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A POLÍTICA CRIMINAL E OS EFEITOS DE UMA NOVA REGULAMENTAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL Mestrado em Direito

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Fábio Fernandes Chaim

A POLÍTICA CRIMINAL E OS EFEITOS DE UMA NOVA REGULAMENTAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL

Mestrado em Direito

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A POLÍTICA CRIMINAL E OS EFEITOS DE UMA NOVA REGULAMENTAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito (Efetividade do Direito), sob orientação do Professor Dr. Guilherme de Souza Nucci.

Mestrado em Direito

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A POLÍTICA CRIMINAL E OS EFEITOS DE UMA NOVA REGULAMENTAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL

Banca Examinadora

______________________

_______________________

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Dedico a presente dissertação de mestrado a meu pai Fernando Pires Chaim (in memória), cujo exemplo de vida, honestidade e desejo de justiça serviram de modelo, inspirando minha relação com o Direito.

À minha mãe Marines Fernandes Pires Chaim, cujo amor, caráter e força de vontade, para resistir às adversidades da vida, serviram de exemplo.

À minha vó paterna, Maria de Lourdes Pires Chaim pela alegria de vida e fonte de amor inesgotáveis.

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O presente trabalho tem como temática a política antidrogas brasileira enquanto processo histórico voltado a proteção da saúde pública, cuja evolução resultou em uma abordagem prioritariamente criminal, o chamado proibicionismo modelo dotado de uma relação custo/benefício desproporcional.

A Lei 11.343/06 é resultado deste processo de evolução histórica possuindo mecanismos que facilitam a criminalização, expandem o encarceramento e distanciam sua interpretação dos princípios penais, bem como dos direitos e garantias constitucionais previstos na Constituição Federal.

Nas décadas finais do século XX diversos países passaram a adotar novos modelos de política pública alternativos para o tema, o que em conjunto com a regulamentação já existente no Brasil para substâncias como o álcool, tabaco e medicamentos demonstram a viabilidade de alternativas jurídicas ao emprego de tutela penal.

Com efeito, uma nova regulamentação de substâncias de baixo risco atua sobre os custos da própria proibição, protegendo a saúde dos usuários, controlando o consumo, reduzindo o poder das grandes organizações criminosas e influenciado a atuação do Poder Público no sentido da melhor satisfação aos ideais do Estado Social e Democrático de Direto.

Palavras-Chave: Política Criminal – Legislação antidrogas – Princípios Penais –

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The present study has as main theme the Brazilian anti-drugs policy while a historic process focused on public health protection, whose evolution resulted in a particular criminal approach, the so-called prohibition model endowed of a disproportionate cost-benefit ratio.

The law 11.343/06 is resulted from this historic evolution process possessing mechanisms which allow criminalization, imprisonment expansion and detach their interpretation from criminal principles, as well as rights and constitutional guarantees established in the Federal Constitution.

In the final decades of the XX century several countries adopted new alternative models of public policy for the theme, which in conjunction with the existing regulation in Brazil for substances like alcohol, tobacco and medicines demonstrate the feasibility of juridical alternatives to criminal oversight job.

Indeed, a new regulation of low risk substances acts over the prohibition costs, protecting users health, controlling consumption, reducing power of big criminal organizations and influencing the Public Power role on the sense of satisfaction with Social and Democratic state by rule of law.

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INTRODUÇÃO... 11

CAPITULO I 1 OS PRINCÍPIOS QUE REGEM O TRATAMENTO JURÍDICO OFERECIDO AO CONSUMO E A COMERCIALIZAÇÃO DE DROGAS ILÍCITAS... 15

CAPITULO II 2 A REPRESSÃO À COMERCIALIZAÇÃO DE DROGAS AO LONGO DA HISTÓRIA ... 24

2.1 Das Guerras do Ópio às metas do milênio, o mundo contra as drogas 24 2.2 Da Lei Seca à militarização do conflito, o papel norte-americano no proibicionismo global ... 31

2.3 De país de trânsito a grande consumidor de drogas ilícitas, a entrada do Brasil na repressão global ... 37

2.4 Convenções e Tratados, a política brasileira sobre drogas vinculada aos compromissos internacionais assumidos ... 49

CAPITULO III 3 OS EFEITOS DA ATUAL SISTEMÁTICA PROIBICIONISTA E A NECESSIDADE DE UMA REVISÃO DO MODELO EM VIGÊNCIA ... 59

3.1 O exemplo histórico ... 61

3.2 Processos de diversificação e adaptação dos criminosos envolvidos com o tráfico... 63

3.3 O proibicionismo como fator determinante nas altas margens de lucro para o tráfico de drogas ... 67

3.4 A dificuldade no controle da comercialização dos precursores químicos ... 69

3.5 Estigma e preconceito para com os usuários ... 70

3.6 Problemas de saúde pública ... 73

3.7 Aumento da população carcerária ... 76

3.8 Aumento dos gastos públicos ... 79

3.9 Celeridade da tutela penal ... 81

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antidrogas... 86

CAPITULO IV 4 MODELOS INTERNACIONAIS DE REGULAMENTAÇÃO DO MERCADO DE DROGAS ... 88

4.1 Os modelos norte-americanos dos Estados da Califórnia, Colorado e Washington... 88

4.2 Nova Zelândia, listas modulando a sanção penal, licenças e substâncias aprovadas ... 95

4.3 O modelo canadense, uso medicinal e tipos autônomos modulando a sanção penal ... 98

4.4 O modelo uruguaio, cadastro de usuários e regulamentação controlados pelos Estado ... 100

CAPITULO V 5 Análise jurídica da Lei 11.343/06 dentro do contexto do proibicionismo global... 102

5.1 Da expansão dos mecanismos de criminalização... 103

5.1.1 Fase policial... 103

5.1.2 Do emprego de tipos penais abertos, vagos e imprecisos... 105

5.1.3 Do emprego de norma penal em branco... 106

5.1.4 Da multiplicidade de condutas previstas em cada tipo penal... 110

5.1.5 Da punição dos atos preparatórios... 111

5.1.6 Da reedição do duplo binário... 112

5.1.7 Da expropriação de terras... 114

5.1.8 Da limitação a direitos e benefícios penais e processuais penais... 115

5.1.9 Da inversão do ônus da prova nas medidas assecuratórias... 121

5.1.10 Da falta de proporcionalidade entre os crimes e as penas... 123

5.2 Da repressão ao consumo de drogas... 124

5.3 Da compatibilidade da Lei 11.343/06 com um modelo regulamentado de mercado... 132

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6.1 Álcool, tabaco e medicamentos, modelos regulamentadores enquanto

experiência concreta... 135

6.2 Modelo brasileiro, experiências internacionais adaptadas a realidade.. 140

CAPITULO VII 7 OS EFEITOS DE UMA NOVA POLÍTICA ANTIDROGAS VOLTADA PARA A REGULAMENTAÇÃO PARCIAL E CONTROLADA DA PRODUÇÃO, COMERCIALIZAÇÃO E CONSUMO DE MACONHA ... 143

7.1 Da possibilidade de desvios do modelo regulamentador estabelecido.. 144

7.2 Da alteração nos preços para a substância legalmente comercializada 145 7.3 Os efeitos sobre as questões de saúde pública ... 149

7.4 Os efeitos da regulamentação do mercado sobre as grandes organizações criminosas... 151

7.5 Efeitos na segurança pública ... 153

7.6 A regulamentação afeta os índices de corrupção dentro do Poder Público ... 154

7.7 A regulamentação afeta a dinâmica orçamentária do Poder Público... 156

7.8 Efeitos jurídicos ... 157

7.9 Do aumento do consumo e do número total de usuários... 158

7.10 Efeitos econômicos da regulamentação do mercado ... 161

CONCLUSÃO ... 162

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INTRODUÇÃO

O conceito de ‘droga’ pode ser definido por Vicente Greco Filho (citando a

definição oferecida pela Organização Mundial da Saúde) como sendo “toda

substância, natural ou sintética, capaz de produzir em doses variáveis os fenômenos

de dependência psicológica ou orgânica”1.

Tratando-se de um conceito amplo, a produção, a comercialização e o consumo destas substâncias podem ser observados como uma constante antropológica2, variando o tratamento cultural, social, político e jurídico oferecido a cada uma delas, em determinado momento histórico, em delimitada sociedade. Desta forma, substâncias como álcool, tabaco e medicamentos, são atualmente objetos de uma regulamentação voltada ao controle da cadeia produtiva e do uso, protegendo seus usuários através do controle na qualidade, na quantidade de princípio de ativo e na presença de contaminantes externos, bem como no controle dos preços, limitações quanto ao marketing e a imposição de barreiras de comercialização (ex. idade), sendo os desvios tratados principalmente com mecanismos de direito civil e administrativo. Paralelamente, existem as chamadas substâncias ilícitas (maconha, cocaína e heroína), cuja regulamentação limita-se a proibição da produção, comercialização e consumo, bem como existindo exceções relacionadas com o uso médico (morfina) e religioso (ayahuasca, Chá do Santo Daime), e sendo os desvios tratados prioritariamente pelo direito penal.

O controle social penal incidente sobre as substâncias consideradas como ilícitas é definido como proibicionismo. Segundo Mariana de Assis Brasil e Weigert, o proibicionismo “tem como premissas fundamentais a distinção entre drogas legais e ilegais e a convicção de que o único meio eficaz para lutar contra os danos

produzidos pelas drogas ilegais é a repressão penal”3. A incidência prioritária de tutela penal no tema do controle das drogas ilegais tem como objeto jurídico predominante a tutela da saúde pública4, exposta a riscos derivados do consumo descontrolado destas substâncias, de sua toxidade e de seu elevado potencial (em

1 GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção-repressão. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009.

p.7.

2 MARTINS, Charles Emil Machado. Uso de drogas: Crime? Castigo? In: CALLEGARI, André Luís

e WEDY, Miguel Tedesco. Lei de drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2008. p.80.

3 WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. Uso de Drogas e o Sistema Penal: Entre o Proibicionismo e a

Redução de Danos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p.31.

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regra) para causar dependência, bem como nos efeitos causados pela influência crescente do crime organizado (parcialmente financiado pelo comércio ilegal) em diversos aspectos da vida social, econômica, política e jurídica.

Neste sentido, o proibicionismo, nas décadas finais do século XX, precisou lidar com desafios crescentes em matéria de segurança pública visto que as grandes organizações criminosas passaram a atuar sobre outros campos da vida pública, não mais se limitando ao comércio ilícito de drogas, resultando no interesse político e no suporte popular ao endurecimento das medidas proibicionistas já existentes. Como consequência, ocorreram movimentos de descodificação do Direito Penal, de flexibilização de Direitos e Garantias Fundamentais e da expansão das legislações penais antidrogas, com a previsão de novos crimes, novas condutas, emprego de conceitos abertos (facilitando a interpretação voltada para a criminalização), uso de normas penais em branco, punição de atos preparatórios, penas mais longas e requisitos mais rígidos (ou mesmo a vedação) para o acesso a benefícios penais (suspensão condicional do processo, liberdade provisória, direito de apelar em liberdade, progressão de regime, liberdade condicional, dentre outros).

Não obstante o endurecimento do proibicionismo, as décadas finais do século XX observaram a expansão do comércio e do consumo de drogas ilegais, resultando em críticas acerca da adequação do modelo de política pública prioritariamente criminal existente para o tema, bem como na elaboração e adoção de novos modelos regulamentadores, inspirados naqueles já existentes para as substâncias lícitas, oferecendo alternativas para a proibição radical sem implicar na liberação completa e irrestrita das substâncias atualmente consideradas como ilícitas.

Desta forma, o presente estudo tem como objetivo uma análise da atual política criminal antidrogas e de suas consequências, bem como das possibilidades e dos efeitos de uma nova regulamentação do mercado no Brasil, voltado para substâncias de baixo risco, sendo o principal destaque a maconha.

O primeiro capítulo do presente estudo aborda os princípios constitucionais, penais e processuais penais envolvidos com a legislação antidrogas brasileira, responsáveis por atuar como vetores interpretativos da Lei 11.343/06, demonstrando que o endurecimento do proibicionismo é possível apenas com flexibilização ou afastamento destes pressupostos fundamentais do direito penal.

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direito internacional, abordando a evolução do tratamento jurídico oferecido em três níveis, quais sejam mundial, nos Estados Unidos da América e no Brasil, demonstrando-se que a atual política proibicionista é o resultado de um processo evolutivo que ultrapassa a mera redação e aplicação dogmática da legislação, guardando relação com interesses econômicos, sociais, culturais e políticos que transcendem a tutela da saúde pública.

O terceiro capítulo tem como objetivo delimitar as consequências e os efeitos do proibicionismo através de uma análise criminológica e da coleta de dados presentes em documentos e obras nacionais e internacionais, produzidos por entidades como a Organização das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos, e organizações do setor privado que abordam o tema de maneira crítica, demonstrando a necessidade de uma revisão da abordagem oferecida, voltada a uma nova regulamentação do mercado.

O quarto capítulo aborda os modelos regulamentadores existentes para a questão da comercialização de drogas atualmente consideradas como ilícitas, demonstrando a existência de opções que dispensam a necessidade de uma liberação completa e irrestrita. Os modelos norte-americanos existentes nos Estados da Califórnia, Colorado, Washington e Oregon serão abordados em razão da criação de regras extensas para o consumo recreativo e/ou medicinal da maconha, criando-se um sistema de licenças que controla a cadeia produtiva e o uso. O modelo canadense será analisado em razão da liberação da maconha para uso medicinal, mantendo-se criminalizado o uso recreativo e o tráfico fora dos moldes permissivos criados, estabelecendo também mecanismos rígidos de controle na cadeia produtiva e no fornecimento. O modelo neozelandês será analisado em razão da criação de um sistema de listas que modula a aplicação de sanção penal ao tipo de substância apreendida, criando paralelamente mecanismos de aprovação, emissão de licenças, produção e comercialização para novas substâncias de baixo risco, as chamadas

party pills (pílulas de festa). Por fim, será analisado o modelo uruguaio em razão de se tratar do primeiro país a oficialmente “legalizar” a produção e consumo de

maconha, criando mecanismos regulamentadores que mantém a cadeia produtiva sobre controle estatal, sem deixar de aplicar a tutela penal para o tráfico da substância fora dos moldes permissivos criados.

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dispositivos polêmicos em face dos princípios penais, da Constituição Federal e do proibicionismo, buscando demonstrar sua sistemática como própria de um Direito Penal de Emergência responsável pela redação de uma legislação voltada a expansão dos mecanismos de criminalização e de manutenção no cárcere, através de previsão de um amplo rol de condutas criminosas, pela longa duração das penas e pelas restrições no acesso a benefícios penais.

O sexto capítulo busca analisar o objeto de uma nova regulamentação das drogas no Brasil através dos modelos internacionais estudados, por meio da análise de obras de Criminologia, Sociologia e Direito Internacional, de documentos produzidos pela ONU, pela OEA e por entidades do setor privado, e da legislação regulamentadora existente para o álcool, o tabaco e os medicamentos, buscando-se demonstrar os moldes e as vantagens da regulamentação existente, delineando-se as linhas gerais de um novo modelo regulamentador brasileiro para a maconha.

O sétimo capítulo, com base nos elementos analisados nos itens anteriores, bem como em obras da área de Criminologia, terá como objetivo a análise dos efeitos econômicos, sociais e jurídicos esperados de uma nova regulamentação para substâncias consideradas hoje como ilícitas.

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CAPÍTULO I

1 OS PRINCÍPIOS QUE REGEM O TRATAMENTO JURÍDICO OFERECIDO AO CONSUMO E A COMERCIALIZAÇÃO DE DROGAS ILÍCITAS.

O conceito de princípio pode ser definido por Guilherme de Souza Nucci como

uma “ordenação, que se irradia e imanta os sistemas de normas, servindo de base para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.”5 Como consequência, os princípios servem para a compreensão não apenas do teor da norma legal, mas de sua própria legalidade e constitucionalidade.

O tratamento jurídico acerca do controle ou da repressão ao cultivo, manufatura, comercialização e porte (voltado ao consumo pessoal) de drogas ilícitas encontra-se delimitado principalmente pela Lei 11.343/06, bem como pelos instrumentos legais e administrativos dela derivados ou relacionados. Desta forma, os princípios penais e processuais penais estabelecidos na Constituição de 1988 são fundamentais para compreensão e interpretação do teor e da abrangência da política antidrogas brasileira e das normas relacionadas.

Preliminarmente, destaca-se a relevância do postulado/princípio da secularização do Direito. Segundo a definição de Salo de Carvalho, trata-se de máxima fundante dos Estados Democráticos de Direito e deriva da ideia de que a

“pena não pode servir para reforçar ou impor determinados padrões de comportamentos”6. Sua importância deriva do fato de que a linha que separa as drogas lícitas das ilícitas possui relação com fatores de ordem moral, derivados de questões de tolerância cultural e estigmas sociais voltados para minorias étnicas e hipossuficientes7. Desta forma, a pena quando incide sobre o usuário, acaba por impor um modelo comportamental dentro de uma dinâmica valorada acerca daquilo que pode, ou não, ser consumido. Neste sentido, basta comparar as consequências sociais e jurídicas do consumo regulamentado de bebida alcoólica (violência, acidentes automotivos, danos à saúde individual), em contraparte ao consumo da

5 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 6ª edição. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.78.

6 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático

da Lei 11.343/06. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p.187 e 188.

7 Ópio e heroína para os imigrantes chineses e a maconha para os mexicanos, no caso do cenário

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folha de coca mascada pelas populações nativas dos Andes8. Ao tempo em que o consumo tradicional de substâncias consideradas ilícitas por parte de populações nativas encontra diversos obstáculos a sua realização9, o consumo de álcool é amplamente difundido, em face da tolerância cultural. A desproporcionalidade no tratamento jurídico existente entre ambas as condutas acaba sendo consequência da tentativa de se impor valores morais por meio do Direito Penal, definindo-se o que pode e o que não pode ser consumido.

A análise histórica (capítulo II) da repressão a produção, comércio e consumo (ou porte para o consumo) das drogas ilícitas demonstra o caráter estigmatizador e preconceituoso da política criminal antidrogas reforçando a necessidade de uma releitura da legislação antidrogas brasileira à luz do postulado da secularização.

Com relação aos princípios penais e processuais penais, podem ser observados questionamentos referentes aos princípios da presunção de inocência, da legalidade, da taxatividade, da humanidade das penas, da subsidiariedade, da individualização das penas, da proporcionalidade, da obrigatoriedade da ação penal e do acesso ao contraditório e a ampla defesa.

O princípio da presunção de inocência encontra-se previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, cujo teor versa que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A presente legislação

antidrogas implica em sua violação dentro de três aspectos, quais sejam as restrições a benefícios penais, a presunção de periculosidade do agente que porta para consumo e a antecipação da pena sem o devido processo legal, quando da oferta de transação penal.

Observa-se que os artigos 44 e 59 da Lei 11.343/06 preveem a aplicação de restrições com relação a concessão liberdade provisória e suspensão condicional da pena, bem como tratam da obrigatoriedade do recolhimento ao cárcere para o ingresso de recurso de apelação (para os réus reincidentes). Desta forma, estas restrições implicam que a prisão é transformada em regra, violando a presunção de inocência do acusado dentro de uma periculosidade presumida pela própria legislação antidrogas.

8 O consumo de substâncias consideradas como drogas ilícitas por populações nativas foi objeto de

proibição nas Convenções da ONU, demonstrando o desrespeito com o direito a autonomia dos povos, previsto em seu próprio instrumento constitutivo.

9 O consumo tradicional foi reconhecido no direito nacional e internacional apenas após a Convenção

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No que diz respeito ao porte para uso, a repressão penal decorre do perigo social representado pelo agente de que sua conduta dissemine o vício10, bem como de que sua conduta financie o crime organizado e o tráfico de drogas ilícitas. Busca-se assim tutelar a saúde pública de maneira preventiva através da antecipação da repressão penal sobre uma conduta hipotética ainda não praticada, ou seja, da posse voltada ao consumo pessoal presume-se a entrega não autorizada para terceiro e do ato de aquisição para uso pessoal a própria existência do crime organizado. Portanto, a periculosidade do agente é presumida do simples fato de ser usuário, sendo reprimido por suas escolhas pessoais de vida e por suas consequências hipotéticas, independentemente de qualquer nexo de causalidade comprovado no caso concreto, elementos relacionados com o Direito Penal do Autor.

Na concepção de Rogério Greco11 o Direito Penal pode ser dividido, quanto a análise do crime, sobre o fato propriamente dito, ocorrendo sobre a conduta praticada, e sobre o autor, relacionado com o agente que cometeu o fato. Neste sentido, a política criminal antidrogas brasileira, como consequência de seu processo histórico de formação (capítulo II) encontra-se alinhada com o posicionamento de que o usuário é responsável pela existência do tráfico de drogas ilícitas, financiando os criminosos com seu ato de aquisição12, ou é um futuro traficante em potencial, que passaria a comercializar para sustentar seu vício, revivendo o Direito Penal do Autor13 de raízes autoritárias. O perigo representando pela hipotética comercialização futura por parte do usuário é criticada por Alberto Zaccharias Toron14, que alerta para o risco da regressão ao infinito, legitimando a repressão do alcoolismo e até da produção de automóveis, pela possibilidade que venham a influir na prática futura de crimes.

Por fim, e ainda com relação ao usuário, observa-se que as penas previstas no artigo 28, em conjunto com o disposto no artigo 48, parágrafo 1º, ambos da Lei

10 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p.132.

11 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 17ª edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2015, p.446 e 447. 12 A eficácia e as consequências deste posicionamento serão abordadas no capítulo III.

13 REGHELIN, Elisangela Melo. Considerações político-criminais sobre o uso de drogas na nova legislação penal brasileira. In: CALLEGARI, André Luís e WEDY, Miguel Tedesco. Lei de drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2008. p.89 e 90.

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11.343/06 implicam na possibilidade de oferecimento de transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95) ao agente flagrado com pequena quantidade voltada ao consumo. Decorre da própria natureza das penas previstas no citado artigo 28 que o autor do

fator estaria aceitando “uma transação penal idêntica à pena prevista em lei, com a

desvantagem de ser aplicada sem a ampla defesa, o contraditório, ou o devido

processo legal”15, o que antecipa a pena sem que a sua culpa seja comprovada em juízo.

O princípio da legalidade encontra-se previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, cujo teor versa que “não há crime sem lei anterior que o

defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Rogério Greco ressalta que se trata um princípio intimamente relacionado com o próprio Estado de Direito, pois vincula todos perante a lei, retirando o poder absoluto das mãos do soberano16. Ademais, sua existência possui um caráter “fixador do conteúdo das normas penais incriminadoras, ou seja, os tipos penais, mormemente incriminadores, somente podem ser criados através de lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, respeitado o procedimento previsto na Constituição.”17. Como consequência, sua existência limita o exercício da tutela penal as próprias disposições legais e constitucionais protegendo os cidadãos contra o abuso de poder.

Ocorre que o art. 66 da Lei 11.343/06, submete à Portaria SVS/MS 344/98 do Ministério da Saúde a definição de quais substâncias são consideradas drogas

ilícitas (Listas ‘E’ e ‘F’). Trata-se da chamada norma/lei penal em branco definida

como aquela “caracterizada por preceitos incompletos que requerem preenchimento

por terceiros dispositivos, normalmente de cunho extrapenal (administrativo)”18. Desta forma, a complementação do teor da norma penal ocorre de maneira alheia ao processo legislativo, levando a inclusão de substâncias nas listas daquelas consideradas como proibidas por critérios políticos, econômicos e técnicos que transcendem a vontade popular violando o princípio da legalidade. Neste sentido, entende Salo de Carvalho que o emprego de normas penais em branco derivam de um processo de mutação normativa relacionado com a expansão de um Estado

15 GERSON, Fernando. O novo sistema nacional de políticas públicas sobre drogas e a flexibilização do modelo criminal repressivo. In: CALLEGARI, André Luís e WEDY, Miguel Tedesco “Lei de drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal”. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2008. p.146.

16 GRECO, Rogério. Op. cit., p.143.

17 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, p.78.

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intervencionista criminalizador19 ocorrida ao longo do século XX, contradizendo os próprios ditames do princípio da legalidade.

A expansão dos mecanismos de criminalização da legislação antidrogas brasileira resulta também na violação do princípio da taxatividade, que pode ser definido por Guilherme de Souza Nucci como dotado do significado de que:

as condutas típicas, merecedoras de punição, devem ser suficientemente claras e bem elaboradas, de modo a não deixar dúvida por parte do destinatário da norma.

A construção de tipos penais incriminadores dúbios e repletos de termos valorativos pode dar ensejo ao abuso do Estado na invasão da intimidade e da esfera de liberdade dos indivíduos.20

Ocorre que a Lei 11.343/06 realiza o emprego exagerado de elementos abertos em seu conteúdo, carentes de precisão semântica e passíveis de amplo escopo de interpretação pelo aplicador do direito, elemento que viola o princípio da taxatividade e sujeita os cidadãos ao abuso no exercício do jus puniendi estatal.

Neste sentido, basta observar a ausência de critérios objetivos que separem o usuário do traficante, conforme disposto no artigo 28, parágrafo 2º, da Lei 11.343/06, sujeitando o acusado a valoração subjetiva por parte do aplicador do direito21.

O princípio da humanidade das penas guarda relação com o disposto no artigo 5º, incisos XLVII e XLIX, da Constituição Federal, que vedam a aplicação de penas de morte, perpétuas, de trabalhos forçados e cruéis, bem como asseguram ao preso sua integridade física e moral. Ocorre que a sistemática da repressão ao comércio e consumo de drogas, aproveitando-se de sua descodificação, estabeleceu um conjunto de regras próprias para o processo, julgamento e execução de pena dos imputados em crimes de sua redação que em diversos aspectos implicam em penas excessivamente longas seja no momento da dosimetria, seja na restrição ao acesso a benefícios penais.

O princípio da subsidiariedade (intervenção mínima) existe como limitador na atuação do Direito Penal evitando a interferência exagerada do Poder Público na vida privada. Como resultado, versa que a atuação de tutela criminal deve ser a

ultima ratio a ser aplicada na criação de normas e execução de penas somente

quando falharem as demais formas de atuação do Direito na solução de conflitos.

19 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015. p.183 20 Ibidem, p.82.

21 Os demais elementos de abertura dos tipos penais na Lei 11.343/06 serão oportunamente

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Sua existência, portanto, ocorre dentro de um sistema composto por diversos mecanismos de controle social, cujo conceito é definido por Helena Regina Lobo da Costa como sendo “uma multiplicidade de manifestações, dentre elas instituições como a escola, a família, a Polícia, o Judiciário e situações como o convívio com amigos e vizinhos, a prática de esportes, o ambiente de trabalho, a prática de uma

religião”.22 O Direito Penal, segundo a autora, seria a ferramenta máxima de controle social, parte integrante deste sistema, cujo uso deva restar reservado apenas para os valores mais importantes, em face das lesões mais graves, evitando confusão na sociedade entre os valores mais e menos relevantes23.

Ocorre que o emprego de controle social penal em face das drogas ilícitas, principalmente com relação àquelas dotadas de menor risco para o usuário (maconha), acaba por entrar em conflito com o princípio da subsidiariedade, visto que os efeitos sociais, econômicos e jurídicos do comércio ilícito derivam da própria proibição e não da natureza de diversas substâncias (capítulo III). Ademais, tratando-se do porte para consumo estaríamos diante de uma conduta auto lesiva, cuja tratativa oferecida pelo Estado e pela sociedade implicam no uso de mecanismos de controle social de cunho não penal. O desinteresse do Poder Público em criminalizar condutas auto lesivas pode ser observado no fato de que o suicídio não é previsto como crime24, bem como que o consumo ou porte de bebida alcoólica, tabaco ou medicamentos, não são objeto de tutela penal existente apenas sobre as condutas praticadas sob seus efeitos (ex. embriaguez ao volante) e/ou sobre a produção e comercialização irregulares, fora dos modelos regulamentadores estabelecidos (capítulo VI).

O princípio da individualização da pena encontra-se previsto no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal e implica que “a pena não deve ser padronizada, cabendo a cada delinquente a exata medida punitiva pelo que fez.”25. Ocorre que a evolução do proibicionismo, resultou na conversão da pena privativa de liberdade em um instrumento de política pública, tendo como consequência a manutenção prolongada do encarceramento. Desta forma, por meio do emprego de

22 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxico uma

abordagem a criminalização do uso de entorpecentes à luz da prevenção geral positiva. In REALE JÚNIOR, Miguel (coord.). Drogas: aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.107.

23 Ibidem, p.108.

24 O artigo 122 do Código Penal criminaliza apenas as condutas de indução, instigação e auxílio ao

suicídio.

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tipos abertos, normas penais em branco, da multiplicidade de condutas prevista em cada tipo, da punição de atos preparatórios e da criminalização do porte para uso observa-se que a pena na Lei 11.343/06 acaba não sendo individualizada de acordo com a gravidade real da conduta praticada, mas com a gravidade genericamente presumida para o agente dentro de uma política pública voltada a expansão dos mecanismos de criminalização e a maior eficácia da atuação do Poder Público na repressão a expansão da produção, da comercialização e do consumo de drogas ilícitas.

Neste sentido, destacam-se as audiências coletivas realizadas no âmbito de aplicação da Lei 9.099/95 em relação do porte voltado ao consumo (art. 28 da Lei 11.343/06), nas quais a proposta de transação penal é realizada de maneira coletiva, sem critérios que separem os usuários por droga, idade, antecedentes, etc26. Desta forma, as medidas despenalizadoras acabam não sendo individualizadas a cada usuário, contribuindo para sua ineficácia da tutela penal e eventual reincidência no ato de posse para consumo.

O princípio da proporcionalidade é definido como dotado do significado de

que “as penas devem ser harmônicas com a gravidade da infração penal cometida,

não tendo cabimento o exagero, nem tampouco a extrema liberalidade na

cominação das penas nos tipos penais incriminadores”27. No caso da legislação antidrogas brasileira, pode ser observada a ausência de formas qualificadas ou de causas de aumento que modulem a sanção penal a quantidade e tipo de droga apreendida, de forma que agente que pratica a conduta com uma substância mais tóxica e em maior quantidade pode receber uma pena igual ou similar a de outros agentes. Ocorre que o disposto no artigo 42 da Lei 11.343/06 conferiu excessiva margem interpretativa ao aplicador do direito, que pode resultar na fixação de penas desproporcionais a casos concretos similares ou a penas iguais a casos diferentes.

Outra violação ao princípio da proporcionalidade pode ser observada quando da comparação entre a legislação antidrogas e a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90). Observa-se o caso do agente que expôs à venda droga ilícita sem autorização, cometendo o crime do artigo 33, caput, da Lei 11.343/06. Trata-se de uma conduta que recebe um tratamento jurídico mais severo do que o caso de

26 CARVALHO, Salo de (e outros). #descriminalizastf: um manifesto antiproibicionista ancorado no

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crimes como estupro ou latrocínio, ou seja, uma conduta que apenas colocou em risco o bem jurídico tutelado pela norma (saúde pública) recebe um tratamento jurídico mais severo que crimes que resultaram em danos concretos e permanentes28.

Por fim, a multiplicidade de condutas previstas nos tipos penais do capítulo II da Lei 11.343/06 acabou por sujeitar à mesma pena, ações diferentes, com graus de lesividade diferentes, tendo por consequência nova reflexão em comparação com os ditames do princípio da proporcionalidade. Neste sentido, vender e expor à venda droga ilícita são condutas diferentes, com risco de lesividade diferente, embora sujeitas à mesma pena (artigo 33).

O princípio da obrigatoriedade da ação penal vincula a autoridade policial e o Ministério Público na aplicação do direito penal ao caso concreto, possuindo um caráter bifronte. No primeiro caso, versa que a autoridade policial é obrigada a instaurar o Inquérito Policial sempre que possuir ciência da ocorrência de um crime, ao tempo em que no segundo aborda a obrigatoriedade do Ministério Público de promover a ação penal, desde que presentes os elementos mínimos para tanto, no caso de crimes de ação penal pública condicionada29, delitos previstos na Lei 11.343/06. Neste sentido, Salo de Carvalho ao tratar do conceito de “cifras ocultas da criminalidade”, defende que o sistema penal atua sobre as “sobras” dos crimes

cometidos30, existindo uma seletividade com relação a quais delitos são investigados, processados e eventualmente sentenciados. Como consequência, existe uma enorme diferença entre a totalidade de crimes praticados, a quantidade de delitos investigados e o número de condenações. Desta forma, apenas uma fração reduzida dos crimes acaba sendo alvo efetivo de sanção penal, o que resulta na violação deste princípio processual penal. Ademais, a existência das “cifras ocultas” revelam um caráter de seletividade no sistema, cujo resultado é o maior encarceramento de segmentos pobres da população, eis que a tutela penal incide principalmente no lado mais exposto da cadeia de produção o comercialização, qual seja o pequeno traficante que realiza a operação final de venda31.

28 A comparação entre a Lei 11.343/06 e a Lei de Crimes Hediondos será objeto de análise detalhada

no capítulo V.

29 BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal: revi. E atual. De acordo com as Leis

11.900, 12.106 e 12.037, de 2009. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p.98.

30 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p.115 a 117.

31 Dados estatísticos acerca dos índices de encarceramento serão oportunamente abordados no

(23)

Por fim, o princípio do acesso ao contraditório e da ampla defesa encontra-se previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal e guardam relação novamente com a antecipação de pena para a hipótese de transação penal para o usuário flagrado no porte para consumo (artigo 28 da Lei 11.343/06). Desta forma, argumentos como insignificância da conduta, ausência de lesividade, produção de provas voltadas para a absolvição e questionamentos acerca da moralização de condutas restam suprimidos em nome da eficácia da tutela penal, derivada da necessidade criada pela expansão do número de processos. Ademais, ressalta-se novamente o instituto a transação penal no porte voltado ao consumo, desta vez por seu caráter claramente coercitivo (face o temor de condenação e o estigma da imputação), fator que aliado aos altos custos do acesso a via recursal (principalmente nas instâncias superiores), exerce coação ao acusado para que aceite a proposta, suprime seu acesso ao duplo grau de jurisdição e a defesa plena de seus interesses.

(24)

CAPÍTULO II

2 A REPRESSÃO À COMERCIALIZAÇÃO DE DROGAS AO LONGO DA HISTÓRIA.

2.1 Das Guerras do Ópio às metas do milênio, o mundo contra as drogas.

O emprego de mecanismos naturais ou artificiais para alteração do estado de consciência humano pode ser observado ao longo da história como um fenômeno social comum, de forma que a produção, a comercialização e o consumo de substâncias hoje consideradas como ilícitas possuíram seu uso tolerado e até mesmo incentivando, levando-se em consideração fatores regionais e históricos.

Como resultado de uma longa dinâmica, que integra fatores regionais, comércio global, urbanização, processos industriais, elementos culturais, sociais, morais e políticos, o estudo do passado histórico acerca do papel exercido pelas drogas ilícitas e do tratamento oferecido ao tema se mostra fundamental para a compreensão da sistemática proibicionista adotada ao longo do século XX, ou seja, da adoção prioritária de tutela penal no controle da produção, comercialização e consumo de drogas ilícitas, resultando na expansão dos mecanismos criminalização e do encarceramento.

O resultado deste processo histórico pode ser observado no aumento da complexidade das legislações antidrogas em âmbito nacional e internacional (tratados e Convenções), com a expansão do número condutas utilizadas nos tipos penais (influenciado a própria tipicidade do crime de tráfico de drogas para uma interpretação que transcende o mero ato de comercialização), o aumento das penas, o emprego de conceitos abertos, vagos e imprecisos, o uso de normas penais em branco (retirando o caráter democrático da delimitação final do conteúdo da norma penal) e o reconhecimento progressivo do caráter criminoso de diversas condutas relacionadas ao tráfico de drogas (associação criminosa, financiamento do tráfico, colaboração como informante, etc.).

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bruto global para o período32. Trata-se de uma enorme receita gerada sem qualquer controle do Poder Público, cujas consequências transcendem a evasão de divisas fiscais, adentrando em questões sensíveis de funcionamento econômico (local, regional, nacional e internacional) e de segurança pública (financiamento de organizações criminosas, comercialização de armamentos, prática de condutas criminosas alheias ao tráfico de drogas).

Durante séculos o uso de substâncias hoje proibidas era realizado em sua forma vegetal e não industrializada, possuindo um valor econômico elevado33, reduzida quantidade de princípio ativo (pela inexistência de processos de refino voltados a narcose) e ausentes mecanismos de ingestão que permitissem a inserção imediata de grandes quantidades da substância no corpo humano (ex. injeção). Como consequência, os problemas de saúde eram localizados, inexistindo interesse político ou social na proibição ou regulamentação de sua cadeia produtiva, ou seja, o problema do consumo e da comercialização ilícita não possuíam as dimensões atuais.

A popularização do consumo de drogas, e por consequência o surgimento dos primeiros problemas sociais, econômicos e de saúde pública, ocorreu apenas a partir do século XVII, com o estabelecimento da primeira fábrica de Ópio34 na Companhia Britânica das Índias Orientais no ano de 1613. Reconhecendo o potencial econômico da substância, derivado de seu caráter entorpecente, e das tradicionais formas locais de seu uso, o Império Britânico passou a obter da produção local e de sua comercialização um mecanismo para o incremento da lucratividade de suas possessões coloniais no extremo oriente.

O consumo de ópio, tradicional nas culturas asiáticas por parte das classes dominantes e em rituais religiosos, ocorria de maneira simplificada e sem mecanismos específicos voltados a intoxicação aguda, de forma que a cada uso a quantidade de princípio ativo ingerida era pequena, a liberação era lenta e seu efeito

32 OEA Organização dos Estados Americanos. O problema das Drogas nas Américas, 2013.

Disponível em: <http://www.oas.org/documents/por/press/reporte_drogas_OEA_POR.pdf>. Acesso em 23 jul. 2015, p.57.

33 Por conta da ausência de processos industriais massificados que reduzissem seu preço. O valor

econômico elevado respondia pela baixa acessibilidade, ou seja, o consumo encontrava-se relacionado com as classes ricas, usos medicinais e religiosos.

34 O ópio é uma substância derivada da papoula e cultivada principalmente na região hoje conhecida

(26)

limitado, sendo raros os casos de dependência, fatores que aliado ao alto custo e baixo índice de consumo pelas classes menos favorecidas, teve como resultado o desinteresse das classes dominantes em controlar sua comercialização e consumo.

Consequentemente, a ausência de interesse no controle na comercialização expressava a abertura do mercado asiático e o potencial para grandes lucros, faltando apenas a criação de um mecanismo de ingestão que popularizasse seu uso. A solução foi encontrada na chegada ao oriente do hábito do consumo de tabaco através do fumo, a partir da segunda metade do século XVII. A criação de um método acessível de ingestão, aliado fatores como a tradição milenar do consumo da substância e a queda de seu preço (pelo aumento da produção), popularizaram o consumo de ópio entre as classes menos favorecidas, respondendo pelos primeiros problemas registrados de saúde pública derivados da dependência química, afetando agora segmentos mais abrangentes da população. Observa-se, assim, que os primeiros problemas de saúde pública relacionados com o consumo do ópio surgiram das políticas comerciais britânicas e dos mecanismos de ingestão e não da natureza da substância propriamente dita.

Por outro lado, a ausência de uma tradição milenar quanto o uso de ópio nas sociedades europeias obstou a difusão ocidental de seu consumo, ou seja, os problemas de saúde pública gerados pela política comercial britânica passaram a ser tratados como uma questão meramente doméstica e os casos de dependência

química e consumo descontrolado como resultado da “inferioridade” dos povos asiáticos35, fatores insuficientes para a interposição de quaisquer barreiras comerciais. Com a finalidade de expandir suas atividades comerciais, assim como aproveitando da tradição local de uso, da difusão de novos mecanismos de consumo e da queda dos preços, a Companhia Britânica das Índias Orientais voltou-se ao mercado chinês para a venda e escoamento de sua produção de ópio.

A introdução de enormes quantidades de ópio na sociedade chinesa gerou graves problemas de saúde pública sustentando a criação dos primeiros mecanismos domésticos de controle do uso e comercialização de uma droga, a partir de então considerada nociva pelo surgimento dos primeiros problemas epidêmicos relacionados ao seu uso, agora voltado especificamente para a narcose. Percebe-se, desta forma, que o controle aconteceu apenas quando a saúde pública

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passou a ser ameaçada pelo uso descontrolado, ou seja, enquanto o consumo causava danos à saúde individual ou coletiva, havia o desinteresse no estabelecimento de barreiras jurídicas.

Dentre as consequências para a China das primeiras iniciativas proibicionistas destacam-se: i) a criação e o crescimento de um mercado ilegal para o ópio; e ii) o conflito de interesses com o império Britânico, resultando nas chamadas Guerras do Ópio, ocorridas entre os anos de 1839 a 1842 e de 1856 a 1858, cujo resultado foi a derrota do Império Chinês e a abertura forçada de seus portos ao comércio inglês (incluindo o ópio), agravando a situação.

Os problemas causados pela popularização do consumo do ópio acabaram agravados com a descoberta de dois de seus derivados, a morfina (1806) e a heroína (1883), reforçando os interesses comerciais envolvidos, bem como no estabelecimento das primeiras fábricas de derivados sintéticos nos Estados Unidos, Reino Unido e nos estados alemães36 a partir da década de 183037. Concomitantemente ao mesmo período histórico, os Estados Unidos da América receberam a colônia hispânica das Filipinas, como espólio de guerra pelo conflito ocorrido com o Império Espanhol durante sua expansão para o oeste (1898), possessão colonial que passava por um problema grave de consumo de ópio derivado da política comercial britânica na Ásia.

Com o objetivo de melhorar suas relações com o Império Chinês38, bem como reconhecendo o problema do consumo epidêmico de ópio através da experiência em sua colônia nas Filipinas, o governo norte-americano encabeçou a realização da Conferência de Xangai em 1909, primeira tentativa internacional de controle do comércio de ópio39. O resultado da Conferência foi limitado tendo em vista o desinteresse das potências coloniais em perder seus mercados consumidores de ópio, a ideologia de liberalismo comercial vigente e a visão do consumo epidêmico

de drogas como sendo um problema doméstico de sociedades “inferiores”.

36 A região conhecida hoje como Alemanha foi durante a maior parte do século XIX uma reunião de

Estados e principados independentes, unificando-se no ano de 1871, depois de um longo processo de harmonização comercial, política e cultural.

37 A morfina possui um tradicional uso médico, sendo utilizada no tratamento da dor.

38 Os norte-americanos chegaram atrasados na corrida colonial pelo continente asiático, precisando

se posicionar em meio a diversos interesses comerciais e políticos já estabelecidos pelas metrópoles europeias.

39 Neste momento, a problemática do consumo epidêmico de ópio era vinculada a existência de um

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Demonstra-se, assim, a existência de interesses econômicos enquanto realidade histórica no controle da produção e da comercialização das drogas.

Outras conferências foram realizadas nos anos de 1912 (Haia) e 1925 (Genebra), cujos efeitos foram igualmente limitados por decorrência do início da primeira guerra mundial (1914/1918) e do processo de deterioração política que resultou na segunda guerra mundial (1939/1945). O principal destaque delas foi o início do processo de inclusão de outras substâncias no rol daquelas consideradas perigosas e passíveis de controle, sendo destaque a cocaína e a maconha40.

A segunda guerra mundial afetou, também, o comércio mundial de ópio e a fabricação de seus derivados. Durante este período de escassez a indústria farmacêutica de sintéticos observou uma grande expansão nos Estados Unidos, levando a produção de diversos medicamentos derivados de substâncias hoje consideradas como proibidas41. Com o final do conflito bélico e o estabelecimento da Organização das Nações Unidas, em substituição a fracassada Liga das Nações, iniciaram-se em 1948 os debates para a criação de uma Convenção Única sobre Entorpecentes, cuja assinatura ocorreu apenas em 1961, com o consequente depósito do instrumento de ratificação junto ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas em 1964.

A redação e ratificação de uma Convenção sobre Entorpecentes no âmbito da Organização das Nações Unidas observa a evolução no tratamento internacional oferecido ao tema e a necessidade da tomada de medidas concretas no sentido da criação de mecanismos de controle eficazes. Não obstante, o relatório intitulado

Cenário do Problema das Drogas nas Américas 2013-2025 da Organização dos

Estados Americanos, destaca a forma radical com que a repressão foi intentada, incluindo a supressão dos usos tradicionais e religiosos pelas populações locais42.

Tratava-se de uma ingerência excessiva e que contraria ao próprio direito a autodeterminação dos povos, previsto na Carta da Organização das Nações Unidas

40 A primeira iniciativa de proibição da maconha ocorreu em 1800 no Egito sob controle francês.

Tratou-se de uma iniciativa isolada, ou seja, a proibição da substância ocorreu e evolui apenas a partir do século XX.

41 Cumpre destacar que o princípio ativo da cocaína foi identificado em 1860 e era largamente

utilizado – juntamente com o ópio - na produção de medicamentos, elixires e alimentos, vendidos sem receita ou qualquer forma de controle estatal, dinâmica que mudou apenas com o processo sanitarista global de classificação e controle da venda de remédios.

42 OEA Organização dos Estados Americanos. Cenários do Problema das Drogas nas Américas.

(29)

(artigo 1º, parágrafo 2º) sendo sintoma de uma tendência crescente a expansão do proibicionismo enquanto contraparte repressiva aos crescentes problemas de saúde e segurança pública causados pela comercialização e consumo descontrolado de drogas ilícitas.

Outra questão relativa a Convenção de 1961 diz respeito a seu próprio momento histórico, ou seja, o controle era inicialmente exercido sobre as drogas de origem vegetal, permitindo o surgimento e a ascensão de drogas sintéticas43, sendo exemplo a Dietilamida do Ácido Lisérgico (LSD) originada de um fungo (descoberta em 194344). Ressalta-se que uma das razões pela ausência de controle das chamadas drogas sintéticas guarda relação com os interesses comerciais da indústria farmacêutica das nações desenvolvidas, tendo em vista que oferecidas como alternativas lícitas e seguras ao consumo de drogas naturais ilícitas demonstrando como a existência de interesses econômicos acaba delimita os contornos da evolução do proibicionismo influenciando a incidência de tutela penal.

As disposições da Convenção de 1961 seriam complementadas uma única vez em 1972, com a adição de um Protocolo voltado a complementação das medidas de fiscalização do comércio internacional de drogas lícitas (uso medicinal e científico) e ilícitas (tráfico), assim como para a possibilidade de aplicação de medidas de tratamento aos usuários presos em situação de tráfico.

O tratamento internacional para a comercialização e consumo das drogas sintéticas iniciou-se apenas em 1971 com a adoção da Convenção das Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas. No mesmo período, o governo norte-americano, sensível ao aumento do consumo de drogas em seu território, alinhando

– e estando alinhado – com a tendência proibicionista global, dá início à primeira Guerra contra as Drogas atuando com uma crescente política de ingerência nos assuntos latino americanos, cujo ápice foi a celebração de um tratado de extradição com o governo da Colômbia, voltado aos narcotraficantes envolvidos com o transporte e venda de cocaína para o mercado americano.

43 Compreende-se por droga sintética como sendo aquela manufaturada de forma industrial através

do isolamento de uma molécula ou princípio ativo, não envolvendo refino direto de matéria prima de cunho vegetal (como no caso da cocaína, da morfina e da heroína). Destacam-se nesta categoria as anfetaminas e os barbitúricos, drogas com difundido uso medicinal, permitido pela Convenção de 1961, sendo componente de diversos medicamentos facilmente encontráveis em farmácias.

44 SILVA, Luíza Lopes da. A questão das drogas nas relações internacionais: uma perspectiva

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A reação do chamado Cartel de Medelín foi violenta, resultando em diversos atentados, sequestros e assassinatos, influenciando o surgimento do termo

“narcoterrorismo” utilizado para justiçar a militarização do conflito nas décadas seguintes45. Concomitantemente, as organizações criminosas que faziam parte do chamado Carte de Cali optaram por uma estratégia de infiltração no governo colombiano, através da corrupção de funcionários e autoridades, bem como pela

eleição das primeiras “narcobancadas”46. A reação diferente de dois cartéis colombianos a uma mesma política internacional demonstra a capacidade de diversificação e adaptação das organizações criminosas envolvidas com o tráfico, assim como a transcendência do problema do tráfico de drogas para bens jurídicos que transcendem a tutela da saúde pública pela política pública proibicionista.

Como resultado da política repressiva norte-americana e da formação de excessos não refinados de folha de coca, o mundo assiste na década de 80 ao surgimento e a expansão no consumo de crack, substância derivada da pasta base da cocaína (sujeita apenas a uma etapa de refino, diferente da cocaína pura) e misturada a diversas impurezas (muitas delas sequer consideradas precursores químicos47). Seu baixo custo, alta toxidade e fácil acesso, elevam a proporção de dependentes a níveis alarmantes, gerando grande clamor por mecanismos mais enérgicos de controle e reforçando a tendência proibicionista global.

O contexto dos anos 70 e 80 demonstra a existência de inúmeros fatores globais que ultrapassam a abordagem proibicionista existente para o tema, voltada para tutela da saúde pública, ingressando em campos de segurança pública, ordem econômica e ameaçando a própria existência do Estado de Direito48. Desta forma, em atendimento aos ditames de clamor popular, a criação de novas substâncias (mais tóxicas) e aos efeitos difusos do crescimento das grandes organizações

45 A estrutura de funcionamento dos cartéis colombianos guarda relação íntima com a sistemática de

ação de grandes organizações criminosas brasileiras, as quais empregam, de maneira similar, táticas de terror, assistencialismo, corrupção e lavagem de dinheiro no estabelecimento e funcionamento de suas atividades.

46 A corrupção de funcionários e governos locais foi empregada como justificativa para a militarização

da guerra contra as drogas, através do uso de unidades militares locais especializadas, bem como de tropas estrangeiras, ambas supostamente imunes aos ditames e incentivos financeiros dos cartéis e organizações locais.

47 Precursores químicos são as substâncias utilizadas no refino e preparo de drogas (lícitas e ilícitas),

sendo objeto de severa tutela internacional na segunda metade do século XX, no que diz respeito ao controle de sua comercialização e prevenção do desvio para finalidades ilícitas.

48 Pela ingerência no Poder Político com os “narcogolpes” e a eleição de “narcobancadas”,

(31)

criminosas, surge em 1988, por iniciativa da Venezuela, a mais recente Convenção de Entorpecentes da Organização das Nações Unidas, cujo tratamento jurídico dado ao tema influencia a política das nações signatárias no final do século XX e começo do século XXI.

No ano de 1998 ocorreu em Nova York o “Período Especial de Sessões sobre o Problema Mundial das Drogas”, realizado no âmbito da Organização das Nações Unidas, cujo objetivo era a análise dos resultados das Convenções de 1961, 1971 e 1988. Tratava-se de uma oportunidade para a revisão da abordagem probicionista e de seus efeitos, mas a principal consequência prática foi o estabelecimento de um novo prazo de 10 anos para a erradicação total do cultivo ilícito49. Não foi o que ocorreu, sendo observado um crescimento no comércio internacional de drogas ilícitas, com a criação de novas substâncias e técnicas de refino, bem como um aumento no número de usuários e dos casos de dependência química. As organizações criminosas expandiram suas atividades, passando a atuar em outros crimes e com outros tipos de drogas, bem como praticando suas atividades em diversos países e passando a influenciar campos diversos da vida social, econômica e política (nacional e internacional), reduzindo a eficácia das medidas de controle local.

A resposta dos modelos “regulamentadores” de cunho proibicionista não

ocorreu de maneira uniforme, influenciando e sendo influenciados por nações comprometidas em maior ou menor grau com a repressão ao comércio ilícito, porém refletindo até o século XXI numa tendência global para a adoção de mecanismos de controle cada vez mais enérgicos, com aplicação prioritária de tutela penal e a expansão do encarceramento, comprometendo os debates acerca de modelos de política pública alternativos para o tema.

2.2 Da Lei Seca à militarização do conflito, o papel norte-americano no proibicionismo global.

O surgimento e a evolução da sistemática proibicionista global possui relação próxima com a própria história dos Estados Unidos da América, cuja posição

49 SICA, Leonardo. Funções manifestas e latentes da política de War on Drugs. In: REALE

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hegemônica atingida ao longo do século XX resultou numa influência determinante sobre a temática antidrogas no período, influenciando o tratamento criminal prioritário e a expansão do encarceramento.

As origens da influência proibicionista norte-americana derivam de seu processo de formação cultural e política. Neste sentido, destaca-se o perfil migratório dos Estados Unidos, no período das Treze Colônias, originado de um fluxo de cunho religioso puritano, ou seja, de imigrantes que fugiam da instabilidade religiosa da Inglaterra e que pregavam o absentismo para o consumo de toda e qualquer substância que alterasse o estado de consciência (incluindo o álcool e excluindo a cafeína). Concomitantemente, observa-se a tradição republicana norte-americana, berço do Federalismo, responsável por pregar a liberdade individual e a supressão da ingerência estatal na vida privada. Ambos os valores conviveram harmoniosamente durante décadas entrando em conflito apenas na segunda metade do século XIX, quando do surgimento dos primeiros problemas domésticos relacionados com o uso epidêmico de drogas.

Ao longo do período compreendido entre os anos de 1861 e 1865 os Estados Unidos viveram sua guerra civil50 resultando na popularização do consumo de morfina51 pelos soldados envolvidos no conflito, utilizada no tratamento para a dor. O resultado foi um número enorme de veteranos dependentes da substância, levando ao primeiro contato de uma sociedade ocidental, em nível doméstico, com os problemas da dependência química52, assim como a produção dos primeiros trabalhos sobre os seus perigos.

Adicionando aos problemas causados pela popularização do consumo de morfina pelos veteranos de guerra, a expansão territorial para o oeste e a adição da colônia espanhola das Filipinas resultaram no aumento do fluxo migratório de origem asiática, muitos dos quais traziam consigo o hábito do consumo de ópio pelo fumo, resultando na popularização do consumo da droga em território americano e criando os primeiros estigmas sociais de vinculação entre dependência química, tráfico de

50 Conhecida também como Guerra de Secessão. 51 Descoberta em 1806.

52 Até então a dependência química aparentava ser um problema doméstico das sociedades

(33)

drogas e pobreza, ou seja, reforçando a pauta puritana na direção de mecanismos mais rígidos de controle na produção, comercialização e uso de drogas ilícitas53.

O resultado positivo da política de saúde pública exercida nas Filipinas e a constante ascensão da pauta puritana absentista na vida política norte-americana refletiram na promulgação, no início do século XX, das primeiras legislações voltadas a regulamentação das substâncias consideradas entorpecentes54.

Por consequência, no ano de 1920 foi aprovado o Volstead Act, conhecido

historicamente como Lei Seca, instituindo a emenda constitucional 18, responsável pela proibição do consumo e comercialização de toda e qualquer substância de cunho alcoólico em território norte-americano, prevendo penas pesadas para os infratores (produtores, comerciantes e usuários). As consequências da Lei Seca foram diversas (capítulo III) e refletem como lição histórica a falha dos mecanismos proibicionistas adotados de forma radical, bem como as consequências da tentativa de importar modelos de proibição de outros países ou de colônias (Filipinas), ignorando fatores culturais, políticos, sociais e econômicos locais, que influenciam a aplicação e eficácia de qualquer política pública. No ano de 1933 a Lei Seca foi revogada, por intermédio da emenda constitucional 21 (governo de Franklin Delano Roosevelt, 1933/1945), embora as lições aprendidas com o tratamento jurídico proibicionista oferecido ao álcool não tenham sido transferidas as demais drogas. Ocorre que ao tempo em que o álcool era uma substância amplamente utilizada por todas as classes sociais (apesar da pauta puritana absentista), existindo tradição histórica em seu refino e consumo como no caso de vinhos, cervejas e whiskies, o consumo de maconha e ópio (e seus derivados) era estigmatizado e vinculado aos imigrantes mexicanos e chineses, cujos hábitos “depravados” ameaçavam o estilo

de vida americano, derivado de sua tradição puritana e europeia.

A liberação da produção e comercialização de bebidas alcoólicas em 1933 resultou na queda dos preços, reduzindo as margens de lucro e levando a migração das organizações criminosas (já estruturadas pela proibição) para outros tipos de drogas (principalmente a Heroína, vinda da Ásia), resultando na reorientação da

53 Cabe relembrar que o hábito de consumo de ópio na forma de fumo originou da introdução

britânica do consumo de tabaco no continente asiático.

54 1906 Food and Drug Act; 1909 Primeira Lei Federal anti-ópio; e 1914 Harrison Act, controle

Imagem

Tabela 1: Dados da população carcerária para o delito de tráfico de drogas.
Tabela 2: Total estimado de usuários por tipo de droga nos anos de 2005 e 2012.

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