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POSSÍVEL CARTOGRAFIA PARA UM CORPO VOCAL QUEER EM PERFORMANCE

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES - CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

Daiane Dordete Steckert Jacobs

FLORIANÓPOLIS, 2015 TESE DE DOUTORADO

POSSÍVEL CARTOGRAFIA PARA

UM CORPO VOCAL

QUEER

(2)

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

, Daiane Dordete Steckert

Possível cartografia para um corpo vocal queer em performance / Daiane Dordete Steckert Jacobs. - 2015. 292 p. il.; 21 cm

Orientadora: Maria Brígida de Miranda Coorientadora: Janaína Träsel Martins Bibliografia: p. 261-278

Tese (Doutorado) - Universidade do Estado de

Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em , Florianópolis, 2015.

1. Teatro. 2. Performance (Arte). 3. Voz. 4. Dissonância cognitiva. I. Miranda, Maria Brígida. II. Martins, Janaína Träsel. III. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. IV. Título.

(3)

DAIANE DORDETE STECKERT JACOBS

POSSÍVEL CARTOGRAFIA PARA UM CORPO VOCAL

QUEER EM PERFORMANCE

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Teatro. Área de concentração: Teorias e Práticas Teatrais. Linha de pesquisa: Linguagens cênicas, corpo e subjetividade.

Banca Examinadora

Orientadora: ______________________________ Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda

UDESC

Coorientadora: _______________________________ Profa. Dra. Janaína Träsel Martins UFSC

Membros:

_______________________ ________________________ Profa. Dra. Meran M. C. Vargens Profa. Dra. Wânia M. A. Storolli UFBA FASM

________________________ _______________________

Profa. Dra. Sandra Meyer Nunes Profa. Dra. Fátima C. de Lima UDESC UDESC

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(5)

AGRADECIMENTOS

(6)

“Todo fazer é conhecer e todo conhecer é fazer.”

(7)

RESUMO

Esta tese problematiza relações entre vocalidade e gênero no treinamento de atuantes e na criação atoral no teatro a partir da seguinte questão: como é possível desestabilizar o binarismo logocêntrico (homem versus mulher) da representação de gênero em cena através do corpo vocal? A hipótese é que ao desestabilizar padrões de vocalidade em cena seja possível também desestabilizar outros padrões, como a representação cultural de gênero através da vocalidade. Visando investigar esta questão, esta tese utiliza a cartografia e a autoetnografia como metodologias para mapear pistas interdisciplinares que apontam para engendramentos, dissonâncias e queerizações de corpos vocais em performance. Adota-se o termo corpo vocal, principalmente a partir da filósofa Adriana Cavarero, para se fazer referência à integridade psicofísica entre corpo e voz. Nas Teorias de Gênero, o queer diz respeito a não fixação de identidades sexuais, a entre-lugares dissonantes de gênero. A busca da queerização do corpo vocal no processo de criação da peça Pequeno Manual de Inapropriações visou corporificar a hipótese desta pesquisa.

Palavras-chave: voz, corpo vocal, dissonância, queer, teatro

(8)

ABSTRACT

This thesis investigates relations between voice and gender within the context of actor training and creation in theater departing from the following question: how is it possible to destabilize the logocentric binarism of gender representation by means of the vocal body? The hypothesis argues that when vocal patterns are destabilized on stage, other patterns such as gender cultural representation through voice may also be destabilized. Having this question in mind, the methodology used in this research entails cartography and auto-ethnography with the purpose of mapping interdisciplinary clues that point to gendering, dissonances and queerizations of vocal bodies in performance. The term vocal body is used, foremost from Adriana Cavarero’s philosophical thinking, referring to the psychophysical integrity between body and voice. In gender theories, the queer refers to the non fixation of sexual identities, the in-between places of gender dissonances. The searh for queering the vocal body during the creative process of the play Pequeno Manual de Inapropriações (Short Manual of Unappropriations) aimed to bring to life the hypothesis of this research.

Keywords: voice, vocal body, dissonance, queer,

(9)

LISTA DE IMAGENS

1

Prólogo: a diva-drag...169

A diva mostra seus dotes...177

A diva começa a se desmontar...180

A atriz lê o roteiro...183

Como não conquistar ninguém pelo estômago ou Na cozinha com Tigella......184

Tigella coloca leitchi na receita...189

O público ajuda Tigella a marcar a banha...190

A mulher-porco...191

A face da violência...193

A atriz anuncia a próxima cena...200

Como não ser agradável...201

Julgando o público...203

O superpênis...205

Como não proferir um discurso...212

Os olhos falantes...217

O espelho da alma...219

A atriz lê o roteiro no microfone...224

Como não rezar...226

A bruxa oferece óleo de eucalipto...229

As bruxas...230

A morte de Joana D’Arc na fogueira da Inquisição aos dezenove anos...231

Linchamento público seguido de morte na fogueira de Kepari Leniata, vinte anos...232

A caminhada da sacerdotisa...236

O sofrimento da penitência...237

1

(10)

A atriz lê o roteiro sentada sobre o baú...238

Como não sentir...241

O público recorda suas inapropriações...245

Jogo do Maestro...246

(11)

SUMÁRIO

Instruções iniciais

Como ler esta cartografia...16

Duas perguntas e uma instrução...17

Apresentação do mapa...18

Corpo vocal engendrado Notas preliminares...34

Como ler esta parte do mapa...37

Sobre feminismos e gêneros...39

Fisiologia da produção vocal...48

A unicidade da voz e a desestabilização de gênero...55

Nos domínios da oratória...68

Uma nova retórica: o realismo em cena...86

Corpo vocal dissonante Notas preliminares...98

Como ler esta parte do mapa...100

Em busca de corporeidades vocais dissonantes...102

O corpo vocal dissonante em Antonin Artaud...110

O corpo vocal dissonante em Roy Hart...115

O corpo vocal dissonante em Jerzy Grotowski...119

(12)

O (possível) surgimento da performance art...126

O performativo e a performatividade na Performance art e nos Performance Studies...128

O teatro performativo...133

Devir queer em performance...135

Um exemplo de corpo vocal queer em performance - Laurie Anderson...138

Uma questão de escuta?...142

Escuta queer...148

Corpo vocal queer Notas preliminares...156

Como ler esta parte do mapa...164

Um tema inapropriado...165

Prólogo: a Diva-drag...169

Como não conquistar ninguém pelo estômago ou na cozinha com Tigella...184

Como não ser agradável...201

Como não proferir um discurso...212

Como não rezar...226

Como não sentir...241

Instruções finais Evocações...254

Ressonâncias...257

(13)

Materiais de “Pequeno Manual de Inapropriações”

Pequeno Manual de Inapropriações– instruções para uma

atriz (roteiro)...280

Pequeno Manual de Inapropriações – Ficha técnica...285

Pequeno Manual de Inapropriações – Filmagem em DVD..286

Pequeno Manual de Inapropriações – Fotos em CD...287

Pequeno Manual de Inapropriações – Mapa de palco e som...288

Pequeno Manual de Inapropriações – Mapa de luz...289

Pequeno Manual de Inapropriações – Cartaz...290

Pequeno Manual de Inapropriações – Programa-frente...291

(14)
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Como ler esta cartografia

Este mapa está dividido em partes independentes, mas que se relacionam intrinsecamente na argumentação da tese.

As Instruções iniciais e as Instruçõesfinais apresentam as informações acadêmicas sobre o trabalho, introduzem a pesquisa e trazem as reflexões finais sobre o estudo, bem como as referências utilizadas.

Os três corpos deste mapa-tese, Corpo vocal queer, Corpo vocal dissonante e Corpo vocal engendrado, formam os capítulos escritos durante a pesquisa. Eles podem ser lidos na ordem que x leitorx achar mais pertinente ou instigante.

Os apêndices, materiais resultantes da peça Pequeno Manual de Inapropriações, prática desta pesquisa, constam no último item do sumário.

Embora a paginação esteja aqui em uma ordem evolutiva, ela não designa necessariamente a sequência obrigatória da leitura, ficando o convite para x leitorx se aventurar na criação de sua própria sequência de textos.

Nesta cartografia, o “x” substitui as vogais indicadoras de gênero “a” e “o” nas palavras, a fim de tentar tornar a linguagem menos sexista. Esta substituição, assim como a substituição das vogais indicadoras de gênero por “@” ou outros símbolos, vem sendo utilizada por pesquisadorxs e ativistas dos movimentos feministas, principalmente na internet2. Para a leitura, sugiro que x leitorx substitua o “x” pela vogal que mais lhe aprouver.

2

(17)

Duas perguntas e uma instrução

Quantos desejos de ser você já teve? Tente lembrar. Dos corpos, dos gestos, das vozes. Feche os olhos por um minuto. (Arrisque-se, feche mesmo). Não precisa me ler agora, eu espero.

* * *

Por que são apenas desejos?

* * *

Escolha uma destas memórias-de-desejos. Escolha um gesto e um som que se relacionem para você com esta memória. Faça ambos com seu corpo e voz. Saia de casa repetindo o gesto e o som por um percurso aleatório (ida ao mercado, farmácia, parque). Procure explorar o tempo do gesto, do som, e dos intervalos. O tempo é seu, faça o que quiser com ele. Olhe para as pessoas e deixe-se olhar. Dê um tempo. Viva o seu desejo. Se não agora, depois. Viver não pode ser inapropriado.

(18)

Apresentação do mapa

Esta tese partiu do seguinte problema de pesquisa: como é possível desestabilizar o binarismo logocêntrico da representação de gênero em cena através da voz?

Considero como binarismo a categorização hegemônica que divide os gêneros (representação de identidades sexuais) em homem e mulher, e que, no caso da voz, atrela características específicas (marcas de gênero) a vozes de homens e mulheres em cena, transformando-as em vocalidades engendradas3.

Então, uma pergunta anterior ao problema de pesquisa pode ser feita: existem vozes engendradas?

Pesquisas diversas das áreas da saúde4 procuram indicar diferenças anatômicas (constituição do corpo) e funcionais (produção de voz) das vozes de homens e mulheres. Contudo, será que estas pesquisas induzem a diferenciações generalizantes de tamanhos e espessuras de pregas vocais, e de registros e frequências médias de voz entre homens e mulheres? E será que estas diferenciações podem induzir, por sua vez, a práticas específicas de treinamento vocal para atores e atrizes?

Existem alguns indícios relevantes de vocalidades engendradas para a representação, que geralmente definem registros tonais mais agudos às mulheres e mais graves aos homens. Cito como exemplos o bel canto5italiano, que divide

3 Não encontrei este termo nas bibliografias por mim consultadas

durante esta pesquisa. Utilizo o verbo engendrar no sentido de atribuir características específicas a determinado gênero (gendering).

4

Principalmente na fonoaudiologia, área especializada na saúde vocal. Cf.: Sílvia Pinho (2007, 2009), e Mara Behlau e Roberto Ziemer (1988).

5 Bel canto é o nome dado à escola operística italiana surgida no

(19)

as vozes em naipes6 (grupos) específicos para homens e mulheres, e o livro A Construção da personagem7 (2004) do

diretor russo Constantin Stanislavski, no qual ela realiza comparações das vozes de atores e atrizes a instrumentos musicais, que também definem registros tonais mais agudos às mulheres e mais graves aos homens. Ambos os exemplos foram referências importantes para a minha formação de atriz, tanto em Joinville (2000-2003) quanto em Curitiba (2004-2007) e Florianópolis (2008-2015), sendo práticas e discursos recorrentes em aulas, oficinas e processos criativos dos quais participei8 nestas cidades. Estes indícios são relevantes para mim ainda hoje, na atualidade catarinense e florianopolitana, por serem discursos e práticas que eu presencio e percebo ainda representativamente replicados no treinamento e criação de algumas atrizes e atores locais contemporâneos. Eu vivenciei estas práticas através de escolas de música9 e

aveludado, serem ágeis, uniformes e leves. Cf. SILVA, SCANDAROLLI, 2010.

6 Os naipes mais conhecidos, em uma relação descendente de

alcance de notas, são: soprano (mulher – muito agudo), meio soprano (mulher – médio-agudo), contralto (mulher – médio-grave), tenor (homem – agudo), barítono (homem – médio-grave) e baixo (homem-muito grave).

7

Publicado originalmente em russo em 1948.

8 Como formação profissional, posso citar as seguintes experiências:

entre 2000 e 2003 participei da Companhia de Teatro de Repertório da Univille (Joinville-SC), tendo realizado diversas leituras dramáticas, montagens, apresentações e intervenções teatrais; entre 2004 e 2007 cursei o curso de Bacharelado em Artes Cênicas na Faculdade de Artes do Paraná (FAP-UNESPAR) e entre 2008 e 2015 cursei o Mestrado e o Doutorado em Teatro no Programa de Pós-graduação em Teatro da Udesc. Em todas estas experiências formativas tive aulas teóricas e práticas e participei de montagens como atriz (no mestrado e no doutorado estas montagens constaram das investigações práticas das pesquisas desenvolvidas por mim).

9 Em Joinville estudei canto voltado para teatro musical no

(20)

teatro, e também em grupos estudantis10 e grupos teatrais locais11 dos quais participei.

A hipótese desta tese é que um processo de queerização do corpo vocal na criação cênica desestabilize a representação binária de gênero (homem versus mulher), e consequentemente o logocentrismo androcêntrico12 que subjulga corpo vocal e gênero.

Queer13 é um termo utilizado pelas Teorias de Gênero para designar a não fixação de identidades sexuais. Este trânsito permite espaços para outros gêneros (lésbicas, gays, transexuais, transgêneros, etc.), que subvertem marcas binárias de gênero.

A peça Pequeno Manual de Inapropriações foi criada durante esta pesquisa e aparece nesta cartografia como a corporificação da hipótese da tese. O trabalho concebido e performado por mim estreou em novembro de 2014, em Florianópolis-SC, e teve apresentações públicas nos dias 26, 27, 28 e 29 de novembro de 2014, no Centro de Artes da Udesc. Em 2015, apresentei nos dias 08 de março no SESC (Serviço Social do Comércio) de Joinville, em comemoração ao dia da mulher, e no dia 13 de março na própria Udesc, na Semana dos calouros do Centro de Artes em Florianópolis.

10

Além da já citada Companhia de Teatro da Univille, também participei da companhia estudantil Eros Pixote de Joinville, entre os anos de 1999 a 2001.

11

Participei da extinta Faunos Cia. Teatral, de Joinville-SC, entre os anos de 2003 e 2010.

12 Adriana Cavarero traz este termo em seu livro Vozes Plurais:

filosofia da expressão vocal (2011), fazendo referência às metafísicas platônica e cartesiana, que sobrepunham a razão (logos-linguagem) à corporeidade. A metafísica seria logocêntrica e androcêntrica, por relacionar a esfera da corporeidade à mulher (ciclos da vida: menstruação, gravidez), e a esfera da razão ao homem.

13 Segundo o dicionário Oxford, queer (do inglês) significa estranho,

esquisito. Como gíria, traz uma conotação semelhante ao termo

bicha no Brasil. Disponível em:

(21)

Procurei neste trabalho desestabilizar minha própria vocalidade engendrada e logocêntrica em cena, instaurando um tópos14 de compartilhamento de sensações e sentidos

instáveis, possível de repercutir politicamente na formulação de conceitos e na ação da audiência enquanto sujeitos sociais e políticos. Busquei um corpo vocal dissonante em suas marcas de gênero em cena, que pudesse instaurar novos modos de escuta e de produção vocal para artista e público através da proposta de linguagem do teatro performativo. Investiguei um corpo vocal queer autopoiético15, que procurou se reinventar nas suas relações consigo e com o mundo, e que pode ter causado certo estranhamento ao público pelas dissonâncias apresentadas em suas (re)invenções.

Mesmo com pesquisas sendo desenvolvidas significativamente no Brasil a partir dos anos 2000 através de dissertações e teses nas áreas das artes da cena e da música16, o campo de estudos sobre criação/composição vocal para a cena contemporânea (teatro performativo, teatro pós-dramático, performance art) ainda é pouco abordado no país. E neste quesito, esta pesquisa pretende contribuir parcialmente com a investigação de procedimentos para a criação vocal cênica em teatro performativo, através de uma perspectiva crítica pós-feminista, de desconstrução de gêneros.

Utilizo nesta cartografia o termo corpo vocal17, trazido

por três diferentes pesquisadores: o filósofo suíço da

14 Do grego lugar. 15

Segundo os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1998), os seres vivos são seres autopoiéticos, que se formam e se transformam continuamente através das relações com suas estruturas internas (corpo) e com o meio.

16

Cf.: LIGNELLI, 2011; MARTINS, 2004 e 2008; STOROLLI, 2009; VARGENS, 2005. Estas obras, utilizadas nesta pesquisa, são exemplos de pesquisas sobre voz em cena (treinamento e criação vocal), desenvolvidas através de dissertações e teses em programas de Pós-graduação em Artes Cênicas, Teatro e Música no Brasil.

17

(22)

vocalidade Paul Zumthor (2010), a fonoaudióloga e preparadora vocal brasileira Lúcia Helena Gayotto (2005 e 2009) e a filósofa feminista italiana Adriana Cavarero (2011 e 2012).

Zumthor (2010) utiliza o termo corpo vocal para fazer referência às diversas manifestações de poesia oral, que envolvem a presença de uma voz corporificada na realização da obra artística. Já Gayotto conceitua o corpo vocal “[...] a partir do princípio de que corpo e voz são indissociáveis e que, consequentemente, procura-se a dilatação da voz e de suas sonoridades nos encaixes posturais do corpo” (GAYOTTO, 2009, p. 766). Por sua vez, Cavarero (2011 e 2012) utiliza este conceito para ressaltar a indissociabilidade psicofísica entre corpo e voz.

Para Cavarero, o termo corpo vocal reintegra a unicidade da voz enquanto fenômeno de sua fisicalidade sonora (materialidade corporal) e singularidade:

[...] a voz faz alusão a um corpo, singular, mas não lacrado em sua autossuficiência individual, que se abre e acolhe o outro, afinando a música do corpo para os ritmos da vida18 (CAVARERO, 2012, p. 81).

A autora, nascida em 1947, é uma pensadora italiana contemporânea de grande importância, com quem eu dialogo em vários momentos desta pesquisa. Muito influenciada pelo pensamento da filósofa feminista alemã Hannah Arendt

Paul Zumthor (2010) também abordam este conceito, porém sem relação com Cavarero. Zumthor (2010) utiliza o termo para fazer referência às diversas manifestações de poesia oral, que envolvem a presença de uma voz corporificada na realização da obra artística.

Já Gayotto conceitua o corpo vocal “[...] a partir do princípio de que

corpo e voz são indissociáveis e que, consequentemente, procura-se a dilatação da voz e de suas sonoridades nos encaixes posturais

do corpo” (GAYOTTO, 2009, p. 766).

18“[...] the voice alludes to a body, singular but not sealed off in its

(23)

1975), Cavarero critica o logocentrismo metafísico que nasce na Grécia antiga com Platão e Aristóteles, ganhando força na Europa no século XVII com o pensamento iluminista de René Descartes. O logocentrismo metafísico reduz a voz (corpo) a um mero veículo da linguagem (razão), em detrimento de sua corporeidade afectiva pré e pós semântica. Nesta perspectiva ela problematiza ainda os binarismos que separam homem e mulher, razão e corpo, e imagem e som, e o atrelamento platônico da corporeidade da voz a uma esfera feminina e de menor importância do que a esfera masculina da linguagem (abstração mental).

Deste modo, eu me apoio no pensamento de Cavarero para propor a voz em cena como produção de corporeidade afectiva, e não apenas um meio para a linguagem (palavra).

Para Cavarero, existe ainda uma unicidade na voz que define a singularidade dos sujeitos em suas relações sociais. Por isso, o título da única obra traduzida para o português da autora, Vozes Plurais: Filosofia da expressão vocal (2011). Esta unicidade caracterizaria mesmo a pluralidade de vozes: não existe para a autora uma voz, pois cada um possui sua singularidade que diferencia seu ser no mundo.

Como Cavarero é uma filósofa feminista da chamada corrente essencialista19 ou da diferenciação, a unicidade para ela poderia indicar uma fixação de características que comporiam a singularidade de um corpo vocal, embora a autora não ratifique este pensamento em sua obra. Cavarero (2011) afirma mesmo que o destino da voz é o devir (vir a ser).

Assim, em minha apropriação do conceito de corpo vocal, abordarei claramente esta unicidade como uma singularidade mutante20, a partir da perspectiva queer de não fixação de identidades.

19

As feministas essencialistas refletem sobre possíveis diferenças ontológicas entre os gêneros, o que acarretaria particularidades específicas à mulher e às suas produções.

20 Para Félix Guattari e Sueli Rolnik, “a singularidade é um conceito

(24)

No grande panorama das Teorias de Gênero, abordo principalmente a obra Problemas de gênero (1998), da filósofa feminista americana Judith Butler. Nascida em 1956, Butler é uma importante filósofa pós-estruturalista, que inaugura a discussão sobre o queer nas Teorias de Gênero. Butler discute o gênero e o sexo como construções culturais, afirmando que o gênero é performativo, ou seja, se dá a partir da repetição de gestos e características socialmente atribuídas. Ela investiga também gêneros dissonantes, estranhos (queer) ao binarismo heteronormativo (homem x mulher). Os gêneros queer21 são, para a autora,

desestabilizadores de ideologias hegemônicas.

O conceito de dissonância aparece neste mapa duplamente: como desestabilização de padrões de representação de gênero a partir do pensamento de Butler, e como desestabilização de padrões de escuta e produção vocal.

Os sons dissonantes22 são aqueles não eleitos culturalmente para fazer parte da musicalidade (qualidade musical do som) e da vocalidade (qualidade vocal) das sociedades: soam como ruídos, sons desagradáveis, desafinações. Um som dissonante não apresenta regularidade de vibração em sua onda sonora, é instável e inconstante. Apesar de consonância e dissonância estarem em relação o tempo todo na música, utilizo aqui o conceito de

que podem ser imaginários” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 68). Segundo estes filósofos, a singularidade se dá na relação do corpo com o mundo, nas interações internas e externas, e está, portanto, sempre em transformação. Utilizo o conceito de singularidade mutante em diálogo com estes pensadores.

21 Tais como dragqueen, dragking, transexual, transgênero, etc. 22

O Dicionário Informal de Português cita sinônimos e antônimos para o termo dissonância. Entre os sinônimos apresentados, estão termos como: desafinação, desarmonia, discordância, poluição sonora, diferente, desigual, desorganização e instabilidade. E entre os antônimos citados, estão: consonância, concordância, harmonia,

som agradável e igual. Cf.:

(25)

dissonância para me referir a sonoridades que não possuem centralidade de aceitação na produção sonoro-vocal e escuta em determinados grupos sociais.

As patologias vocais23 que transformam a qualidade vocal tida como padrão de normalidade e a exploração de vocalidades descontextualizadas dos padrões estabelecidos culturalmente (o canto harmônico tuvano sendo realizado no Brasil, por exemplo) são exemplos de vozes dissonantes em seus contextos de produção.

Assim, utilizo o conceito de corpo vocal dissonante para pensar a criação vocal cênica que privilegia as sonoridades queer da voz, estranhas, inabituais em seus contextos de produção, capazes de reinventar a singularidade dx atuante e não fixar representações de gênero.

Minha perspectiva se apoia também no entendimento de vocalidade e gênero como processos autopoiéticos, acoplamentos contínuos entre a pessoa e o meio. Autopoiesis, do grego autoprodução, é um conceito formulado pelos pesquisadores chilenos da área da biologia Humberto Maturana e Francisco Varela. Maturana e Varela publicaram em 1973 o livro De maquinas y seres vivos: autopoiesis la organización de lo viviente para analisar os seres vivos como seres que se autoproduzem nas suas relações internas e externas ao corpo: um processo de produção circular, que acontece em uma rede de relações, acoplamentos (MATURANA, VARELA, 1998).

Eu me aproprio nesta cartografia dos conceitos filosóficos de corpo vocal, queer e dissonância, do conceito acústico de dissonância e do conceito biológico de autopoiesis para refletir sobre a criação vocal em cena. Os autores que fundamentam estes conceitos não tiveram como objetivo analisar o meu foco temático, a representação de gênero em cena através da vocalidade. Todavia, suas importantes teorizações criam o suporte argumentativo para a criação desta cartografia em seus capítulos móveis: Corpo Vocal

23

(26)

Engendrado, Corpo Vocal Dissonante e Corpo Vocal Queer.

Como esta cartografia não é uma resposta definitiva ao problema de pesquisa, mas sim um caminho de invenção24, este mapa indica os percursos-problemas-conceitos-procedimentos que encontrei como possibilidades para o meu caminho.

Estes capítulos procuram pistas para relacionar os conceitos anteriormente expostos com momentos específicos da consolidação de pensamentos sobre a voz em cena.

As bibliografias sobre produção vocal encontradas por mim para esta pesquisa perpassam basicamente por três campos: criação/composição vocal para a cena; treinamento e técnica vocal; e fisiologia da voz. Não destaco a pedagogia da voz como outro campo de estudos, por entender justamente que ela compreende todos estes campos supracitados, assim como a antropologia, a sociologia, a filosofia da voz e as ciências cognitivas influenciam diretamente os princípios e metodologias das práticas vocais.

O primeiro campo de estudos da voz (criação/composição vocal para a cena), que é o foco central desta pesquisa, é abordado através de artistas do teatro como Constantin Stanislavski, Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e Roy Hart, e artistas da Arte da Performance como Laurie Anderson. Escolhi estxs diretorxs, atuantes e pensadorxs da cena por considerá-lxs expoentes nas pesquisas vocais e influências para a dramaturgia atoral do século XX, e também por me inquietarem como artista e pesquisadora. Do mesmo modo, durante os percursos deste mapa realizo diálogos com obras de outrxs artistas que me influenciam de algum modo. Estxs artistas são estudadxs e retomadxs por pesquisadorxs

24 A psicóloga e pesquisadora Virgínia Kastrup (2012) parte de

(27)

recentes da área de voz no teatro, como a professora de voz da Unb entre 1991 e 2011 Sílvia Davini25 (2007), e a pesquisadora sueca especialista em retórica, voz e teatro Jacqueline Martin (1991).

O segundo campo de estudos (treinamento e técnica vocal) traz produção atual significativa de alguns profissionais das áreas de fonoaudiologia, música e teatro. Utilizo as pesquisas sobre voz e canto das musicistas Tutti Baê e Mônica Marsola (2009), assim como a pesquisa de Tutti Baê com a fonoaudiológa Cláudia Pacheco (2011), para indicar pressupostos, práticas e terminologias utilizadas no treinamento vocal contemporâneo de cantorxs. Do mesmo modo, utilizo pesquisas dos professores de voz dos cursos de teatro da Universidade Federal de Santa Catarina, Janaína Martins (2008), da Universidade de Brasília, César Lignelli (2011), e da Universidade Federal da Bahia, Meran Vargens (2005), procurando dialogar com discursos contemporâneos no treinamento vocal de atores. Ainda com este intuito, abordo obras da fonoaudióloga e preparadora de atores Lúcia Helena Gayotto (2005 e 2009), do pedagogo da ecologia sonora, o americano Murray Schafer (1991 e 2001), e da pesquisadora e professora de voz Wânia Storolli (2009, 2011, 2012).

Finalmente, o terceiro campo de estudos da voz que investigo neste mapa apresenta bibliografias advindas basicamente de profissionais da fonoaudiologia e fisiologia, reconhecidos por suas relevantes pesquisas sobre fisiologia da voz. Estes são recorrentes referências nas pesquisas recentes sobre o tema, como François Le Huche e Jacques Allali (2005), Sílvia Pinho (2007, 2009), Mara Behlau e Roberto Ziemer (1988) e Mara Behlau e Paulo Pontes (2009).

Como metodologia, este mapa-tese procura espaço no campo da pesquisa qualitativa fenomenológica, a partir de dois métodos: a autoetnografia e a cartografia.

A autoetnografia surge neste processo como um encontro que estabeleci comigo mesma. Não foi sempre uma relação prazerosa. Por muitas vezes, descobrir-me

25

(28)

binária e cartesiana no meu cotidiano, nos meus princípios, no meu processo de criação e de escrita. Precisei (e preciso) me reinventar, não só no processo de pesquisa, mas na vida. Assumir os riscos de ser e fazer. Bagunçar a ordem, cortar e colar para criar um mapa de mim mesma. Neste processo de encontro que atravessa este mapa-tese, não só minhas práticas artísticas, mas minhas observações e ações no mundo entram como materiais relevantes no desenvolvimento da pesquisa.

Segundo Sylvie Fortin, professora do Departamento de Dança da Universidade de Quebéc, em Montreal, o método autoetnográfico de pesquisa permite à pesquisadora-artista levar em conta sua biografia e subjetividade enquanto produção de materiais para a pesquisa (dados autoetnográficos). A autora também explica que os estudos práticos “[...] repousam sob a premissa de que a prática artística será melhor compreendida se colocada em relação ao pensamento e ao agir dos praticantes.” (FORTIN, 2009, p. 78). Deste modo, esta tese desdobra-se a partir de minhas experiências como pesquisadora, artista, professora e produtora cultural, até a prática desta pesquisa, a peça Pequeno Manual de Inapropriações, e aponta também para o diálogo com outrxs artistas que me influenciaram nesta jornada.

A outra metodologia trazida nesta pesquisa é a cartografia. Este foi um encontro às cegas, realizado após o exame de qualificação, na etapa final de redação da tese, que revelou para mim o meu próprio processo de pesquisa e criação, e me fez repensar a estrutura do trabalho.

(29)

necessariamente lineares e hierárquicas, mas sim rizomáticas, como em um mapa: “eis, então, o sentido da cartografia: acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas” (PASSOS, KASTRUP, ESCÓCIA, 2009, p. 10). Esta tese-mapa se fez e se apresenta neste campo, no acompanhamento do meu próprio processo no(s) território(s) da pesquisa, na elaboração conceitual e na experiência artística.

Nesta cartografia autoetnográfica, optei por saber com26 a pesquisa, e não sobre ela. O saber com implica na

necessidade de abertura e disponibilidade dx pesquisadorx para se relacionar e se transformar durante o processo de contato com o objeto de pesquisa, problematizando e transformando a própria pesquisa no encontro com o inesperado (ALVAREZ, PASSOS, 2009).

Por isso apresento neste mapa que agora divido com você o caminho que trilhei a partir do problema de pesquisa. Este caminho é formado por rizomas independentes, mas que se relacionam.

Em Corpo Vocal Engendrado eu procuro investigar possíveis construções de vocalidades engendradas em cena. Para isso, eu contextualizo o território da crítica feminista (Teorias de Gênero) e problematizo a vocalidade e o gênero

26

(30)

como acoplamentos contínuos entre a pessoa e o meio, a partir do conceito de autopoiesis, de Humberto Maturana e Francisco Varela. Também apresento pistas sobre a influência da retórica e do logocentrismo no teatro realista de Constantin Stanislavski (1863-1938) - ícone do Teatro Moderno europeu e grande referência na formação de atores na contemporaneidade27 - e possíveis relações destes territórios com o engendramento de vocalidades em cena.

Em Corpo Vocal Dissonante eu investigo desestabilizações de marcas específicas de gênero em corpos vocais em cena. Neste contexto, aponto o trabalho de Antonin Artaud (1896-1948), Jerzy Grotowski (1933-1999) e Roy Hart (1926-1975) como precursores de pesquisas por um corpo vocal dissonante na atuação. Escolhi estes três artistas por serem eles referências notáveis nas pesquisas em voz no teatro do século XX, e influências para o meu próprio trabalho e pensamento sobre a voz em cena. Nesta parte do mapa, discorro também sobre a importância da escuta nos processo de formação de vocalidade, e sobre a escuta queer como ampliação do repertório sonoro-vocal dx ouvinte, desestabilizando vocalidades engendradas. Analiso ainda a performance art e o teatro performativo como territórios propícios aos corpos vocais queer, que desestabilizam padrões hegemônicos de vocalidade e representação de gênero em cena.

Em Corpo Vocal Queer eu experimento a queerização do meu corpo vocal em cena. Deste modo, discorro sobre o processo de criação da peça Pequeno Manual de Inapropriações, que teve como objetivo explorar procedimentos de criação de um corpo vocal queer em performance. Apresento também os apêndices desta

27

(31)

pesquisa: materiais gerados no processo de criação e apresentação da peça Pequeno Manual de Inapropriações.

A inspiração para a utilização de instruções, tanto na prática da pesquisa quanto no corpo da escrita da tese, veio da leitura do livro The Fluxus Performance Workbook (2002), que apresenta uma série de instruções criadas por diversos artistas para seus eventos/performances.

(32)
(33)
(34)

Notas preliminares

28

“On ne naît pas femme, on le devient.”29

Simone de Beauvoir

Meus pais disseram que eu nasci

mulher. Mas não concordei rapidamente

com a ideia. Apesar dos vestidos (que eu

sujava a toda hora escorregando em

barreira) e dos lacinhos (que não duravam

um minuto sequer na cabeça), na primeira

oportunidade que eu tinha, desmanchava

todo o figurino. Lembro que perto dos cinco

anos cortei os longos cabelos, xodós de meu

pai, sozinha. Avistei a furtiva oportunidade

em uma tesoura que pairava reluzente na

cômoda do quarto de casal vazio. Aos sete

anos lembro também de ter os cabelos

curtíssimos. Na casa de praia de meus pais,

conheci a neta de uma vizinha, e por

ordens superiores (da mãe e da avó) nos

tornamos amigas de verão. Porém, em

minhas memórias, lembro que só contei

para ela que eu era uma menina (de

cabelos curtíssimos), e não um menino, no

28 Excertos de textos contidos em Corpo Vocal Engendrado foram

publicados em formato de capítulo de livro, sob o título

“Corporeidade e performatividade vocal – Reflexões sobre voz e palavra em cena”. In: ALEIXO, Fernando Manuel (org.) Práticas e Poéticas Vocais – vol. 1. Uberlândia: EDUFU, 2014.

29

(35)

final da estação. Assim, minhas memórias

(reais ou inventadas) me revelam uma de

minhas primeiras representações conscientes

de um papel

30

. Parece difícil acreditar hoje

que minha coleguinha tivesse me dado

alguma credibilidade, visto que foi minha

mãe quem fez as devidas apresentações. Mas,

para mim, essa era a verdade: eu era

realmente um menino brincando na praia.

Tempos

depois,

tive

uma

fase

andrógina, na adolescência. A partir dos 13

anos cresceu meu interesse por blusas e

calças extremamente largas (como as de

meu irmão, mais velho do que eu). Os

cabelos,

novamente

longos,

eram

diariamente

imobilizados

com

gel,

previamente presos em um rabo-de-cavalo

baixo. Eu achava ótima a solução da roupa

larga

devido

à

tamanha

desproporcionalidade do meu corpo em

desenvolvimento: 1,70 m de altura, 48 kg,

peitos e pés grandes, pernas finas. Também

achava genial a existência de um composto

tão eficaz na dominação e controle do

cabelo rebelde, meio liso, meio crespo, e

assimetricamente volumoso. Mas curioso

mesmo era passar pelas ruas

fazendo

30

(36)

serviços bancários para minha mãe ou

passeando à noite com meu irmão e sua

namorada: as pessoas me olhavam, e

apresentavam

imediatamente

uma

(37)

Como ler esta parte do mapa

Nesta parte do mapa, eu busco pistas pontuais para refletir sobre possíveis discursos de engendramento de vocalidades em cena. Refiro-me ao termo engendramento (gendering) no sentido de atribuir marcas específicas (e binárias – homem x mulher) à representação de gênero, inscritas na voz dx atuante.

Para tecer estas problematizações, eu contextualizo o território da crítica feminista e das Teorias de Gênero. Apoio-me no pensaApoio-mento da filósofa feminista Judith Butler (2003), que aborda o sexo e o gênero como construções culturais naturalizadas em um sistema androcêntrico e heteronormativo.

Deste modo, procuro também questionar possíveis naturalizações da produção vocal a partir de discursos que abrangem aspectos fisiológicos da voz. Estes discursos determinariam características ou espaços específicos de produção vocal a partir da diferença sexual para homens e mulheres, e para atores e atrizes?

Na cena, tais espaços (construídos também a partir da identidade de gênero) podem se relacionar, ao meu ver, com os registros vocais (produção tonal/ de frequências mais agudas, médias ou graves), com os aspectos tímbricos da voz (de ressonância) e com a valorização da capacidade retórica dx atuante (pensamento/razão/logos) em cena, em detrimento da exploração das sonoridades da voz enquanto corporeidades afectivas.

(38)

físico-sonora (corporeidade) é tida por estes filósofos como um elemento menor na comunicação oral, volátil, e relacionada à esfera humana feminina (mulheres).

Assim, procuro em pesquisas sobre a retórica relacionada ao teatro algumas pistas para tentar compreender possíveis relações entre voz e palavra em cena. Apoio-me em pesquisadorxs da história do teatro que apontam algumas influências da retórica na formação de atuantes até o século XX, e oferecem pistas sobre as relações entre voz, palavra e representação de gênero em cena.

Meu argumento nesta parte do mapa-tese se constrói no intuito de perceber a vocalidade e o gênero enquanto acoplamentos31 (inter-relações entre o corpo e o meio), e não apenas construções estritamente biológicas ou culturais. Neste sentido, compreendo as pistas de discursos sobre engendramentos vocais na cena trazidos aqui como reflexos e influências dos contextos nos quais xs artistas estão inseridxs. Esta abordagem visa apontar os caminhos da crítica feminista e da escuta queer que estão presentes nesta cartografia.

31

(39)

Sobre feminismos e gêneros

O conceito de gênero, introduzido nos estudos psicanalíticos por Robert Stoller em 1964, estabeleceu uma primeira diferenciação entre sexo e gênero. Para o médico americano, o sexo está relacionado com a formação biológica do indivíduo (fisiologia, morfologia, sistemas funcionais), enquanto o gênero se relaciona com a construção psicossocial do indivíduo a partir de seu sexo (STOLLER, 1968), ou seja, a representação física da identidade sexual.

Após a primeira onda do movimento feminista32, que se desenvolveu principalmente no Reino Unido e nos Estados Unidos entre o final do século XVIII e o início do século XX - com mulheres requerendo igualdade de direitos, como direito à propriedade e ao voto -, a segunda onda do movimento feminista ganhou força nas décadas de 1960 e 1970 também na Europa e nos Estados Unidos da América, disseminando-se para diversos outros paídisseminando-ses desde então. Desta vez as militantes lutavam pela igualdade cultural e política entre homens e mulheres e pelo fim da discriminação pautada na diferença sexual.

Assim como a crítica feminista anglo-americana, as teóricas francesas realizaram neste momento reflexões e releituras da história construída, registrada e analisada a partir da perspectiva masculina. A precoce obra da filósofa francesa Simone de Beauvoir, O segundo sexo (1949), inspirou diversas autoras a questionarem a “[...] construção cultural da mulher como Outro [...]” 33 (THORNHAM, 2001, p. 34), ou seja, a partir do que não é homem.

A obra do psicanalista francês Jacques Lacan também é fonte de fundamentação de discurso e crítica das teóricas feministas francesas (THORNHAM, 2001, p. 40). Lacan afirma que a criança é inserida na ordem simbólica social a partir da

32 Cf.: GAMBLE, 2001.

33 [...] cultural construction of woman as

Other [...]” (Tradução

(40)

linguagem, e que esta media o aprendizado simbólico da representação de gênero (THORNHAM, 2001, p. 41). Teóricas como Julia Kristeva (1988), Hèléne Cixous (2000) e Luce Irigaray (1985) se apoiam em Lacan para refletir sobre as relações e construções de gênero nas sociedades patriarcais falocêntricas e binárias.

O filósofo francês Michael Foucault é outra importante referência na construção da teoria crítica feminista. Suas pesquisas revisitam práticas sociais históricas como práticas de poder, controle e subjugação, e construção do sujeito. Os estudos culturais, assim como os estudos de gênero e a teoria crítica feminista, apoiam-se no discurso foulcautiano para problematizar o corpo a partir de noções de sexo, gênero e etnia.

Segundo a pesquisadora Sarah Gamble (2001), os discursos normativos que constroem as representações das identidades sexuais (ou seja, os gêneros) começam a ser desestabilizados durante a terceira onda34 do movimento feminista, conhecida também como pós-feminismo, que se insere em parte da filosofia e teoria critica feminista desenvolvida a partir da década de 1980. Ela afirma que diversas pesquisadoras começam a questionar a universalidade dos gêneros construídos culturalmente e o binarismo sexual.

Por outro lado, a pesquisadora Tina Chanter (2011) explica que as múltiplas identidades geradas nos diferentes contextos geopolíticos passam a ser fatores fundamentais para se pensar as relações de poder nas sociedades, e as normatizações e naturalizações de comportamentos e interações. Chanter diz que etnia e classe social surgem como categorias importantes na interpretação e reinterpretação feminista das relações sociais em diferentes contextos sociais e históricos, aproximando o feminismo das teorias pós-colonialista e pós-estruturalista. Assim, segundo a autora, o gênero expande sua conceituação para uma construção

34 Sarah Gamble sugere o termo terceira onda no capítulo

(41)

individual de identidade, não atrelada apenas à diferença sexual e sedimentações culturais de representação de gênero, mas sim à performatização de subjetividades e identidade sexual. Esta diferença marca a passagem da segunda para a terceira onda do movimento feminista, e o gênero deixa de ser apenas um conceito “[...] branco, burguês e heterossexista [...]” 35 (CHANTER, 2011, p. 32), passando a levar em conta também etnia e classe social como mecanismos políticos na construção de identidades sexuais.

Ao questionar a hegemonia da matriz heterossexual na cultura euroamericana36, a filósofa feminista americana Judith Butler desestabiliza as representações normativas de gênero (homem x mulher), problematizando as próprias interpretações biológicas de sexo (feminino x masculino). Butler (2003) convida à discussão sobre a materialidade do corpo e a performatividade do gênero.

35 A autora faz menção às militantes americanas e europeias da

segunda onda do movimento feminista, na sua maioria mulheres brancas, de classe média e heterossexuais, que não priorizavam as questões raciais, de classe social, de diversidade sexual e de diversidade de gênero em suas demandas políticas, ou seja, de outras classes sociais, de outras etnias e de outras identidades sexuais (gêneros) que não as suas.

36 Uma obra de referência para a construção dos argumentos

(42)

Utilizando a teoria dos Atos da Fala do inglês John Austin (1975) com colaboração de John Searle, Butler assume o conceito de performatividade na criação de práticas discursivas sobre os corpos.

Citando Austin, a filósofa afirma que “[...] o performativo é a prática discursiva que promulga ou produz aquilo que nomeia.” 37 (BUTLER, 1998, p. 283). Deste modo, discursos são legitimados como práticas, e representações de gênero são naturalizadas como identidades sexuais. A “[...] crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (BUTLER, 2003, p. 22) é um ponto central na obra de Butler. Ela reafirma o pensamento da teórica feminista francesa Monique Wittig ao citá-la:

A “nomeação” do sexo é um ato de dominação e coerção, um ato performativo institucionalizado que cria e legisla a realidade social pela exigência de uma construção discursiva/perceptiva dos corpos, segundo os princípios da diferença

sexual. Assim, conclui Wittig, “somos

obrigados, em nossos corpos e em nossas mentes, a corresponder, traço por traço, à ideia de natureza que foi estabelecida por

nós... ‘homens’ e ‘mulheres’ são categorias políticas, e não fatos naturais”. (BUTLER,

2003, p. 168).

Tanto Butler quanto Wittig desestabilizam os conceitos de sexo e gênero em suas obras, afirmando que ambos podem revelar a construção de discursos performativos (com potencial de acontecimento) sobre os corpos (matéria). O gênero pode mesmo ser um conceito obsoleto, delator do binarismo heteronormativo homem/mulher, e precisa ser revisto, vista a multiplicidade de identidades sexuais existentes (lésbica, gay, transexual, transgênero, intersexual,

37

(43)

pansexual, bissexual, etc). Citando Wittig, Butler afirma que a própria categoria mulher revela uma identidade de gênero relacional:

A mulher, argumenta ela [Wittig], só existe como termo que estabiliza e consolida a relação binária e de oposição ao homem; e essa relação, diz, é a heterossexualidade. (BUTLER, 2003, p. 164).

Butler (2003) afirma ainda que a ideia de gênero só é possível através da repetição dos atos de gênero, requerendo para tal uma performance repetida e naturalizada, que identifique o gênero. Os atos de gênero são marcas, gestos, signos intencionais, culturalmente atribuídos aos gêneros, e repetidos para serem mantidos como naturais.

Como tais atos de gênero poderiam ser, então, desestabilizados?

Butler (2003) aponta para práticas de subversão de gênero, como práticas que misturam as instâncias de significação corporal (corpo anatômico) e os atos de gênero. Ao discorrer sobre uma performancedrag, Butler explica que:

[...] há três dimensões contingentes na corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. Se a anatomia do performista já é distinta de seu gênero, e se os dois se distinguem do gênero da performance, então a performance sugere uma dissonância não só entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre gênero e performance. Por mais que crie uma imagem unificada da “mulher” (ao

que seus críticos se opõem

(44)

implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência. (BUTLER, 2003, p. 196).

Segundo Butler (2003), tais performances dissonantes de gênero desestabilizam a naturalização do próprio gênero, e sua consequente representação em atos performativos: são práticas que subvertem o sistema heteronormativo de identidade sexual e identidade de gênero.

Partilhando pressupostos ideológicos e epistemológicos semelhantes à Butler, a filósofa feminista espanhola Beatriz Preciado propõe em seu livro Manifesto Contra-sexual a “[...] desconstrução sistemática da naturalização das práticas sociais e do sistema de gênero.” 38 (PRECIADO, 2002, p. 19).

Procurando fugir do binarismo e das oposições – homem x mulher, masculino x feminino, heterossexualidade x homossexualidade, etc. – a autora propõe uma teoria do corpo performativo, e afirma que o sistema sexo/gênero é uma tecnologia de poder (PRECIADO, 2002, p. 19), que visa à produção de corpos sexuais:

O gênero não é simplesmente performativo (ou seja, um efeito das práticas culturais linguístico-discursivas) como queria Judith Butler. O gênero é antes de tudo protético, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. É puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. Escapa das falsas dicotomias entre o corpo e a alma, a forma e a matéria. O gênero se assemelha ao vibrador. Porque os dois ultrapassam a imitação. Sua plasticidade carnal desestabiliza a distinção entre o imitado e o imitador, entre a verdade e a representação da verdade, entre a referência e o referente, entre a

38

(45)

natureza e o artifício, entre os órgãos sexuais e as práticas de sexo. O gênero pode ser uma tecnologia sofisticada que fabrica corpos sexuais39. (PRECIADO, 2002, p. 25).

Além de ser performativo, o gênero, segundo Preciado, é uma tecnologia de poder que ultrapassa a evocação, corporificando-se. As categorias de gênero se manteriam, então, como características que são repetidas constantemente, a fim de que o referencial não seja esquecido. Preciado afirma que a escritura do corpo (PRECIADO, 2002, p. 23) é uma tecnologia que transforma a história da humanidade na “[...] história da produção – reprodução sexual, em que certos códigos se naturalizam, outros caem elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados.” 40

Butler e Preciado são filósofas que desenvolvem seus pensamentos no campo da Teoria Queer. A Teoria Queer é um campo de estudos que surge a partir da terceira onda feminista, e que abrange estudos sobre gêneros não heteronormativos (gays, lésbicas, transexuais, transgêneros, etc.), questionando as construções culturais de discursos

39 “El gênero no es simplesmente performativo (es decir, un efecto

de las prácticas culturales lingüístico-discursivas) como habría querido Judith Butler. El gênero es ante todo prostético, es dicir, no se da sino en la materialidad de los cuerpos. Es puramente construído y al mismo tiempo enteramente orgánico. Escapa a las falsas dicotomías metafísicas entre el cuerpo y el alma, la forma y la materia. El género se parece al dido. Porque los dos pasan de la imitación. Su plasticidad carnal desestabiliza la distinción entre lo imitado y el imitador, entre la verdad y la representación de la verdad, entre la referencia y el referente, entre la naturaleza y el artifício, entre los órganos sexuales y las prácticas de sexo. El género podría resultar una tecnologia sofisticada que fabrica

cuerpos sexuales.” (Tradução minha).

40 “[...] historia de la producción-reproducción sexual, en la que

(46)

sobre sexo e gênero, e seus reflexos na sociedade e na política.

Tanto Butler (1998, 2003) quanto Preciado (2002) concordam na existência da naturalização de códigos socioculturais como fatores biológicos, nos quais tanto gênero quanto sexo não seriam fatores dados a priori, mas sim a posteriori, com objetivos de coerção política. Mas, ao refletir sobre a multiplicidade de gêneros como múltiplas representações de identidades sexuais, não poderíamos pensar em invenção de gêneros?

Os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1998), ao cunharem o conceito de autopoiesis para explicar os processos de autonomia na organização dos seres vivos em seus processos cognitivos e relacionais, levam em conta a autoprodução do ser vivo na relação consigo (interna) e com o meio (externa). Assim como cada ser se autoproduz individualmente devido as suas peculiaridades internas e externas, e à percepção e relação com estas, podemos supor que o gênero também faz parte da autopoiesis do ser.

Essa (re)invenção de si (que pode ser constante, mutável, instável) se dá pelo acoplamento entre o ser e o mundo, transformando tanto um quanto o outro nesta relação (MATURANA; VARELA; 1995):

Tal circularidade [conhecer o conhecer, conhecer a nós mesmos], tal encadeamento entre ação e experiência, tal inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o mundo nos parece ser, indica que todo ato de conhecer produz um mundo. (MATURANA, VARELA, 1995, p. 68)

(47)

autonomia. Neste sentido, podemos entender o gênero como uma de nossas práticas de acoplamento, por ser relacional e construído enquanto identidade.

Nossas recriações de nós mesmxs no mundo podem refletir as operações de reinscrição e recitação (práticas de repetição e naturalização) de códigos sociais (PRECIADO, 2002, p. 23), ou subvertê-los através de dissonâncias, em acoplamentos constantes.

E, sendo possível compreender o gênero como acoplamento, seria possível também compreender a voz como acoplamento?

A voz é uma produção corporal, e uma produção de corporeidade. A partir das discussões de Butler (2003) e Preciado (2002) sobre sexo e gênero, poderíamos pensar que estas práticas de naturalização de atos de gênero estariam inscritas também na vocalidade atrelada aos diferentes sexos. E, do mesmo modo, que práticas subversas de gênero, que apresentam dissonâncias em suas corporeidades significantes, compreendam também a produção vocal.

Na peça Pequeno Manual de Inapropriações, prática desta pesquisa abordada no Corpo vocal queer deste mapa-tese, eu procurei subverter a representação binária de gênero em cena estabelecendo relações dissonantes entre minhas corporeidades significantes (sexo, identidade de gênero e performance de gênero - de acordo com Butler, 2003).

As dissonâncias que busquei para estas instabilizações vieram, sobretudo, da presença da voz em cena, mas também levaram em conta toda a esfera visual do espetáculo (corpo, figurino, espaço, etc.). Considerei nesta investigação alguns discursos sobre a produção vocal atrelada aos diferentes sexos, e procurei problematizá-los tanto em cena quanto nos itens que vêm na sequência deste mapa.

(48)

Fisiologia da produção vocal

Meu intuito nestes próximos itens do mapa é problematizar discursos científicos sobre a produção vocal, para refletir se estes discursos estariam fixando os espaços de produção da voz a partir da diferença sexual.

Abordo esta questão por considerar que estes discursos possam também trazer determinadas visões sobre o corpo e sobre a produção da voz, visões estas que não estariam isentas de ideologia. Como Butler (2003) questiona a própria visão sobre o corpo biológico (sexo) para refletir sobre a construção cultural de gênero, eu procurarei questionar estes discursos amplamente reproduzidos nas áreas dos estudos da voz no Brasil para refletir sobre possíveis influências destes no treinamento e criação vocal de atuantes no teatro.

Em Voz: o livro do especialista vol.1 (2008), Mara Behlau convida fonoaudiólogos e otorrinolaringologistas brasileiros de destaque em suas áreas de atuação para colaborar na escrita do livro, sob sua organização. Behlau é pesquisadora, fonoaudióloga e fundadora do Curso de Especialização em Voz do Centro de Estudos da Voz (CECEV), em São Paulo.

No capítulo Anatomia da laringe e fisiologia da produção vocal, Mara Behlau, Renata Azevedo e Glaucya Madazio sintetizam algumas das principais teorias da produção da voz, e afirmam que

(49)

caos à laringe. (BEHLAU, AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 33).

Segundo as autoras, a maior parte das teorias da produção vocal foi desenvolvida no decorrer do século XX. Há ainda outras além destas citadas por elas, mas explicarei brevemente estas que elas apresentam como principais teorias da produção vocal.

A Teoria Mioelástica-aerodinâmica, estabelecida pelo médico holandês Jamwillem Van den Berg (1920-1985), que segundo as autoras é a mais aceita mundialmente (BEHLAU, AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 37), traz como pressuposto que o som é produzido pela elasticidade dos músculos das pregas vocais e pela pressão de ar subglótico.

Já a Teoria Neurocronáxica, descrita pelo foniatra francês Raoul Husson (1901-1967), afirma que “os impulsos nervosos vibram as pregas vocais na mesma frequência do som.” (BEHLAU, AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 33).

Por outro lado, a Teoria do Caos, mais recentemente aplicada à produção vocal, traz como conceito central a noção de que “a laringe é um sistema caótico, não-linear e altamente sensível.” (BEHLAU, AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 33), o que para as autoras “[...] parece oferecer explicações bastante interessantes e adequadas sobre as produções vocais alteradas e aperiódicas, normais ou disfônicas.” (BEHLAU, AZEVEDO, MADAZIO, 2008, p. 37).

Não há uma teoria universalmente aceita sobre a produção vocal, e que dê conta de todas as explicações necessárias para a diversidade de produções vocais, tanto tidas como normais quanto como patológicas (disfonias).

A Teoria Neurocronáxica leva em conta o processo elétrico envolvido na produção vocal (impulsos nervosos enviados pelo córtex ao sistema nervoso), além do processo mecânico (movimentos musculares) que a Teoria Mioelástica-aerodinâmica postula.

(50)

[...] é a única que aborda especificamente o estudo da produção de voz em altas intensidades, uma exigência para o trabalho do professor e do ator. As demais teorias citadas têm foco nas patologias vocais surgidas da produção coloquial e não profissional da voz e palavra. (LIGNELLI, 2011, p. 228-229).

Ainda na perspectiva da Teoria Neurocronáxica, Behlau, Azevedo e Madazio (2008, p. 19) afirmam que “o controle da função laríngea evoluiu filogeneticamente de um simples reflexo para uma rede complexa e interdependente, em diversos níveis do sistema nervoso”, e que “a aquisição de produção vocal voluntária exigiu o desenvolvimento de uma série de vias que conectam a musculatura laríngea e as áreas cerebrais correspondentes” 41. Aqui, a proposição da Teoria Neurocronáxica de que tanto a energia elétrica quanto a mecânica estão envolvidas na produção da voz é ratificada pelas autoras.

Segundo Mara Behlau (2008), François Le Huche e André Allali (2005) e Sílvia Pinho (2009), a voz é geralmente42 produzida durante a expiração, com a passagem de ar pela glote (espaço localizado na região mediana da laringe, que abriga as pregas vocais) e com a vibração simultânea das duas pregas vocais.

Os foniatras franceses François Le Huche e André Allali (2005) afirmam que nas atividades vocais coloquiais, a inspiração é ativa (gera tensões musculares) e a expiração é

41 Lignelli (2011, p. 225-226) também discorre sobre a evolução

filogenética do aparato vocal. Todavia, como pretendo fazer apenas uma breve abordagem sobre a produção da voz neste texto, não discorrerei sobre estes aspectos, ficando ambas as referências como sugestão de leituras para aprofundamento.

42

(51)

passiva (gera relaxamento muscular). Já na voz projetada43,

segundo xs autorxs, tanto inspiração quanto expiração são geralmente ativas para possibilitar a produção e o controle vocal.

Le Huche e Allali (2005) explicam que o movimento respiratório envolve uma série de estruturas, sendo o diafragma e os músculos intercostais principalmente importantes no processo inspiratório, para ampliar a caixa torácica e permitir a expansão dos pulmões com o acúmulo de oxigênio. Xs autorxs seguem dizendo que estes músculos44, juntamente com a musculatura abdominal e pélvica, são imprescindíveis também para o controle da expiração para a produção vocal projetada, embora na fonação coloquial eles fiquem relaxados na expiração e tenham um menor acionamento.

Mara Behlau e o otorrinolaringologista Paulo Pontes (2009) explicam que as pregas vocais surgiram em nossa espécie com a função principal de proteger os pulmões. Elas são duas membranas constituídas por músculos e mucosa, horizontalmente acomodadas na glote, e que ficam relaxadas

43 Contexto de produção vocal no qual o emissor procura agir sobre

outras pessoas, como em palestras, apresentações de canto e teatro (LE HUCHE, ALLALI, 2005).

44

(52)

(sem tensão) e abertas para a passagem do ar inspirado ou expirado sem fonação (BEHLAU, PONTES, 2009). De acordo com Behlau e Pontes (2009), as pregas vocais selam a passagem de ar no caso de substâncias tóxicas presentes no ar, e tentam expelir alimentos e ou outras substâncias que por ventura possam ter passado pelo canal da laringe através da tosse.

Todavia, xs autorxs seguem explicando que na produção da voz, as pregas se tensionam para diminuir o fluxo de ar e gerar a vibração original da voz, conhecida como buzz laríngeo (BEHLAU, PONTES, 2009, p. 01). Xs autorxs explicam que esta protovoz possui intensidade débil, necessitando de amplificação e articulação posteriores.

Baseada nas pesquisas de Sílvia Pinho (1998), Willard Zemlin (2000), e Behlau, Azevedo e Madazio (2008), a pesquisadora e professora de voz do curso de Bacharelado em Teatro da Universidade Federal de Santa Catarina, Janaína Martins (2008, p. 51), afirma que

[...] a espessura e a extensão das pregas vocais determinam a quantidade de massa muscular em vibração, o que determina o

seu movimento oscilatório e

consequentemente os tons que serão gerados. O número de ciclos vibratórios produzidos pelas pregas vocais em um dado segundo é o que gerará a frequência fundamental.

Behlau e Pontes (2009) explicam que a frequência fundamental é medida em hertz (Hz), e diz respeito à quantidade de vibrações por segundo das pregas vocais.

Referências

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