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Em busca de corporeidades vocais dissonantes

Segundo Silvia Davini (2007), o diretor teatral italiano Eugênio Barba (1936-), do grupo Odin Teatret, considera a espacialidade da voz em relação com o corpo. Assim, a voz seria uma extensão invisível do corpo, mas plena de espacialidade como o próprio corpo (DAVINI, 2007, p. 69).

Já o ator e diretor teatral brasileiro Luís O. Burnier (1956-1995), fundador do grupo LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp, ao conceituar a ação vocal, afirma:

Se considerarmos a voz como um prolongamento do corpo, da mesma maneira como Decroux considerava os braços prolongamento da coluna vertebral, a voz seria como um “braço do corpo” (BURNIER, 2001, p. 56).

A partir destas perspectivas, e estabelecendo um diálogo com o conceito de corpo vocal trazido pela filósofa Adriana Cavarero (2012), podemos considerar que a voz age em cena através de sua materialidade físico-sonora. Para pensar a materialidade da voz em ação no evento teatral é então necessário considerar a sua corporeidade: a voz como uma extensão do corpo dx atuante, que age no tempo-espaço e toca os corpos presentes. Entender a voz como uma extensão do corpo é perceber sua existência indissociável do (e no) corpo e do (e no) espaço.

As estruturas físicas que geram a vibração primordial da voz (ossos, músculos, tecidos, etc.), que movem o ar dos pulmões para se transformar em som através da vibração das pregas vocais, e em seguida a amplificam em seus espaços internos (nos ressonadores e na expansão da vibração pelos ossos), movem o corpo internamente. A produção da vocalidade se modula no trabalho dos articuladores e se expande no espaço pela propagação da vibração da voz,

mobilizando mais uma vez as estruturas óssea e muscular do corpo nos apoios corporais, respiratórios e vocais necessários para a espacialização do som.

Mas o trabalho da atuação se realiza também na criação de uma corporeidade vocal expandida aos corpos da audiência através do espaço. A voz dx atuante, como produção de corporeidade, toca a audiência.

A partir de uma corporeidade vocal dilatada no espaço, talvez possamos pensar a voz em cena não apenas a serviço da linguagem, mas também como materialidade sonora que ativa um complexo processo cognitivo, envolvendo a escuta corporal, a memória e os sentidos (inclusive a propriocepção – a consciência do seu próprio corpo no tempo-espaço).

Assim, corporificar a voz em cena pode significar também a ativação da percepção da audiência de seus próprios corpos, da concretude de suas presenças no espaço teatral e no espaço da experiência vivida. Transformar a vocalidade em matéria de criação cênica, geradora de sentidos na encenação, é, ao mesmo tempo, criar um elo com as frequências vibratórias dos (e nos) corpos dxs atuantes e da audiência.

Esta relação é abordada pela filósofa Adriana Cavarero (2011) em sua crítica à metafísica androcêntrica e à desvocalização do logos85. Para a filósofa, como seres

85 Segundo Cavarero (2011, p. 50-51), “Logos deriva do verbo legein. Desde a Grécia arcaica, este verbo significa tanto ‘falar’ quanto ‘recolher, ‘ligar’, ‘conectar’. Isso não é surpreendente, uma vez que quem fala liga as palavras umas às outras, uma após a outra, recolhendo-as em seu discurso. Tampouco é estranho que, exatamente por isso, legein signifique também ‘contar’ e ainda mais propriamente ‘narrar’. Na sua acepção comum, o logos se refere à atividade de quem fala, de quem liga os nomes aos verbos, e a qualquer outra parte do discurso. O logos consiste essencialmente numa conexão de palavras. Justamente nesse plano da conexão, que ‘liga’ e ‘recolhe’ segundo determinadas regras, está centrada a atenção da filosofia. Centrada inclusive com prejuízo – mas talvez fosse melhor dizer: sobretudo com prejuízo – do plano acústico da palavra. O logocentrismo filosófico se interessa, principalmente, pela

políticos dotados de linguagem, a raça humana tem na voz um elo relacional de unicidades de corpos vocais:

Quanto ao comunicar-se na palavra, nada, de fato, comunica a unicidade mais do que a voz. Isso acontece não apenas na palavra, e ainda antes da palavra nas vocalizações infantis que precedem e inauguram a palavra, mas principalmente ocorre de acordo com o cânone relacional da ressonância que a musicalidade de cada língua, como língua falada, conserva. Do ponto de vista vocálico, o comunicar-se dos falantes está em sintonia com uma dupla relacionalidade. Uma se refere à unicidade de uma voz que é para o ouvido; a outra soa na própria musicalidade da língua. Ambas possuem uma substância física, corpórea. O logos que se reparte nas vozes [...] é um logos que vibra em gargantas de carne. Nesse sentido, a distinção entre o semântico e o vocálico alude à trama ineludível entre a universalidade de um registro linguístico, que organiza a substância incorpórea dos significados, e a articularidade de uma experiência encarnada, que se faz ouvir na voz. A palavra – voz e significado, mais do que voz significante – serve de ponte a essas duas margens. Mesmo quando ela comunica alguma coisa, obedecendo aos códigos universais da linguagem e às suas regras, comunica sempre vozes singulares e, ao mesmo tempo, a cadência ritmada de uma ressonância que as conecta. (CAVARERO, 2011, p. 229-230).

Apesar de Cavarero citar neste trecho apenas as vocalizações infantis como um lugar antes da palavra que

ordem que regula a conexão, isto é, pela linguagem como sistema da significação.”

comunica a unicidade do corpo vocal, a autora faz alusão em outros momentos de Vozes Plurais: filosofia da expressão

vocal (2011) a outros tipos de vocalização que sobrepujam a

presença da voz em relação à linguagem, como as vozes das sereias, na mitologia, e as vozes das sopranos coloratura, na ópera.

Todavia, a crítica essencial de Cavarero à metafísica androcêntrica e logocêntrica é em relação à desvocalização do logos, ou seja, à supervalorização da semântica da palavra em detrimento de sua relacionalidade sonora:

O sentido – ou, querendo-se, a relacionalidade e a unicidade de cada voz que constituem o núcleo desse sentido – transita da esfera acústica à palavra. Exatamente porque a palavra tem uma consistência sonora, falar é comunicar-se na pluralidade das vozes. Dito de outro modo, o ato de falar é relacional: isto que, nele, sempre e acima de tudo se comunica, para além dos conteúdos específicos que as palavras comunicam, é a relacionalidade acústica, empírica e material das vozes singulares. (CAVARERO, 2011, p. 29).

A comunicação, com ou sem palavras, entra neste panorama como uma relacionalidade entre corpos vocais singulares, não generalizáveis.

Nas artes do século XX, muitas vozes singulares das cenas, além de buscar desestabilizar a phoné semantiké aristotélica enquanto vozes significantes, procuraram estabelecer em suas relacionalidades comunicacionais possibilidades de sentidos múltiplos, e não apenas

significados únicos. Podemos questionar então, se a ênfase

no aspecto relacional do corpo vocal presente nestes territórios propunha uma participação ativa da audiência na obra, como coautora na criação dos sentidos da cena - sentidos estes que podem fazer emergir questões de gênero.

As vanguardas artísticas europeias do início do século XX trazem importantes contribuições neste panorama.

Philadelpho Menezes, na introdução do livro sob sua organização Poesia sonora: poéticas experimentais da voz no

século XX (1992), afirma que os sarais de poesia fonética e

poesia sonora, as experimentações vocais do teatro futurista, as improvisações dadaístas e as apresentações de polipoesia foram alguns dos experimentos vocais que redimensionaram a presença da voz nas artes. No teatro, o francês Antonin Artaud, integrante do movimento surrealista, trouxe influências desta vanguarda artística para sua proposta estética, como uma crítica ao teatro realista que se consolidava no período.

A pesquisadora teatral sueca, especialista em voz, Jacqueline Martin, reconhece em seu livro Voice in Modern

Theatre (1991) os movimentos da vanguarda europeia como

grande influência para o teatro que seria desenvolvido a partir da segunda metade do mesmo século. Como exemplos, neste período Jerzy Grotowski e Roy Hart desenvolveram pesquisas vocais que, assim como Artaud, influenciam grande parte do teatro contemporâneo.

Por outro lado, a pesquisadora americana RoseLee Goldberg, no livro A arte da performance: do futurismo ao

presente (2006) atribui a estas vanguardas a protocélula da performance art, que passou a ser considerada linguagem

artística (apartada das artes visuais ou do teatro) a partir de 1970, com expressão principalmente nos Estados Unidos e na Europa. E segundo Josette Féral (2008) a performance art trouxe grandes influências para o teatro contemporâneo, e consequentemente para a presença da voz no teatro performativo (FÉRAL, 2008).

Assim, as experimentações vocais desses movimentos e artistas (vanguardas europeias e artistas influenciados por estas vanguardas) caminhariam em direção à corporeidade vocal e sua relacionalidade sonora, propostos por Cavarero (2011, 2012), desestabilizando relações logocêntricas e binárias entre corpo, voz e linguagem?

Em seu livro Entre o ator e o performer (2013), o pesquisador e ator brasileiro Matteo Bonfitto (2013) relaciona

o a representação com a produção de significados pelx atuante e a presentação com a produção de sentidos. Sem propor um dualismo, mas colocando ambos os conceitos como tensões contínuas em obras cênicas contemporâneas, o autor contextualiza:

[...] os fenômenos e as experiências nesse âmbito quanto mais facilmente traduzíveis em palavras, mais próximos se localizariam do extremo “significado”; e vice-versa; quanto mais dificilmente traduzíveis em palavras, mais próximos estariam do extremo “sentido”. (BONFITTO, 2013, p. 113).

Tendo em vista que as palavras são elas mesmas representações de coisas (emoções, ações, objetos, etc.), a criação de sentidos (e não significados) em cena através da materialidade sonora do corpo vocal (que não está apenas a serviço da linguagem/representação) pode expandir as possibilidades de interpretação da obra pela audiência. Essa é uma ação que cria dissonâncias, instabilidades, espaços “entre” o que é reconhecível e a invenção dx artista.

Para Bonfitto (2013, p. 117), a produção de sentido é vista como uma instância que

[...] envolve a emergência de qualidades expressivas autorreferenciais não reduzíveis a signos, processo que se constitui, por sua vez, a partir da exploração de intensões e de suas implicações: articulações subjetivas profundas, instauração de campos relacionais que funcionam como agentes aglutinadores de fluxos perceptivos e como geradores de ações desprovidas de representação.

A autorreferencialidade aqui diz respeito aos processos subjetivos envolvidos na criação da ação e da

relação em cena, processos que não visam à mimesis de um universo empírico referencial, mas que resultam da invenção de possibilidades de existência dx atuante em cena. A autorreferencialidade em cena não supõe a representação dx outrx, mas representificações de possibilidades de si mesmx (inclusive como outro).

Então, seriam estas práticas de presentação (propondo criação de sentidos múltiplos em cena) e não de

representação (propondo criação de significados em cena)

práticas de corpos vocais dissonantes?

Vejamos como a questão da dissonância pode ser relacionada a estas práticas tanto na perspectiva da sonoridade da voz quanto do gênero.

O pesquisador e músico brasileiro José Miguel Wisnik afirma que "[...] os sons afinados pela cultura, que fazem a música, estarão sempre dialogando com o ruído, a instabilidade, a dissonância." (WISNIK, 1989, p. 27).

Assim, o que define o som como dissonante não é apenas sua frequência, mas qualquer um de seus parâmetros em relação ao contexto de produção. Existem dissonâncias rítmicas, de harmonia, ou até mesmo, como afirma o pesquisador canadense Murray Schafer "[...] variações em intensidade, altura, duração ou timbre, dentro dos perímetros do audivelmente possível.” (SCHAFER, 1991, p. 156).

Neste território dos sons, as vocalidades dissonantes promovem um estranhamento na escuta, mobilizam os sentidos e ativam a reflexão, pois algo está errado, descontextualizado, deslocado dos padrões hegemônicos do contexto de produção. O canto multifônico do ítalo-grego Demétrio Stratos86 - com destaque de vários harmônicos ao mesmo tempo e com alcance de até 7.000 Hz, a música experimental e a poesia fonética dadaísta do início do século

86

Demétrio Stratos (1945-1979) foi um cantor e pesquisador vocal grego naturalizado italiano. Stratos desenvolveu uma vasta pesquisa vocal, que envolvia técnicas vocais interculturais (como o canto harmônico), sonoridades não convencionais em bel canto, poesia sonora e outras investigações em técnica vocal estendida. Cf. EL HAOULI, 2000.

XX criam corpos vocais dissonantes para os padrões hegemônicos de escuta dos anos 1900 (e talvez também para o século XXI).

Assim, nestas práticas artísticas, a corporeidade da voz em sua dimensão afectiva parece ser levada em conta pelos artistas, assim como as dissonâncias entre voz e linguagem e voz e musicalidade.

Todavia, em minha reflexão, levo em conta uma possível dupla dissonância do corpo vocal: não apenas em relação à sonoridade (não hegemônica) da voz, mas também ao potencial de desestabilização de representação de gênero através da voz.

Para a filósofa feminista americana Judith Butler, as representações de gênero também podem ser dissonantes.

Butler afirma que:

Assim como as superfícies corporais são impostas como o natural, elas podem tornar-se o lugar de uma performance dissonante e desnaturalizada, que revela o

status performativo do próprio natural.

(BUTLER, 2003, p. 210).

A autora descreve os gêneros queer como práticas parodísticas de gênero, ou práticas de subversão, que exploram dissonâncias em suas marcas de gênero. Porém, estas práticas não devem ser entendidas em um sentido restrito de paródia como ato cômico, mas sim de paródia como ato político.

No teatro, podemos entender o queer como práticas de subversão de marcas hegemônicas de gênero no corpo e na voz dx atuante: desestabilizações de identidades fixas que revelam a singularidade dos corpos vocais dissonantes.

Deste modo, em busca de corporeidades vocais dissonantes em cena, contextualizo aqui alguns pressupostos e práticas dos artistas Antonin Artaud, Roy Hart e Jerzy Grotowski. Escolhi tais artistas por me inspirarem diretamente na criação da prática desta pesquisa, a peça Pequeno Manual

O foco do trabalho de Artaud, Roy Hart e Grotowski não foi a queerização de corpos vocais em cena, com o objetivo de desconstruir a representação de vocalidade atrelada a gênero. Porém, percebo em seus discursos sobre princípios da atuação e do trabalho vocal dx atuantes a instauração de uma relacionalidade entre os corpos vocais (dx atuantes e da audiência), que pode potencializar a criação de sentidos múltiplos em cena.

Além disso, Grotowski e Roy Hart, diferentemente de outrxs mestres do teatro, incentivaram a pesquisa de si por parte dxs atuantes, sem definir espaços prévios de vocalidade a partir da diferença sexual.

Talvez estas reflexões possam revelar algumas pistas de caminhos trilhados no teatro europeu do século XX em busca de corporeidades vocais dissonantes. As considerações que farei procurarão perceber como princípios de discursos e práticas destes artistas revelam caminhos potencialmente desestabilizadores de representações naturalizadas de vocalidades engendradas em cena.