade do Rio de
Janeiro tradicionalmente os SRTs possuíam estrutura própria de
funcionamento e estavam ligados a hospitais de referência, sendo o IMASJM
um desses hospitais.
O SRT do IMASJM se organiza em ‘Equipes de Seguimento’, contando
atualmente com três equipes. A equipe de Seguimento I é responsável por
21(vinte e uma) RTs e por 10 (dez) moradias assistidas. Em geral as casas se
caracterizam por baixa complexidade (entre quatro e oito horas de cuidado por
dia) e cada território um cuidador para dar suporte. Essa é a maior equipe, e
33
seguimento I há também uma coordenação própria, e a utilização do CRIS por
este Seguimento é bastante relativa.
Já a equipe de Seguimento II é alocada dentro do CRIS, e possui
atualmente cinco (05) RTs e duas (02) moradias assistidas. Este seguimento
conta com casas de alta complexidade e cuidadores de território. O CRIS é
então responsável pela dispensação de medicação e também pela gerência
financeira do seguimento II.
O Seguimento III está organizado para atuar dentro da até então
chamada “Vila de Idosos” (nome que não é muito apreciado dentro do IMAS
mas que, por falta de outro, vem se sustentando). A Vila é fruto de uma
intervenção do Governo Federal através do PAC (Programa de Aceleração do
Crescimento). Dez (10) casas serão destinadas ao Serviço Residencial
Terapêutico, e a equipe III será responsável por metade das casas. A outra
metade ficará sob responsabilidade da equipe II. A partir da criação da Vila,
mais um Núcleo será desativado, e o IMAS passará a contar com três núcleos
de longa permanência, sendo dois femininos e um masculino.
Com essa nova reforma de seu projeto terapêutico, a função do CRIS
novamente é repensada, pois sua função de ‘suporte para as RTs’ perde o
sentido quando as ações apontam mais para o território em que as RTs estão
inseridas. Quanto mais as Equipes de Seguimento contam com recursos
extra-hospitalares e comunitários, menos a presença do CRIS é necessária. Hoje
mais articulados com a Atenção Básica, com o CAPS e o ambulatório da área,
as equipes podem prescindir do CRIS. Outro fator é o investimento maior
34
desinstitucionalização e a função de ‘casa de passagem’) hoje é delegado aos
Núcleos. Essa não é exatamente uma novidade dentro do IMAS como
demonstramos anteriormente, mas o que muda é o foco, que agora é a
qualidade do cuidado. Apostando mais no cuidado do que na organização, os
núcleos tentam se transformar no “novo CRIS” como dizem algumas equipes.
Deste modo, quando nos referimos aos SRT estamos apontando para
organização do Programa que dá suporte as Residências Terapêuticas (RTs).
Por RT entendemos todas as casas destinadas a acolher os pacientes e que
estão credenciadas (ou em processo de credenciamento) como serviço. A RT
se caracteriza por ser sustentada pelas formas de financiamento oportunizadas
pelo estado. Nas RTs o aluguel, a luz, a alimentação e os profissionais
cuidadores que ali trabalham são pagas pelo município. Já as moradias
assistidas estão referidas a pacientes que precisam de algum tipo de
assistência ligada à questão do morar, mas não são credenciadas e nem
sustentadas pelo poder público. Todas as despesas das moradias assistidas
são sustentadas pelos próprios moradores, mas que contam com um suporte
do SRT ou do CAPS.
O destaque na necessidade de ser inserida dentro de espaços
comunitários, alheia a espaços hospitalares, bem como o número permitido de
moradores por RT (oito) e a ênfase dada a “residência” em detrimento ao
“terapêutica” são os balizadores encontrados nas legislações que determinam
seu funcionamento. Delgado (2006) aponta para necessidade de que o SRT
esteja atrelado a um CAPS, o que também demarca uma relevância na
35
Diferentemente de outros serviços da rede, a Residência Terapêutica
não dispõe de atividades previamente estabelecidas, onde os profissionais
possuem orientações quanto às suas ações, ou seja, os atendimentos
individuais, em grupos, às famílias, as oficinas, as visitas domiciliares, o
acompanhamento terapêutico, dentre outras. Na RT, o cotidiano determina as
necessidades, e os moradores apresentam suas demandas de cuidado.
Nesse sentido, “o lar não deve servir de residência à pedagogia, à
poderosa tradição do tratamento moral, ao assistencialismo, nem à escuta
hiperistésica. Mas tampouco o abandono” (Delgado, 2006 p.30). Acerca dessa
questão, Laurent nos assinala que: “É preciso recordar que não há que se tirar
de alguém sua particularidade para misturá-lo com todos no universal, por
algum humanitarismo ou por qualquer outro motivo” (1999 p.14). Aos técnicos,
cabe acompanhar os moradores na retomada de atividades interrompidas pelo
longo tempo de internação a que foram submetidos, num processo tanto de
apropriação do espaço da casa, lugar com o qual se espera que construam
uma relação de pertencimento, quanto de circulação pela cidade, nos seus
mais variados recantos. Em ambos os programas também é responsabilidade
do Técnico de Referencia o acompanhamento dos cuidadores que sustentam o
cotidiano das casas. Questões como dinheiro, manutenção da casa,
necessidade de consultas clínicas e psiquiátricas, são outras das atribuições do
técnico, que se responsabiliza pela casa e pelos casos.
A Residência Terapêutica possui uma particularidade dentre os
dispositivos que já indicado em sua denominação: uma certa contradição entre
36
possibilidades entre o público e o privado, entre a casa e o dispositivo.
(Figueiredo e Frare, 2008).
Nesse espaço, onde o privado é forçosamente constituído pelo
imaginário do que é um 'lar', sustentado pelo nome ‘residência’ que dá a
dimensão simbólica do lugar, onde todos artifícios do que se espera de uma
‘casa’ são engendrados, onde se pratica o mais genuíno de uma suposta
‘privacidade’ se estabelece uma nova relação entre os sujeitos e a vida pública,
entre a loucura e a cidade.
Podemos afirmar com Rabinovich (2009) que a privacidade não se
equipara à intimidade, que pode ser definida como “um lugar no mundo onde o
homem pode se manter separado desse mundo” (p. 15). O íntimo pode ser lido
como uma operação do sujeito, como uma condição de manter a possibilidade
de um ‘segredo’, algo ‘oculto’ do Outro, sendo que a “ideia é manter um
território fora do poder sempre totalitário e totalizando do Outro”. (p15).
Nesse sentido, concordamos com Estrella (2010, p. 48) quando afirma
que “ofertar de uma casa não garante que o morador a habite”, que a partir da
privacidade ofertada, ali se construa uma relação de pertencimento, uma
vivência do íntimo. Como afirma Elia (2008): “Como querer que pessoas
seriamente doentes desta modalidade de sofrimento tenham facilidade em
constituir uma relação amena com o lugar em que sua relação com o Outro é
chamada em posição de intimidade?”.
Tomando o privado como oposição ao público, o que é possível oferecer
37
paciente só em um coletivo, mas que sustente suas particularidades e arranjos.
E a promessa de que cada paciente vai morar em uma casa ao se mudar para
uma RT, não pode ser cumprida. A rede assistencial pode oferecer uma casa,
uma habitação, mas não pode oferecer uma casa para todos.
Se tomarmos como referência que o sujeito, enquanto efeito de sua
relação com o Outro (como exploraremos mais adiante), possui um
inconsciente estruturado como linguagem, sendo esta necessariamente
anterior a sua existência; tomamos outra direção em relação à oposição do
público e do privado. “Pois quem quer que passe à palavra já pertence, como
tal, ao campo do Outro – já é público, em alguma medida ganhou o mundo”
(Costa-Moura, 2006, p. 159).
Podemos afirmar que nessa perspectiva, o público e o privado para o
sujeito não possuem fronteiras definidas, também o “privado” da casa e o
“público” da cidade não estão em oposição. E a aparente dicotomia entre
“casa” e “serviço” serve à sustentação desse propósito. Temos com Delgado
(2006, p.30) a indicação de quanto menos “clínica” a residência se propuser,
mais eficaz será a conquista de sua meta terapêutica. “Quanto menos ‘clínica’
ou ‘terapêutica’, mais eficaz como clínica”. Ou seja, quanto menos se ocupar
como ‘serviço’ mais a RT poderá oportunizar ao paciente a tentativa de se
vincular a partir da cidade e, portanto, menos irá precisar de serviços.
Porém, para que a RT funcione do modo menos prescritivo possível,
cumprindo a função que se espera dela enquanto serviço; é necessário um
38
sustenta a partir da clínica. (Santos, 2005). No mínimo, para apostar na
construção da casa de cada um.
1.2 - A PSICANÁLISE E AS INSTITUIÇÕES
Em seu texto “Qual instituição para o sujeito psicótico?” Zenoni (2000,
p.29) argumenta sobre a diferença entre a função social da instituição e a
função terapêutica, sendo que “essa distinção só é possível se colocamos no
ponto de partida, a clínica”. Trata-se de reconhecer que há duas práticas
distintas para então conjugar as possibilidades a partir da afirmação das
diferenças.
Segundo o autor, ter clareza da função social da instituição é o que
permite certo refreio ao ideal terapêutico. “Sem o limite de sua função social, a
instituição corre o risco de se transformar em um lugar de alienação” (Zenoni,
2000, p. 17). Deste modo, podemos tomar a indicação dentro do SRT: ter
clareza que a função social da RT é a habitação, e mais precisamente, a
habitação de pacientes egressos de longa internação para sustentar o
desmonte do aparato hospitalar, nos leva a outra forma de sustentação desse
projeto: colocando a clínica a partir da convocação feita pelos moradores, e,
nos retirando quando não somos necessários.
De acordo com Viganò (2000, p.30), “isso nos leva a inverter a relação
entre o sujeito e as instituições: não é o sujeito que deve respeitar as
instituições, mas é a instituição que só será respeitada se tiver vontade de dar
39
Desse modo, o lugar de saber ocupado pelos propósitos da instituição
deve ser repensado, para dar lugar a uma escuta do sujeito que coloque o
ouvinte no lugar de “aluno da psicose” (Zenoni, 2000). Convidados a abdicar do
hospital como moradia, a conviver com outras pessoas que muitas vezes não
conhecem e a incluir a cidade como algo rotineiro em sua existência, os
moradores se veem diante de situações, crises, questões, e toda a ordem de
acontecimentos que desmontam qualquer abordagem mais prescritiva de
condutas.
Nesses termos, o morar comporta não só as condições de habitação,
mas todas as dimensões implicadas nos sentidos de ‘habitar’ um lugar. Pensar
em uma ‘casa’ para acolher os pacientes é pensar além do ‘concreto’ da casa,
com todos os artifícios que ali são engendrados, para que o ambiente seja
reconhecido como tal. Para além do ‘ambiente’ da casa temos aí, enlaçadas ou
não, as dimensões imaginárias, reais e simbólicas que evocam a possibilidade
de se viver em uma casa e, consequentemente, de viver na cidade.
“Uma casa é uma casa”, frase de uma moradora que expressa oposição
a uma suposta tutela, traz a dimensão imaginária do discurso que “minha casa”
é o avesso do hospício e, contraditoriamente, é o lugar onde se pode fazer “o
que quiser”. Trazer a dimensão simbólica disso é convocar o sujeito a repensar
seu enunciado, pois sem dúvida “uma casa é uma casa” e, como todas, possui
regras de convivência e normas a serem respeitadas. O limite se impõe de
outro lugar que não a tutela. As normas só interessam se subjetivadas, e a
imposição ‘educativa’ de uma regra se desfaz frente à imposição de um querer
40
operadores da psicanálise apontam para outra direção: não se trata
simplesmente de adequar o morador às regras ou adaptá-lo ao convívio com
os outros. “A regra que rege a vida coletiva é a regra que se aplica inicialmente
ao Outro” (Viganò, 2000, p.23). A posição dos operadores desse convívio não é
então a de ‘fazer valer as regras’ mas presentificar um Outro que é ele mesmo
submetido à lei. É trazer essa dimensão, esvaziando o querer caprichoso do
Outro e responsabilizando sempre o sujeito. Não se trata somente do
pragmatismo da vida na cidade e das imputações decorrentes do não
cumprimento de contratos sociais. Certamente esse aspecto está incluído, mas
não subtrai a responsabilidade do sujeito por sua posição.
Figueiredo (2007, p.4) aclara a distinção entre responsabilidade e tutela,
afirmando que “o sujeito é responsável por sua existência (ou ex-sistência) e
como tal ‘responde’ seja como for, ao que lhe é apresentado, oferecido ou
mesmo imposto, seja no surto ou na estabilização. Não há como
desresponsabilizá-lo nesse ponto retirando-lhe qualquer possibilidade de
resposta. A responsabilidade civil ou jurídica deve ser auferida a partir dessa
responsabilidade de existência inicial”.
Nesse sentido, muitas vezes é necessário que se responda
negativamente a uma demanda, outras vezes que se coloque um ponto de
basta. Na convivência com os outros há regras, e também cabe apresentá-las,
só não cabe operar moralmente com quem não executa a contratualidade do
modo esperado, não cabe creditar imaginariamente a uma adaptação o fato
das normas serem seguidas ou não, pois restaurar um laço do sujeito com o
Outro é a possibilidade de subjetivação das regras. “Procura-se, junto ao
41
sintoma como presença do significante do Outro que ele traz em si” (Laurent,
2000, p.173).
Se muitas vezes, o pedagógico e o terapêutico são elementos presentes
em uma psicanálise, na clínica do ‘só depois’, não é possível partir somente
das práticas efetuadas em um dispositivo para determinar se ali há
possibilidade de superar uma lógica ‘ortopédica’. (Viganò, 2000).
De acordo com Laurent (1999, p.19), o analista-cidadão não é
antagônico às novas formas de assistência em saúde mental “formas
democráticas, anti-normativas e irredutíveis a causalidade ideal”, porém o que
chamamos de reabilitação não pode reduzir-se a um trabalho que desconsidere
a dimensão do sintoma, que tome esse como análogo à patologia, ou mesmo
ao seu poder de contratualidade, sob o risco de propor uma reabilitação como
exclusão da clínica (Viganò, 2000). Desse modo, entre a patologização que
toma o sujeito como objeto, e a adequação do sujeito às normas sociais,
existem outras possibilidades de manejar a loucura na cidade.
Nesse sentido, Di Ciaccia (2005) nos dá algumas indicações sobre o
funcionamento das instituições, afirmando que todas as formas institucionais
tem como origem a estrutura da linguagem e que, portanto, todo sujeito está
imerso em algumas ou uma instituição. Desta feita, a oposição entre
“instituição” e “casa” perde o sentido, já que sempre haverá uma instituição
simbólica que parte do sujeito.
Assim, trazendo a discussão para a dinâmica do SRT, podemos dizer
42
cada sujeito. “Concretamente, não é na organização que se diferenciam as
instituições inspiradas na psicanálise. Podem existir aí mil e uma formas de
organização, mas todas se garantem em uma mesma política: todas privilegiam
o particular contra a utopia do universal”. (Di Ciaccia, 2005, p. 24).
A aposta do SRT então permite que, através da particularização do
cuidado, possamos fundar uma instituição para cada morador. Esse caminho,
43
“É próprio das verdades não se mostrarem por inteiro” Lacan
CAPÍTULO II – ENDEREÇO: A AVALIAÇÃO
O campo assistencial, político e intelectual da Reforma Psiquiátrica
Brasileira já comemora uma década da Lei 10.216 referente à assistência
psiquiátrica no Brasil, partindo de seu ponto mais caro: o desmonte do aparato
manicomial e sua substituição por uma rede alternativa de cuidados. Muito se
avançou nesse sentido, e os chamados ‘novos dispositivos’, hoje já estão
inseridos no tecido social, e têm respondido a seu mandato de tratar a loucura
na cidade, sustentando um tratamento que pode prescindir das longas
internações e constrói cotidianamente soluções para lidar com a complexidade
de cada caso.
Já esboçamos que não por acaso, os Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT) se configuram como uma estratégia fundamental, uma vez
que foram criados para servirem como moradias aos pacientes que, há muito
tempo, viviam em hospitais psiquiátricos. Somente com a criação de serviços
voltados para moradia é que a Reforma Psiquiátrica Brasileira pôde avançar
em seus intentos. Considerando então a dimensão que este serviço ocupa
dentro da rede de cuidados, algumas considerações sobre seu funcionamento
e sua concepção merecem destaque. Muitas questões se colocam para esse
serviço situado no litoral da moradia e a assistência, e destacamos um aspecto
que se torna relevante nesse processo que funda e justifica o SRT: a avaliação
44
Tendo em consideração que, mesmo dez anos depois, contando com
todos os avanços nesse campo, ainda temos mais pacientes vivendo em
ambiente hospitalar do que nas casas destinadas às Residências Terapêuticas;
e que esse dispositivo não pode se furtar à especificidade apresentada por
cada caso, fica patente a necessidade de que o “encaminhamento” de futuros
moradores passe por algum critério. A condução desse processo é o que
denominamos de “avaliação de pacientes”.
No V Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Budapeste
meses antes do fim da Primeira Guerra Mundial, Freud abre sua fala –
publicada em 1919 com o título de “Linhas de progresso na terapia
psicanalítica” – relembrando que a psicanálise não deve recuar diante de novas
inserções, assumindo novas direções em que podem se desenvolver. Sua
argumentação parte da ideia de que a clínica não está dada e precisa ser
constantemente construída. De acordo com Freud: “haverá instituições ou
clínicas de pacientes externos, para os quais serão designados médicos
analiticamente preparados. Tais tratamentos serão gratuitos.
Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições”.
(Freud, 1976 [1919]).
Freud antecipava em muitos anos as múltiplas inserções de
psicanalistas em campos intersetoriais tais como escolas, hospitais e, como no
caso do presente estudo, nas políticas públicas de tratamento da loucura e
seus dispositivos. Porém, concomitantemente às possibilidades para um novo
“campo de técnicas psicanalíticas” enfatiza a necessidade de sua cuidadosa
45
Na preposição de 9 de outubro de 1967, Lacan afirma a psicanálise em
extensão como "tudo o que resume a função de nossa Escola como
presentificadora da psicanálise no mundo" e, psicanálise em intensão (que
refere-se a intensidade e não a uma ideia de propósito) como "psicanálise
didática, não fazendo mais do que preparar operadores para ela" (Lacan, 2001
[1967]). Podemos inferir que seguindo os passos de Freud, Lacan também se
debruçou sobre as possibilidades da práxis psicanalítica se estender a
diferentes campos. Em seu texto, “Variantes do tratamento padrão” de 1955,
deixa clara sua preocupação com os fundamentos da psicanálise, assinalando
que “variantes, não quer dizer nem adaptação ao tratamento, com base em
critérios empíricos nem, digamos, clínicos, à variedade dos casos, nem uma
referência às variáveis pelas quais se diferencia o campo da psicanálise, e sim,
uma preocupação, inquieta até, com a pureza nos meios e nos fins” (Lacan,
1998 [1955], p 326). Segue reafirmando um rigor no que tange à ética, que no
caso da psicanálise está ligada ao bem dizer e não ao bem estar ou ao bem
querer.
Advertidos desde Freud sobre os perigos do que cunhou como furor
sanandi, ou a vontade de curar, ou no caso, de avaliar, reabilitar ou reformar
(Estrella, 2010) propomos então pensar sobre a prática da avaliação de
pacientes que constitui um dos ofícios dos Serviços Residenciais Terapêuticos.
Orientados pela psicanálise, ensejamos fazer advir o sujeito do
inconsciente, e perseguimos esse fio da meada no emaranhado de questões
que se presentificam na escuta de um paciente. Como um psicanalista pode
46
na retirada de pacientes do ambiente hospitalar? Ou de outro modo, em que a
psicanálise pode contribuir num processo que encaminha pacientes para um
serviço que se propõe ao morar, mas que por vezes sustenta, empreende e
permite o tratamento?
2.1 - UMA CASA QUE É UM SERVIÇO QUE É UMA CASA
No intuito de adequar o serviço às necessidades dos pacientes, as RTs
são pensadas de acordo com a particularidade de cada morador. Isso requer
um cuidado na criação de novos serviços, pois não basta ampliar o número dos
mesmos, é necessário ter em conta que ‘tipo’ de residência dentro de um
programa residencial deve ser criada. Revela-se assim a estratégia institucional
da RT, que busca apresentar aos futuros moradores condições necessárias
para iniciar sua empreitada fora da instituição psiquiátrica. Também vale
lembrar que como parte do processo de desinstitucionalização, a montagem de
novos serviços não pode se furtar à função a que foi destinada: dar suporte ao
desmonte dos hospitais psiquiátricos, e, portanto, deve se adequar a uma
agenda mais ampla.
Temos então um serviço que atende às necessidades de uma política de
assistência e que se edifica no ideal de ser uma casa para cada morador.
Configura-se assim um dispositivo que se pretende uma instituição fundada a
partir de cada morador, não podendo fugir dos contornos que cada um
necessita para ali estar. E temos ainda uma assertiva de subverter a lógica
47
manicômio a partir da crítica à sua lógica. Mas em que consiste esta lógica que
não deve ser reproduzida?
Podemos afirmar, grosso modo, que devido ao emaranhado de tramas
discursivas e padronizações de procedimentos que encontramos dentro dos
ambientes manicomiais, os pacientes se enredam nos jogos de poderes e
saberes que ali se atualizam. Há, de certo modo, uma tentativa de apagamento
do que é mais subjetivo de cada um, empenhando uma forma de cuidado que
só se diferencia para cada paciente a partir da convocação pelo mesmo ou de
muito esforço da equipe. Como instituição, as regras são pensadas para
garantir o funcionamento do hospital, e cabe ao paciente internado adequar-se
(ou não) àquilo que é pensado para acolher ‘a todos’, deixando pouco espaço
para o que é próprio de cada um.
Na Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, por exemplo, ficava fácil
identificar que a lógica de cuidado era manter o mesmo ‘padrão’ para todos.
Todos deveriam tomar banho no mesmo horário, se alimentar no mesmo
horário, ter evoluções em prontuários caso houvesse alguma coisa de
‘diferente’. As rotinas eram estabelecidas para todos do mesmo modo, e só
eram discutidas e reavaliadas quando alguém quebrava uma norma, ou fazia
alguma solicitação que não estava descrita no protocolo. Não é preciso dizer
que isso acontecia o tempo todo, mas a tentativa era a de restabelecer a ordem
anterior, seguindo à risca a prerrogativa de que ‘saúde’ e seu correlato
‘normalidade’ podem ser medidos pelo silêncio ou pela constância. A despeito
das tentativas dos técnicos de subverter essa dinâmica, estabelecendo uma
48
na instituição parecia apontar que ali, manter a institucionalidade, era o mais
importante.
Em Paracambi os ecos do hospício habitavam as RTs de maneira
contundente. Não era difícil reconhecer as marcas da longa internação nos
moradores. Alguns dormiam com pães dentro do pijama por medo de não
haver pão no dia seguinte. Outros dormiam com o chinelo, artigo de luxo dentro
do hospital, para que ninguém pudesse roubá-lo. Outras situações, menos
objetivas, também demonstravam que dentro da precariedade instalada
naquele hospital era necessário criar estratégias: não raro os moradores
tentavam ‘ganhar’ algo dos cuidadores (poderia ser uma autorização para levar
alguém para casa ou até um remédio que não estava prescrito) ameaçando
contar para o técnico de referência algo sobre o cuidador. Isso acontecia muito
dentro da CSDE, uma construção hierárquica de credulidade institucional, onde
o fato só tinha relevância diante do reconhecimento de um superior. Os
pacientes sabiam disso, e muitas vezes jogavam com o fato de os técnicos não
desacreditarem no que diziam. Claro que isso tudo chegava à RT dentro das
malas de cada morador. Fazer com que essas estratégias forjadas na lógica
hospitalar pudessem ser reescritas era um trabalho cotidiano, fundado no
cuidado que cada um precisava, nas regras que eram estabelecidas e
restabelecidas constantemente com todos; e também na evidente
impossibilidade de todos ficarem satisfeitos.
É uma casa, que tem como finalidade a moradia, mas habitada por
pessoas que trazem em sua história uma vida institucional e uma carreira
49
fazer um almoço, por exemplo, poderia ser um grande obstáculo para grande
parte dos moradores das RTs de Paracambi. Em função disso, muitas
discussões eram feitas para determinar se a comida viria pronta de algum lugar
ou seria confeccionada nas casas. O que se constatou é que em algumas
casas era possível cozinhar, mas, em outras, isso era uma possibilidade a ser
construída, já que muitos moradores não tinham a menor ideia do que era
necessário para cozinhar. Uma vez um morador fez uma ‘sopa de sabão’ e
disse que quando via panelas fervendo sempre havia roupas dentro, logo se o
sabão era para lavar roupas, o fogão serviria somente para isso. No IMAS-JM
essa discussão era muito mais particular, já que de modo geral em todas as
casas havia algum morador que cozinhava (com ou sem auxílio de um
cuidador). A organização institucional então vai se estabelecer segundo as
necessidades de cada casa, e mais radicalmente de cada caso, restando,
ainda que de modo residual, uma instituição. (Zenoni, 1991).
Esse aparente paradoxo entre ‘casa’ e ‘serviço’ é uma fonte rica de
reflexões. “Casa ou serviço? Se for uma casa, por que pensar em termos de
terapêutica? (...) Se for uma casa, por que falar em uma ‘equipe’ responsável
por essa casa?” (Cavalcanti et al, 2006 p 84). E por outro lado, se for um
serviço, por que temos tanto trabalho em transformar esse espaço em uma
casa? O que de fato sustenta a escolha por esse tipo de investimento no
âmbito das políticas públicas?
O texto de Cavalcanti et al (2006) tenta responder essa pergunta
tecendo duas considerações, a saber: 1. A qualidade das relações que se