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O modelo uruguaio, cadastro de usuários e regulamentação

O sistema antidrogas uruguaio pode ser compreendido da leitura conjunta do Decreto Lei 14.294/74 e da Lei 19.172/13 cuja sistemática na regulamentação do mercado da maconha pode ser resumida da seguinte maneira:

I. A regulamentação do cultivo (máximo de seis plantas ou 480 gramas de colheita por ano) e da posse para uso pessoal (até 40 gramas) mediante cadastro e registro sigiloso do usuário por parte do governo uruguaio. O uso pode ser tanto medicinal quanto recreativo.

II. A regulamentação do cultivo dentro dos chamados “clubes canábicos” compostos de 15 a 40 sócios (máximo de 90 plantas ou colheita equivalente ao valor individual do peso permitido por usuário) mediante cadastro e registro por parte do governo uruguaio. O uso pode ser apenas recreativo. III. A proibição do uso recreativo por menores de 18 anos. A venda ou entrega

nestas condições sujeitam o infrator a penas severas previstas na legislação de 1974, sendo destaque a modulação da sanção para o fato da vítima (usuário) ser menor de 21 (04 a 15 anos) anos ou de 18 anos (mesma pena, com agravante).

IV. Salvo o molde legal permissivo criado, o cultivo, a produção, a comercialização, a entrega gratuita e demais condutas relacionadas com o tráfico de drogas continuam sendo crimes (incluindo a maconha), estando sujeitos a severas sanções privativas de liberdade.

V. O patrocínio ou qualquer forma de publicidade envolvendo maconha são expressamente proibidos.

VI. Um órgão estatal, criado com a finalidade específica de aplicar regulamentação do mercado de maconha, ficará responsável pela emissão de licenças e o controle no exercício de suas prerrogativas comerciais. A venda ocorrerá apenas em farmácias.

A regulamentação do mercado e do cultivo de maconha em solo uruguaio ficou a cargo do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis, cujo financiamento ocorrerá por meio da arrecadação obtida com a concessão e manutenção das licenças, de aportes governamentais, de doações, da aplicação de multas pelo descumprimento nas regras de comercialização e da renda dos bens sob sua responsabilidade.

Portanto, o Uruguai ao ser visto como o primeiro país a “legalizar” a comercialização e o consumo da maconha não leva em consideração a manutenção dos tipos penais envolvendo a produção, comercialização e consumo de maconha fora dos limites e das condições previstas, fator que indica uma regulamentação do mercado e não uma liberação completa e irrestrita.

CAPÍTULO V

5 Análise jurídica da Lei 11.343/06 dentro do contexto do proibicionismo global

As Guerras Contra as Drogas simbolizaram o auge de um processo histórico, cultural e político de abordagem da temática do consumo e da comercialização ilícita de drogas com foco prioritário no emprego do Direito Penal para a tutela da Saúde Pública referente ao consumo de substância com potencial para causarem dependência. Como consequência, adotou-se uma lógica belicista na abordagem do problema com a expansão dos mecanismos de criminalização, podendo ser constatada no crescimento das condutas passíveis de tutela penal, no aumento das penas, na flexibilização de direitos e garantias fundamentais, na restrição ao acesso a benefícios processuais, na legitimação da violência institucional praticada pelas forças de segurança, dentre outros elementos abordados nos capítulos anteriores.

O Direito Penal, neste contexto, acaba sendo utilizado como uma ferramenta de política pública empregada na efetivação dos objetivos governamentais de controle e erradicação do comércio ilícito de drogas e dos interesses culturais, morais, econômicos e políticos envolvidos com o tema tratando o tráfico de drogas por seus diversos efeitos, ou seja, distanciando-se da proteção da saúde da população. O objetivo, portanto, acaba sendo a maior eficácia possível na tutela penal resultando na produção e aplicação de leis cada vez mais proibicionistas dentro da visão de que a expansão dos mecanismos de criminalização eficaz na prevenção de crimes.

Um dos sintomas da busca por maior eficiência da tutela penal é um movimento crescente de descodificação do Direito que pode ser definido da seguinte maneira:

O fenômeno da descodificação, que atinge nível de patologia nos sistemas penais ocidentais de tradição romano-germânica, pode ser visualizado em dois momentos distintos. Sua primeira forma de manifestação, a qual poderia ser denominada de descodificação própria, diz respeito à criação de leis penais especiais ou extraordinárias, cuja finalidade é tutelar de forma diferenciada determinados bens jurídicos. Tais estruturas normativas não perdem sua característica penal, conformando, porém, sistemas paralelos que tendem a harmonizar - se com as regras gerais e os princípios do direito penal e do direito processual penal - no caso, o Direito Penal e Processual Penal da Drogas, Lei 11.343/06.

No entanto a fragmentação dos modelos codificados e o ingresso de novos bens jurídicos na esfera do direito geram igualmente espécie de descodificação imprópria, ou seja, a produção de textos legais híbridos

através da composição de categorias e institutos advindos de distintas áreas. Diferentemente das leis penais especiais e extraordinárias (descodificação própria), que criam conjuntos legislativos penais paralelos, tais normas, parcialmente penais, administrativas e civis, produzem sistemas autônomos com regras de interpretação e de aplicação próprias cujo efeito é romper com a principiologia penal e processual penal, não invariavelmente estabelecendo modelos de responsabilidade penal objetiva e flexibilização nas garantias processuais.206

A descodificação no Direito Penal acaba por reforçar a abordagem proibicionista do tema das drogas ilícitas com crimes, penas, tratamento penal, processual penal e de execução de pena específicos, distanciando-se dos ditames do direito codificado e da Constituição Federal. A Lei 11.343/06 acaba sendo resultado deste processo, ou seja, da expansão do proibicionismo, da busca por uma maior eficiência e da descodificação do Direito Penal, possuindo diversos aspectos polêmicos que expressam a expansão dos mecanismos de criminalização. Não obstante, a legislação possui como aspecto positivo o fato de que sua atual redação se mostra compatível com um modelo de mercado regulamentado para substâncias atualmente consideradas ilícitas sendo desnecessária sua revogação.

A crítica ao caráter proibicionista da Lei 11.343/06 em conjunto com sua compatibilidade com um modelo regulamentado de mercado são os tópicos a serem abordados no presente capítulo.