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Nos caminhos desta pesquisa, o tema memória não me abandonou. Mas eu sempre soube que eu não queria falar sobre a memória, investigar os processos da memória... eu queria habitar minhas próprias memórias. Por quê?

Todo o processo de pesquisa para esta tese foi um processo doloroso, não só pelo cansaço - resultado do acúmulo das diversas atividades docentes realizadas na Udesc, das minhas atividades artísticas, das minhas atividades familiares e das minhas atividades de estudante – mas também pela (re)descoberta de mim mesma. Meu encontro com o território das Teorias de Gênero me fez (re)conhecer em minha história questões que para mim haviam sido superadas pela mulher independente que eu achava que tinha me tornado (memórias que sabiamente eu esqueci).

Assim, ao me (re)ver por vezes desacreditada, subjulgada, super julgada, ridicularizada, machista e binária, desmontei.

Quem eu era e quem eu queria ser?

Ao me deparar com estas projeções, que se davam nas leituras diversas, no acesso a entrevistas e obras de artistas através de vídeos, em espetáculos presenciais e em conversas com colegas, eu queria poder enfrentar meus próprios fantasmas.

O caminho da experimentação prática desta pesquisa, como comentei anteriormente, passou por alterações, esquecimentos e reinvenções. Após minha banca de qualificação, procurei não pensar mais em títulos para a prática, nem em estruturas. Eu queria abandonar um pouco meu eu-diretora/dramaturga e reencontrar meu eu-atriz.

Eu-atriz mergulhei novamente na pesquisa de alguns procedimentos de criação vocal para a emergência de memórias selecionadas - memórias-paradigma talvez -, em busca de ações e associações em meu processo criativo.

Através de anotações em meu diário de bordo e de alguns registros de vídeo, eu procurava após cada ensaio relações entre os materiais mais interessantes que eu havia criado.

Percebi aos poucos que estas memórias-paradigma tratavam de memórias vividas e inventadas de situações problemáticas para mim, situações que causaram de algum modo rompimento de relações, frustrações ou sentimento de impotência. Eram memórias inapropriadas, porque não resolvidas como ações. Eu iniciava meu percurso como aprendiz de “cartógrafa” no território existencial de minha pesquisa.

No texto Cartografar é habitar um território

existencial121 (2009), Johnny Alvarez e Eduardo Passos refletem sobre a metodologia da cartografia na pesquisa, e discorrem sobre a experiência do próprio Johnny Alvarez em uma pesquisa cartográfica sobre a capoeira de Angola. A questão principal que os dois autores trazem é sobre a habitação do território existencial da pesquisa:

Habitar um território existencial, diferente da aplicação da teoria ou da execução de um planejamento prescritivo, é acolher e ser acolhido na diferença que se expressa entre os termos da relação: sujeito e objeto, pesquisador e pesquisado, eu e o mundo. A cartografia introduz o pesquisador numa rotina singular em que não se separa teoria e prática, espaços de reflexão e de ação. Conhecer, agir e habitar um território não são mais experiências distantes umas das outras.

As memórias e materiais criados nas experimentações práticas me fizeram habitar o próprio

121 Capítulo do livro Pistas do método da cartografia: pesquisa- intervenção e produção de subjetividade. Cf.: PASSOS, KASTRUP,

território existencial da pesquisa, colocando-me em ação como aprendiz de cartógrafa.

Como habitante deste território existencial, selecionei os materiais criados pela inapropriação que eles me apresentavam: não apenas subversões nas relações de gênero e vocalidade em cena, mas subversões na ocupação de territórios. Os modelos normatizadores e estereótipos de beleza, feminilidade, masculinidade, religiosidade, política e convivência se transformaram em instruções ao contrário, um manual de inapropriações como provocações de como (não?) ser.

Para a sinopse da peça, escrevi o seguinte texto: O que é ser inapropriadx?

É fazer ou ser o que se pretende? É não ser o que se espera? E o que esperamos e fazemos?

É ser outra coisa, outra pessoa, outra voz, outro corpo, ou eu mesmx?

É sobre mim, apenas? Lembrar é inapropriado? E (vi)ver?

Este pequeno manual brinca com ecos de memórias: vozes, corpos e ações que permeiam modos de (não) ser (?). É feito um convite à vivência de experiências sinestésicas através de memórias (re)inventadas, reveladas pelo corpo vocal engendrado e desconstruído em cena. Ao público é destinado o papel de coautor da obra, na apreensão singular do acontecimento teatral, na responsividade à cena e na disponibilidade de ser humano.

A proposta estética da peça parte de investigações sobre a arte da performance e o teatro performativo, as possibilidades de (re)criação do corpo vocal em cena e (des)construções de gênero. O espetáculo demanda um espaço intimista e de liminaridade entre atriz e público, arte e ritual, f(r)icção e realidade(s).

A desconstrução que eu proponho na sinopse da peça diz respeito à noção de identidade fixa. A cada cena da peça- performance, seis ao total, a performatividade implica em transformações da vocalidade e da representação de gênero em cena, procurando desconstruir a unicidade enquanto

fixação de identidade, para transformá-la em potência de transitoriedade de territórios de vocalidade e gênero.

Não comecei este processo de criação pensando logo no começo da peça. Já havia exercitado meu esquecimento após a banca de qualificação, e tentei esquecer-me de minha extrema necessidade de estruturação e metodologia.

Procurei exercitar minha posição de cartógrafa assumindo o espaço da pesquisa com algo, e não sobre algo. Procurei estar ao lado: “estar ao lado sem medo de perder tempo, se permitindo encontrar o que não se procurava ou mesmo ser encontrado pelo acontecimento” (ALVAREZ, PASSOS, 2009, p. 137).

Então, como os experimentos deste processo foram diversos e aleatórios, sendo organizados num roteiro que defini (mas sem ser inflexível) apenas antes da estreia oficial da peça, resolvi neste mapa não seguir a cronologia dos ensaios, reflexões e criações dos materiais, mas seguir o roteiro da peça, para exercitar agora o contrário de meu último desafio: agora é/era preciso tentar lembrar.

Assim, estas reflexões misturam meus eus nos tempos vividos e vivente do exercício de rememorar. Comecemos, então, com o começo.

“Bem-vindxs a este pequeno manual de inapropriações”, diz a diva-drag.