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A análise conjunta da evolução histórica do proibicionismo no Brasil e no mundo, aliado com o estudo de suas consequências e as citadas reflexões acerca da Lei 11.343/06, demonstra que a política antidrogas brasileira possui uma tutela prioritariamente criminal em detrimento de mecanismos alternativos de controle social, cuja consequência foi a redação e aplicação de um Direito Penal descodificado com pressupostos que contradizem os princípios penais e os valores constitucionais envolvidos com o tema.

Como consequência da redação proibicionista da Lei 11.343/06, a legislação antidrogas brasileira reforça mecanismos definidos por Salo de Carvalho como sendo a Ideologia da Diferenciação268 fomentando o Direito Penal do Inimigo na mentalidade do homem médio, fator que legitima a violência do Estado na eliminação dos incômodos (por morte ou encarceramento, pelo maior tempo possível) recriando sistemas de político criminais de emergência diretamente relacionados com modelos penais de exceção, buscando a maior eficácia da tutela penal em detrimento dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

O homem médio, por sua vez, desconhece ou ignora a seletividade do sistema penal, ou seja, a existência de cifras ocultas de delitos não investigados, bem como ignora o encarceramento crescente das camadas mais pobres da população, preferindo a manutenção do status quo de sua vivência em detrimento do sentimento de solidariedade social que busquem a compreensão do fenômeno

social da criminalidade e a busca pela adoção de medidas de controle social alternativa a tutela penal e a sanção privativa de liberdade.

Não obstante, a legislação antidrogas brasileira possui também seus méritos criando medidas alternativas ao encarceramento dos usuários (ainda que sejam objeto de questionamento), assim como criando diversos pressupostos legais que permitem a adoção de um modelo regulamentado de mercado para substâncias atualmente consideradas como ilícitas sem a necessidade da revogação parcial ou total de seu texto.

Capítulo VI

6 UMA NOVA REGULAMENTAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL

6.1 Álcool, tabaco e medicamentos, modelos regulamentadores enquanto experiência concreta

A existência de modelos regulamentadores para o cultivo, processamento, importação, exportação, produção, comercialização e consumo de determinadas substâncias com potencial para causar dependência – e seus preparos – pode ser observada nas disposições legais existentes para o mercado de medicamentos, bebidas alcoólicas e de tabaco existentes no Brasil, submetidos a dispositivos legais próprios.

A regulamentação da cadeia produtiva e do comércio de medicamentos pode ser caracterizada pela seguinte dinâmica:

I. O controle – e a fiscalização – da fabricação, distribuição e importação de medicamentos, bem como a competência para a concessão de autorizações de funcionamento (licenças), é da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), órgão vinculado ao Ministério da Saúde (Artigos 3º, 7º, inciso VII, e 8º, parágrafo 1º, inciso I, todos da Lei 9.782/99).

II. As atividades de fiscalização da ANVISA incluem o controle de diversos fatores relacionados com os medicamentos, dentre eles sua pureza (quantidade de princípio ativo por dose), fundamentais ao tratamento adequado do sintoma ou da condição clínica a que se destinam. Alterações, falsificações e irregularidades na atuação na cadeia produtiva e comercialização são punidas nas esferas administrativa (Artigos 62 a 67 da Lei 6.360/76 combinado com o artigo 2º da Lei 6.347/77) e criminal (Artigo 273 do Código Penal).

III. O registro de determinado medicamento, voltado a concessão de autorização para sua produção, importação e comercialização em território nacional depende, dentre outros fatores, da comprovação científica de sua eficácia e da apresentação de dados econômicos relacionados com o preço praticado pela empresa no exterior, o valor de aquisição do princípio ativo do

medicamento e o custo de tratamento esperado por paciente (Artigo 16, incisos II e VII, da Lei 6.360/76).

IV. A fabricação, distribuição e importação de medicamentos depende de autorização (licença) concedida pela ANVISA (Artigo 50 da Lei 6.360/76). V. A rotulagem e embalagem de medicamentos encontram-se submetidas a

regras especiais, dentre elas o uso de tarjas que expressem a necessidade – e o tipo – de receita médica necessária para sua aquisição, alertas de riscos aos usuários (na própria embalagem e na bula) e a disponibilização de informações em braile para deficientes visuais (Artigos 24 a 35 da Resolução da Diretoria Colegiada 71/2009 da ANVISA).

VI. A venda no varejo (ao consumidor final) e a entrega gratuita (programas sociais) é de exclusividade de farmácias, drogarias, posto de medicamento, unidades volante e dispensários, sendo exceção os medicamentos anódinos (para a dor), comercializáveis sem receita desde que utilizados por estabelecimentos hoteleiros e similares no tratamento de seus usuários (Artigo 6º, da Lei 5.991/73).

VII. Com relação a necessidade de emissão de receita, os medicamentos são divididos em isentos de prescrição, com prescrição médica e controlados. Os medicamentos isentos de prescrição submetem-se a regras específicas de produção e licenciamento de todos os atores envolvidos na cadeia produtiva, embora sejam de livre comercialização com seus usuários pelos estabelecimentos autorizados a atuar no mercado. Os medicamentos sujeitos a prescrição médica e controlados são fornecidos mediante a apresentação de receita médica simples ou notificação especial de receita (Portarias 344/98 e 3.916/98 do Ministério da Saúde).

VIII. A comercialização remota, ou seja, por meio de entrega a domicílio e pela rede mundial de computadores é proibida para medicamentos sujeitos a notificação especial de receita (Artigos 52 e 53 da Resolução da Diretoria Colegiada n. 44/2009 da ANVISA).

IX. A comercialização de medicamentos tarjados ou de uso controlado sem receita médica ou notificação especial (uso controlado), ou em desacordo com disposições relacionadas com a sua emissão, doses, ou quantidades a serem entregues é caracterizada como infração sanitária (Artigo 10º, incisos XI e XII, da Lei 6.347/77) e crime (Artigo 280 do Código Penal).

X. A propaganda de produtos médicos possui restrições. Caso o medicamento necessite de receita para seu fornecimento ao usuário o marketing fica restrito a publicações específicas voltadas ao público da área médica. Medicamentos de venda livre e anódinos (para a dor) podem ser anunciados de forma livre devendo conter alertas aos usuários quanto aos riscos do uso descontrolado. A propaganda não pode conter informações que não possam ser comprovadas cientificamente e deve alertar o usuário a procurar um médico caso os sintomas persistam (Artigo 7º da Lei 9.294/96).

No que diz respeito ao tabaco (e seus derivados), a regulamentação da produção e comercialização também se encontram como responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Artigo 8º, parágrafo 1º, inciso X, da Lei 9.782/99), possuindo as seguintes linhas gerais:

I. Proteção da população contra os malefícios do fumo passivo, mediante a restrição do consumo do tabaco em locais públicos (Artigo 2º da Lei 9.294/96).

II. Restrições ao acesso por meio da imposição de barreiras a comercialização, dentre elas a proibição da venda pela via postal e pela internet269, bem como

a interposição de uma barreira etária que impede a venda para menores de 18 anos (Artigo 3-A da Lei 9.294/96 combinado com o artigo 81, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente).

III. Existência de políticas públicas voltadas a proteção do cidadão tabagista270,

com acesso a tratamento dos problemas de saúde causados pelo consumo, bem como pelo suporte a superação do vício.

IV. A limitação da presença de diversos aditivos (flavorizantes e aromatizantes), bem como a criação de limites para a quantidade de diversas substâncias tóxicas (nicotina, alcatrão e monóxido de carbono) presentes no cigarro271.

V. Ações de conscientização da população acerca dos malefícios do tabagismo, incluindo regras acerca da disponibilização de alertas escritos e visuais nas embalagens e nos locais de vendas (Artigos 7 e 7-A do Decreto 2.018/96).

269 Resolução da Diretoria Colegiada de n. 15/03 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Artigo

2º).

270 Portarias 2.439/05, 399/06 e 687/06, todas do Ministério da Saúde.

VI. Controle rígido dos preços comercializados, mediante a adoção de um tabelamento de preços mínimo por marca de cigarro, fabricante e ente federado em que é comercializado272, bem como através da incidência de

uma tributação elevada expressa principalmente na alíquota de 300% do Imposto sobre Produtos Industrializados (Artigos 14 a 20 da Lei 12.546/11)273.

VII. A proibição completa da propaganda de produtos derivados do tabaco, sendo exceção à mera exposição da marca em locais de venda (Artigo 7º do Decreto 2.018/96).

O terceiro modelo regulamentador brasileiro diz respeito ao controle da cadeia produtiva, comercialização e uso de bebidas alcoólicas e estando sob responsabilidade do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (artigo 2º da Lei 8.918/94) podendo ser expresso nos seguintes pressupostos:

I. A imposição de limites para o teor alcoólico de cada tipo de bebida comercializada, adotando-se limites mínimos e máximos (Decreto 6.871/2009 e Lei 7.678/88).

II. A imposição de padrões de qualidade referentes a aromatização, qualidade e quantidade dos componentes utilizados na produção, ausência de elementos estranhos ao processo produtivo e de contaminantes, dentre outros fatores relacionados com a padronização da produção e a proteção da saúde dos usuários. O controle de qualidade é exercido ao longo do processo produtivo e por meio de regras sanitárias específicas para os estabelecimentos (artigo 78 do Decreto 6.871/09 e artigos 48, 55 e 56 do anexo do Decreto 8.198/14). Adicionalmente aos critérios genéricos, são estabelecidos padrões de qualidade específicos a cada bebida, abrangendo fatores como teor alcoólico, quantidade de açucares e regras individualizadas quanto a produção, transporte e comercialização274.

272 As tabelas de preços encontram-se disponíveis no website da Receita Federal. Disponível

em:<http://www.receita.fazenda.gov.br/DestinacaoMercadorias/ProgramaNacCombCigarroIlegal/Marc asProdFabricantes.htm>. Acesso em 23 jul. 2015.

273 Sem a imposição de uma carga tributária pesada sobre o preço tabelado a consequência seria a

ampliação da margem de lucro para as empresas produtoras, dentro de uma sistemática similar a existente na cadeia produtiva das drogas ilícitas, satisfazendo os interesses econômicos dos grandes fabricantes de cigarros sem atender aos problemas de saúde criados pelo consumo.

274 Cada bebida é caracterizada e tratada em artigos específicos criando-se critérios de qualidade

relacionados principalmente com porcentual de álcool em sua composição

(Artigos 9º a 24 da Lei 7.678/88, 36 a 77 do Decreto 6.871/09 e 31 a 40 do Decreto 8.198/14), mas também quanto ao teor de açucares totais (artigos 31 a 38 do Decreto 8.198/14, no que diz respeito

III. A produção ou importação de bebidas sem o registro do estabelecimento no Ministério da Agricultura, fora dos padrões de qualidade estabelecidos, a comercialização de produtos que estejam com seu registro suspenso e o funcionamento de estabelecimentos em desacordo com os requisitos sanitários são infrações administrativas, sujeitas a penas de advertência, multa, suspensão e cassação do registro do produto e do estabelecimento, sem prejuízo da responsabilização cível e criminal (artigos 75 a 82 do anexo Decreto 8.198/14, 99 a 104 do Decreto 6.871/09 e 272 do Código Penal). IV. A obrigatoriedade do registro de cada bebida alcoólica, submetendo os

produtos a fiscalização e controle do Ministério da Agricultura (Artigo 7º do Decreto 6.871/09, 3º e 13 do anexo do Decreto 8.198/14).

V. Os estabelecimentos que componham a cadeia produtiva (exceção da venda no varejo) deverão ser registrados no Ministério da Agricultura, devendo renovar seu registro a cada 10 anos ou a cada alteração legislativa quanto ao tema (Artigos 4º e 6º do Decreto 6.871/2009 e artigo 27 do Decreto 8.198/14).

VI. A venda ou entrega gratuita para menores de dezoito anos é proibida, sendo a infração considerada como crime, apenado com detenção de dois a quatro anos (artigos 81, inciso II, e 243, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente).

VII. A responsabilização administrativa e criminal dos agentes flagrados na condução de veículo automotor sob influência de bebidas alcoólicas (artigos 165 e 306 do Código de Trânsito Brasileiro).

VIII. A imposição de restrições quanto a propaganda de bebidas alcoólicas nos meios de comunicação, permitida apenas entre as 21h e as 6h, devendo ser veiculado com avisos aos usuários acerca dos riscos de seu consumo excessivo. Quanto ao patrocínio de eventos pode constar apenas o nome comercial da bebida, não podendo conter qualquer slogan, sendo vedada sua utilização em quaisquer trajes esportivos (artigos 4º a 6º da Lei 9.294/96).

As linhas gerais dos modelos regulamentadores existentes demonstra a preocupação do Poder Público em controlar a cadeia produtiva, a comercialização e

aos vinhos e seus derivados, e Decreto 6.871/09 para as demais bebidas alcoólicas) fator importante para a proteção da saúde de usuários diabéticos.

o acesso às drogas lícitas (medicamentos, tabaco e álcool) protegendo a saúde dos usuários. Trata-se de um exemplo da tutela da saúde pública através de mecanismo de controle social diverso da tutela penal, que faz da criminalização de condutas a exceção, utilizada apenas em casos específicos. O controle possível pela regulamentação legal das drogas lícitas é algo simplesmente inexistente no modelo proibicionista, demonstrando sua importância como política pública alternativa.